quarta-feira, 17 de junho de 2015

100 anos de Rubem Braga - Crônica & Política no Brasil.

                                                  Ubiracy de Souza Braga*

Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos”. Rubem Braga, 1958.


Ele foi o mestre absoluto da crônica um gênero considerado menor em relação ao poema, ao conto e ao romance. Como jornalista, Rubem Braga exerceu as funções de repórter, redator, editorialista e cronista em jornais e revistas do Rio de Janeiro, de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife. Foi correspondente de O Globo em Paris, em 1947, e do Correio da Manhã em 1950. Amigo de Café Filho, vice-presidente e depois presidente do Brasil, foi nomeado Chefe do Escritório Comercial do Brasil em Santiago, no Chile, em 1953. Em 1961, com os amigos Jânio Quadros (cf. Braga, 2011) na Presidência e Affonso Arinos no Itamaraty, tornou-se Embaixador do Brasil no Marrocos. Mas Rubem Braga nunca se afastou do jornalismo. Fez reportagens sobre cultura, economia e política na Argentina, nos Estados Unidos, em Cuba, e em outros países. Quando faleceu, era funcionário da TV Globo. Seu amigo Edvaldo Pacote, disse: “O Rubem era um turrão, com uma veia extraordinária de humor. Uma pessoa fechada, ao mesmo tempo poeta e poético. Quando não estava apaixonado por uma em particular, estava apaixonado por todas. Eu o levei para Globo. Ele escrevia todos os textos que exigiam mais sensibilidade e qualidade, e fazia isto mantendo um grande apelo popular”.
            Na crônica, intitulada: “A empregada do Dr. Heitor”, afirma o seguinte: - Era noitinha em Vila Isabel... As famílias jantavam. Os que ainda não haviam jantado chegavam nos ônibus e nos bondes. Chegavam com aquela cara típica de quem vem da cidade. Os homens que voltam do trabalho da cidade. As mulheres que voltam das compras na cidade. Caras de bondes, caras de ônibus. As mulheres trazem as bolsas, os homens trazem os vespertinos. Cada um entrará em sua casa. Se o homem tiver um cachorro, o cachorro o receberá no portãozinho, batendo o rabo. E se o homem tiver filhos, os filhos o receberão batendo palmas. Ele dará um beijinho mole na testa da mulher. A mulher mandará a empregada pôr a janta, e perguntará se ele quer tomar banho. Se houver rádio, o rádio será ligado. O rádio tocará um fox. Ouvindo o fox, o homem pensará na prestação do rádio, a mulher pensará em outra besteira idêntica. O homem dirá à empregada para dar comida às crianças. A mulher dirá que as crianças já comeram. A empregada servirá a mesa. Depois levará os pratos. Depois irá para o portão. O homem conversará com mulher dizendo: ´mas, minha filha, eu não tive tempo...`. A mulher ficará um pouco aborrecida e como nenhum dos dois terá ânimo para discutir, ela dirá:  ´mas, meu bem, você nunca tem tempo...`. Então o homem, para concordar com alguma coisa, concordará com o seguinte: empregada atual é melhor que a outra. A outra era muito malcriada. Muito. Era demais. Essa agora é boazinha. Depois, sem propósito nenhum, o homem dará um suspiro. A mulher olhará o relógio. O homem perguntará que horas são. A mulher olhará outra vez, porque não tinha, recuperado.
Pode-se dizer que os conceitos de “história”, “crônica” e “anais” em parte se confundem. Entretanto, originalmente, uma crônica difere de uma “história” no sentido em que a crônica é uma enumeração relativamente rígida dos eventos. Ou seja, é dominada pela cronologia, enquanto uma história é uma forma mais literária, em que os eventos descritos são selecionados cuidadosamente para transmitir uma ideia específica. Anais, por outro lado, são uma lista de anos com pouca informação associada. Os cronistas históricos na Idade Média frequentemente escreviam com profundidade e eloquência. De maneira que na prática os conceitos de “história” e “crônica” se confundem. Uma  crônica é um relato de eventos históricos em ordem temporal. A palavra é oriunda do latim chronica, que por sua vez está relacionada ao grego chrónos (tempo). As crônicas históricas originaram-se na Antiguidade, e foram comuns na Idade Média e Renascimento europeu. Ainda hoje é narrada com ênfase de contos policiais.
Ao longo da época medieval houve uma tendência a que os cronistas adotassem a língua vernácula de cada região para a redação de suas obras. Grandes crônicas foram redatadas em francês, alemão, castelhano, catalão e outras línguas. Em Portugal, a produção de crônicas em língua portuguesa tomou grande impulso no século XIV com a Crônica Geral de Espanha de 1344, da autoria de Dom Pedro Afonso, conde de Barcelos (1287 - Lalim, 1354) foi, segundo algumas fontes, o primeiro filho natural de D. Dinis e de D. Grácia Froes (de identificação insegura). Poeta e trovador como seu pai teve um papel de relevo na vida política e, sobretudo cultural do seu tempo, a ele se ficando a dever uma boa parte dos mais importantes textos da literatura medieval portuguesa. Considerado o inventor da crônica moderna brasileira, Rubem Braga vem atravessando gerações com seus textos sobre cenas cotidianas, sempre com a roupa da língua comum. Dos grandes autores brasileiros de prosa, foi o único que nunca escreveu um romance - e mesmo assim é considerado um dos maiores escritores do país.

No século XV o principal cronista foi Fernão Lopes (Lisboa, entre 1380 e 1390 - Lisboa cerca de 1460) foi guarda-mor da Torre do Tombo, tabelião geral do reino e cronista dos reis de Portugal D. João I e D. Duarte e do infante D. Fernando, autor de diversas crônicas dedicadas ao reinado dos primeiros reis portugueses. Atualmente, a crônica é um gênero literário que explora qualquer assunto, principalmente os temas do cotidiano (cf. Heller, 1972). Geralmente escritas para serem publicadas em jornais e revistas - que, mais tarde, podem ou não ser reunidas em livro - a crônica se caracteriza pelo tom humorístico ou crítico. De maneira geral, a Crônica do conde Pedro Afonso “segue o modelo cronístico castelhano desenvolvido a partir da Primeira Crónica Geral de Espanha, escrita na corte de Afonso X no último quartel do século XIII”, em que exalta o papel da monarquia e das conquistas portuguesas na história hispânica e na cruzada contra o Islão, diminuindo a primazia castelhana nesse processo.
A Crônica de 1344 é considerada a mais importante das crônicas historiográficas portuguesas anteriores ao século XV e um marco da prosa medieval em língua portuguesa. O legado cultural do Conde de Barcelos é um dos mais importantes da Idade Média peninsular. D. Pedro foi certamente o compilador (ou pelo menos o último compilador) das cantigas dos trovadores galego-portugueses. No seu testamento deixa um Livro de Cantigas ao seu sobrinho, Afonso XI de Castela, que “se pensa ser o arquétipo dos cancioneiros manuscritos que chegaram até nós”; esse cancioneiro nunca chegou à posse de Afonso XI e não se sabe do seu paradeiro. Excelente trovador, D. Pedro deixou quatro cantigas de amor e seis cantigas de escárnio, onde o humor (com a malícia característica do gênero) se alia a um notável sentido rítmico e musical.


Sem dúvida, a crônica não é um gênero recomendável a quem almeja a posteridade. Afinal, os cronistas normalmente escrevem: - “para o dia seguinte e seus produtos, como se fossem modernos palimpsestos, são substituídos no outro dia. Certamente, as crônicas duram mais um pouco mais quando são publicadas em revistas, e sua glória absoluta é aparecerem em livro. Hoje, com a internet e os blogs, as crônicas são publicadas instantaneamente e talvez sejam ainda mais voláteis. O tempo de exposição das crônicas nas capas dos sites é variável e sua glória mais duradoura é a de continuar aparecendo nas pesquisas do Google ou, e aqui voltamos ao ponto comum, em livro. Temos e tivemos excelentes cronistas em nosso país. Tivemos, por exemplo, Nelson Rodrigues e Stanislaw Ponte Preta, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, Millôr Fernandes e o sobrevivente - ainda bem! - Luís Fernando Verissimo. Mas tivemos um solitário cronista que se orgulhava de ter nascido em Cachoeiro do Itapemirim e que foi o maior de todos eles: Rubem Braga” (cf. Ribeiro, 2013).    
Modernamente a crônica é o gênero literário que se concentra em acontecimentos da “vida cotidiana”, no sentido que emprega Agnes Heller os quais, à primeira vista, podem parecer banais para qualquer pessoa, mas “que ganham sua devida importância na visão do cronista”. Tais acontecimentos sejam elas pertencentes “à vida política, esportiva, social, literária ou policial, são sempre comentados sob o ponto de vista de seu Autor, adquirindo a crônica um estilo peculiar a este”. Portanto, é de autoria, é no âmbito da formação de “sujeito literário” que estamos nos referindo nestas notas de leitura. E é pelo estilo simples, ágil como quem furta e poético que o cronista atrai o leitor para sua obra, utilizando para isto de uma linguagem “leve, informal, com a presença de diálogos, toque de humor, sarcasmo e mesmo de que se aproxima do nosso modo de ser mais natural”. A linguagem da crônica é, pois, a) descompromissada das construções rebuscadas, da sintaxe rica, dos adjetivos em excesso, e de tudo aquilo que a torna distante da vida real, b) ajustando-se desta forma, ao lirismo do nosso dia-a-dia. A crônica, às vezes, pode ser confundida, c) com o conto, pelo fato de ser a criação de uma nova realidade. No entanto, o que difere - analisando através da linguagem - é que na crônica, d) existe agilidade e simplicidade; faz uso de recursos orais (como os diálogos frequentes), e de coloquialismos, que a tornaram mais próxima, e, de certa forma, melhor compreensível ao leitor.
Seu primeiro livro de crônicas, O Conde e o Passarinho, foi publicado em 1936 pela editora José Olympio. Na crônica que dá nome ao volume está escrito: “Minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser conde”. Nunca foi conde, sempre trabalhou muito, apesar da fama de ser um ermitão de temperamento introspectivo, mas ganhou um apelido nobiliárquico: era chamado de “O Príncipe da Crônica”. Seus temas sempre foram às ruas das cidades onde viveu, as suas árvores, seus pássaros - adorava descrevê-los -, as mulheres, a infância, o mar, os amigos, a saudade e a morte. Escreveu também muitas crônicas políticas, mas não as selecionava para seus livros. Era um homem de esquerda que foi ficando cada vez mais cético a respeito do discurso político. Na crônica Despedida, Rubem Braga descreve a angústia da seguinte forma: - E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval - uma pessoa se perda da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito - depois aconteceu que não se encontraram mais. 
- Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado - sem glória nem humilhação./Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito./E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?/Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras - com flores e cantos. O inverno - te lembras - nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil./Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus./ A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo”  (cf. Braga, 1967: 83).
Publicada em jornal ou revista, destina-se à leitura diária ou semanal e trata de acontecimentos cotidianos. A crônica se diferencia no jornal por não buscar exatidão da informação. Diferente da notícia, que procura relatar os fatos que acontecem, a crônica os analisa, dá-lhes um “colorido emocional”, mostrando aos olhos do leitor uma situação comum, vista no singular. O leitor pressuposto da crônica é urbano e, em princípio, um leitor de jornal ou de revista. A preocupação com esse leitor é que faz com que, dentre os assuntos tratados, o cronista dê maior atenção aos problemas sociais do modo de vida urbano, do mundo contemporâneo, dos pequenos acontecimentos do dia a dia comum nas grandes cidades. É assim que podemos dizer que a crônica é uma mistura de jornalismo e literatura, mas o jornalismo não é literatura, é mera reprodução ideológica dos fatos sociais do dia a dia. De um recebe a observação atenta da realidade cotidiana e do outro, a construção da linguagem, o jogo verbal. Algumas crônicas são editadas em livro, para garantir sua durabilidade no tempo histórico e social.
Rubem Braga nasceu em Cachoeiro de Itapemirim em 12 de janeiro de 1913 e faleceu no Rio de Janeiro em 19 de dezembro de 1990. Foi um escritor lembrado “como um dos melhores cronistas brasileiros”. Era irmão do poeta e jornalista Newton Braga. Iniciou-se no jornalismo profissional ainda estudante, aos 15 anos, no jornal Correio do Sul, de Cachoeiro de Itapemirim, fazendo reportagens e assinando crônicas diárias no jornal Diário da Tarde. Formou-se bacharel pela Faculdade de Direito de Belo Horizonte em 1932, mas como muitos não exerceram a profissão, mas num certo sentido fizeram “jornalismo como missão”, para lembrarmo-nos de Sevcenko (1983). Euclides da Cunha e Lima Barreto são os escritores que Sevcenko elege como referência para traçar um panorama dos cruzamentos entre história, ciência e cultura no Brasil da passagem do século XIX ao XX, momento que marcou a entrada do país na modernidade, após as tardias  Abolição da Escravatura e o advento da República Velha.

Foto: Rubem Braga (esquerda em pé) com os correspondentes de guerra da FEB em 1944.

Na música “Meu pequeno Cachoeiro”, Roberto Carlos Braga se refere da seguinte forma sobre a “origem e o significado da cidade” (cf. Le Goff, 1969; 1988) em que nasceu. Ele foi um dos primeiros ídolos jovens da cultura brasileira, liderando o primeiro grande movimento de rock feito no Brasil. Além dos discos, estrelou um programa na TV Record, chamado Jovem Guarda e filmes inspirados na fórmula lançada pelos Beatles - tais como: “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”, “Roberto Carlos e o Diamante Cor-de-rosa” e “Roberto Carlos a 300 km por Hora”. Atualmente continua se apresentando com frequência e produz anualmente um especial que vai “ao ar” na semana do Natal pela Rede Globo, mesma época em que costumavam ser lançados seus discos anuais. Segundo a ABPD, o Roberto Carlos é o artista solo com mais álbuns vendidos na história da música do Brasil.               
Eu passo a vida recordando/de tudo quanto aí deixei/Cachoeiro, Cachoeiro/vim ao Rio de Janeiro/pra voltar e não voltei!/Mas te confesso na saudade/as dores que arranjei pra mim/pois todo o pranto destas mágoas/ainda irei juntar nas águas/do teu Itapemirim/Meu pequeno Cachoeiro/vivo só pensando em ti/ai que saudade dessas terras/entre as serras/doce Terra onde eu nascí!/Meu pequeno Cachoeiro/vivo só pensando em ti/ai que saudade dessas terras/entre as serras/doce Terra onde eu nascí!/Recordo a casa onde eu morava/o muro alto, o laranjal/meu flambuaiã na primavera/que bonito que ele era/dando sombra no quintal/A minha escola, a minha rua/os meus primeiros madrigais/ai como o pensamento voa/ao lembrar a Terra boa/coisas que não voltam mais!/Meu pequeno Cachoeiro/vivo só pensando em ti/ai que saudade dessas terras/entre as serras/doce Terra onde eu nascí/- Sabe meu Cachoeiro,/eu trouxe muita coisa de você/e todas essas coisas me fizeram saber crescer/e hoje eu me lembro de você,/me lembro e me sinto criança outra vez!/Meu pequeno Cachoeiro/vivo só pensando em ti/ai que saudade dessas terras/entre as serras/doce Terra onde eu nascí!!!” (Roberto Carlos).  
Num período - a Belle Époque - de negação do passado escravista e de forte espírito cosmopolita, os dois autores vislumbravam na literatura um projeto de país que levasse em conta as contradições históricas e literárias brasileiras. Nicolau Sevcenko demostra que a permanência das obras de Euclides e Lima se deve a esse sentimento de “missão” no sentido weberiano - animado por um impulso utilitário de atuação pública -, assim como à inventividade da linguagem que desenvolveram. Neste mesmo ano, cobriu a Revolução Constitucionalista de 1932 deflagrada em São Paulo, na qual chega a ser preso. Transferindo-se para Recife, dirigiu a página de crônicas policiais no Diário de Pernambuco. Nesta cidade, fundou o tabloide Folha do Povo. Em 1936 pôs no mercado seu primeiro livro de crônicas, O Conde e o Passarinho, e fundou em São Paulo a revista Problemas, além de outras. Durante a 2ª Guerra Mundial, atuou como correspondente de guerra junto à F.E.B. - Força Expedicionária Brasileira (foto).     
 Ele estava com 37 anos, novamente solteiro e feliz e retornava a Paris como correspondente do Correio da Manhã. Para quem havia participado da cobertura da 2ª Guerra Mundial (1939-45), a temporada parisiense soava, no mínimo, como uma trégua. O salário do jornal, esparsas colaborações para a revista Leitura, um biscate no Escritório Comercial do Brasil e o câmbio favorável permitiam que Rubem Braga, após peregrinar por pensões e prisões desnecessárias no Brasil, pudesse viver confortavelmente em Paris. Por tudo isso, 1950 tenha sido um dos melhores anos de sua vida. Retratos Parisienses reúne parte substancial da produção do cronista ao longo de 12 meses. O núcleo central é composto por textos escritos em 1950, na capital francesa. Além de assinar a breve crônica diária “Recado de Paris”, estampada na página 2 do Correio da Manhã, Rubem Braga realizou uma série de entrevistas ou reportagens destinadas ao suplemento de cultura. É surpreendente que tais entrevistas tenham permanecido inéditas em livro e, até hoje, não tenham recebido atenção dos estudiosos.
Elas são a melhor prova do quanto o correspondente Rubem Braga trabalhou firme. Entre os entrevistados figuram Pablo Picasso, Jean Cocteau, André Breton, Jean-Paul Sartre, Jacques Prévert, Juliette Gréco. Como se não bastasse a experiência pessoal, intensa e única de cada entrevista, o conjunto possui forte unidade. Elas conversam entre si. Por isso, o leitor reencontrará os primeiros entrevistados citados nas entrevistas subsequentes: Cocteau será criticado por Marie Laurencin, Jacques Prévert mandará lembranças a Chagall, Juliette Gréco fará o elogio de Sartre. É como se o cronista se aventurasse pela arte do retrato de escritores, pintores, atores e cantores. A dificuldade para definir o livro do ponto de vista do gênero não diminui em nada a sua importância: é exatamente na mistura de ângulos e falas, planos e colagens que reside o seu interesse” (cf. Massi, 2013).
            No ranking de autores com mais textos apócrifos na internet, Rubem Braga dificilmente figura entre os primeiros lugares, onde reinam os imbatíveis Clarice Lispector e Luís Fernando Verissimo - com Arnaldo Jabor e Martha Medeiros talvez “correndo por fora”. Assim como a fábula e o enigma, a crônica é um gênero narrativo. Como diz a origem da palavra, Cronos é o deus grego do tempo, narra fatos históricos em ordem cronológica, ou trata de temas da atualidade. Mas não é só isso. Rubem Braga é pai da crônica moderna, e o primeiro de fato a se consagrar com esse estilo tão difícil de definir e tão fácil de reconhecer. Impossível saber como Braga lidaria com as idiossincrasias da internet. O amigo Zuenir Ventura acha que, se vivo nos dias de hoje, ele dificilmente teria se envolvido com a rede. Reza a lenda que quando conheceu a fita K7 Rubem tentou por horas colocar a caixinha inteira dentro do aparelho, até perceber que tinha de abri-la. Ainda assim é curioso observar como uma de suas tantas crônicas “tem ares de profecia ao que vemos hoje no universo virtual”. A disseminação de histórias desta forma espontânea existe desde que o mundo é mundo, é claro.
            A fama e a condição de lírico não deve ser confundida com indiferença política. Rubem Braga fundou A Folha do Povo, no Recife, jornal comunista que foi fechado e seus redatores presos e espancados. Ele próprio, Rubem Braga, esteve preso no Recife antes de sê-lo em Porto Alegre. O que houve então para ele ser insistentemente identificado como apolítico? Ora, após seus 60 anos, durante o governo do general Médici e em plena vigência do AI-5, realmente houve um recuo do cronista em direção ao ceticismo. Mas a maneira como Rubem Braga descreve seu desejo, de maneira tão bonita quanto trivial, encontra um paralelo muito feliz com a discussão atual sobre a transformação do conceito de autoria - não só na internet, mas muito potencializada por ela, pois a chamada “internet de tudo” nasceu como conceito há uma década, dentro do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, e hoje é considerada a quinta fase da história da internet. Ipso facto, o norte-americano Michael Hart (1947-2011) dedicou 40 anos da sua vida a um projeto iniciado na Universidade de Illinois. O site gutenberg.org é detentor de 40 mil e-books gratuitos e mais de 100 mil disponibilizados através de sites parceiros, em 62 idiomas, entre eles o português. No mundo dos “memes e virais”, o lance é fazer a ideia virar faísca. O dono dela nem sempre fica em evidência, mostrando que, muitas vezes, a história merece a atenção total. É ela que faz o interlocutor virtual se emocionar, se revoltar ou, simplesmente, dar uma risada no meio de um pesado dia de trabalho.


Ele era “o único lavrador de Ipanema”, na definição do amigo Paulo Mendes Campos, e quem visita a cobertura de Rubem Braga na zona sul do Rio de Janeiro logo entende a boutade. Ipanema (foto) é um bairro nobre da cidade brasileira do Rio de Janeiro, fundado em 1894 por José Antônio Moreira, conde de Ipanema. Faz divisa com os bairros de Copacabana, Leblon e Lagoa Rodrigo de Freitas. O desenvolvimento da Zona Sul foi forçado pela chegada da corte portuguesa no século XIX, quando a população da cidade passou de 60 000 para 500 000 habitantes. A corte preferiu seguir rumo norte, em direção à Floresta da Tijuca, enquanto o corpo diplomático e os ingleses preferiram a Zona Sul, onde só havia vilas de pescadores.  O loteamento de Ipanema começou após a fundação da Villa Ipanema em 1894 pelo Conde de Ipanema.
Apesar de Ipanema ter-se desenvolvido antes que o Leblon, as terras de Ipanema também pertenceram ao francês Carlos Leblon, que as vendeu a Francisco José Fialho, que, por sua vez, as vendeu ao Conde de Ipanema em 1878. Interessado no loteamento da região, o Conde de Ipanema configurou as praças Marechal Floriano Peixoto, atual Praça General Osório, onde virou tradição a feira de Arte e Artesanato durante todo o dia de domingo, e Coronel Valadares, atual Praça Nossa Senhora da Paz, abriu a Avenida Vieira Souto, as ruas Alberto de Campos, Farme de Amoedo, onde existia o badalado píer de Ipanema, Prudente de Morais, Nascimento Silva, Montenegro, atual Vinícius de Moraes, nome dado em homenagem ao poetinha, 20 de Novembro, hoje a comercial e elegante Avenida Visconde de Pirajá, 4 de Dezembro, atual Teixeira de Melo, 16 de Novembro, hoje Jangadeiros, 28 de Agosto, atual Barão da Torre, entre outras.
 O período de maior adensamento do bairro se deu a partir da década de 1960, quando houve o avanço da especulação imobiliária sobre o bairro, substituindo-se casas por edifícios. Os preços dos imóveis dispararam e Ipanema passa a ser um dos bairros mais caros do Rio de Janeiro. Sinônimo de vanguarda, nos anos 1960 e 1970,  Ipanema foi palco do tropicalismo, da bossa nova, do Pasquim, do Teatro de Ipanema, da tanga e do topless. A vista da praça e da praia foi perdida por causa dos altos prédios que surgiram a partir dos anos 1970, mas ainda é possível avistar o mar, as ilhas, a estátua do Cristo Redentor, a lagoa Rodrigo de Freitas, o morro Dois Irmãos. Também continua lá o banco do jardim, em que o escritor sentava-se de manhã para ler jornal e fazer palavras cruzadas, ao lado da mangueira que compõe o imenso pomar com pitangueira, goiabeira, jabuticabeira, coqueiro e até um raro pé de araçá.
A “cobertura agrária”, como Millôr a definia, foi comprada em 1963 e se tornou uma espécie de academia de letras informal: amigos como Jorge Amado, Vinicius de Moraes, Clarice Lispector, Fernando Sabino e tantos outros eram convivas frequentes. O local dos encontros, regados a uísque, era a larga varanda, “que conserva mesinhas de tampo de mármore, típicas de boteco”, e cadeiras de madeira, além das redes. Famoso jardim do escritor Rubem Braga em Ipanema, no Rio de Janeiro. O interior da casa, com duas salas modestas e três suítes, uma delas de empregada, guarda pouco do velho Braga, que doou muita coisa para os amigos, em vida - livros, obras de arte etc. 

Bibliografia geral consultada. 

BRAGA, Rubem, Ai de ti, Copacabana. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960; Idem, A Traição das Elegantes. Rio de Janeiro: Editora Sabiá, 1967; HELER, Agnes, O Cotidiano e a História. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972; LE GOFF, Jacques, Por Amor às Cidades: Conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Fundação Editora da Universidade Estadual Paulista, 1988; SEVCENKO, Nicolau, Literatura como Missão - Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983; Idem, Machado de Assis, Crônicas Escolhidas. São Paulo: Editora Ática, 1994; SARAIVA, António José, O Crepúsculo da Idade Média em Portugal. Lisboa: Editora Gradiva, 1988; pp. 161-177; Idem, Iniciação à Literatura Portuguesa. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1999; LOPES, Cícero Nicacio do Nascimento, A Grande Dor das Coisas que Passaram: A Recordação Contemplativa na Crônica de Rubem Braga. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2012; artigo: “Rubem Braga entre Sartre, Matisse e Breton”. In: Folha de São Paulo, 13 de janeiro de 2013; RIBEIRO, Milton, “100 Anos do Mestre da Crônica Rubem Braga”. Disponível em: http://www.sul21.com.br/jornal/2013/01/; Artigo: “Mestre da crônica, Rubem Braga completaria 100 anos”. Disponível em: http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2013/01/; COLOMBINI, Maikely Teixeira, Rubem Braga: Um Cosmopolita Afeito à sua Província. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 2015; VEGARA, Anelise, Rubem Braga: Crônica e Censura no Estado Novo (1938-1939). Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências e Letras. Assis: Universidade Estadual Paulista, 2015; entre outros. 

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Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).

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