Giuliane de Alencar & Ubiracy de Souza Braga
“Eu digo com toda fé: De prata se faz arreio, faz faca, garfo e cuié”. Inácio da Catingueira
Talvez tenham sido os desafios
característicos de uma época da história social e política que transformaram a cultura da América Latina em um vasto
arsenal de fatos surpreendentes, insólitos, brutais, incríveis, encantados;
isto é, uma profusão de fantasias, maravilhas e barroquismos. Os impasses e as
façanhas de uma época permitem reler o passado e o presente. É como se um novo
horizonte iluminasse de repente todo o mural da história social, revelando
fatos e feitos que adquire outro movimento,
som, cor. O romancista pode ser um cronista “fora do tempo”, narrando o
imaginado e o acontecido segundo a luz que o ilumina. E o repentista é o poeta popular, par
excellence, do Nordeste. Esta é a tese que defendemos nestas notas. Assim, ele
pode representar “um estilo de olhar”, na medida em que está inserido no realismo mágico e parece uma superação
do realismo social, crítico. Tem sido visto como um estilo diferente, novo.
Mas
ele aparece na literatura latino-americana em dada época, mais do que em
outras. É no século XX, com as primeiras recepções de Jorge Luís Borges
estreando em livro em 1923, com os poemas reunidos em Fervor de Buenos Aires, em 1925 mostrando sua perspectiva como
ensaísta maduro, e logo depois, sendo renegado em seu livro, Borges, demonstrando sua
contraface de ensaísta, como no depois renegado Inquisiciones, entre outros, como Gómez de la Serna, Valéry
Larbaud, P. H. Ureña, premiado em 1929, na maioria dos casos Borges antes
provocou “a irritação de críticos e resenhadores”. Mas logo a reflexão por ele
iniciada assumirá outra direção. Em 1933, Anderson Imbert acusava Borges de não
ser “ni remotamente, un crítico ou un pensador nacional” e que pelos dois
motivos, figuras como ele “están ausentes del país”. No mesmo ano, R. Doll ia
além e informava que “sua prosa era anti-argentina!”.
A
arte do “trovadorismo”, proveniente da Península Ibérica, chegou ao chamado “Novo Mundo”, e floresceu tanto na Américas
Espanhola, quanto na Portuguesa. Houve um tipo de literatura popular em verso
no México, Chile, Nicarágua e Argentina muito parecida com o folheto nordestino.
Até a gravura popular usada para ilustrar os “corridos mexicanos”, e as “folhas
soltas” da lira popular chilena, apresentam características parecidas com a
brasileira, em particular nordestina, sem falar que muitos dos temas
aproveitados pelos autores da literatura de cordel nordestina também foram
explorados naqueles países. O que torna o romanceiro bastante singular, porém,
é o formato padrão adotado desde os primórdios por Leandro Gomes de Barros,
João Martins de Athayde, Francisco das Chagas Batista e outros importantes poetas-editores.
Não domino o tema, mas admiro-o, apenas isso, não pretendo mais que um olhar,
como para uma mulher que meu desejo, se me permitem dizer que é escolhida como
ponto de vista .
Leandro Gomes de
Barros (1865-1918) foi um poeta de literatura de cordel do nordeste brasileiro.
É considerado por alguns analistas como o primeiro escritor brasileiro de
literatura de cordel, tendo escrito mais de 230 obras. No seu tempo, era
cognominado “O Primeiro sem Segundo”, e ainda é considerado o maior poeta
popular do Brasil em todos os tempos, autor de vários clássicos e campeão
absoluto de vendas, com muitos folhetos que ultrapassam a casa dos milhões de
exemplares vendidos. Compôs obras-primas que eram utilizadas em obras de outros
grandes autores: Ariano Suassuna, por exemplo, utilizou a história do cavalo
que estercava dinheiro no seu Auto da
Compadecida. Depois de fundar uma pequena gráfica, em 1906, seus folhetos
se espalham pelo Nordeste, sendo considerado por Câmara Cascudo “o mais lido
dos escritores populares”.
Neste
sentido, para lembrarmo-nos da magnanimidade, segundo o poeta e escritor Carlos
Drummond de Andrade, homenageado com estátua na cidade do Rio de Janeiro, foi,
“no julgamento do povo, rei da poesia do sertão e do Brasil em estado puro”. Do
ponto de vista da oralidade, segundo Permínio Ásfora, teria sido preso em 1918,
porque o chefe de polícia considerou afronta às autoridades alguns dos versos
da obra: O Punhal e a Palmatória,
trama que tratava de “um senhor de engenho assassinado por um homem em quem
teria dado uma surra”. Sebastião Nunes Batista, no entanto, em Antologia da Literatura de Cordel (@),
da Fundação José Augusto, na cidade de Natal, 1977, dá como: causa-mortis: “Influenza”,
conhecida gripe espanhola, que não trataremos agora.
João Martins de
Athayde (1880-1959) poeta e Editor foi um dos autores que mais contribuiu para
a divulgação da literatura de cordel produzida no Brasil no século XX.
Participou da primeira geração de proprietários de Editoras especializadas em
cordel no Brasil, juntamente com Francisco das Chagas Batista e Leandro Gomes
de Barros. Nasceu na Paraíba, mas foi muito jovem para Recife, onde se iniciou
no comércio de cordéis. Gostava muito de cinema e passou a usar fotografias de
artistas de Hollywood “como ilustração das capas dos folhetos”. Também
encomendava a jovens gravadores cartazes de filmes ilustrações para seus livros
de versos. Possuía tipografia própria. Com a morte de Leandro Gomes de Barros,
comprou à esposa do poeta os direitos autorais do antecessor, numa das
primeiras transações do gênero no Brasil. Isto é importante do ponto de vista da origem.
De posse legal
sobre as obras, passou a usar o nome João Martins de Athayde como autor de
centenas de folhetos que haviam sido escritos por Leandro Gomes de Barros. Esta
confusão somente foi desfeita na década de oitenta quando a Fundação Casa de
Rui Barbosa (RJ) publicou os originais escritos por Leandro e, assim, a autoria
de muitos folhetos foi restituída. No entanto, este fato não diminui a
importância da obra de João Martins de Athayde, nem tampouco sua contribuição
para a poesia popular no Brasil. Suas obras até hoje são reimpressas, quando
seu estilo irônico e jornalístico se revela nos versos que faziam a crítica aos
costumes modernos.
Francisco das
Chagas Batista (1882-1930). Em 1900, vendia água e lenha e estudava, em Campina
Grande; seu primeiro folheto, Saudades
do sertão, é de 1902; em 1905 vendeu folhetos no Recife, e em Olinda passou
pouco tempo no seminário; depois, trabalhou na ferrovia de Alagoa Grande. Em
1907, pioneiramente, versejou o romance Quo
vadis, de Henryk Sienkiewicz. Em 1909, residiu em Guarabira, onde trabalhou
com o irmão, o editor Pedro Batista e casou com a prima Hugolina Nunes -
tiveram 11 filhos, dentre eles os poetas populares: Paulo, Pedro, Maria das
Neves e o folclorista Sebastião Nunes Batista, que produziu obras referenciais
do cordel. Em 1911, vivia na capital da Paraíba e negociava com livros; em 1913
fundou a Livraria Popular Editora, editando paródias, modinhas, novelas,
contos, poesia, e se firmou como um dos intelectuais da época. Em 1929 publica
o livro: Cantadores e poetas populares,
imprescindível para a pesquisa em literatura popular em verso “por conter as
mais antigas e confiáveis informações sobre esta forma poética”.
Ele decerto,
fora dos primeiros Editores de cordel e imprimiu produções de muitos poetas
populares da época, exceto de João Martins de Ataíde. Conquanto se o tenha como
dos maiores autores do cordel, o estágio atual da pesquisa antropológica e
historiográfica, objeto de nossa pesquisa, não permite precisar quantos folhetos
produziu-se. Ruth Terra identificou-os em Coleções 45, inquestionavelmente
escritos por ele, dentre os quais 19 sobre a nascente gesta do cangaço e
clássicos que criou ao dar forma poética à História da Imperatriz Porcina, de
Balthazar Dias, Escrava Isaura, de
Bernardo Guimarães e História de Esmeraldina, baseada no Decameron, de Boccaccio.
O livro trata de
Isaura, escrava que nasceu quase branca e é tratada como filha por sua sinhá,
alvo da luxúria e paixão de Henrique (fugazmente), Leôncio (maléfica,
controladora e luxuriante), Belchior (ridícula, servil e confusa) e Álvaro
(pura e amorosamente). Outros sentimentos dirigidos a Isaura incluem a inveja
de Rosa (outra escrava, preterida por Leôncio como amante) e o carinho de seu
pai Miguel. No começo trata-se do passado de sua mãe, maltratada por seu dono,
o pai de Leôncio, que a tem com um ex-feitor de bom coração. Quando estava para
ser forra morre este dono e Leôncio a herda, sem intenções de alforriá-la. A
esposa deste o deixa e ele manda Isaura para um cativeiro. De lá ela e o pai
fogem para Recife onde conhece Álvaro e se apaixona por ele. Vai a um baile da
alta sociedade e é muito admirada por seus dotes físicos e culturais, mas é
denunciada como escrava pelo ganancioso Martinho. De volta no Rio de Janeiro “é
presa por dois meses no tronco e seu pai vai para a cadeia”. Prestes a ser
liberta para se casar obrigada com o deformado Belchior pela liberdade, achando
que Álvaro está casado, é impedida por este que liquida os bens de do falido Leôncio,
que se mata para fugir da humilhação. A história foi adaptada vezes para
outras mídias, a mais célebre sendo a novela com Lucélia Santos no
papel-título. Não é de hoje que escritores se encarregam da edição de livros.
O filósofo Hegel editou seu
próprio livro. Temperar a solidão criativa da página em branco com o burburinho
dos trabalhos de produção gráfica, divulgação, distribuição, seleção de
originais, tradução, talvez esteja aí um dos motivos para esse acúmulo de
funções. No âmbito nacional, é inevitável lembrar-se de Monteiro Lobato,
pioneiro no estabelecimento da indústria editorial brasileira. Mais
especificamente no campo da poesia, podem-se mencionar nomes como os de João
Cabral de Melo Neto - fazendo às vezes de artista gráfico, tipógrafo, editando
livros de amigos durante o tempo em que serviu como diplomata na Espanha -, ou,
mais perto de nós, no de José Paulo Paes, funcionário e esteio intelectual da
editora Cultrix por mais de três décadas. Fora do Brasil os nomes se
multiplicam: Phillipe Soupault, Octavio Paz, Juan Ramon Jimene, entre outros. É claro que a
expressão poeta-editor pode designar
atuações muito diversas no âmbito da cultura. Sob tal chancela podemos
encontrar desde um trabalho bissexto e mais restrito às artes plásticas (João
Cabral) até a atividade empresarial propriamente dita, exercida regularmente
(Monteiro Lobato), passando pela prestação de serviços (José Paulo Paes) em
graus variáveis de implicação no projeto editorial em curso. Por isso, vale a
pena perguntar que tipo de interação social ocorre, em cada caso concreto,
entre os papéis de poeta e de Editor.
Investigar de que maneira as convicções
do poeta afetam as escolhas e procedimentos do editor e vice-versa: sondar o
impacto das exigências editoriais sobre a concepção de poesia sustentada pelo
escritor e assim por diante. O
estilo poético nordestino é maravilhoso,
rico em folclore, lendas e valores regionais. Encontra-se principalmente
associado à música, com destaque para os violeiros. A partir da viola se
desenvolvem os desafios, emboladas, repentes, cantorias, um sem-fim de ritmos e
estilos próprios dos cantadores da região. A cantoria, por exemplo, conceptualmente,
“consiste em um improviso, em tom de desafio, entre repentistas”. Seu primeiro
representante é Romano do Teixeira, da Serra do Teixeira, no estado da Paraíba,
ainda no século XIX. As poesias regionais do Nordeste geralmente são
encontradas no formato de libretos de cordel. A poesia de cordel recebe este
nome por causa de uma velha tradição em Portugal. No século XVII, eram comuns que
“os folhetos fossem colocados à venda pendurados em um barbante, presos por
pregadores de roupa”. Barbante, corda, cordel - os cantadores e repentistas
nordestinos adotaram este costume, pendurando seus versos e popularizando o que
é hoje um dos principais símbolos da
cultura popular brasileira. Na
Peleja entre Inácio da Catingueira e Romano do Teixeira, começa com Inácio,
seguido por Romano e segue alternando ad
infinitum:
“(Inácio)/Senhores que aqui estão/Me tirem de um engano: Me apontem com o dedo/Quem é Francisco Romano,/Pois eu ando no seu piso/Já não sei há quantos anos./ (Romano)Negro me diga o seu nome/Que eu quero ser sabedor,/Se é solteiro ou casado,/Aonde é morador,/Se acaso for cativo,/Diga quem é seu senhor./Eu sou muito conhecido,/Aqui nesta ribeira,/Este é o seu criado/Inácio da Catingueira./Dentro da Vila de Patos,/Compro, vendo e faço feira./Vieste a Patos/Procurando quem te forre/Volta pra trás, meu negrinho/Que aqui ninguém te socorre;/E quem cai nas minhas unhas/Apanha, deserta ou morre.”
Daí
vem à questão da “interação social” (cf. Coulon, 1995), pouco entendida
pela sociologia vulgar, praticada nestes rincões.
“Eu vim a Patos/Pela fama do senhor,/Que me disseram que era/Mestre e rei de cantador;/E que dentro de um salão/Tem discurso de um doutor./Que andas fazendo/Aqui nesta freguesia,/Cadê o teu passaporte,/A tua carta de guia/Aonde tá teu sinhô/Cadê a tua famia./Eu sou cativo,/Trabalho para meu sinhô.../Quando vou para uma festa/Foi ele quem me mandou,/E quando saio escondido/Ele sabe pronde eu vou./Deixa-te disto,/Não te possa acredita/Pois eu também tenho nego/E só mando trabaiá.../Como é que teu sinhô/Vai te mandá vadiá?/Inaço da Catinguera/Escravo de Mané Luiz/Tanto corta com risca,/Como sustenta o que diz!/Sou vigaro capelão/E sacristão da matriz./Este aqui é seu Romano/Dentaria de elefante,/Barbatana de baleia,/Força de trinta gigante,/É ouro que não mareia,/Pedra fina e diamante./É nego desengonçado: Abre cacimba no seco/Dá em baixo do muiado...”.
A
cidade de Patos, na memória dos repentistas, representa um município brasileiro
do estado da Paraíba, localizado na microrregião de Patos, na mesorregião do
Sertão Paraibano. Distante 307 km de João Pessoa, sua sede localiza-se no
centro do estado com vetores viários interligando-o com toda a Paraíba e
viabilizando o acesso aos Estados do Rio Grande do Norte, Pernambuco e Ceará.
De acordo com o IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -, no
ano de 2009 sua população era estimada em 100.732 habitantes. Patos, é a 3ª
cidade-pólo do estado da Paraíba, considerando sua importância socioeconômica e
cultural.
“Aperta sem sê troquês,/Corta pau sem sê machado./O meu martelo,/Por bom ferreiro é forjado;/Tanto ele é bom de aço,/Como está bem temperado;/A forja onde ele foi eito/É toda de aço blindado./Eu lhe garanto/Que resisto ao seu martelo;/Ao talho do seu facão,/Ao corte do seu cutelo;/Se eu morrer na peleja,/Lhe vencerei no duelo./Negro criado vadio/Tem por fim acabar má;/Uns casam com mulher forra/Outros dão pra roubá./Outros fogem do serviço/Com medo de trabalhá./Eu felizmente não sou/Escravo de senhor cru,/Que trabalha todo o dia/De noite faz quinguingu/Aparpando no escuro/Fossando que nem tatu/Estou ouvindo as tuas loas,/Não te possa acrediar./Que eu também tenho escravo/Mas não mando vadiar,/Que eu saio pra divertir/Os negros vão tabalhar./Sou cativo,/Mas trabalho no comum./Dar descanso a seus escravos/É gosto de cada um/Meu sinhô tem muito negro,/eu Romano só tem um./Pra negro eu tenho chicote/E palmatória e trabuco./Boto-o na mesa do carro/Passo por cima e machuco/Vadeio de lá pra cá: Traco-traco! Truco-truco/Meu facão/Também trabalha em seu quengo!/Desmastreio-te a carreira/Como um cavalo de rengo/E vou de uma banda pra outra/Traco-traco! Tengo-tengo/Nego, se eu te pegar/Numa volta de caminho/Eu te faço um agrado,/Com meu chicote um carinho/Se a camisa for nova/Só te deixo o colarinho/Sou abelha de ferrão/Sou besouro de caboco,/Se eu pegar seu Romano,/Dou um arrocho, deixo-o rouco/De quebrar-lhe as canelas/Só deixar-lhe dois catoco/Negro você não me venha/Que se vier eu lhe abeco/Sacudo-o em cima da forja,/Com os fole eu te sapeco,/Boto-te em cima da safra,/Com dois malhos, teco-teco/Não se alegre/Que a hora não acabou-se./Eu derrubo de machado,/Acabo, pico de foice”.
Irineu Joffily, cognominado o “historiador
do sertão” tendo em vista os estudos e pesquisas que realizou sobre a zona
criatória, presenciou a escravidão. Mas não reconheceu sua importância para a
economia da região. Ponderou que para a atividade criatória a raça americana,
ou seja, o nativo se prestou melhor do que o africano. Entretanto, tendo em
mãos os dados estatísticos populacionais da Paraíba, do século passado, ficou
surpreso com a quantidade de escravos existentes em municípios sertanejos,
particularmente, em Piancó e São João do Cariri. À semelhança do historiador
cearense afirmou que a presença significativa dos cativos constituía uma
ostentação do fazendeiro. O cangaço na interpretação de Daniel Lins (1997) revela um aparente fenômeno social ocorrido no
nordeste brasileiro de meados do século XIX ao início do século XX. O cangaço
tem suas origens em questões sociais e fundiárias do Nordeste brasileiro,
caracterizando-se por ações violentas de grupos ou indivíduos isolados: tomavam
de assalto fazendas, sequestravam coronéis (grandes fazendeiros) e saqueavam
comboios e armazéns. Não tinham moradia fixa: viviam perambulando pelo sertão
brasileiro, praticando tais crimes, fugindo e se escondendo. Cangaço é palavra
derivada de “canga”, “peça de madeira simples ou dupla que se coloca na parte
posterior do pescoço de bois nos carros de boi”. Cangaceiro foi o nome herdado
a todos os ditos “criminosos”, uma vez que os prisioneiros eram obrigados a
carregar seus pertences pendurados no pescoço.
“O senhor nunca
me viu/Frangi o couro da venta,/Meu cabelo se arpoá/E a testa ficar
cinzenta.../Cantadô, quando eu me agasto,/Esfria com água benta/Quando pego um
cantador,/Adoece de repente,/Dá-lhe uma dor de cabeça/E uma conceira ardente/É
um vexame tão grande/Que não há diabo que aguente./Meu martelo tem
azougue/Cantador dele não sai,/Dá-lhe um frio com tontura,/eca a carne a língua
cai,/Fica o corpo sem governo/E a alma vai-e-não-vai./Inaço, tu tem
cabeça/Porém juízo não tem!/Um gigante nos meus braços/Aperto não é
ninguém!/Aperto um dobrão nos dedo/Faço virar um vintém./Tem coisa que dá
vontade/Me meter na vida alheia: Quem mata assim tanta gente/ainda não foi pra
cadeia!/Pegá um gigante à mão/E não ficá ca mão cheia!/Rebentar dobrão nos
dedo/E não quebrá uma veia: Esse dobrão é de cera,/Esse gigante é de
areia.../Inaço, fica sabendo/que sou rei nesta ribera!/Tá me dando uma
veneta/Fazê uma brincadera: Eu quero mudá-te o nome/De Inaço da
Catinguera.../Desse pau tão duro e forte/Eu faço burra leitera/E se me dé na
cabeça/Faço virá bananera.../O branco mais muita gente,/O negrinho mermo só,/O
branco vem de cacete,/E eu recebo a cipó.../No pau que fizé entalha/Eu lavro
sem deixá nó: O branco corta a machado,/Eu lavro mermo de enxó.../Se mete a
cantar repente,/Negro me trata melhor,/Que estamos em meio de gente/Queira Deus
você não saia/Da sala de couro quente./Meu branco dou-lhe um conselho,/Espero o
sinhô tomar,/Se tire desse sentido,/Se arrede desse pensar,/Juro com todos os
dedo/Que um homem só não me dá./Fala como uma folhinha.../Não quero escutá
bobage,/Guarda a tua ladainha,/Não és pra me dá conselho: Quando tu ia eu já
vinha”.
Diversas
comunidades de escravos libertos no Brasil (afro-brasileiros) retornaram à
África entre os séculos XVIII e XIX. Entre eles destacam-se os Tabom, retornados
ao Gana em 1835-36, e os Agudás ou Amarôs, no Benim, no Togo e na Nigéria.
Numerosos, esses brasileiros estabeleceram-se na região da antiga costa dos
Escravos - que abrangia todo o golfo de Benim, indo da atual cidade de Lagos,
na Nigéria, até Acra, em Gana. Milton Guran em seu livro: Agudás - os brasileiros do Benin, resume: Os negros brasileiros do
Benim, Togo e Nigéria, também conhecidos como agudás, nas línguas locais, são descendentes dos antigos escravos
do Brasil que retornaram à África durante o século XIX e dos comerciantes
baianos lá estabelecidos nos séculos XVIII e XIX. Possuem nomes de família como
Souza, Silva, Almeida, entre outros, festejam Nosso Senhor do Bonfim, dançam a
burrinha, forma arcaica do bumba-meu-boi, fazem desfiles de Carnaval e se
reúnem frequentemente em torno de uma “feijoada” ou de um “kousidou”. Ainda
hoje são comuns os agudás mais
velhos se cumprimentarem com um sonoro: “Bom dia, como passou?” ou,- “Bem,
‘brigado”, é a resposta”.
O
Patativa do Assaré, por exemplo, é
emblema da poesia popular nordestina. O apelido se refere a uma ave do sertão,
a patativa, e à cidade perto da qual o poeta nasceu. Patativa faleceu em 2002,
mas ficaram seus versos, falando sobre o sofrimento do povo. Seu estilo possui
um acento social e muitas vezes satírico. Assim como a maioria dos poetas
regionais, Patativa do Assaré nunca chegou a frequentar escola e sempre compôs de
memória. Desprezava a gramática - para ele, “uma grande besteira”, preferindo o
registro das coisas “como são ditas e ouvidas”. Assim falava Patativa, criticando
o aparelho de televisão, intitulado: “Presente Disagradável”: “Toda vez que eu ligo ele/No chafurdo das
novela/Vejo logo os papo é feio/Vejo o maior tumaré/Com a briga das
mulhé/Querendo os marido alheio/Do que adianta ter fama?/Ter curso de
Faculdade?/Mode apresentar programa/Com tanta imoralidade!”. Enfim, Patativa do Assaré é o nome artístico (pseudônimo) de Antônio Gonçalves da Silva. Nasceu em 5 de março de 1909, na cidade de Assaré, estado do Ceará.
Foi um dos mais importantes representantes da cultura popular nordestina. Dedicou sua vida a
produção de cultura popular, voltada para o povo marginalizado e oprimido do
sertão nordestino. Com uma linguagem simples, porém poética, destacou-se como “compositor, improvisador e poeta”.
Produziu também literatura de cordel, porém nunca se considerou um cordelista. Sua
vida na infância foi marcada por momentos difíceis. Nasceu numa família de
agricultores pobres e perdeu a visão de um olho. O pai morreu quando tinha oito
anos de idade. A partir deste momento histórico começou a trabalhar na roça
para ajudar no sustento da família. Foi
estudar numa escola local com doze anos de idade, porém ficou poucos meses nos
bancos escolares. Nesta época, começou a escrever seus próprios versos e
pequenos textos. Ganhou da mãe uma pequena viola aos dezesseis anos de idade.
Muito feliz, passou a escrever e cantar repentes e se apresentar em pequenas
festas da cidade. Ganhou o apelido de Patativa, “uma alusão ao pássaro de lindo
canto, quando tinha vinte anos de idade”. Nesta época, começou a viajar por
algumas cidades nordestinas para se apresentar como violeiro. Cantou também diversas vezes na rádio Araripe. No ano de
1956, escreveu seu primeiro livro de poesias, intitulado: “Inspiração
Nordestina”. Em
1970, Figueiredo Filho publicou seus poemas comentados Patativa do Assaré. Tem inúmeros folhetos de cordel e poemas
publicados em revistas e jornais. Está sendo estudado na Sorbonne, na cadeira
da Literatura Popular Universal, sob
a regência do Professor Raymond Cantel. Patativa do Assaré era unanimidade no
papel de poeta mais popular do Brasil. Para chegar aonde chegou, tinha uma
receita prosaica: dizia que para ser poeta não era preciso ser professor. “Basta,
no mês de maio, recolher um poema em cada flor brotada nas árvores do seu
sertão”, declamava. Cresceu ouvindo histórias, os ponteios da viola e folhetos
de cordel. Em pouco tempo, a fama de menino violeiro se espalhou. Com oito anos
de idade, “trocou uma ovelha do pai por uma viola”. Dez anos depois, viajou
para o Pará e enfrentou muita peleja com cantadores. Quando voltou, estava
consagrado: era Patativa do Assaré. Nessa época os poetas populares vicejavam e
muitos eram chamados de “patativas” porque viviam cantando versos. Ele era
apenas um deles. Para ser mais bem identificado, adotou o nome de sua cidade.
Com
muita criatividade e inteligência criadora, retratou aspectos culturais
importantes do “homem simples” do Nordeste. Ganhou vários prêmios e títulos por
suas obras. Patativa só passou seis meses na escola. Isso não o impediu de ser:
Doutor Honoris Causa de pelo menos
três universidades. Não teve estudo, mas discutia com maestria a arte de
versejar. Desde os 91 anos de idade com a saúde abalada por uma queda e a
memória começando a faltar, Patativa dizia que não escrevia mais porque, ao
longo de sua vida, “já disse tudo que tinha de dizer”. Patativa morreu em 08 de
julho de 2002 na cidade que lhe empresta o nome. Vale
lembrar que a importância da atividade do poeta independe da notoriedade
alcançada, podemos citar como exemplo o Contador Moacir Ribeiro da Silva que, como
tantos outros poetas, presta ativa homenagem ao seu povo e história através da
literatura de cordel. É o caso dos versos intitulados “Cem anos de Dona Amélia
nas plagas do Aracati”, publicado em abril de 2014, onde Moacir narra as manifestações de vida, no sentido
Simmeliano, de uma mulher que:
“Dedicou-se com afinco/Na paróquia da cidade/ No trabalho pastoral/ Com oração e caridade/ A defesa da mulher/ Sempre fora o seu mister/ Dentro de uma sociedade./Trilhou o caminho mais longo/ Numa igreja inda fechada/ Ao levantar o problema:/ Mulher marginalizada/ De uma maneira altruísta/ Numa cidade machista/ De intolerância velada”.
Finalizando,
lembramos ainda da homenagem prestada pelo cinema no filme: “O Homem que Virou
Suco”. É um filme brasileiro de 1981 dirigido por João Batista de Andrade.
Nele, Deraldo, poeta popular recém-chegado do Nordeste a São Paulo,
sobrevivendo de suas poesias e folhetos, é confundido com o operário de uma
multinacional que mata o patrão na festa que recebe o título de operário
símbolo. O filme aborda a obstinação do poeta
diante de uma sociedade opressora, esmagando o homem no dia-a-dia e
eliminando suas raízes. Daí o título.
Bibliografia geral consultada.MENEZES, Eduardo Diatahy Bezerra de,
“Das Classificações Temáticas da Literatura de Cordel: Uma querela Inútil?”.
In: Opinião Acadêmica - Revista Eletrônica Rio Total, 2001; COBRA, Cristiane Moreira, Patativa do Assaré, uma Hermenêutica Criativa: Reinvenção da Religiosidade na Nação Semiárida. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006; SANTANA, Ady Sá
Teles, Rotas do Sertão: Patativa do Assaré e Euclides da Cunha entre
Identidade e Representação. Dissertação de Mestrado. Programa de
Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural. Feira de Santana: Universidade
Estadual de Feira de Santana, 2008; NASCIMENTO, Maria Eliza Freitas do, Sentido, Memória e Identidade no Discurso Poético de Patativa do Assaré. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras. Centro de Artes e Comunicação. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2008; BARBOSA, Clarissa Loureiro
Marinho, As Representações Identitárias
Femininas no Cordel: do Século XX ao
XXI. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Letras. Recife:
Universidade Federal de Pernambuco, 2010; AMANCIO, Geraldo, De Repente Cantoria. 2ª edição. Fortaleza: Editor Premius, 2013; CONTE, Daniel;
AGUIAR, Rafael Hofmeister de, “Tradição Representada: Voz, Oralidade e Performance
na Cantoria sobre Patativa do Assaré”. In: CONTE, Daniel; AGUIAR, Rafael
Hofmeister de, Vozes da Cultura Popular: Tradição, Movência e Ressignificação.
São Leopoldo: Trajetos Editorial, 2015; RODRIGUES,
Manoella de Queiroz, Plantas Medicinais utilizadas pelos Moradores dos Assentamentos
de Nova Conquista e Patativa do Assaré – Paraíba e Fitoterápicos Comercializados
no Município de Patos-PB. Dissertação de Mestrado. Programa de
Pós-graduação em Ciências Florestais. Centro de Saúde e Tecnologia Rural. Campus
Patos: Universidade Federal de Campina Grande, 2015; entre outros.
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