quinta-feira, 15 de abril de 2021

Hermann Hesse - Devaneio & Crença na Formação da Pessoa.

 

Ubiracy de Souza Braga

                 A liberdade e o humor não causariam nenhum dano à educação”. Hermann Hesse

            Hermann Karl Hesse nasceu em Calw, Alemanha, no dia 2 de julho de 1877. Descendente de uma família de missionários pietistas, desde cedo foi preparado para seguir o caminho da liturgia. Em 1881, quando ele estava com quatro anos a família mudou-se para a Basileia, na Suíça, onde permaneceu por seis anos. De volta a Calw frequentou a Escola em Göppingen. Em 1891 entrou para o seminário Teológico da Abadia de Maulbronn. Durante sua permanência no seminário escreveu algumas peças de teatro em latim, que apresentava junto com alguns colegas. As cartas que enviava aos pais eram em forma de rimas e muitas em latim. Redigiu alguns breves ensaios e traduziu poesia grega clássica para o alemão. Desconfiando da formação na religião, as dúvidas, anseios e aflições, mostrava-se um jovem rebelde. Depois de sete meses fugiu do seminário, sendo encontrado depois de alguns dias perambulando pelo campo, confuso e transtornado. Começou uma jornada através de instituições e escolas. Atravessou intensos conflitos familiares com os pais. Após o tratamento, em 1893 concluiu sua escolaridade. Hermann Hesse aspirava ser poeta, mas começou um aprendizado em uma fábrica de relógios em Calw. Em 1895 começou novo aprendizado em uma livraria em Tübingen. Em 1899, publicou seus primeiros trabalhos literários, Romantische Lieder e  Eine Stunde Hinter Mitternacht. Em seguida publicou Poemas (1902) e Peter Camenzind (1904), um romance que narra a vida de um jovem que se rebela contra o sistema educacional de sua aldeia natal. Do êxito de Peter Camenzind, Hermann Hesse casa-se com a fotógrafa Maria Bernoulli e compra uma propriedade em Gaienhofen, às margens do Lago de Constanza, na divisa da Alemanha e Suíça, e passa a se dedicar à literatura. 

Em 1906 publicou Debaixo das Rodas, onde critica severamente a educação que se  concentra apenas no desempenho acadêmico dos alunos. Na obra há também elementos autobiográficos. Em Gertrudes (1910), uma novela escrita na primeira pessoa, narra os infortúnios de uma dolorosa experiência de amor.  Entre 1905-1911 nasceram seus três filhos. Em 1911, pretendendo se aprofundar no estudo de religiões orientais, viaja para a Índia mantendo contato com a espiritualidade e a cultura dos antigos hindus, temas que exerceram grande influência em suas obras. A viagem se estende até a Indonésia e a China. Nesse período, Maria Bernoulli é internada em um hospital psiquiátrico e os três filhos são entregues à tutela de parentes e amigos. Em 1912, Hesse deixa sua propriedade e muda-se para Berna, na Suíça. Em 1913 publicou Rosshalde, romance no qual fala do fracasso do casamento de um casal de artistas. A obra traz marcantes traços biográficos. Com o violento início da 1ª guerra mundial (1914-18) escreveu denúncias contra o militarismo e nacionalismo, engajando-se em projetos e serviços humanitários. Um de seus trabalhos foi a criação de um grupo que se ocupava com a remessa de livros para presos em campo de concentração. Em 1919 publicou O Regresso de Zaratustra dirigido aos jovens em formação. Muda-se para Montagnola, no Tessino. Publica Demian, escrita em meio a profunda depressão e influenciada por JB Lang, discípulo de Carl Jung, onde descreve o processo de busca do indivíduo pela realização interior e autoconhecimento. Faz amizade com a cantora Ruth Wenger, com quem se casa em 1924, mas o casamento durou 3 anos.

Hermann Karl Hesse foi um laureado escritor alemão. Em 1923 se naturalizou suíço. Em 1946, recebeu o Prêmio Goethe. Logo depois o prêmio Nobel de Literatura “por seus escritos inspirados que, enquanto crescem em audácia e penetração, exemplificam os ideais humanitários clássicos e as altas qualidades de estilo”. Nascido em uma família religiosa, filho de pais missionários protestantes pietistas, como é típico da Suábia, uma região cultural, histórica e linguística do sudoeste da Alemanha. Seu nome deriva do Ducado da Suábia (915–1313), um dos ducados raiz que configuravam o território da Alemannia, cujos habitantes eram indiscriminadamente chamados alemanni ou suebi. E o dialeto para eles é língua padrão. O dialeto falado em partes de Baden-Württemberg e da Baviera é usado por ampla parte da população e tem variantes regionais. Comparativamente as diferenças entre o suábio e o alemão padrão são enormes. O dialeto tem não apenas centenas de palavras próprias, como também gramática e melodia peculiares. Metafonias como Ö e Ä praticamente não existem: König (rei) vira Keenich, schön (bonito) vira em seu alfabeto scheen. Ou seja, em vez de Ö se pronuncia E; e em vez de Ü se articula I: ein Stück Fleisch é ein Stick Fleisch (um pedaço de carne). De forma geral, a língua soa mais ampla e clara. Isso se deve aos vários ditongos gerados na fala dialetal: die Mutter ist müde (“a mãe está cansada”) é die muader isch miad. Além disso, muitas vogais são nasalizadas, o que é explicado para os linguistas como algo raro no alemão. Hermann estudou no seminário de Maulbron em 1891, mas não seguiu a carreira de pastor, como era a vontade de seus pais. Embora fosse um estudante modelo, ele foi incapaz de se adaptar ao regime e saiu menos de um ano depois. Como ele explicaria mais tarde: - Eu era um bom aprendiz, bom em latim, apesar de justo em grego, mas não era um rapaz muito administrável e foi assim com dificuldade que me enquadrei na educação pietista que visava subjugar e quebrar a personalidade individual. Tendo recusado a religião cristã adolescente, rompeu com a família indo para a Suíça, em 1912, trabalhando como livreiro e operário. Acumula sólida cultura autodidata e resolve dedicar-se à literatura.


            Em 15 de setembro de 1891, Hermann Hesse, tendo passado com sucesso no exame estadual regional, entrou no Mosteiro Maulbronn como seminarista. O antigo mosteiro cisterciense, um dos mais belos e bem preservados da Alemanha, fundado em 1147, foi convertido em 1556 em um seminário evangélico para a reforma educacional do duque Christoph von Württemberg. Em 1807 a escola monástica tornou-se um seminário teológico evangélico com a função de preparar os jovens estudiosos para o estudo da teologia através das línguas antigas. Quando o mosteiro ainda não era Patrimônio da Humanidade, em 1930 publicou um dos mais belos e opostos pares de literatura: Narciso e Goldmund. No mosteiro Hermann Hesse deixou sua história começar. O monge e pensador Narciso procura a abordagem espiritual de Deus, Goldmund procura suas experiências em arte e sensualidade. Ele tem que sair para o mundo, e o mundo estava “pronto para agradá-lo e machucá-lo”. Hesse entrou na escola de botânica aos quatorze anos. Como Hans Giebenrath na história Unterm Rad (“Sob a roda”), e Josef Knecht em Glasperlenspiel (“Bead game”), mora no escritório, ou na casa Hellas. O ensino é difícil, o tempo livre é escasso. No início, o menino de quatorze anos, apesar de tudo, está muito confortável em Maulbronn, pois se adaptou bem e muito rapidamente. Com entusiasmo se dedica ao estudo dos clássicos. Traduz Homer, lê a prosa de Schiller e as odes de Klopstock. - “Estou feliz, alegre e satisfeito. Há uma atmosfera que me agrada muito”, escreveu ele em carta de 24 de fevereiro de 1892. Dias depois, em 7 de março, Hermann Hesse escapou do sistema educativo aparentemente sem motivo causal. Depois de passar uma noite mortalmente fria em campo aberto, de baixa temperatura, o “fugitivo” é detido por um gendarme, volta ao seminário e recebe a punição de oito horas de prisão. Durante as semanas seguintes, um estado de espírito deprimido se manifesta nele. As antigas dinastias de soberanos alemães, como os Staufer, Welfen, Hohenzollern e Habsburger, eram todos suábios. Isso contribuiu para que o dialeto influenciasse a língua alemã. Mas há diversas palavras que só são entendidas pelos suábios. Ou há termos que têm outro significado em dialeto.

Na instituição seus amigos se afastam dele, e o seminarista Hermann é deixado sozinho e sofre sozinho. Em maio, depois de pouco mais de meio ano no seminário, seu pai o leva para sair e o leva de volta para Calw, na Alemanha, no distrito de Calw, na região de Karlsruhe, estado de Baden-Württemberg. Durante quase toda a Idade Média, Calw representou um grande centro de comércio, com o desenvolvimento de estabelecimentos manufatureiros de couro, moinhos, serrarias, marcenarias e artesãos de móveis e de construção de casas do estilo enxaimel, a arquitetura típica da região.  Para os suábios, um Teppich (“tapete”) nunca é colocado no chão, a não ser quando está frio; afinal, nessa região Teppich significa “cobertor”. O suábio tem fama mal compreendida culturalmente “de ser pão-duro”. Mas a verdade é que ele disciplinado na economia doméstica presta atenção no que gasta. Em outras palavras, é econômico. Isto porque a Suábia já foi muito pobre. Sobretudo na região de Schwäbische Alb, onde havia pequenos agricultores que viviam à beira da subsistência e aprenderam a lidar com seus recursos de forma cuidadosa. “Trabalhar, trabalhar, para construir uma casa”, é o ditado formulado em seu dialeto: Schaffe schaffe, Häusle baue, que os alemães ao nível ideológico de análise (ilusão/alusão) mais associam culturalmente aos gentios suábios. Nessa região não se concentra apenas os bancos imobiliários, mas também o maior número trabalhadores e que economiza para construir sua própria casa. - “Jogar dinheiro pela janela pagando aluguel”, no sentido popular da economia, é uma coisa real que os suábios não suportam. Para construir uma casa, vale tudo: deixar de fazer férias e economizar todo centavo. Isso simplesmente faz parte da cultura.

         É neste sentido do funcionamento persuasivo da ideologia que há uma coisa que é mais importante que a casa própria: a comida. É de domínio público a ideia segundo a qual em quase nenhum outro estado alemão se come tanto quanto na terrinha dos suábios: - “Vamos fugir para a Suábia. Deus do céu! Lá se encontram os melhores doces e tudo de melhor, em fartura... É lá que se assa o pão com manteiga e ovo”, já dizia Goethe, sem poupar elogios à cozinha suábia. Também se diz que o suábio não é dos mais faladores. Em compensação, é um mestre da quintessência verbal. Consegue resumir frases inteiras em uma ou duas palavras, em casos extremos num mero Joh (sim) ou Noi (não). Ipso facto existem sutilezas que só mesmo iniciados conseguem distinguir. Se alguém estiver à espera que um suábio arregace as mangas, um Joh expressa uma clara anuência. Se ele responder Joh glei (Sim, já-já), pode demorar um bom tempo para ele se tornar ativo. Mas, deve se ter cuidado na interpretação de Joh e joh que significa mais ou menos lass mir doch mei Ruh (vê se me deixa em paz!). E, com isso, o suábio falou e disse. Os suábios também têm boa fama de inventivos. Afinal, quem não tem muito é obrigado a se virar com pouco. Mesmo que eles sejam meio desconfiados em relação a novidades, não são avessos ao progresso. O primeiro automóvel foi inventado por Gottlieb Daimler (1834-1900). Posteriormente a a fábrica e montadora Mercedes é reconhecida no mundo globalizado. O conglomerado automobilístico tem sede em Stuttgart, capital de Baden-Württemberg. E lá também fica a sede da Porsche.

         A Floresta Negra, no Sudoeste da Alemanha, é uma das mais belas regiões do país. A área abrange quase a metade do Estado de Baden-Württemberg que, ao Sul, faz limite com a Suíça e, a Oeste, com a França. É uma região acidentada com vales, colinas e montanhas cobertas de densa mata de pinheiros que ao sol do verão, assumem uma cor verde-escuro quase beirando ao preto, daí o significado do nome de Floresta Negra. A Oeste, formando a divisa com a França, serpenteia languidamente o Reno, a mais importante veia aquática europeia, cujas nascentes têm suas origens nos Alpes suíços; em seu percurso penetra o território alemão do Sul ao Norte, onde faz um desvio em direção à Holanda e lá desemboca no rio Maas, formando um intrincado delta cujos braços espraiam-se no Mar do Norte. A Floresta Negra estende-se além do Reno, em território francês, onde as árvores são da mesma família e a cor verde-escuro viceja. O que muda é apenas o nome: os franceses chamam-na de Floresta dos Vosgues. Em território alemão, no coração desta floresta, encontra-se a pequena e pitoresca cidade de Calw, um nome que soa estranho para os que não vivem na região. A localização geográfica de Calw, cujas origens datam do ano 1075, também é estranha: a cidade encontra-se numa depressão. No linguajar corriqueiro, diríamos que Calw situa-se num buraco. A cidade é cortada pelo rio Nagold, mas que comparativamente ao Brasil, poderia ser considerado um riacho. Mesmo assim, o Nagold, no passado talvez com mais água, teve uma importante função na história econômica da cidade. Até o século XIX, o riacho era a principal via de comunicação para os troncos de pinheiros da Floresta Negra. Eram amarrados em balsa e transportados pelo Neckar ao Reno, onde seguiam até à Holanda e, não raro, para Londres, Inglaterra.

         O Sul da Alemanha, a partir do século XVII até meados do século XX, era fortemente influenciado pelo pietismo, o maior movimento evangélico dentro do protestantismo europeu após a Reforma Protestante, historicamente um movimento reformista cristão do século XVI liderado por Martinho Lutero, simbolizado pela publicação de suas 95 Teses em 31 de outubro de 1517 na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg. Os pietistas, profundamente crentes, conservadores e intransigentes a tudo quanto era apreciado ou destacado como novo, levavam o conteúdo da Bíblia ao pé da letra e eram, por isso, considerados ortodoxos dentro do protestantismo. O ambiente familiar pietista rígido, serviu de húmus no qual se desenvolveram seus futuros devaneios psíquicos por meio dos quais acabou abrindo seu caminho à literatura. Durante toda a sua vida, Hesse foi um solitário que não suportava pessoas por muito tempo ao seu redor. Mesmo com as três mulheres às quais se relacionou só as tolerava a certa distância. Em sua obra “O Lobo da Estepe” registrou etnograficamente uma frase que para nós é bem elucidativa: “Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal após tantos anos”. Foi neste ambiente social e político que em 2 de julho de 1877, nasceu e passou a sua infância e parte da adolescência Hermann Hesse, o mais lido escritor alemão do século XX. Perscrutar a vida desse escritor não é tarefa rotineira e quem a enceta deve estar ciente de que, caso tiver percepção para os sentimentos mais intrínsecos da alma humana, acaba perscrutando a si mesmo através de devaneios e crenças no processo de formação da pessoa.

            Hesse publicou o seu primeiro livro, uma coleção de poemas, em 1899. Permaneceu no ramo de livrarias até 1904, quando se tornou escritor freelancer e publicou o seu primeiro romance, Peter Camenzind, sobre um escritor falido. Representa a primeira novela escrita por Hermann Hesse, em 1903. Contém inúmeros temas que constituíram as preocupações de muitas das últimas palavras de Hesse, mais notavelmente a busca individual pela unidade espiritual e identidade, em meio a natureza e a moderna civilização, e o papel da arte na formação da identidade pessoal. A novela tem como ponto de partida da análise a frase: - No princípio era o mito. Deus, em sua busca pela expressão, investiu a alma de hindus, gregos e alemães com poesia, e continua diariamente derramando poesia na alma de cada criança”. Uma das características sociológicas da novela é ser poética, e além disso, ter como protagonista um poeta que investe em sua vida com realismo. O narrador facilmente lembra outros protagonistas de Hesse, isto é, Siddartha, Goldmund e Harry Haller. Assim como eles, o protagonista sofre muito, como também passa por muitas jornadas intelectuais, físicas e espirituais.  As várias denominações para a prosa artística ou poética, denotam como o assunto preocupou os retóricos medievais, que deliberadamente negligenciavam o uso e o estudo do discurso cotidiano. No curso dessas jornadas ele aprecia diversas paisagens comparadas da Alemanha, Itália, França e Suíça, bem como vários conteúdos de sentido das emoções sociológicas que obteve, que o faz ganhar experiência material e espiritual com a vida. No último estágio de sua vida, ele põe em prática a doutrina de São Francisco, quando cuidava dos pobres e aleijados nas ruas.

A expressão, literalmente traduzida como “lanceiro livre”, deriva da história social dos cavaleiros medievais mercenários, que se colocavam a serviço dos nobres que lhes pagassem o melhor valor para guerrear. Ela apareceu pela primeira vez no livro Ivanhoé, de Sir Walter Scott, em 1819, no trecho: “I offered Richard the service of my Free Lances, and he refused them”. O romance de Hermann Hesse foi um sucesso de vendas, retornando ao tema psicológico da busca interna e externa de formação do artista em Gertrud (1910) e Rosshalde (1914), que lida com a rotina cotidiana do casamento fracassado do protagonista, o pintor Johann Veraguth e sua esposa Adele. O casal tem dois filhos. O filho mais velho mudou-se para estudar, e o filho mais novo, Pierre, mora com eles em sua propriedade, Rosshalde. O casal, entretanto, não mora junto; Adele mora na casa principal com Pierre, enquanto Johann mora em uma pequena casa ao lado deles. Pierre é a única coisa que une Johann e Adele, e quando ele fica muito doente, o casal se torna um pouco mais próximo.

Com o estilo literário de um famoso compositor chamado Kuhn, Gertrud narra sua infância e juventude, antes de chegar ao âmago da história; seus relacionamentos com dois artistas problemáticos, o homônimo Gertrud Imthor e o cantor de ópera Heinrich Muoth. Kuhn sente-se atraído por Gertrud em seu primeiro encontro, mas ela se apaixona e se casa com Muoth, com quem o compositor também fez amizade alguns anos antes. Os dois são irremediavelmente incompatíveis e sua relação destrutiva fornece a base para a magnum opus de Kuhn. Como muitos dos romances de Hesse, há uma forte influência derivada de Friedrich Nietzsche, especificamente sua obra O Nascimento da Ttragédia, publicada em 1872, um jovem professor de letras clássicas, despertou polêmica pelo seu caráter pessoal e pela ousadia de sua abordagem: desafiava a concepção tradicional dos gregos como povo sereno e simples e exaltava a ópera de Wagner como renovadora do espírito alemão, numa singular mística de reconstrução histórica, intuição psicológica e militância estético-cultural. Heinrich Muoth representa os apaixonados elementos dionisíacos da arte, enquanto Gertrud representa os elementos apolíneos mais refinados. O fato de a ópera de Kuhn ser o resultado de sua relação sugere a combinação dos dois elementos para formar uma obra de arte elevada. Uma visita à Índia, nesses anos, foi mais tarde refletida em Siddhartha (1922), um romance poético, ambientado na Índia, na época do Buda, sobre a busca pela iluminação. Travou contato com a espiritualidade oriental, a partir de uma viagem à Índia, em 1911, e com a psicologia analítica, por meio de um discípulo de Carl Jung, em decorrência de uma crise emocional causada pela eclosão da 1ª grande guerra do Ocidente. Estas duas influências espirituais seriam decisivas no posterior desenvolvimento da sua obra. Em 1946, recebeu o Prêmio Goethe e, passados meses, o Nobel de Literatura “por seus escritos inspirados que, enquanto crescem em audácia e penetração, exemplificam os ideais humanitários clássicos e as altas qualidades de estilo”.

            Hesse foi um autor popular e influente no mundo de língua alemã. A fama mundial só veio mais tarde. Seu primeiro grande romance, Peter Camenzind, foi recebido com entusiasmo por jovens alemães que desejavam um modo de vida diferente e mais natural num tempo de grande progresso econômico e tecnológico no país. Demian teve uma influência forte e duradoura sobre a geração que voltou da guerra mundial para casa. Similarmente, O Jogo das Contas de Vidro, com seu disciplinado mundo intelectual de Castalia e os poderes de mediação e humanidade, cativou os alemães que ansiavam por uma nova ordem no caos de uma nação dilacerada após a derrota na 2ª guerra mundial. Na década de 1950, a popularidade de Hesse começou a diminuir, enquanto críticos da literatura voltavam sua atenção para outros temas. A situação mudou em meados da década de 1960, quando suas obras subitamente se tornaram best-sellers nos Estados Unidos da América, atribuído à associação com temas populares do movimento da contracultura de 1960. Em particular, o tema da busca da iluminação de Sidarta, Viagem ao Oriente, Narciso e Goldmund ressoou entre aqueles que defendiam os ideais da contracultura. As sequências de “teatro mágico” em O Lobo da Estepe foram interpretadas por alguns como alucinações induzidas por drogas, embora não haja evidências de que Hesse tenha usado drogas psicodélicas ou recomendado seu uso. Mas pode ser atribuído aos textos da contracultura de Colin Wilson e Timothy Leary. Dos Estados Unidos, o renascimento de Hesse se espalhou para outras partes do mundo ocidental, inclusive o Brasil, e até mesmo de volta à Alemanha: mais de 800 000 cópias foram vendidas no mundo de língua alemã, em 1972-1973. Em apenas alguns anos, Hesse tornou-se o autor europeu mais lido e traduzido do século XX. Hesse foi popular entre leitores jovens, uma tendência que continua.

     Hermann Hesse é um escritor que enfrentou e descreveu hic et nunc as contradições do individualismo no século XX. Contradições sociais no sentido sociológico como a de se confrontar com um desenvolvimento tecnológico que o ameaça, com forças externas que lhe roubam a autonomia. Ele abordou a questão: como é possível resistir? Como se pode sair desta situação de alienação? Ele lançou a questão de uma vida não alienada, de um equilíbrio entre o interior e o exterior. A ética ou a filosofia moral se tornam uma luz que permite discernir entre aquilo que é certo ou não do ponto de vista ético. É um dos valores que não se encontra inserido no contexto de uma religião específica, mas no contexto da lei natural que rege aquilo que é conveniente para o ser humano de acordo com sua dignidade e natureza. A moral tem sua base na liberdade do ser humano através da qual uma pessoa pode realizar boas ações, mas que também tem a liberdade de praticar atitudes injustas. A reflexão moral ajuda o ser humano a tomar consciência de sua própria responsabilidade no trabalho de crescer como pessoa, tendo sempre claro o princípio da verdade e do bem. A filosofia como reflexão moral é muito importante, uma vez que a retidão no trabalho ajuda o ser humano a melhorar como pessoa e a alcançar uma vida boa. A filosofia moral mostra a responsabilidade humana em trazer esperança à sociedade que vive, uma vez que através de ações individuais exerce influência no bem comum. Esta filosofia moral toma como fundamental os princípios da conduta humana. Estas normas éticas dignificam a pessoa através de valores como mostra a superação pessoal, o amor próprio, o respeito ao próximo, o princípio do dever e a busca pela felicidade. Um princípio moral essencial é lembrar que o fim nem sempre justifica os meios. O grande impulso que Hesse vivenciou nos anos 1960-70 esteve acoplado a uma experiência bem específica: havia em seu tempo o grupo de rock Steppenwolf, que cantou Born to be wild, ou seja, “nascido para ser selvagem, diferente, para viver livremente”. Esse estímulo de ruptura pragmática se direcionava contra convenções externas bem concretas, vivenciadas como algo angustiante, repressor. Ele se voltava contra o abismo da Guerra do Vietnã. Estava aliado a experiências com drogas. Essa foi uma vivência histórica de suas leituras que tinha como escopo a pergunta: como posso impor minha autonomia nessa situação? Isso teve uma grande força simbólica na cultura jovem norte-americana.

           Para nós, política representa regulação da existência coletiva, poder decisório, luta entre interesses contraditórios, disputa por posições de mundo, confrontos mil entre forças sociais, violência em última análise. Só que a produção política, os processos políticos, se diferenciam radicalmente da produção econômica porque usa eventualmente suportes materiais, tais como armas, livros, processos, papéis onde se inscrevem as ordens, os atos de gestão, as sentenças ou as leis, mas não é uma produção material. Porque consiste em decisões imperativas. Assim, é também diferente da produção simbólica porque exercita-se sobre o interesse dos agentes sociais, quando não sobre o seu próprio corpo; corresponde a atos de vontade que regulam atividades coletivas; disciplina práticas sociais. Não produz mensagens, discursos; produz obediências, obrigações, submissões, direitos, deveres, controles. Poder é uma relação social: de mando e obediência. As decisões tomadas politicamente se impõem a todos num dado território ou numa dada unidade social. Convertem-se em atividades coercitivas (esfera da segurança), administrativas (esfera da administração), jurídico-judiciárias (esfera da justiça) e legislativas (esfera da deliberação). O processo político diz respeito a pergunta: “Quem pode o quê sobre quem?” Eis a grande questão do processo político, do confronto entre forças sociais, da sujeição de vontades a outras vontades.  

Fora da ideia de nacionalismo, a partir da competição entre nações, foi o filósofo Simmel quem chamou atenção para o fato de que, '”a luta contra uma potência estrangeira dá ao grupo um vivo sentimento de sua unidade'”, e além disso, é ''um fato que se verifica quase sem exceção. Não há, por assim dizer, grupo doméstico, religioso, econômico ou político que possa passar sem esse cimento''. Essa atividade intelectual, porque psíquica e de preparação psicológica, quase exclusivamente entre homens, pode representar com o homem diante da guerra um crime contra a humanidade, individual ou coletivamente com o intuito de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial, militar, religioso. Na década de 1960, em segundo lugar, uma canção de Bob Dylan, “Subterranean Homesick Blues”, quando ela diz: “Não é preciso um meteorologista para dizer de que lado sopra o vento” (You don`t need a Weatherman to Know which way the wind blows...) inspirou um movimento social da juventude norte-americana que se propunha a destruir a sociedade pela violência. O movimento surgiu como a facção militante dos 40 mil estudantes da Studentes Democratic Society (SDS). No Congresso nacional do Studentes Democratic Society em Chicago (1969) essa facção política tornou-se dominante e conseguiu expulsar os chamados marxistas não-violentos. Adotaram uma política de violência imediata com o nome Weathermen e foram os autores de bombas atiradas em bancos, tribunais, universidades etc., no caso dos movimentos sociais internos aos Estados Unidos da América.

O primeiro talvez a chamar a atenção, naquele momento, tenha sido o escritor Gore Vidal, talvez melhor que os autores de Bains de sang constructifs dans le sang et la propagande (1973) ainda que estes tenham demonstrado até que ponto o governo dos Estados Unidos, anteriormente tenham se envolvido em crimes praticados na Guerra do Vietnã. Vidal divulgou em El País (Madri) parte do conteúdo das cartas correspondências que mantinha com o terrorista norte-americano Timothy, pouco antes da violência letal atribuída ao Estado. Dizia ele,- contra o terror de Estado, - que melhor teria ocorrido ao terrorista explodir bombas para efeito simbólico de destruição de prédios, sem vítimas, p. ex., o próprio Pentágono. No que se refere especificamente ao confronto contra os povos afegãos e a utilização de imagens,  o Corão proíbe a reprodução de figuras humanas e sagradas. Para os fundamentalistas, a interdição, feita há 1.300 anos, vale para fotos e imagens transmitidas pelas redes de televisão. Porque querem preservar, a todo custo, o que construíram: as regras e normas do islamismo professado por Maomé. Embora o país tenha sido devastado nos últimos 200 anos por uma dezena de conflitos, três guerras contra a Inglaterra até sua independência em 1919, um golpe de Estado que derrubou o rei em 1973, e ainda, em 1979 a então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, devastou o país permanecendo em guerra por dez anos. Quando estes foram expulsos, assumiu o poder a milícia islâmica Taliban, que significa estudante, no dialeto pashto, a segunda língua da região. O grupo foi criado em 1994 por um movimento estudantil radical. O “império” americano realizou uma guerra longa contra o Afeganistão como anunciaram pela mídia.

No caso do Iraque, nestes dias e em termos de submissão das vontades, a guerra foi considerada “rápida” na contabilidade norte-americana porque culminou com a morte de cerca dez mil militares, aproximadamente três mil civis e dezesseis jornalistas em pouco mais de vinte dias. Daí a terceira questão e breve, que diz respeito a duas definições weberianas entrelaçadas ao “espírito do capitalismo”. Todavia trata-se apenas de uma intuição. Max Weber em 1904/05 afirmava o seguinte: - “Ninguém sabe ainda a quem caberá no futuro viver nessa prisão [o capitalismo vencedor] ou se, no fim desse tremendo desenvolvimento, não surgirão profetas inteiramente novos, ou um vigoroso renascimento de velhos pensamentos e ideias, ou ainda se nenhuma dessas duas - a eventualidade de uma petrificação mecanizada caracterizada por esta convulsora espécie de autojustificação” (sich-wichtig nehmen). O fato social é que estes últimos homens poderiam ser designados, de acordo com a interpretação de Max Weber, como “especialistas sem espírito, sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado”. E em contraposição, o carisma, que particularmente refere-se a faculdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual ou de oratória”. Melhor dizendo, o sempre novo, o extracotidiano, o inaudito e o arrebatamento emotivo que provocam constituem a fonte da devoção pessoal. Representam eles a dominação do profeta, do herói guerreiro e do grande demagogo. É uma relação social especificamente extracotidiana e puramente pessoal.

O pressuposto indispensável para isso é “fazer-se acreditar”. Se lhe falha o êxito, seu domínio oscila. A impressão que temos diante da mídia norte-americana e de resto na Europa, para não falarmos no Brasil, quanto ao nome de bin Laden [bin em letra minúscula significa “filho de”] é que, como justificativa para o fim da economia de guerra - ou a chamada guerra fria, os conflitos mundiais perderam sua matriz político-ideológica e ganharam desde a guerra contra o Golfo Pérsico (1991) mediações culturais e religiosas, de "suposta" rivalidade entre emblemas como Ocidente e Oriente, entre cristãos, judeus e islâmicos. Ele assim [bin Laden] passa a ser o que Weber intuiu: “não surgirão profetas inteiramente novos?”. Os judeus, disse uma vez Léon Poliakov, são franceses que, ao invés de não irem mais à igreja, não vão mais à sinagoga. Na tradução humorística de Haggadah, essa piada designava crenças no passado que deixaram de organizar práticas. um dos mais importantes e adorados textos da tradição judaica. No começo da Páscoa, Judeus do mundo ocidental se reúnem ao redor da mesa para ler o Haggadah, um livro que contém a narrativa tradicional do Êxodo do Egito. Haggadah significa recitar ou recontar. Com suas músicas e contos e ênfase no ensinamento das crianças, a antiga história mítica da Páscoa é o livro de orações judaicas mais comumente ilustrado. O Moriah Haggadah foi criado através da apreensão abstrata pelo artista Israelense Avner Moriah, que desenhou seus modelos baseados em pinturas de paredes e figurinos egípcios e assírios do começo das eras do Bronze e do Ferro, o período no qual a Páscoa original desdobrou-se.

As convicções políticas parecem seguir o mesmo caminho. Alguém seria socialista por que foi, sem ir às manifestações, sem reunião, sem palavra e sem contribuição financeira, em suma, sem pagar. Mas reverencial que identificatória, a pertença só se marcaria por aquilo que se chama uma voz. Este resto de palavra, como o voto de quatro em quatro anos. Uma técnica bastante simples manteria o teatro de operações desse crédito. Basta que as sondagens abordem outro ponto que não aquilo que liga diretamente os adeptos ao partido, mas aquilo que não os engaja alhures, não a energia das convicções, mas a sua inércia. Os resultados da operação contam então com restos da adesão. Fazem cálculos até mesmo com o desgaste de toda convicção. Pois esses restos, esses cacos, como insinua Leonardo Boff, indicam ao mesmo tempo o refluxo daquilo em que os interrogados creram na ausência de uma credibilidade mais forte que os leva para outro lugar. A capacidade de crer parece estar em recessão em todo o campo político. A tática é a arte do fraco. O poder se acha amarrado à sua visibilidade. Mas a vontade de “fazer crer”, de que vive a instituição, fornecia nos dois casos um fiador a uma busca de amor e/ou de identidade. Importa interrogar-se sobre os avatares do crer em nossas sociedades e as práticas originadas a partir desses deslocamentos. Durante séculos, supunha-se que fossem indefinidas as reservas de crença. Aos poucos a crença se poluiu, como o ar e a água. Percebe-se ao mesmo tempo não se saber o que ela é. Tantas polêmicas e reflexões sobre os conteúdos ideológicos em torno do voto e os enquadramentos institucionais para lhe fornecer não foram acompanhadas de uma elucidação acerca da natureza do ato de crer. Os poderes antigos geriam habilmente a autoridade. Hoje os sistemas administrativos, sem autoridade, dispõem de mais força em “aparelhos” e menos  autoridade legislativa.

Bibliografia geral consultada.

SOUZA, João Paulo Francisco de, Um Lobo nos Trópicos: A Recepção Crítica de Hermann Hesse no Brasil (1935-2005). Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências e Letras. Assis:  Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 2007; BALL, Hugo, Hermann Hesse. Su vida y su obra. Barcelona: Editorial Acantilado, 2007; BACKES, Marcelo, A Arte do Combate: A Literatura Alemã em Cento e poucas Chispas Poéticas e outros tantos Comentários. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003; Idem, “Hermann Hesse Mistura Fábula e Autobiografia com Tom Piegas”. In: Folha de São Paulo - Ilustrada, 1º de maio de 2010; HESSE,  Hermann, Gertrud. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971; Idem, A Infância do Mago. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2010; Idem, O Lobo da Estepe. Tradução de Ivo Barroso. 36ª edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2011; Idem, Sidarta. 65ª edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2021; COMPAGNON, Antoine, O Demônio da Teoria. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora Universidade Federal de Minas Gerais, 2012; ULM, Hernán, A Fenda Incomensurável: Literatura e Cinema. Tese de Doutorado.  Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura. Instituto de Letras. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2014; COELHO, Rafael Senra; SILVA, Teresinha Vânia Zimbrão da, “O  Lobo  e  o  Mago:  Uma  Leitura  dos  Caminhos  Espirituais  de  Hermann  Hesse  a  Paulo  Coelho”. In: Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, vol. 1, nº 1, pp. 9-21; jan.-jun., 2015; HABERMAS, JürgenDesobediência Civil - A Pedra de Toque do Estado Democrático de Direito. In: A Nova Obscuridade: Pequenos Escritos Políticos1ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 2015; FRANKEL, Roy David, Ser Quem Se É: A Experiência de uma Existência Autêntica em Heidegger, Hesse e Clarice. Dissertação de Mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada. Programa de Pós-Graduação em Letras. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2015; BORGES, Samanta; STEIRNAGEL, Daiane; HAISKI, Vanderléia, “O Conflito do Sujeito Moderno: Entre Homem, Lobo e Mil Vozes em O Lobo da Estepe de Hermann Hesse”. In: RevLet - Revista Virtual de Letras, vol. 09, nº 01, jan./jul., 2017; MENEZES, Rafael Pereira, “Pluralidade de Almas e Dissolução do Eu no Lobo da Estepe”. In: Revista Sísifo, n° 9, vol. 1, 30 de junho de 2019; LOPES, Juliana, “Modernidade e Indeterminação em O Lobo da Estepe”. In: Pandaemonium Germanicum. São Paulo, vol. 24, nº 43, pp. 139-166, 2021; entre outros.

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