sábado, 30 de setembro de 2017

Friedrich Nietzsche - Vontade, Poder & Sintomas da Corrupção.

                                                                                                    Giuliane de Alencar & Ubiracy de Souza Braga

A grande má fé dos conservadores de todos os tempos: são ajuntadores de mentiras”. Friedrich Nietzsche (1976: 63)

      
                   
               O velho fazendeiro Ohlsdorfer (Janos Derzsi) e sua filha (Erika Bok) dividem um cotidiano dominado pela monotonia. A realidade dos dois é observada pela vista da janela e as mudanças sociais são raras. Enquanto isso, analogamente o cavalo da família se recusa a comer e a andar. O filme é uma nítida inspiração do que teria ocorrido com um cavalo que fora salvo da tortura por Friedrich Nietzsche durante uma viagem a Turim, na Itália.  A família descrita pela sinopse vive um quotidiano miserável, mas sem piedade nem reclamações. Todas as manhãs, a filha se levanta, se veste, vai ao poço, busca água, volta, cozinha duas batatas que ela e o pai comem com as mãos, um sentado em frente ao outro. Eles alimentam o cavalo, limpam o estábulo e voltam para casa. O Cavalo de Turim é destas obras formalista e poética da miséria humana, além da ausência de conexão de sentido com a realidade. No cinema representa um drama teuto-franco-americano-suíço-húngaro de 2011 dirigido por Béla Tarr e Ágnes Hranitzky. Foi selecionado como representante da Hungria à edição do Oscar 2011, organizada pela Academia de Artes e Ciências Cinematográfica.             
               Conceitualmente o cavalo de sela (cheval de selle) é um tipo definido de cavalo, selecionado com o objetivo de se obter um animal diferente dos utilizados para o reboque de carroças ou para o trabalho cotidiano, embora os primeiros animais desse tipo fossem suficientemente robustos para desempenhar essas tarefas. Esse tipo de cavalo toma características mais precisas a partir do século XIX, quando ocorre uma evolução nas expectativas relacionadas ao cavalo de monta. Diversos cruzamentos foram realizados entre éguas selvagens historicamente e com frequência selecionadas por serem fortes e pesadas e garanhões de sangue quente, e desses cruzamentos nasceram os chamados cavalos de médio sangue. Foi assim que se desenvolveram as gerações seguintes de cavalos de sela, com animais mais ou menos próximos das linhagens paternas ou maternas dominantes, em função da orientação no processo de seleção natural. Atualmente cada país possui suas próprias raças e seus próprios estilos e modelos ideais de cavalos de montar. Com o tempo, os stud-books (“registros de criação”) foram igualmente implantados. E a partir do século XX os cavalos tende a especializarem-se em cavalos de esporte, lazer e recreação, sendo esses últimos, enfim, atualmente identificados como cavalos de sela.

 


Filmes sobre o Holocausto, o Nazismo e a limpeza étnica em si foram realizados aos montes, porém poucos tão contundentes e difíceis de serem digeridos como As harmonias de Werckmeister (2000), dos húngaros Béla Tarr e Ágnes Hranitzky. Fugindo da narrativa de espetacularização cultura, antevista por Guy Debord (1966), o cineasta Steven Spielberg em A lista de Schindler (1993), do humor melancólico de Roberto Benigni em A vida é bela (1997) e do drama narrativo e realista (além de belo) de Roman Polanski em O pianista (2002), Béla Tarr e Ágnes Hranitzky preferem os simbolismos, como uma baleia vinda junto de um espetáculo circense que anuncia a hecatombe, o próprio espetáculo que traz a desgraça ao invés da alegria – ao contrário do que se viu inúmeras vezes no cinema de Federico Fellini e algumas no de Charles Chaplin, provavelmente os dois maiores realizadores que veneravam e amavam o circo, como o protagonista de As harmonias de Werckmeister, um jovem amante de astronomia, que se vê confrontado ao perder a inocência – e as relações ambíguas entre os personagens, bem como a construção dos mesmos.
Tudo é encenado e filmado pelos diretores com harmonia, cada tomada com ritmo musical, poético, operístico. Os recursos estéticos provêm do Neo-Realismo: a câmera na mão, a luz natural – em alguns momentos e inclusive com o uso da superexposição de luz –, as várias cenas nas ruas, as tomadas longas e com artifícios documentais, como a fotografia em um preto-e-branco de tons cinzas que em outros instantes assume um tom expressionista marcado pelo típico claro-escuro. Aliás, o filme é todo construído por planos-seqüencias, levando realidade à tela e guardando poucas elipses, como se Béla Tarr e Ágnes Hranitzky enganassem o espectador até o horror vindo depois de uma hora de projeção. Inesquecível a seqüencia do massacre de alguns membros da comunidade retratada, a cena inicial e a última, todas filmadas com extremo rigor poético e narrativo.
Visão lírica e única de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky sobre os horrores causados por seres humanos a seus semelhantes, As harmonias de Werckmeister é também uma expurgação dos diretores, que nos pegam pelo estomâgo e não nos largam até que vomitemos e partilhemos de sua visão, nos sentindo como eles e como o protagonista, tomado pelo horror ao final da trama e com sua inocência perdida. Alguns se sentirão enganados e quem sabe um pouco perturbados pelo ritmo lamurioso, mas também lírico conferido a As harmonias de Werckmeister e por sua narrativa alegórica que são objetivos de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky, pois, boa parte dos espectadores preferem comparativamente o cinema de espetáculo de Spielberg e de Benigni, que cria mentiras e não busca compreender o real significado do Holocausto e das eternas marcas deixadas nos povos que sofreram com ele, como os judeus e os ciganos. Não só o Holocausto, mas todos os tipos de limpezas étinicas e a crença em uma “raça superior” (ideais nazistas e fascistas) são representados por Béla Tarr e Ágnes Hranitzky de forma metafórica.
              A vantagem de reler A Gaia Ciência (1976) tendo como parti pris a noção genérica de sintomas da corrupção encerra o sentido de um restabelecimento do equilíbrio: enquanto nas obras do último período, e nas interpretações que a elas se remetem, a filosofia de Nietzsche apresenta-se muitas vezes em um estado de “metafísica rarefação”, no diálogo estabelecido por Gianni Vattimo (1967; 2000), ou tende a se enrijecer em verdadeiras “teses” ontológicas (pensamos em certas leituras de Derrida e de seus discípulos, nas quais Nietzsche aparece como um teórico do ser entendido como diferença), aqui elas se apresentam ainda em seu vínculo originário com os aspectos talvez quase iluministas da obra de Nietzsche, com sua reflexão sobre a moral e de crítico da cultura. O que se delineia é um pensamento que não descreve estruturas do ser, como pretendera fazer o metafísico precedente; a descrição delas e o próprio sujeito que escreve ou a quem o escrito se dirige, existe para Nietzsche uma ligação mais complexa, não mais espetacular-representativa.
   Esse conteúdo não pode ser expresso nem na forma de tratado, tradicional da filosofia e especialmente na filosofia alemã, nem na forma que Nietzsche adotou desde Humano, demasiado humano e que, apesar de tudo, ainda mantém na Gaia ciência (1976), ou seja, a forma do aforismo, ainda que esta última já tenha dado passos decisivos para a recuperação do sentido originário da filosofia como, também, sabedoria de vida e atenção micrológica à expressão vivida. No verão que precede a composição da Gaia Ciência, o verão de 1881, Nietzsche teve realmente a grande iluminação que o fez descobrir a ideia em torno da qual girará todo o seu pensamento de agora em diante, a ideia do “eterno retorno” do mesmo. Ela, como se vê também a partir da forma que sua primeira enunciação tem na Gaia ciência (aforismo 341: - Esta vida, tal qual a vives atualmente é preciso que a revivas ainda uma vez e uma quantidade inumerável de vezes e anda haverá de novo, pelo contrário!), não se deixa exprimir uma proposição “o ser é eterno retorno”, pois Zaratustra dirá que caso possa entendê-la é fazer dela “uma modinha de realejo” e também o recurso á poesia, que ocorre na Gaia Ciência.   
Os pontos altos da cultura e da civilização são diferentes: não se deve incorrer no erro em relação ao antagonismo abissal entre cultura e civilização. Os grandes momentos da cultura foram sempre, dito moralmente, “tempos de corrupção”; por outro lado, foram as épocas da domesticação animalesca do homem, voluntária e forçada (“civilização”-) os tempos de impaciência para as naturezas mais espirituais e ousadas. Civilização quer algo diverso do que quer a cultura: talvez algo inverso. Observamos os sintomas destas circunstâncias sociais, necessárias de tempos em tempos, designadas pelo termo “corrupção”. Assim que a corrupção penetra em qualquer parte, constata-se o reino de uma superstição multíplice, diante da qual a crença geralmente adotada até então empalidece e impotencializa-se: uma vez que a superstição é livre pensamento de segunda categoria; quem se lhe entrega escolhe certas formas, certas fórmulas que lhe agradam; concede-se o direito de escolher. O supersticioso tem qualquer coisa de pessoal e análogo que o crente; uma sociedade supersticiosa será aquela onde se se encontram muitos indivíduos e prazeres em tudo que é admitido por individual. 

Desse ponto de vista a superstição sempre indica um progresso sobre a fé, no âmbito da religião e religiosidade, tornando claro que a inteligência se liberta e reclama seus direitos. Os partidários da velha religião e da velha religiosidade lastimam-se de corrupção, mas foram precisamente eles que até aqui determinaram o uso, no modo de se exprimir e que criaram para a superstição uma reputação má, mesmo entre os mais livres espíritos. Aprendamos: a superstição é sintoma de emancipação. Épocas de corrupção são aquelas em que as maças caem da árvore; quero dizer, os indivíduos, os que carregam em si o sêmen do futuro, os promotores da colonização intelectual, os que desejam modificar relações Estado-sociedade. A palavra “corrupção” só é injuriosa quando designa os outonos de um novo. Os homens célebres que precisam de sua celebridade - caso de todos os políticos – nunca escolhem sem segundas intenções seus aliados e amigos: pedem a este um pouco de brilho derivado de sua virtude, àquele o receio que podem causar as qualidades inquietantes que todos reconhecem, ao outro vão roubar a reputação de indolência e de amante dos demorados farniente porque é útil para seus objetivos passar momentaneamente por desatentos e indolentes.
Toda a moral da Europa tem por fundamento o proveito do rebanho: a aflição dos homens mais raros e superiores está no fato de que tudo o que ela distingue chega-lhes á consciência com o sentimento de apequenamento e de difamação. As forças do homem atual são as causas do obscurecimento pessimista: os medíocres, como de resto o rebanho, quase não possuem questões ou consciência moral, - são alegres. Tanto mais perigosa numa característica parece ao rebanho, tanto mais a fundo ele se acautela. No interior de um rebanho, de toda comunidade, a superestimação da verdade tem boa acolhida. Não se deixar enganar – e, por conseguinte, como pessoa moral, não enganar a si mesmo! Um compromisso mútuo entre iguais! Em relação ao que é de fora, o perigo e a precaução exigem que esteja vigilante diante do engano: para tanto, como condição social e psicológica prévia, também se deve estar internamente vigilante.
Desconfiança como fonte de veracidade. Enfim, a inertia ativa. 1. Na confiança, pois desconfiança torna necessária tensão, observação, reflexão; 2. Na veneração, onde é grande a distância do poder e necessária a submissão: para não temer, busca-se amar, apreciar muito e interpretar a diferença de poder como diferença de valor; de maneira que a relação não volte mais; - 3.  No sentido que de verdade. O que é verdadeiro? Onde um esclarecimento é dado, o qual nos pede o menos possível de esforço espiritual (além do mais, mentir é muito fatigante); - 4. Na simpatia. Equiparar-se, buscar sentir de forma idêntica, admitir um sentimento dado, tudo isso é facilitação: é algo passivo mantido de encontro ao ativo, o qual guarda para si o direito do juízo de valore aciona continuamente. Este último não dá nenhum descanso; 5. Na imparcialidade e frieza do juízo: teme-se a fadiga do afeto e, de preferência, fica-se à parte, de maneira “objetiva”; 6. Na honradez: obedece-se de preferência a uma lei dada, em vez de criar para si uma lei, de mandar em si e nos outros. O temor de mandar – é melhor submeter-se do que reagir; - 7. Na bendita tolerância: o temor do exercício do direito, do julgar.

Como ocorre na esfera de ação política o instinto do rebanho avalia o meio e o mediano como o que há de mais alto e valioso: a posição na qual se encontra a maioria; a maneira como ela se encontra a si mesmo; com isso, é um opositor de toda a hierarquia, a qual observa uma ascensão de baixo para cima, ao mesmo tempo em que considera um descenso [“Hinabsteingen”] do maior número á minoria. O rebanho sente a exceção, tanto a que está embaixo dele quanto a que está em cima dele, como algo infame e que se opõe a ele. Seu truque em relação às exceções de cima, aos amis fortes, mais poderosos, mais sábios, mais férteis, é persuadi-los a desempenhar o papel de vigias, pastores, guardas - a ser os primeiros servidores: com isso, ele transforma um perigo em uma utilidade. No meio, cessa  o temor: aqui, não se está sozinho com nada; aqui, há pouco espaço para o mal-entendido; aqui, há igualdade; aqui, o ser próprio não é sentido como uma censura, mas antes como os er autêntico; aqui, reina a satisfação. A desconfiança dirige-se às exceções; ser exceção vale como culpa. Ao animal de rebanho, em si, falta todo traço patológico, ele é mesmo inestimável; mas, incapaz de conduzir-se, precisa de um “pastor”. - os sacerdotes sabem disso... O Estado não é nem íntimo nem familiar o bastante; escapa-lhe a “condução da consciência”. Em que ponto o “animal de rebanho” tornou-se doente por intermédio do sacerdote?
O mundo do processo civilizatório para Friedrich Nietzsche, não é ordem e racionalidade, mas contraditoriamente desordem e irracionalidade. Seu princípio filosófico não era, portanto, da intencionalidade de Deus e razão, mas a vida que atua sem objetivo definido, ao acaso, e se está dissolvendo e transformando-se em um constante devir. A única e verdadeira realidade “sem máscaras”, para ele é a vida humana tomada e corroborada pela vivência do instante. Nietzsche era um crítico: a) das “ideias modernas”, b) da vida social e da cultura moderna, c) do neonacionalismo alemão, e, para sermos breves, d) Para ele, os ideais modernos como democracia, socialismo, igualitarismo, emancipação feminina não eram senão expressões da decadência de determinado “tipo homem”. Por estas razões, é, por vezes, apontado como um precursor da concepção de pós-modernidade. Durante toda a vida, tentou explicar o insucesso de sua literatura, hoje retomada mais do que nunca, chegando à conclusão de que “nascera póstumo”, para os leitores do porvir.
  Escondem destarte que estão em guarda; ora, precisam ter juntado de si o caprichoso, ou o pesquisador, ou o pedante, como espécie de eu para durar um instante, mas podem não mais precisar dele no minuto seguinte! Desta maneira suas vizinhanças e fachadas desaparecem constantemente quando tudo parece crescer nesse arrabalde e dar-lhe “caráter”: fator em que se assemelham as grandes cidades. Sua reputação altera-se incessantemente, bem como seu caráter, porque os mutáveis meios exigem essas mudanças e trazem ao primeiro plano, para lhe dar o papel principal, ora uma, ora outra de suas qualidades reais ou fingidas; seus amigos ou seus aliados fazem parte , como se diz, dessas qualidades teatrais. Contrariamente, é necessário que aquilo que desejam se mantenha ainda mais firme e isso exige por vezes seus jogos de cena e sua comédia.
 O sucesso de Nietzsche, entretanto, sobreveio quando um professor dinamarquês leu a sua obra: Assim Falou Zaratustra (cf. Nietzsche, 1968) e, então, tratou de difundi-la, em 1888. Em 3 de janeiro de 1889, Nietzsche sofreu um colapso mental. Teria testemunhado o açoitamento de um cavalo no outro extremo da Piazza Carlo Alberto. Então correu em direção ao cavalo, jogou os braços ao redor de seu pescoço para protegê-lo e em seguida, caiu no chão. Nos dias seguintes, Nietzsche enviou escrito breve conhecido como: Wahnbriefe, em português: Cartas da loucura – para um número de amigos, entre eles, Cosima Wagner, filha do pianista húngaro Franz Liszt com a Condessa Marie d`Agout e Jacob Burckhardt, filósofo da história e da cultura suíça, autor de importantes obras sobre a cultura e história da arte. Muitas destas cartas foram curiosamente assinadas “Dionísio”. Embora a maioria dos comentaristas considere seu colapso como alheios à sua filosofia, Georges Bataille (1967) chegou a insinuar que sua filosofia pudesse tê-lo enlouquecido e a psicanálise “post-mortem”, de René Girard, postula uma “rivalidade de adoração” com Richard Wagner.   
Nietzsche não se atém ao julgamento moral da corrupção, a vê antes como um sintoma e indaga sobre suas possíveis causas. A extrema valorização do individualismo na era moderna seria uma causa, e junte-se a isso o excessivo culto à aparência na era contemporânea. Houve tempos em que a belicosidade, a inclinação para a guerra, era um valor moral de virtude, e para Nietzsche as épocas de corrupção não são mais doces nem mais brandas do que as épocas de guerra, antes se tornam mais e mais refinadas no uso político que dão à crueldade. É precisamente nessas épocas que é criada a maldade; é nelas que o prazer na maldade cresce e frutifica. Por conseguinte, as épocas de corrupção são necessariamente épocas trágicas. O modo de ferir e de torturar os outros com significativas palavras, e a eficácia simbólica da visibilidade dos olhares como armadilha, atingem o seu apogeu em épocas de corrupção quando os homens demonstram-se espirituosos e caluniadores.

 Para tanto os dois traços que caracterizam o europeu moderno encontram-se em aparente oposição: o individualismo e a exigência de direitos iguais. A saber, que o indivíduo é uma vaidade extremamente vulnerável: - como ela sofre rapidamente, em sua consciência exige que todo outro indivíduo seja posto em pé de igualdade com ele e esteja somente inter pares. Com isso, caracteriza-se uma raça social na qual, realmente, os talentos e forças não se elevam uns e em relação às outras. O orgulho, que quer solidão e poucos tesouros, acha-se totalmente fora de compreensão; os sucessos realmente “grandes” só existem com as massas; sim, mal se compreende ainda que um sucesso de massa é sempre um pequeno sucesso: pois pulchrum est paucorum hominum. As morais nada sabem da consciência-coletiva. O princípio-individual rejeita os homens realmente grandes e exige, entre os mais ou menos iguais, o olho mais sutil e o reconhecimento mais ágil de um talento; posto que cada um possua algum talento, em tais culturas civilizadas e tardias pode, portanto, esperar receber de volta a sua parte de distinção; por isso hoje tem lugar, como nunca antes, um realce dos pequenos méritos: - dá-se à época um brilho e tom de verniz de ilimitada modicidade. Sua “não-modicidade” reside em uma fúria sem limites não contra os tiranos e aduladores do povo, mesmo nas artes, mas contra os homens nobres, os quais desprezam a exigência de igualdade de direitos como por exemplo, ter assento acima de todo e qualquer tribunal que é uma maneira de representação antiaristocrata.
         Uma sociedade que conserva em si aquela consideração e delicadeza em relação à liberdade há de sentir-se nobre e ter contra si um poder, contra o qual se ergue, é hostil e olha de cima. Para o princípio individual, igualmente estranho é o indivíduo apagado, a submersão em um grande tipo, o não-querer-ser-pessoa: o que constituía outrora a distinção e o entusiasmo de muitos homens elevados (os grandes poetas estão entre eles); ou “ser-cidade”, como na Grécia; jesuitismo, corpo de oficiais e de servidores prussianos; ou ser discípulo e continuador de um grande mestre: para o que são necessárias disposições não sociais e a falta da pequena vaidade. O individualismo é uma espécie modesta e ainda inconsciente da “vontade de poder”; aqui parece já ser suficiente ao indivíduo conseguir livrar-se do poder superior da sociedade seja do Estado ou da igreja. Ele não se coloca em oposição como pessoa, mas apenas como indivíduo; defende todos os indivíduos contra a coletividade. Quer dizer: põe-se instintivamente em pé de igualdade como todo indivíduo; o que combate não combate para si como pessoa, mas antes para si como indivíduo, contra a coletividade.
  Uma sociedade onde a corrupção se instala é acusada de abandono, de fato o prestígio da guerra e do entusiasmo marcial sofre baixa visível; aspira-se aos prazeres da existência com tanto ardor quanto aquele antigamente posto em conquistar honras militares ou gímnicas. É até provável que no estado de “corrupção” sejam dispendidas uma força, uma violência energética muito maior que nunca pela nação e que o indivíduo desperdice essa energia com muito maior prodigalidade do que podia fazer anteriormente, quando não tinha suficiente riqueza! Precisamente nas épocas de “abandono” é que a tragédia corre as ruas e as coisas, que se vê nascer o grande amor, o grande ódio e a chama do acontecimento esbraseiam no céu. É o grande momento da traição, da corruptibilidade; pois o amor ao ego recém-descoberto é muito mais possante que o amor à pátria, velho conceito esgarçado, enterrado sob os excessos vocabulares e a necessidade de se defender contra temerosos caprichos da fortuna que um homem rico e poderoso se mostre disposto de nelas deitar ouro.  
Mas os observadores talvez tenham negligenciado o fato dessa antiga energia, antiga paixão pela nação, que as guerras e torneios punham em tão pomposa evidência, transformou-se numa infinidade de paixões privadas e limitou-se tonar menos visível, que digo eu? É até provável que no estado de “corrupção” sejam dispendidas uma força, uma violência energética muito maior que nunca pela nação e que o indivíduo desperdice essa energia vital com muito maior prodigalidade do que podia fazer anteriormente, quando não tinha suficiente riqueza! Precisamente nas épocas de “abandono” é que, portanto, a tragédia corre as ruas e as coisas, que se vê nascer o grande amor, o grande ódio e a chama do acontecimento esbraseiam no céu. Pretende-se, em terceiro lugar, que, compensando de algum modo a censura de superstição e de abandono que se podem estabelecer quanto às épocas de corrupção, os costumes se tornam mais suaves no decurso desses períodos, que a crueza diminui notavelmente em análise com as épocas precedentes, mais crentes e mais fortes.
Não poderia subscrever esse elogio, afirma Nietzsche, bem como não subscrevi a acusação precedente; tudo que concede é que a crueldade se afirma , que suas formas antigas repugnam ao novel gosto; mas a arte de ferir, de torturar com a palavra e o olhar, alcançam em tempo de corrupção, em contrapartida, seu aperfeiçoamento supremo; é então e apenas que nascem a malignidade e o prazer de ser mau. As pessoas das épocas de corrupção são espirituais, caluniadoras. Sabem que se pode matar dispensando o punhal e a surpresa; sabem também que se acredita em tudo que é bem dito. Em quarto lugar, quando “os costumes se corrompem” é o momento em que surgem esses seres denominados “tiranos”: esses são os precursores, por assim dizer, as precoces guardas avançadas do indivíduo. Mais um pouco de paciência: esse fruto dos frutos terminará por pender, maduro e dourado, da árvore de um povo, é só por ele que essa árvore existe! No apogeu da decomposição, como a luta dos tiranos de toda espécie, sempre se vê chegar o César, tirano definitivo que vibra o golpe de misericórdia á luta depauperante dos concorrentes à preponderância servindo-se do cansaço em seu proveito. Quando aparece o indivíduo, geralmente, é  no momento de sua maturidade perfeita, estando a “cultura” consequentemente no zênite de sua fecundidade... Mas não é graças a ele, não é por ele, ainda que as pessoas de grande cultura gostem de lisonjear o César, fazendo-se passar por obra sua.  A verdade é que necessitam de paz interior porque trazem inquietação dentro deles, porque seu trabalho é coisa interior.
Nossas forças levam, por vezes, tão longe que não podemos continuar a suportar nossas fraquezas e pereceremos disso; bem que nos acontece ver esse resultado, mas não podemos lhe introduzir nenhuma modificação. Usamos então a dureza contra o que seria necessário poupar em nós mesmos e nossa grandeza faz nossa barbárie. Essa experiência, que acabamos por pagar com a vida, simboliza a ação dos grandes homens nos outros e em seu tempo; é o que tem de melhor, com o que são os únicos a poder fazer, que arruínam grande parte dos seres fracos, incertos, sem vontade própria, ainda em mudança; é com o que tem de melhor em si próprios que se tornam nocivos. Pode até acontecer que só prejudiquem porque aq   uilo que neles há de melhor só pode ser absorvido de um trago, de qualquer modo, por seres que ali afoguem a razão e a individualidade, como um licor excessivamente forte, e ficam de tal modo embriagados que não poderão deixar de partir os membros em todos os caminhos em que sua ebriedade os fulminar. O que se faz e sempre se fez acerca de qualquer religião, são os motivos e intenções que se escondem atrás do hábito sempre inventados depois, por mentira, quando começa a combater o hábito, a perquirir-lhe as razões e intenções. A grande má fé dos conservadores de todos os tempos: são ajuntadores de mentiras.

Que a mentira seja autorizada para fins piedosos, isso pertence à teoria de todo sacerdócio, - quanto isso pertence à sua práxis deve ser o objeto da presente investigação. Mas também os filósofos, tão logo tencionem, com secretos desígnios sacerdotais, tomar em mãos a condução dos homens, também reivindicam para si, de imediato, um direito de mentir: Platão á frente. Superlativa é a dupla mentira desenvolvida pelos filósofos de tipo ariano dos Vedanta: dois sistemas, contraditórios em todos os pontos principais, mas revezando-se, preenchendo-se e completando-se segundo fins educativos. A mentira de um deve criar um estado no qual a verdade do outro se torne, em geral audível. Até que ponto chega a mentira piedosa dos sacerdotes e dos filósofos? Em primeiro lugar, devem ter a seu favor o poder, a autoridade, a confiança irrestrita. Em segundo, devem ter em mãos a totalidade do processo natural, de modo que tudo o que acontece aos indivíduos apareça como condicionado por uma lei sua. Em terceiro lugar, devem também possuir um âmbito de poder de muito maior alcance e cujo controle se subtraia aos olhos dos subordinados: o castigo eterno, o “depois-da-morte”, - e também devem possui-lo como é conveniente, os meios através dos quais se deve saber “o caminho para a bem-aventurança”.
A mentira sagrada inventou assim um Deus que pune e recompensa, que aprova, em todos os detalhes, o poderoso livro de leis do sacerdote e que os envia, exatamente, como seus porta-vozes e procuradores do mundo; - um além da vida, no qual somente se pensa efetiva a grande máquina-punitiva, - a esse fim serve a imortalidade da alma; - a consciência moral [Gewissen] no homem, ser consciente daquilo que institui bem e mal, - que Deus em pessoa fala aqui, quando ela aconselha a conformidade com a prescrição sacerdotal; a moral como negação de todo processo natural, como redução de todo acontecer a um acontecer moralmente condicionado, o efeito moral (isto é, a ideia de recompensa e punição) como o que perpassa o mundo, como uma força isolada, como creator de toda mudança; - a verdade como algo oferecido, revelado, como coincidindo com a doutrina do sacerdote: como condição, enfim, de toda salvação e felicidade, nesta e para os crentes noutra vida. O cristianismo deveria ter instituído a inocência do homem como artigo de fé – os homens ter-se-iam tornado deuses: então se poderia ainda (a) creditar.
Bibliografia geral consultada.
HÉBER-SUFFRIN, Pierre, O Zaratustra de Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991; COLLI, Giorgio, Scritti su Nietzsche. 4ª edizione Milano: Adelphi, 1995; SOUZA, Paulo César de, Freud, Nietzsche e outros alemães: artigos, ensaios, entrevistas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1995; BAUMAN, Zygmunt, Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1998; ARALDI, Clademir Luís, Niilismo, Criação, Aniquilamento: Nietzsche e a Filosofia dos Extremos. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí, Rio Grande do Sul: Editora Unijui, 2004; NIETZSCHE, Friedrich, Così parlò Zarathustra. A cura di Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Milano: Adelphi Editore, 1968; Idem, A Gaia Ciência. São Paulo: Editora Hemus, 1976; Idem, A Vontade de Poder. Apresentação Gilvan Fogel. Rio de Janeiro: Editor Contraponto, 2008; RUBIRA, Luís Eduardo Xavier, Nietzsche: Do Eterno Retorno do Mesmo à Transvaloração de Todos os Valores. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Departamento de Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008; BARBOSA, Ildenilson Meireles, Niilismo, Transvaloração e Redenção na Filosofia de Nietzsche. Tese de Doutorado em Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Filosofia.  São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2009; MORAES, Eduardo Carli de, Além da Metafísica e do Niilismo: A Cosmovisão Trágica de Nietzsche. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2013; PAULA, Wander Andrade de, Nietzsche e a Transfiguração do Pessimismo Schopenhaueriano: A Concepção de Filosofia Trágica. Tese de Doutorado.  Instituto de Filosofia e Ciências Humana. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2013; ANCONA LOPEZ, Chiara, Do Corpo, na Filosofia de Friedrich Nietzsche. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia. Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017; NEVES, Wainer Furtado, Cultura e Política: O Perspectivismo da Grande Política em Friedrich Nietzsche. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade. São Luís: Universidade Federal do Maranhão, 2017; entre outros.

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

C. Wright Mills - College, Meio Acadêmico & Artesanato Intelectual.

                                                                                                     Ubiracy de Souza Braga

O trabalhador intelectual forma-se à medida que trabalha para o aperfeiçoamento de seu ofício”. Wright Mills

           
          
            Charles Wright Mills nasceu em Waco, Texas, em 28 de agosto de 1916. Cursou a graduação em sociologia e o mestrado em filosofia na Universidade do Texas em Austin. Em seguida, tentou fazer seu doutorado em sociologia na Universidade de Chicago, mas desistiu por não ter conseguido uma bolsa de estudos. Foi então, em 1939, estudar na Universidade de Wisconsin, onde defendeu, em 1942, sua tese de doutorado, “A Sociological Account of Pragmatism: Na Essay on the Sociology of Knowledge”. Wright Mills transferiu-se em 1941 para a Universidade de Maryland (College Park), onde ministrou aulas de sociologia. Nos anos seguintes, colaborou com Hans H. Gerth em dois livros: a extraordinária coletânea de textos de Max Weber, intitulada: From Max Weber: Essays in Sociology, publicado em 1946 - seu maior best-seller, ainda reimpresso mais de 60 anos após sua publicação - e a etnologia Character and Social Structure, que viria a ser publicado em 1953. Em 1945, Mills mudou-se para Nova York, indo trabalhar no Bureau of Applied Social Research a convite de seu fundador e diretor, o sociólogo Paul Lazarsfeld. Ali, teve acesso a farto material empírico, quando trabalhou coordenando equipes de investigadores e pôde adquirir habilidades em métodos e técnicas de pesquisa quantitativa. 
           Apesar da admiração que inicialmente sentia por Paul Lazarsfeld, aos poucos as relações sociais entre os dois se deterioraram, até o rompimento completo, em 1952. Paul Lazarsfeld foi educado na Universidade de Viena, onde obteve em 1925 o seu Doutoramento em Matemática Aplicada com uma tese intitulada: Die Perihewegung des Merkur, publicada na Revista Zeitsdhrift für Phisik que procurava apresentar uma solução matemática à função einsteiniana sobre “o movimento na órbita do planeta Mercúrio a partir do cálculo do seu perigeu”. Após o doutoramento, fundou, em 1929, um Instituto de Pesquisa para Psicologia Social Aplicada na capital austríaca. Em 1933 emigrou para os Estados Unidos da América, foi diretor do Gabinete de Pesquisa Radiofônica na Universidade de Princeton depois de receber um fundo da Fundação Rockfeller para a pesquisa sobre Sociologia e Psicologia associada à comunicação social. Em 1940, o seu projeto mudou-se para a Universidade de Columbia, ao qual o seu gabinete foi nomeado de Bureau of Applied Social Research. Foi docente do Departamento de Sociologia desta universidade até 1970. Na Escola de Columbia, foi o precursor de uma corrente do estudo da comunicação social iniciada em 1940, na Universidade de Columbia.
        Concomitantemente ao trabalho no Bureau, Mills começou a lecionar na Universidade de Columbia em 1947, nela permanecendo até sua morte, em 1962. Ao longo desses 15 anos, Mills foi uma figura marginal no ambiente acadêmico de Columbia. As relações pessoais com alguns colegas foram difíceis. Como uma das terríveis consequências, não ensinava na pós-graduação. O lado positivo é que tinha como vantagem tempo de Dedicação Exclusiva (DE) para dedicar-se à pesquisa e à escrita heterodoxa. A educação superior norte-americana tem as suas origens nos programáticos College, fundados sob a inspiração dos preceitos do protestantismo puritano, a partir do início do século XVII. A universidade norte-americana, contudo, é relativamente tardia. Somente a partir da Guerra Civil de 1861 foi se constituindo gradativamente um sistema de educação superior, no seio do qual emergiu a moderna universidade. Apoiado em revisão de literatura e consulta a outros documentos, o presente trabalho tem como objetivo realizar uma análise sócio-histórica do processo de constituição e consolidação do sistema de educação superior norte-americano no período compreendido entre a década de 1860-1920. 
          O início do período é marcado não só pela Guerra Civil, mas pela assinatura do Morrill Act (1862) que pôs em cena o Estado como ator na área da educação superior norte-americana. Seu final é marcado pela consagração da educação superior de massa. Quando os primeiros britânicos se estabeleceram na América do Norte, a Europa estava submersa em conflitos religiosos. Tentando escapar das interdições protestantes buscaram no novo continente refúgio para o livre exercício da fé e também a liberdade para erguer uma sociedade, cujos pilares fossem lançados sob os preceitos do protestantismo puritano. Com este intuito do século XVII, um grupo de colonos se estabelecia em New Plymouth, Nova Inglaterra, tendo redigido para reger suas vidas o Pacto de Mayflower, inspirado em ideias puritanas radicais. Pouco depois, outro grupo se fixou ao Norte, atraindo outros protestantes britânicos, de modo que na década de 1630 a região contava com população de 20 mil habitantes. Considerando a educação um instrumento para interpretar a vontade divina, os colonizadores do Massachussets destinaram uma quantia do orçamento da comunidade para a construção de uma instituição de ensino, o que resultou, em 1636, na inauguração de um College, que passaria a chamar-se, em 1638, a extraordinária Harvard College, a faculdade de graduação da Universidade de Harvard, uma universidade de pesquisa da Ivy League, em Cambridge, Massachusetts. Fundado em 1636, o Harvard College é a escola original da Harvard University, a mais antiga instituição de ensino superior dos Estados Unidos e uma das mais prestigiadas do mundo.
            Na organização de Harvard estavam à frente graduados, a maioria vinda do Emmanuel College da Universidade de Cambridge, fundada sob os auspícios dos puritanos. Harvard se constituiu como espelho da instituição britânica com seu currículo, destinado a formar o futuro clérigo. Para a sua direção à Corte Geral de Massachussets nomeou uma comissão da própria Corte, que ganhou autonomia ao tornar-se, em 1642, o seu Board of OverseersA segunda instituição de educação superior nos Estados Unidos foi o College of William and Mary. Inaugurado em 1693, na Virgínia, por James Blair, um clérigo escocês anglicano. Esta foi a primeira instituição de ensino, em terras norte-americanas, a ser criada sob a chancela da coroa britânica. O terceiro College teve a sua história ligada à criação da colônia de New Haven, ao Sul de Massachussetts, e incorporada à colônia de Connecticut, cuja Assembleia autorizou, em 1701, a criação de um Collegiate School, em Saybrook, sob o controle dos puritanos. Em 1716 a instituição foi transferida para New Haven, tornando-se o New Haven College, o qual, em seguida, teria o seu nome mudado para Yale College. Foi de Yale que saiu Jonathan Dickinson, fundador e primeiro diretor do College of New Jersey. Criado, em 1746 o College foi transferido para Newark até 1756, e transferido para Princeton, nome que, mais tarde, o identificaria. 
            O quinto, o College of Philadelphia, atual University of Pennsylvania, teve as suas origens nas intenções de cidadãos daquela localidade de criar uma escola pública de caridade para crianças pobres. Mais tarde a instituição foi transformada na Publick Academy in the City of Philadelphia e, finalmente, em 1755, no College and Academy of Philadelphia. A despeito da atual Columbia University proclamar-se a quinta mais antiga instituição norte-americana de educação superior, os estudiosos apontam o King`s College, fundado em 1754 e que lhe deu origem, como o sexto College criado no período de transição colonial. Com isto, o College of Rhode Island, atual Brown University, o Rutgers College, fundado como Queen`s College, a Rutgers University, e o Dartmouth College seriam os últimos dos nove College criados nas antigas colônias britânicas que constituíram os Estados Unidos da América. Os College seguiram padrões britânicos, organizando-se como instituições voltadas para educação baseada no ensino religioso e das línguas clássicas, predominando os College residenciais com tutorado dos docentes, com contribuição moral tão importante quanto a intelectual.  

                          
            Foi em Nova York que Wright Mills publicou o núcleo de sua contribuição para as ciências sociais, uma trilogia sobre a sociedade norte-americana contemporânea, na qual analisava seus três estratos principais: os líderes sindicais, em New Men of Power (1948); as classes médias, em White Collar: The American Middle Classes (1951), seu primeiro sucesso para além dos muros acadêmicos; e a elite, em The Power Elite (1956). Estes dois últimos livros tiveram várias edições e foram publicados em mais de uma dezena de línguas. No ano acadêmico de 1956-57 Mills foi professor visitante na Universidade de Copenhague, financiado pela Fullbright. Não havia nenhum motivo especial para ir à Dinamarca, como explicou numa carta a Hans Gerth: - “Bem, porque eles pediram por mim; ninguém mais o fez. Segundo, eu gosto da ideia de ir a esse pequeno país”. Na Europa, completou boa parte do manuscrito The Sociological Imagination, que viria a ser publicado em 1959, livro no qual fazia uma análise crítica das “escolas” que dominavam o campo sociológico, principalmente as tradições cujos expoentes foram, Paul Lazarsfeld e Talcott Parsons (1902-79). Ficou famosa a “tradução abreviada” que Mills fez, no capítulo 2 (“Grande Teoria”), de extensos trechos retirados das 555 páginas de The Social System (1951) de Parsons, afirmando que o livro poderia ser reduzido, sem perda de conteúdo, a 150 páginas de “inglês direto”. Mesmo assim, continuava Mills, o resultado não seria muito impressionante.
            Nestes livros o autor critica as principais correntes da sociologia norte-americana, representadas pela chamada “Grande Teoria” (Talcott Parsons) e pelo “Empirismo Abstrato” (Paul Lazarsfeld); adverte que uma tentativa de destruição de Cuba por parte dos Estados Unidos da América  poderia desencadear condições e possibilidades da terceira guerra mundial; propõe-se a divulgar o marxismo em seu país, através de um alentado volume de quase 500 páginas; esmiúça, de maneira polêmica, a sociedade norte-americana, através do reconhecido ensaio: A Elite do Poder. De acordo com seu amigo Irving Louis Horowitz, autor de C. Wright Mills, an American Utopian, (1983), após a publicação desse texto, “as grandes instituições 'filantropóides' - com uma única e honrosa exceção - recusaram todos os seus pedidos de bolsas” para pesquisa. Mills esteve no Rio no final de outubro de 1959, convidado para participar do Seminário Internacional Resistências à Mudança: Fatores que Impedem ou Dificultam o Desenvolvimento, realizado no Museu Nacional e promovido pelo Centro Latino-Americano de Pesquisa em Ciências Sociais, dirigido pelo sociólogo Luiz Costa Pinto (1920-2002).  
Neste Seminário, Wright Mills apresentou o trabalho “Remarks on the Problem of Industrial Development”, que foi criticado pelos marxistas brasileiros Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Paschoal Leme, presentes ao evento. Durante sua estada no Rio de Janeiro, Mills escreveu uma carta a Tovarich, um colega russo imaginário (em russo, a palavra significa camarada) com o qual começara a se “corresponder” (sem ter nunca publicado esse material em vida) entre 1956 e 1957, em sua primeira longa temporada na Europa. A carta, intitulada: “What does it mean to be an intellectual?”, foi publicada postumamente e encontra-se traduzida pela primeira vez para o português. Em dezembro de 1960, às vésperas de participar de um debate em cadeia nacional de televisão com Adolf A. Berle Jr. embaixador no Brasil entre 1945 e 1946 sobre a política externa norte-americana para a América Latina, C. Wright Mills sofreu um sério infarto do miocárdio. Sobreviveu, mas fagilmente por apenas mais 15 meses. Em 20 de março de 1962, morreu em sua casa, de outro ataque cardíaco, aos 45 anos de idade.
            Charles Wright Mills foi um sociólogo norte-americano obtendo o mestrado em Arte, Filosofia e Sociologia pela Universidade do Texas, e doutorado em Sociologia e Antropologia pela Universidade de Wisconsin. Foi professor de Sociologia das Universidades de Maryland e Columbia. Tornou-se reconhecido principalmente por seu livro: A Imaginação Sociológica, publicado originalmente nos Estados Unidos da América em 1959. Nele o autor faz um apelo para que sociólogos não deixem a imaginação e a criatividade de lado, ao exercerem sua profissão, em favor de uma pretensa objetividade e neutralidade do trabalho científico. As grandes obras e os intelectuais na história social em geral não abriram mão de sua reflexividade e criatividade, além de uma postura crítica diante da realidade e da teoria a respeito do individualismo partindo da premissa do utilitarismo em contraposição ao egoísmo utilitário de Herbert Spencer e dos economistas. Uma das críticas comum à sociologia era ser mais acessível à compreensão do grande público no âmbito de massificação da sociedade de classes.

         Depois de formado, Wright Mills foi nomeado professor de Sociologia na Universidade de Maryland. Quatro anos depois trabalhou como professor pesquisador na Columbia University`s Bureau of Appled Social Research. Em seguida assumiu o cargo de professor no Departamento de Sociologia, onde permaneceu lecionando até sua morte. O escopo de suas pesquisas refere-se à desigualdade social, ao poder das elites, o declínio da classe média, e na relação melindrosa entre os indivíduos e a sociedade, como também na importância de uma perspectiva histórica, como parte fundamental do pensamento sociológico. Ipso facto, a mais influente obra de Wright Mills foi de fato A Imaginação Sociológica (1959), onde apresenta os três componentes que formam o arcabouço da imaginação sociológica: a história, a biografia e a estrutura social, que permitem um olhar para além de seu ambiente local, no sentido de fornecer informações e desenvolver razões, a fim de se perceber com lucidez o que está acontecendo no mundo ao seu redor e como está refletindo dentro de si mesmo.
A obra que procura conscientizar, não só os sociólogos, mas a todos os envolvidos, das ligações existentes entre o ambiente social pessoal imediato e o mundo social impessoal que está a sua volta e que colabora para moldar a reflexão das pessoas. Outras publicações importantes do bravo pensador são: A Elite do Poder (1956), a profecia, As Causas da Terceira Guerra Mundial (1958), A Revolução em Cuba (1960) e Os Marxistas (1962). Mills foi leitor atento da obra de Max Weber, tendo editado nos EUA uma compilação de textos deste último, juntamente com Hans H. Gerth, obra que ficou intitulada, From Max Weber: Essays in Sociology, traduzida para o português como Ensaios de Sociologia, em 1974, pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Mills e Gerth apresentam uma importante reflexão sobre a obra de Max Weber articulada a um escorço biográfico deste autor e um autêntico Apêndice: Do Artesanato Intelectual, onde apresenta uma etnologia propriamente dita da pesquisa científica. Para Mills, a racionalidade do mundo ocidental não produziu a indispensável libertação do ser humano, já que as principais ideologias desenvolvidas - capitalismo e socialismo - não se mostraram aptas a prever e controlar intensos processos de mudanças sociais. Esta crítica faz parte da tese de que o intelectual deveria manter postura crítica e reflexiva na realidade, e tomar parte nos debates públicos de seu tempo.
Apesar do seu desaparecimento precoce Charles Wright Mills (1916-1962) teve tempo para desafiar ideias e preconceitos sociais, e para se afirmar como uma figura inovadora e inevitável da sociologia. Abalou grandes nomes das ciências sociais com críticas analíticas severas a tradições teóricas importantes. Num dos seus livros de maior destaque, A Imaginação Sociológica (1959), criticou a tendência para manipular a evidência histórica e assim produzir um “colete de forças trans-histórico”, onde identificou outro entrave ao progresso das ciências humanas naquilo a que chamou “grã teoria”, ou seja, obcecado na crença de que o objetivo das ciências sociais é o de construir “uma teoria sistemática da natureza do homem e da sociedade”. A “grã-teoria” está tão preocupada em fazer revelações abstratas da sociedade que evita lidar com os grandes problemas sociais.  Inicialmente, o termo foi usado com uma conotação irônica para referir-se a várias teorias sobre formas generalizadas da sociedade.
A sua postura crítica e independente dos grandes centros de poder ficou clara também noutra das suas mais importantes obras, A Elite do Poder (1956), onde desenvolve uma explicação da estrutura de poder da sociedade norte-americana do pós-guerra e afirma que as três esferas institucionais mais importantes nesta sociedade são as esferas política, industrial e militar, cada vez mais interdependentes. Conclui Mills que os EUA são dominados por uma única elite poderosa composta pelos dirigentes destas três esferas institucionais. Wright Mills é um dos mais importantes teóricos da escola conflitual e um grande crítico tanto do ponto de vista consensual como do ponto de vista funcionalista, ambos dominantes na sociedade norte-americana do seu tempo. Compreende na obra que as decisões políticas determinam as atividades econômicas e os programas militares. Tem-se uma economia política articulada de diversas maneiras às instituições e decisões militares. Os líderes desses domínios do poder formam a elite do poder da América. Wright Mills acrescenta que essa estrutura social sofreu, historicamente, pequenas alterações na preponderância dos três setores-chave e discrimina essa dinâmica em cinco fases.
Na primeira, explica que coincidiam a vida social, as instituições econômicas, a organização militar e a ordem política formando uma “elite multifacetada”, sem nenhuma polarização entre os meios de poder. A segunda, durante o século XIX, caracteriza como de ascendência social da ordem econômica, a qual na terceira fase consolida a sua supremacia tendo como dependentes as ordens militar e política, com a subordinação do Estado aos grandes interesses monetários. O quarto período se dá no contexto social da chamda Grande Depressão de 1929, onde o estabelecimento do Estado do bem-estar social propiciou o fortalecimento do poder político num cenário economicamente em crise. A quinta e atual fase é caracterizada como de ascensão militar, em função das questões relacionadas à defesa e às relações de âmbito internacionais. Apesar dessas proposições, é salientada a ideia da inter-relação entre os poderes e, por fim, a critica à visão marxista hegemônica de classe dominante, pois, segundo Mills, esse termo carrega apenas o significado econômico (classe) e político (dominante), esvaziando o terceiro e muito importante vértice do triângulo referido da elite: o poder militar
O dia 24 de outubro de 1929 é considerado popularmente o marco inicial da Grande Depressão, mas a produção industrial norte-americana já havia começado a cair a partir de julho do mesmo ano, causando um período de leve recessão econômica que se estendeu até 24 de outubro, quando valores de ações na bolsa de valores de Nova Iorque, a New York Stock Exchange, caíram drasticamente, e tornou-se notícia no ocidental mundo com o crash da bolsa de valores. Assim, milhares de acionistas perderam, literalmente da noite para o dia, grandes somas em dinheiro. Muitos perderam tudo o que tinham. Essa quebra na bolsa de valores piorou drasticamente os efeitos da recessão já existente, causando grande deflação e queda nas taxas de venda de produtos, que por sua vez obrigaram ao encerramento de inúmeras empresas comerciais e industriais, elevando assim drasticamente as taxas de desemprego. O colapso continuou no dia 28 e no dia 29 de outubro. Os efeitos da Depressão foram sentidos no mundo inteiro, bem como sua intensidade, variaram de país a país. Outros países, além dos Estados Unidos, que foram duramente atingidos pela queda da economia na Depressão foram a Alemanha, Países Baixos, Austrália, França, Itália, o Reino Unido e o Canadá. Em países pouco industrializados, ou em vias de desenvolvimento, como a Argentina e o Brasil, que não conseguiu vender o café que tinha para outros países, a Grande Depressão segundo alguns economistas acelerou o processo de industrialização.
Praticamente não houve nenhum abalo na União Soviética, que, tratando-se de uma economia socialista, estava econômica e politicamente fechada para novas tecnologias. Entre 1929 e 1932, o PIB mundial caiu em cerca de 15%. Em comparação, o PIB mundial caiu em menos de 1% entre 2008 e 2009 durante a Grande Recessão. Os efeitos negativos da Grande Depressão atingiram seu ápice nos Estados Unidos em 1933. Neste ano, o Presidente americano Franklin Delano Roosevelt aprovou uma série de medidas reconhecidas como New Deal. Essas políticas econômicas, adotadas quase simultaneamente por Roosevelt nos Estados Unidos e por Hjalmar Schacht na Alemanha foram racionalizadas pelo Keynesianismo enquanto obra clássica. Alguns estudiosos alegam que o New Deal, juntamente com programas de ajuda social realizados por todos os estados americanos, ajudou a minimizar os efeitos da Depressão a partir de 1933, enquanto outros pesquisadores discordam dessa visão. A maioria dos países atingidos pela Grande Depressão passaram a recuperar-se economicamente a partir de então. Em alguns países, a Grande Depressão foi um dos fatores primários que ajudaram a ascensão de regimes ditatoriais, como os nazistas na Alemanha. O início da 2ª guerra mundial (1939-1945) terminou com os efeitos remanescentes da Grande Depressão nos principais países atingidos, muito embora vários economistas neoclássicos discordem disso. 
À medida que aumentava o afastamento de seus pares acadêmicos norte-americanos, Mills buscava escrever mais e mais para o grande público. Além de artigos em revistas como: New Leader, Politics, New York Times Magazine e Dissent, escreveu “livros-panfletos” que lhe deram grande exposição na mídia norte-americana - algo comparável apenas, talvez, à que teria a antropóloga Margaret Mead. Em The Causes of World War Three (1958), Mills tratou da corrida nuclear; em Listen, Yankee: The Revolution in Cuba (1960), da fase inicial da revolução cubana, livro escrito em seis semanas após uma visita que Mills fizera a Cuba em agosto de 1960, foi um enorme sucesso de vendas e, ao mesmo tempo, colocou o FBI à sua espreita. O livro baseou-se em extensas entrevistas gravadas com Fidel Castro, Che Guevara e outros líderes da revolução social, além de jornalistas, militares e intelectuais. Fidel Castro teria então contado a Mills que lera The Power Elite durante a guerrilha.  Mills acreditara que os revolucionários cubanos pudessem seguir por uma via socialista independentes.   Durante sua estada na Europa, completou boa parte de The Sociological Imagination, apresentando em 1957 as versões do livro num Seminário em Copenhague.
Neste ano, Mills mencionou, numa carta a um amigo, que os manuscritos incluíam “uma [versão] completamente reescrita e, acredito de primeira linha, de um ensaio inédito Sobre o Artesanato Intelectual” (“On Intellectual Craftsmanship”). A primeira versão do texto foi escrita em abril de 1952, segundo anotação de Mills no manuscrito, e distribuída para uso em sala de aula em 1955. O texto completo foi publicado em Society, vol.17, n° 2, janeiro 1980, pp.63-70. O texto acabou sendo publicado como apêndice de The Sociological Imagination e tornou-se a parte mais universalmente conhecida e elogiada do livro. Metodologicamente é em torno da ideia de “artesanato intelectual” que a coletânea de textos de C. Wright Mills foi organizada. Além do famoso Apêndice, foram reunidos quatro outros textos curtos, representando  um meio de trabalho que nos ajudam a melhor a compreesão sociológica dessa ideia: um trecho de White Collar que explica o tipo ideal weberiano do artesanato, algo que tornou-se um anacronismo na experiência moderna do trabalho descrito no capítulo 2; uma palestra, inédita em português, realizada por Mills numa convenção para designers, na qual defende o teor abstrato do modelo artesanal como um valor central para seres humanos não alienados, disposto no capítulo 3; a seção inicial de A imaginação Sociológica, na qual apresenta aquilo que a imaginação sociológica pode nos oferecer, ao esclarecer a inter-relação entre biografia e história no capítulo 4; e, per se um texto sobre a posição do intelectual e de seu ofício diante das questões públicas no capítulo 5.
C. Wright Mills faz, em “Sobre o artesanato intelectual”, um relato pessoal, dirigido aos que se iniciam nas Ciências Sociais, de como procede em seu ofício. A imagem de um “ofício” – e sua associação com as idéias de “artesanato” e “oficina” – se contrapõe à visão do trabalho do cientista social como alguém que testa hipóteses construídas a partir de leis gerais e aplicadas através de métodos controláveis. No trabalho do cientista social não haveria fórmulas, leis, receitas, e sim méthodos, no sentido original grego da palavra: via, caminho, rota para se chegar a um fim. O “artesão intelectual” de que trata Mills deve ser visto como um “tipo ideal”, no sentido weberiano do termo – algo que não é encontrado em forma “pura” na realidade social, mas que, construído pelo pesquisador a partir do exagero de algumas propriedades de determinado fenômeno, nos ajuda a compreendê-lo. Nesse sentido, ver o trabalho de pesquisa como um ofício ressalta a importância da dimensão existencial na formação do pesquisador. Isso não quer dizer que se devam explicar os resultados do trabalho a partir da biografia, como ocorre em tolas reuniões científicas; não estamos falando de fenômenos psicanalíticos ou coisas do gênero. Trata-se, como Mills tende a enfatizar a indissociabilidade, para o “artesão intelectual”, entre sua vida e seu trabalho - ideia próxima à que um autor brilhante como Georg Simmel chamaria de “autocultivo” através da prática de seu ofício.
   Enquanto um bricoleur, o artesão intelectual está atento para combinações não-previstas de elementos, evitando normas de procedimento rígidas que levem a um “fetichismo do método e da técnica”: - Estimule a reabilitação do artesão intelectual despretensioso, e tente se tornar você mesmo tal artesão. Deixe que cada homem seja seu próprio metodologista; deixe que cada homem seja seu próprio teorizador; deixe que teoria e método se tornem parte da prática de um ofício. A manutenção de um arquivo como o proposto por Mills - tarefa que ele realizava com lápis e papel, mas que hoje pode igualmente ser realizada com um computador – gera o hábito da auto-reflexão sistemática, através da qual o cientista social aprende como manter seu mundo interior desperto, relacionando aquilo que está fazendo intelectualmente e o que está experimentando como pessoa. Como disse Gláucio Soares (1991), “arquivos deste tipo são, essencialmente, uma conversa íntima e solitária”. Wright Mills procura seguir sua própria exortação de que a apresentação do trabalho do sociólogo deve ser realizada em linguagem a mais clara e simples possível, evitando ao máximo o jargão e o hermetismo – “para superar a prosa acadêmica, temos de superar primeiro a pose acadêmica”.
No Apêndice: Sobre o Artesanato Intelectual, dá vários exemplos concretos a seus leitores daquilo que defende, a partir de sua própria prática, em particular com a pesquisa que levou à redação de A elite do poder. Como um mestre-artesão que procura passar aos aprendizes de seu ofício aquilo que aprendeu ao longo de seu caminho. O conhecimento é uma escolha tanto de um modo de vida quanto de uma carreira; quer o saiba ou não, o trabalhador intelectual forma-se a si próprio à medida que trabalha para o aperfeiçoamento de seu ofício artesanal; para realizar suas próprias potencialidades, e quaisquer oportunidades que surjam em seu caminho ele constrói um caráter que tem como núcleo as qualidades do bom trabalhador. Isto significa que deve aprender a usar sua experiência de vida pari passu em seu trabalho intelectual: examiná-la e interpretá-la continuamente. Neste sentido, o artesanato é o centro de você mesmo, e você está pessoalmente envolvido em cada produto intelectual em que possa trabalhar. Dizer que você pode “ter experiência” significa que seu passado influencia e afeta seu presente, e que ele define sua capacidade de experiência futura. Como sociólogo, é preciso controlar a ação orientada, recíproca e complexa, apreender o que pratica e classificá-lo. Somente dessa maneira pode esperar usá-lo para guiar e testar sua reflexão e moldar a si mesmo como um artesão intelectual. Mas como fazê-lo? Deve organizar um arquivo temático, o que é subentendido na maneira do sociólogo dizer: mantenha um diário. Muitos escritores notáveis e evidentemente criativos mantêm seus diários. É  um processo disciplinar, indicando as condições teóricas e práticas, além das possibilidades formadas pela necessidade de reflexão crítica, sistemática e global em que o sociólogo vive seu próprio drama social.
Bibliografia geral consultada.
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