sábado, 30 de setembro de 2017

Friedrich Nietzsche - Vontade, Poder & Sintomas da Corrupção.

                                                                                                    Giuliane de Alencar & Ubiracy de Souza Braga

A grande má fé dos conservadores de todos os tempos: são ajuntadores de mentiras”. Friedrich Nietzsche (1976: 63)

      
                   
               O velho fazendeiro Ohlsdorfer (Janos Derzsi) e sua filha (Erika Bok) dividem um cotidiano dominado pela monotonia. A realidade dos dois é observada pela vista da janela e as mudanças sociais são raras. Enquanto isso, analogamente o cavalo da família se recusa a comer e a andar. O filme é uma nítida inspiração do que teria ocorrido com um cavalo que fora salvo da tortura por Friedrich Nietzsche durante uma viagem a Turim, na Itália.  A família descrita pela sinopse vive um quotidiano miserável, mas sem piedade nem reclamações. Todas as manhãs, a filha se levanta, se veste, vai ao poço, busca água, volta, cozinha duas batatas que ela e o pai comem com as mãos, um sentado em frente ao outro. Eles alimentam o cavalo, limpam o estábulo e voltam para casa. O Cavalo de Turim é destas obras formalista e poética da miséria humana, além da ausência de conexão de sentido com a realidade. No cinema representa um drama teuto-franco-americano-suíço-húngaro de 2011 dirigido por Béla Tarr e Ágnes Hranitzky. Foi selecionado como representante da Hungria à edição do Oscar 2011, organizada pela Academia de Artes e Ciências Cinematográfica.             
               Conceitualmente o cavalo de sela (cheval de selle) é um tipo definido de cavalo, selecionado com o objetivo de se obter um animal diferente dos utilizados para o reboque de carroças ou para o trabalho cotidiano, embora os primeiros animais desse tipo fossem suficientemente robustos para desempenhar essas tarefas. Esse tipo de cavalo toma características mais precisas a partir do século XIX, quando ocorre uma evolução nas expectativas relacionadas ao cavalo de monta. Diversos cruzamentos foram realizados entre éguas selvagens historicamente e com frequência selecionadas por serem fortes e pesadas e garanhões de sangue quente, e desses cruzamentos nasceram os chamados cavalos de médio sangue. Foi assim que se desenvolveram as gerações seguintes de cavalos de sela, com animais mais ou menos próximos das linhagens paternas ou maternas dominantes, em função da orientação no processo de seleção natural. Atualmente cada país possui suas próprias raças e seus próprios estilos e modelos ideais de cavalos de montar. Com o tempo, os stud-books (“registros de criação”) foram igualmente implantados. E a partir do século XX os cavalos tende a especializarem-se em cavalos de esporte, lazer e recreação, sendo esses últimos, enfim, atualmente identificados como cavalos de sela.

 


Filmes sobre o Holocausto, o Nazismo e a limpeza étnica em si foram realizados aos montes, porém poucos tão contundentes e difíceis de serem digeridos como As harmonias de Werckmeister (2000), dos húngaros Béla Tarr e Ágnes Hranitzky. Fugindo da narrativa de espetacularização cultura, antevista por Guy Debord (1966), o cineasta Steven Spielberg em A lista de Schindler (1993), do humor melancólico de Roberto Benigni em A vida é bela (1997) e do drama narrativo e realista (além de belo) de Roman Polanski em O pianista (2002), Béla Tarr e Ágnes Hranitzky preferem os simbolismos, como uma baleia vinda junto de um espetáculo circense que anuncia a hecatombe, o próprio espetáculo que traz a desgraça ao invés da alegria – ao contrário do que se viu inúmeras vezes no cinema de Federico Fellini e algumas no de Charles Chaplin, provavelmente os dois maiores realizadores que veneravam e amavam o circo, como o protagonista de As harmonias de Werckmeister, um jovem amante de astronomia, que se vê confrontado ao perder a inocência – e as relações ambíguas entre os personagens, bem como a construção dos mesmos.
Tudo é encenado e filmado pelos diretores com harmonia, cada tomada com ritmo musical, poético, operístico. Os recursos estéticos provêm do Neo-Realismo: a câmera na mão, a luz natural – em alguns momentos e inclusive com o uso da superexposição de luz –, as várias cenas nas ruas, as tomadas longas e com artifícios documentais, como a fotografia em um preto-e-branco de tons cinzas que em outros instantes assume um tom expressionista marcado pelo típico claro-escuro. Aliás, o filme é todo construído por planos-seqüencias, levando realidade à tela e guardando poucas elipses, como se Béla Tarr e Ágnes Hranitzky enganassem o espectador até o horror vindo depois de uma hora de projeção. Inesquecível a seqüencia do massacre de alguns membros da comunidade retratada, a cena inicial e a última, todas filmadas com extremo rigor poético e narrativo.
Visão lírica e única de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky sobre os horrores causados por seres humanos a seus semelhantes, As harmonias de Werckmeister é também uma expurgação dos diretores, que nos pegam pelo estomâgo e não nos largam até que vomitemos e partilhemos de sua visão, nos sentindo como eles e como o protagonista, tomado pelo horror ao final da trama e com sua inocência perdida. Alguns se sentirão enganados e quem sabe um pouco perturbados pelo ritmo lamurioso, mas também lírico conferido a As harmonias de Werckmeister e por sua narrativa alegórica que são objetivos de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky, pois, boa parte dos espectadores preferem comparativamente o cinema de espetáculo de Spielberg e de Benigni, que cria mentiras e não busca compreender o real significado do Holocausto e das eternas marcas deixadas nos povos que sofreram com ele, como os judeus e os ciganos. Não só o Holocausto, mas todos os tipos de limpezas étinicas e a crença em uma “raça superior” (ideais nazistas e fascistas) são representados por Béla Tarr e Ágnes Hranitzky de forma metafórica.
              A vantagem de reler A Gaia Ciência (1976) tendo como parti pris a noção genérica de sintomas da corrupção encerra o sentido de um restabelecimento do equilíbrio: enquanto nas obras do último período, e nas interpretações que a elas se remetem, a filosofia de Nietzsche apresenta-se muitas vezes em um estado de “metafísica rarefação”, no diálogo estabelecido por Gianni Vattimo (1967; 2000), ou tende a se enrijecer em verdadeiras “teses” ontológicas (pensamos em certas leituras de Derrida e de seus discípulos, nas quais Nietzsche aparece como um teórico do ser entendido como diferença), aqui elas se apresentam ainda em seu vínculo originário com os aspectos talvez quase iluministas da obra de Nietzsche, com sua reflexão sobre a moral e de crítico da cultura. O que se delineia é um pensamento que não descreve estruturas do ser, como pretendera fazer o metafísico precedente; a descrição delas e o próprio sujeito que escreve ou a quem o escrito se dirige, existe para Nietzsche uma ligação mais complexa, não mais espetacular-representativa.
   Esse conteúdo não pode ser expresso nem na forma de tratado, tradicional da filosofia e especialmente na filosofia alemã, nem na forma que Nietzsche adotou desde Humano, demasiado humano e que, apesar de tudo, ainda mantém na Gaia ciência (1976), ou seja, a forma do aforismo, ainda que esta última já tenha dado passos decisivos para a recuperação do sentido originário da filosofia como, também, sabedoria de vida e atenção micrológica à expressão vivida. No verão que precede a composição da Gaia Ciência, o verão de 1881, Nietzsche teve realmente a grande iluminação que o fez descobrir a ideia em torno da qual girará todo o seu pensamento de agora em diante, a ideia do “eterno retorno” do mesmo. Ela, como se vê também a partir da forma que sua primeira enunciação tem na Gaia ciência (aforismo 341: - Esta vida, tal qual a vives atualmente é preciso que a revivas ainda uma vez e uma quantidade inumerável de vezes e anda haverá de novo, pelo contrário!), não se deixa exprimir uma proposição “o ser é eterno retorno”, pois Zaratustra dirá que caso possa entendê-la é fazer dela “uma modinha de realejo” e também o recurso á poesia, que ocorre na Gaia Ciência.   
Os pontos altos da cultura e da civilização são diferentes: não se deve incorrer no erro em relação ao antagonismo abissal entre cultura e civilização. Os grandes momentos da cultura foram sempre, dito moralmente, “tempos de corrupção”; por outro lado, foram as épocas da domesticação animalesca do homem, voluntária e forçada (“civilização”-) os tempos de impaciência para as naturezas mais espirituais e ousadas. Civilização quer algo diverso do que quer a cultura: talvez algo inverso. Observamos os sintomas destas circunstâncias sociais, necessárias de tempos em tempos, designadas pelo termo “corrupção”. Assim que a corrupção penetra em qualquer parte, constata-se o reino de uma superstição multíplice, diante da qual a crença geralmente adotada até então empalidece e impotencializa-se: uma vez que a superstição é livre pensamento de segunda categoria; quem se lhe entrega escolhe certas formas, certas fórmulas que lhe agradam; concede-se o direito de escolher. O supersticioso tem qualquer coisa de pessoal e análogo que o crente; uma sociedade supersticiosa será aquela onde se se encontram muitos indivíduos e prazeres em tudo que é admitido por individual. 

Desse ponto de vista a superstição sempre indica um progresso sobre a fé, no âmbito da religião e religiosidade, tornando claro que a inteligência se liberta e reclama seus direitos. Os partidários da velha religião e da velha religiosidade lastimam-se de corrupção, mas foram precisamente eles que até aqui determinaram o uso, no modo de se exprimir e que criaram para a superstição uma reputação má, mesmo entre os mais livres espíritos. Aprendamos: a superstição é sintoma de emancipação. Épocas de corrupção são aquelas em que as maças caem da árvore; quero dizer, os indivíduos, os que carregam em si o sêmen do futuro, os promotores da colonização intelectual, os que desejam modificar relações Estado-sociedade. A palavra “corrupção” só é injuriosa quando designa os outonos de um novo. Os homens célebres que precisam de sua celebridade - caso de todos os políticos – nunca escolhem sem segundas intenções seus aliados e amigos: pedem a este um pouco de brilho derivado de sua virtude, àquele o receio que podem causar as qualidades inquietantes que todos reconhecem, ao outro vão roubar a reputação de indolência e de amante dos demorados farniente porque é útil para seus objetivos passar momentaneamente por desatentos e indolentes.
Toda a moral da Europa tem por fundamento o proveito do rebanho: a aflição dos homens mais raros e superiores está no fato de que tudo o que ela distingue chega-lhes á consciência com o sentimento de apequenamento e de difamação. As forças do homem atual são as causas do obscurecimento pessimista: os medíocres, como de resto o rebanho, quase não possuem questões ou consciência moral, - são alegres. Tanto mais perigosa numa característica parece ao rebanho, tanto mais a fundo ele se acautela. No interior de um rebanho, de toda comunidade, a superestimação da verdade tem boa acolhida. Não se deixar enganar – e, por conseguinte, como pessoa moral, não enganar a si mesmo! Um compromisso mútuo entre iguais! Em relação ao que é de fora, o perigo e a precaução exigem que esteja vigilante diante do engano: para tanto, como condição social e psicológica prévia, também se deve estar internamente vigilante.
Desconfiança como fonte de veracidade. Enfim, a inertia ativa. 1. Na confiança, pois desconfiança torna necessária tensão, observação, reflexão; 2. Na veneração, onde é grande a distância do poder e necessária a submissão: para não temer, busca-se amar, apreciar muito e interpretar a diferença de poder como diferença de valor; de maneira que a relação não volte mais; - 3.  No sentido que de verdade. O que é verdadeiro? Onde um esclarecimento é dado, o qual nos pede o menos possível de esforço espiritual (além do mais, mentir é muito fatigante); - 4. Na simpatia. Equiparar-se, buscar sentir de forma idêntica, admitir um sentimento dado, tudo isso é facilitação: é algo passivo mantido de encontro ao ativo, o qual guarda para si o direito do juízo de valore aciona continuamente. Este último não dá nenhum descanso; 5. Na imparcialidade e frieza do juízo: teme-se a fadiga do afeto e, de preferência, fica-se à parte, de maneira “objetiva”; 6. Na honradez: obedece-se de preferência a uma lei dada, em vez de criar para si uma lei, de mandar em si e nos outros. O temor de mandar – é melhor submeter-se do que reagir; - 7. Na bendita tolerância: o temor do exercício do direito, do julgar.

Como ocorre na esfera de ação política o instinto do rebanho avalia o meio e o mediano como o que há de mais alto e valioso: a posição na qual se encontra a maioria; a maneira como ela se encontra a si mesmo; com isso, é um opositor de toda a hierarquia, a qual observa uma ascensão de baixo para cima, ao mesmo tempo em que considera um descenso [“Hinabsteingen”] do maior número á minoria. O rebanho sente a exceção, tanto a que está embaixo dele quanto a que está em cima dele, como algo infame e que se opõe a ele. Seu truque em relação às exceções de cima, aos amis fortes, mais poderosos, mais sábios, mais férteis, é persuadi-los a desempenhar o papel de vigias, pastores, guardas - a ser os primeiros servidores: com isso, ele transforma um perigo em uma utilidade. No meio, cessa  o temor: aqui, não se está sozinho com nada; aqui, há pouco espaço para o mal-entendido; aqui, há igualdade; aqui, o ser próprio não é sentido como uma censura, mas antes como os er autêntico; aqui, reina a satisfação. A desconfiança dirige-se às exceções; ser exceção vale como culpa. Ao animal de rebanho, em si, falta todo traço patológico, ele é mesmo inestimável; mas, incapaz de conduzir-se, precisa de um “pastor”. - os sacerdotes sabem disso... O Estado não é nem íntimo nem familiar o bastante; escapa-lhe a “condução da consciência”. Em que ponto o “animal de rebanho” tornou-se doente por intermédio do sacerdote?
O mundo do processo civilizatório para Friedrich Nietzsche, não é ordem e racionalidade, mas contraditoriamente desordem e irracionalidade. Seu princípio filosófico não era, portanto, da intencionalidade de Deus e razão, mas a vida que atua sem objetivo definido, ao acaso, e se está dissolvendo e transformando-se em um constante devir. A única e verdadeira realidade “sem máscaras”, para ele é a vida humana tomada e corroborada pela vivência do instante. Nietzsche era um crítico: a) das “ideias modernas”, b) da vida social e da cultura moderna, c) do neonacionalismo alemão, e, para sermos breves, d) Para ele, os ideais modernos como democracia, socialismo, igualitarismo, emancipação feminina não eram senão expressões da decadência de determinado “tipo homem”. Por estas razões, é, por vezes, apontado como um precursor da concepção de pós-modernidade. Durante toda a vida, tentou explicar o insucesso de sua literatura, hoje retomada mais do que nunca, chegando à conclusão de que “nascera póstumo”, para os leitores do porvir.
  Escondem destarte que estão em guarda; ora, precisam ter juntado de si o caprichoso, ou o pesquisador, ou o pedante, como espécie de eu para durar um instante, mas podem não mais precisar dele no minuto seguinte! Desta maneira suas vizinhanças e fachadas desaparecem constantemente quando tudo parece crescer nesse arrabalde e dar-lhe “caráter”: fator em que se assemelham as grandes cidades. Sua reputação altera-se incessantemente, bem como seu caráter, porque os mutáveis meios exigem essas mudanças e trazem ao primeiro plano, para lhe dar o papel principal, ora uma, ora outra de suas qualidades reais ou fingidas; seus amigos ou seus aliados fazem parte , como se diz, dessas qualidades teatrais. Contrariamente, é necessário que aquilo que desejam se mantenha ainda mais firme e isso exige por vezes seus jogos de cena e sua comédia.
 O sucesso de Nietzsche, entretanto, sobreveio quando um professor dinamarquês leu a sua obra: Assim Falou Zaratustra (cf. Nietzsche, 1968) e, então, tratou de difundi-la, em 1888. Em 3 de janeiro de 1889, Nietzsche sofreu um colapso mental. Teria testemunhado o açoitamento de um cavalo no outro extremo da Piazza Carlo Alberto. Então correu em direção ao cavalo, jogou os braços ao redor de seu pescoço para protegê-lo e em seguida, caiu no chão. Nos dias seguintes, Nietzsche enviou escrito breve conhecido como: Wahnbriefe, em português: Cartas da loucura – para um número de amigos, entre eles, Cosima Wagner, filha do pianista húngaro Franz Liszt com a Condessa Marie d`Agout e Jacob Burckhardt, filósofo da história e da cultura suíça, autor de importantes obras sobre a cultura e história da arte. Muitas destas cartas foram curiosamente assinadas “Dionísio”. Embora a maioria dos comentaristas considere seu colapso como alheios à sua filosofia, Georges Bataille (1967) chegou a insinuar que sua filosofia pudesse tê-lo enlouquecido e a psicanálise “post-mortem”, de René Girard, postula uma “rivalidade de adoração” com Richard Wagner.   
Nietzsche não se atém ao julgamento moral da corrupção, a vê antes como um sintoma e indaga sobre suas possíveis causas. A extrema valorização do individualismo na era moderna seria uma causa, e junte-se a isso o excessivo culto à aparência na era contemporânea. Houve tempos em que a belicosidade, a inclinação para a guerra, era um valor moral de virtude, e para Nietzsche as épocas de corrupção não são mais doces nem mais brandas do que as épocas de guerra, antes se tornam mais e mais refinadas no uso político que dão à crueldade. É precisamente nessas épocas que é criada a maldade; é nelas que o prazer na maldade cresce e frutifica. Por conseguinte, as épocas de corrupção são necessariamente épocas trágicas. O modo de ferir e de torturar os outros com significativas palavras, e a eficácia simbólica da visibilidade dos olhares como armadilha, atingem o seu apogeu em épocas de corrupção quando os homens demonstram-se espirituosos e caluniadores.

 Para tanto os dois traços que caracterizam o europeu moderno encontram-se em aparente oposição: o individualismo e a exigência de direitos iguais. A saber, que o indivíduo é uma vaidade extremamente vulnerável: - como ela sofre rapidamente, em sua consciência exige que todo outro indivíduo seja posto em pé de igualdade com ele e esteja somente inter pares. Com isso, caracteriza-se uma raça social na qual, realmente, os talentos e forças não se elevam uns e em relação às outras. O orgulho, que quer solidão e poucos tesouros, acha-se totalmente fora de compreensão; os sucessos realmente “grandes” só existem com as massas; sim, mal se compreende ainda que um sucesso de massa é sempre um pequeno sucesso: pois pulchrum est paucorum hominum. As morais nada sabem da consciência-coletiva. O princípio-individual rejeita os homens realmente grandes e exige, entre os mais ou menos iguais, o olho mais sutil e o reconhecimento mais ágil de um talento; posto que cada um possua algum talento, em tais culturas civilizadas e tardias pode, portanto, esperar receber de volta a sua parte de distinção; por isso hoje tem lugar, como nunca antes, um realce dos pequenos méritos: - dá-se à época um brilho e tom de verniz de ilimitada modicidade. Sua “não-modicidade” reside em uma fúria sem limites não contra os tiranos e aduladores do povo, mesmo nas artes, mas contra os homens nobres, os quais desprezam a exigência de igualdade de direitos como por exemplo, ter assento acima de todo e qualquer tribunal que é uma maneira de representação antiaristocrata.
         Uma sociedade que conserva em si aquela consideração e delicadeza em relação à liberdade há de sentir-se nobre e ter contra si um poder, contra o qual se ergue, é hostil e olha de cima. Para o princípio individual, igualmente estranho é o indivíduo apagado, a submersão em um grande tipo, o não-querer-ser-pessoa: o que constituía outrora a distinção e o entusiasmo de muitos homens elevados (os grandes poetas estão entre eles); ou “ser-cidade”, como na Grécia; jesuitismo, corpo de oficiais e de servidores prussianos; ou ser discípulo e continuador de um grande mestre: para o que são necessárias disposições não sociais e a falta da pequena vaidade. O individualismo é uma espécie modesta e ainda inconsciente da “vontade de poder”; aqui parece já ser suficiente ao indivíduo conseguir livrar-se do poder superior da sociedade seja do Estado ou da igreja. Ele não se coloca em oposição como pessoa, mas apenas como indivíduo; defende todos os indivíduos contra a coletividade. Quer dizer: põe-se instintivamente em pé de igualdade como todo indivíduo; o que combate não combate para si como pessoa, mas antes para si como indivíduo, contra a coletividade.
  Uma sociedade onde a corrupção se instala é acusada de abandono, de fato o prestígio da guerra e do entusiasmo marcial sofre baixa visível; aspira-se aos prazeres da existência com tanto ardor quanto aquele antigamente posto em conquistar honras militares ou gímnicas. É até provável que no estado de “corrupção” sejam dispendidas uma força, uma violência energética muito maior que nunca pela nação e que o indivíduo desperdice essa energia com muito maior prodigalidade do que podia fazer anteriormente, quando não tinha suficiente riqueza! Precisamente nas épocas de “abandono” é que a tragédia corre as ruas e as coisas, que se vê nascer o grande amor, o grande ódio e a chama do acontecimento esbraseiam no céu. É o grande momento da traição, da corruptibilidade; pois o amor ao ego recém-descoberto é muito mais possante que o amor à pátria, velho conceito esgarçado, enterrado sob os excessos vocabulares e a necessidade de se defender contra temerosos caprichos da fortuna que um homem rico e poderoso se mostre disposto de nelas deitar ouro.  
Mas os observadores talvez tenham negligenciado o fato dessa antiga energia, antiga paixão pela nação, que as guerras e torneios punham em tão pomposa evidência, transformou-se numa infinidade de paixões privadas e limitou-se tonar menos visível, que digo eu? É até provável que no estado de “corrupção” sejam dispendidas uma força, uma violência energética muito maior que nunca pela nação e que o indivíduo desperdice essa energia vital com muito maior prodigalidade do que podia fazer anteriormente, quando não tinha suficiente riqueza! Precisamente nas épocas de “abandono” é que, portanto, a tragédia corre as ruas e as coisas, que se vê nascer o grande amor, o grande ódio e a chama do acontecimento esbraseiam no céu. Pretende-se, em terceiro lugar, que, compensando de algum modo a censura de superstição e de abandono que se podem estabelecer quanto às épocas de corrupção, os costumes se tornam mais suaves no decurso desses períodos, que a crueza diminui notavelmente em análise com as épocas precedentes, mais crentes e mais fortes.
Não poderia subscrever esse elogio, afirma Nietzsche, bem como não subscrevi a acusação precedente; tudo que concede é que a crueldade se afirma , que suas formas antigas repugnam ao novel gosto; mas a arte de ferir, de torturar com a palavra e o olhar, alcançam em tempo de corrupção, em contrapartida, seu aperfeiçoamento supremo; é então e apenas que nascem a malignidade e o prazer de ser mau. As pessoas das épocas de corrupção são espirituais, caluniadoras. Sabem que se pode matar dispensando o punhal e a surpresa; sabem também que se acredita em tudo que é bem dito. Em quarto lugar, quando “os costumes se corrompem” é o momento em que surgem esses seres denominados “tiranos”: esses são os precursores, por assim dizer, as precoces guardas avançadas do indivíduo. Mais um pouco de paciência: esse fruto dos frutos terminará por pender, maduro e dourado, da árvore de um povo, é só por ele que essa árvore existe! No apogeu da decomposição, como a luta dos tiranos de toda espécie, sempre se vê chegar o César, tirano definitivo que vibra o golpe de misericórdia á luta depauperante dos concorrentes à preponderância servindo-se do cansaço em seu proveito. Quando aparece o indivíduo, geralmente, é  no momento de sua maturidade perfeita, estando a “cultura” consequentemente no zênite de sua fecundidade... Mas não é graças a ele, não é por ele, ainda que as pessoas de grande cultura gostem de lisonjear o César, fazendo-se passar por obra sua.  A verdade é que necessitam de paz interior porque trazem inquietação dentro deles, porque seu trabalho é coisa interior.
Nossas forças levam, por vezes, tão longe que não podemos continuar a suportar nossas fraquezas e pereceremos disso; bem que nos acontece ver esse resultado, mas não podemos lhe introduzir nenhuma modificação. Usamos então a dureza contra o que seria necessário poupar em nós mesmos e nossa grandeza faz nossa barbárie. Essa experiência, que acabamos por pagar com a vida, simboliza a ação dos grandes homens nos outros e em seu tempo; é o que tem de melhor, com o que são os únicos a poder fazer, que arruínam grande parte dos seres fracos, incertos, sem vontade própria, ainda em mudança; é com o que tem de melhor em si próprios que se tornam nocivos. Pode até acontecer que só prejudiquem porque aq   uilo que neles há de melhor só pode ser absorvido de um trago, de qualquer modo, por seres que ali afoguem a razão e a individualidade, como um licor excessivamente forte, e ficam de tal modo embriagados que não poderão deixar de partir os membros em todos os caminhos em que sua ebriedade os fulminar. O que se faz e sempre se fez acerca de qualquer religião, são os motivos e intenções que se escondem atrás do hábito sempre inventados depois, por mentira, quando começa a combater o hábito, a perquirir-lhe as razões e intenções. A grande má fé dos conservadores de todos os tempos: são ajuntadores de mentiras.

Que a mentira seja autorizada para fins piedosos, isso pertence à teoria de todo sacerdócio, - quanto isso pertence à sua práxis deve ser o objeto da presente investigação. Mas também os filósofos, tão logo tencionem, com secretos desígnios sacerdotais, tomar em mãos a condução dos homens, também reivindicam para si, de imediato, um direito de mentir: Platão á frente. Superlativa é a dupla mentira desenvolvida pelos filósofos de tipo ariano dos Vedanta: dois sistemas, contraditórios em todos os pontos principais, mas revezando-se, preenchendo-se e completando-se segundo fins educativos. A mentira de um deve criar um estado no qual a verdade do outro se torne, em geral audível. Até que ponto chega a mentira piedosa dos sacerdotes e dos filósofos? Em primeiro lugar, devem ter a seu favor o poder, a autoridade, a confiança irrestrita. Em segundo, devem ter em mãos a totalidade do processo natural, de modo que tudo o que acontece aos indivíduos apareça como condicionado por uma lei sua. Em terceiro lugar, devem também possuir um âmbito de poder de muito maior alcance e cujo controle se subtraia aos olhos dos subordinados: o castigo eterno, o “depois-da-morte”, - e também devem possui-lo como é conveniente, os meios através dos quais se deve saber “o caminho para a bem-aventurança”.
A mentira sagrada inventou assim um Deus que pune e recompensa, que aprova, em todos os detalhes, o poderoso livro de leis do sacerdote e que os envia, exatamente, como seus porta-vozes e procuradores do mundo; - um além da vida, no qual somente se pensa efetiva a grande máquina-punitiva, - a esse fim serve a imortalidade da alma; - a consciência moral [Gewissen] no homem, ser consciente daquilo que institui bem e mal, - que Deus em pessoa fala aqui, quando ela aconselha a conformidade com a prescrição sacerdotal; a moral como negação de todo processo natural, como redução de todo acontecer a um acontecer moralmente condicionado, o efeito moral (isto é, a ideia de recompensa e punição) como o que perpassa o mundo, como uma força isolada, como creator de toda mudança; - a verdade como algo oferecido, revelado, como coincidindo com a doutrina do sacerdote: como condição, enfim, de toda salvação e felicidade, nesta e para os crentes noutra vida. O cristianismo deveria ter instituído a inocência do homem como artigo de fé – os homens ter-se-iam tornado deuses: então se poderia ainda (a) creditar.
Bibliografia geral consultada.
HÉBER-SUFFRIN, Pierre, O Zaratustra de Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991; COLLI, Giorgio, Scritti su Nietzsche. 4ª edizione Milano: Adelphi, 1995; SOUZA, Paulo César de, Freud, Nietzsche e outros alemães: artigos, ensaios, entrevistas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1995; BAUMAN, Zygmunt, Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1998; ARALDI, Clademir Luís, Niilismo, Criação, Aniquilamento: Nietzsche e a Filosofia dos Extremos. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí, Rio Grande do Sul: Editora Unijui, 2004; NIETZSCHE, Friedrich, Così parlò Zarathustra. A cura di Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Milano: Adelphi Editore, 1968; Idem, A Gaia Ciência. São Paulo: Editora Hemus, 1976; Idem, A Vontade de Poder. Apresentação Gilvan Fogel. Rio de Janeiro: Editor Contraponto, 2008; RUBIRA, Luís Eduardo Xavier, Nietzsche: Do Eterno Retorno do Mesmo à Transvaloração de Todos os Valores. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Departamento de Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008; BARBOSA, Ildenilson Meireles, Niilismo, Transvaloração e Redenção na Filosofia de Nietzsche. Tese de Doutorado em Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Filosofia.  São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2009; MORAES, Eduardo Carli de, Além da Metafísica e do Niilismo: A Cosmovisão Trágica de Nietzsche. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2013; PAULA, Wander Andrade de, Nietzsche e a Transfiguração do Pessimismo Schopenhaueriano: A Concepção de Filosofia Trágica. Tese de Doutorado.  Instituto de Filosofia e Ciências Humana. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2013; ANCONA LOPEZ, Chiara, Do Corpo, na Filosofia de Friedrich Nietzsche. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia. Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017; NEVES, Wainer Furtado, Cultura e Política: O Perspectivismo da Grande Política em Friedrich Nietzsche. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade. São Luís: Universidade Federal do Maranhão, 2017; entre outros.

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