sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Cargos Públicos - Cinema & Objetividade de Uso.

                                                                                          Ubiracy de Souza Braga

Os diamantes muito raramente se encontram na superfície da terra”. Karl Marx

 
No final da década de 1960, lembra o crítico literário Roberto Schwarz que a “lata de lixo da história” representava uma expressão difundida, levemente fanfarrona. Designava o depósito de velharias ao qual, com sorte, seriam jogados os políticos, as práticas e as teorias responsáveis por formas caducas de opressão. Capitalismo e stalinismo iriam embora de braço dado, no mundo e no Brasil, varridos pelo progresso da história e pelos estudantes libertários. Entretanto, como se verificou em seguida, o curso das coisas não foi o esperado, até pelo contrário. E como o sistema dos opressores se reinventou e venceu em toda linha, a expressão - tão simpática – voltou à moda. Assim, se consultarmos a nossa experiência íntima, talvez convenha que ela, a lata, não perdeu a razão de ser, nem deixou de falar à imaginação. Por expressar o que devia ter sido e não foi, Schwarz achou que era um bom título para uma “chanchada política”. A ambição pelos cargos acadêmicos, sem temor a erros, nos leva a rememorar a questão. Ela é elitista, classista, racista e precisa enquanto hegemonia encouraçada de coerção.  A ideia de transformar em saio O Alienista, de Machado de Assis numa sátira à ditadura político-militar instaurada em 1 de abril de 1964 estava no ar. 
Havia um paralelo óbvio entre o terror espalhado por Simão Bacamarte – o cientista maluco e sinistro que infelicitava a pacata Itaguahy – e o regime antipopular dos militares, com seus ministros da Fazenda que metiam medo e disciplinavam “o país para o capital”. Nelson Pereira dos Santos percebeu as possibilidades artísticas da comparação, da qual tirou um filme agoniado e interessante, o Azyllo Muito Louco. Em espírito parecido, houve tentativas também de adaptação para o teatro, entre as quais a de Schwarz. – “O que todos procurávamos era o respaldo de um clássico nacional acima de qualquer suspeita, além de remoto no tempo, que deixasse desarmada a censura e possibilitasse a crítica ao Estado policial”. O paralelo funcionava como uma via de duas mãos e tinha efeitos retroativos. Não era só o velho e grandioso Machado de Assis que emprestava personagens e situações para falar da repressão em nosso presente. O caminho inverso também valia, sugerindo uma leitura menos convencional do mestre e, por meio dele, do passado brasileiro. O festival de desfaçatez armado por nossas elites logo em seguida ao golpe, com sua salada de modernização, truculência e provincianismo, ensinava a reconhecer aspectos até então recalcados da ironia machadiana. Esta aparecia a uma luz nova, muito mais ferina e política, de incrível atualidade. Noutras palavras, as revelações sociais trazidas pelo golpe de 1964 desempoeiravam o maior de nossos clássicos.

        

A desigualdade social reproduzida através da classe social está relacionada ao poder aquisitivo, ao acesso à renda, à posição social, ao nível de escolaridade e ao padrão de vida existente entre as frações da classe dominante que controlam direta ou indiretamente o Estado, através de efeitos de poder político, na educação e trabalho, reproduzindo inexoravelmente uma estrutura social implantada e difundida pelos métodos de trabalho e de produção no âmbito das esferas sociais e de poder dominante. A divisão da sociedade em classes é consequência dos diferentes papéis que os grupos sociais têm no processo de produção, ocupado por cada classe que depende o nível de fortuna e de rendimento, o gênero de vida e numerosas características culturais das diferentes classes. Classe social define-se como conjunto de agentes sociais nas mesmas condições no processo de produção e que têm afinidades eletivas políticas e ideológicas. Nelson Pereira dos Santos foi um dos precursores do movimento do Cinema Novo, fundador do curso de graduação em Cinema da Universidade Federal Fluminense e professor do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. Depois de estudar Direito em sua cidade natal e entrar para a política, continuou sua formação como cineasta em Paris, onde estava exilado o escritor Jorge Amado, seu protetor, em meio à perseguição de membros do Partido Comunista Brasileiro. Foi indicado quatro vezes para o Festival de Cannes, e outras quatro para o Berlinale. Além de ter recebido prêmios e homenagens, sua figura se agiganta por sua influência como criador e referência moral para a América Latina.  

O escritor Jorge Amado o admirava por sua consciência política “à medida que se tornava mais amplo, mais aberto. Era um paulista que se tornou carioca e, depois, perdeu toda a estreiteza regional”. Uma prova de sua importância é que sua morte foi anunciada pela Academia Brasileira de Letras: foi o primeiro cineasta da história do país a se tornar membro da instituição, em 2006. Contribuiu juntamente com Glauber Rocha, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Paulo César Saraceni para o desenvolvimento do Cinema Novo, corrente que quer demonstrar a realidade do Brasil, especialmente do mundo rural e das favelas. Suas principais influências foram o neorrealismo italiano e a chamada Nouvelle Vague, e por isso dizia: - “O Brasil é um país cada vez mais escravista, onde os poucos que vivem muito bem não têm o menor compromisso social e humanista: querem e lutam sempre por situações de privilégio econômico e poder”. O cineasta admitia que o cinema brasileiro iniciasse seu processo de social descolonização. Os cineastas que surgiram demonstraram que podiam dominar a linguagem universal do cinema e, ao mesmo tempo, ter uma grande fidelidade às suas origens culturais. É o mesmo processo sofrido em décadas anteriores com a literatura, com a pintura, com a música. – “Tivemos que travar verdadeiras batalhas para que o cinema encontrasse seu lugar na sociedade”. Além de Rio, 40 Graus (1955), destacam-se Vidas Secas (1963), El Justicero (1967), Cinema de Lágrimas (1995) e Brasília 18% (2006), esta última produção, centrada na prática engenhosa da corrupção da política no Brasil. A nova classe média brasileira, criada pela expansão do emprego público e pela criação de empregos privados tem sido representada pelos trabalhadores que prestam serviços diretamente aos grupos empresariais e das elites econômicas e políticas, como os profissionais com ensino superior empregado em funções medianas em empresas. 

Os profissionais com ensino superior, funcionários públicos em empregos bem situados, composto por médicos do sistema público, advogados e funcionários concursados. Os funcionários de escritório mais requalificados, de empresas ou do governo, composto por diretores e supervisores de colégios privados e escolas públicas, bancários de postos intermediários, delegados de polícia em início de carreira, enfermeiras experientes, etc. Enfim, inclusive pelos trabalhadores manuais de maior requalificação, os operários especializados e semiespecializados de indústrias públicas e privadas, composto por mecânicos, eletricistas, encanadores, metalúrgicos, fresadores, instrumentistas, inspetores de qualidade, torneiros mecânicos e de cargos criados de inovação. Na Modernidade processo de trabalho é um processo de comunicação, embora nem todo processo de comunicação transforme literatura, teatro, cinema, música e artes plásticas, num sentido único, possibilitado pela influência que se processa na arte e trabalho na comunicação. Nelson Pereira dos Santos produziu e reelaborou Vidas Secas para o cinema, baseado na obra de Graciliano Ramos, além dos documentários “Casa Grande & Senzala” e “Sérgio Buarque e Raízes do Brasil” não realizou um de seus sonhos: “Guerra e Liberdade - Castro Alves em São Paulo”, épico em que Maria de Medeiros interpretaria a atriz Eugénia Câmara. Contudo, “Vidas Secas” é um dos filmes  mais premiados e reconhecido como obra-prima. 

Para ele, alguns aspectos da obra literária só podem ser explorados tendo em vista o uso articulado da imagem, e sua relação com a vida, a qual se concretiza no cinema. As estruturas sociais de classe, gênero e etnia são geralmente reduzidos às imagens sociais e vividos através do meio de reprodução das imagens e de estilo de vida no processo concreto de globalização. As estruturas sociais implicam dinamismo transformador, sendo praticadas e sujeitas a transformações por modificações de um dos termos. Constituem modelos que servem comodamente para a classificação, dado que são transformáveis, para modificar os níveis de análise por nós considerados no âmbito do imaginário individual e coletivo. As motivações que ordenam os símbolos não apenas já não formam longas cadeias de razões, mas nem sequer cadeias. A explicação linear do tipo de dedução lógica ou narrativa introspectiva já não basta para o estudo das motivações simbólicas. A classificação dos grandes símbolos da imaginação em categorias motivacionais distintas apresenta, com efeito, pelo próprio fato da não linearidade e do semantismo das imagens, grandes dificuldades. Metodologicamente, se se parte dos objetos bem definidos pelos quadros da lógica dos utensílios, como faziam as clássicas “chaves dos sonhos”, segundo as estruturas antropológicas do imaginário, cai-se rapidamente, pela massificação das motivações, numa inextricável confusão. Parecem-nos mais sérias as tentativas para repartir os símbolos segundo os grandes centros de interesse de um pensamento, certamente perceptivo, mas ainda completamente impregnado de atitudes assimiladoras nas quais os acontecimentos perceptivos não passam de pretextos para os devaneios imaginários. Tais são, as classificações mais profundas de analistas das motivações do simbolismo religioso ou da imaginação de modo geral literária.                




Comecei a escrever A Lata de Lixo, afirma Schwarz, em dezembro de 1968, pouco antes da decretação do AI-5, que afundou o país em anos de terror. - Estava escondido em casa de amigos, cuja biblioteca era boa, e resolvi aproveitar o tempo livre. Além do Alienista, tirei da estante O Príncipe de Maquiavel, e sentei para trabalhar. A gravidade do momento era brutal, mas ainda assim a grossura dos generais arrancava riso, uma risada algo histérica, em que se misturavam o medo e a angústia. O clima era de pastelão macabro. Para exemplificar, quando o general-presidente foi à tevê para explicar a necessidade de seu horroroso e histórico Ato Institucional-5 (AI-5), parecia não ter familiaridade com o texto à sua frente, pelo qual ia tropeçando como podia. Enquanto isso, nas grandes capitais do mundo, e também entre nós – o ano era de 1968 –, a irreverência e o espírito libertário estavam em alta. Por contraste, as figuras caricatas que passavam a mandar e desmandar no Brasil ficavam ainda mais deprimentes e exasperantes. Para completar a liquidação, a oposição liberal à ditadura vacilava entre a prudência apavorada e a adesão oportunista, sem abrir mão das belas palavras. Mal ou bem, lembra Schwarz quando procurou dar forma teatral a essa cacofonia, casando decoro e pancadaria, grã-finismo e cretinice, cálculo e primarismo etc. Mas não é no conceito analítico de burocracia resultante da concepção de Max Weber que devemos a autoridade legal. Suas raízes emergem da problemática teórica do poder, sua origem e legitimidade, sua estrutura organizacional e funcionamento, sua eficácia e destinação e, por fim, suas consequências históricas e sociais. 
Ao descrever e analisar os fundamentos da organização burocrática, como uma concepção ideal típica desenvolve análise em aspectos fundamentais inter-relacionados e interdependentes, mas ao que parece, devem ser considerados em suas instâncias, ou níveis de análise da realidade, conforme fez o autor, para melhor compreensão (verständnis) e posterior discussão do conceito de burocracia. Tais aspectos são os seguintes: a) aceitação da validade das idéias em que repousa a autoridade racional-legal; b) a organização fundamental necessária para o exercício da autoridade racional-legal; e c) o exercício da autoridade racional-legal no quadro administrativo público ou privado do “tipo ideal” que Weber chamou com sabedoria de burocracia. O primeiro aspecto corresponde à própria argumentação em que se fundamenta a legitimidade da autoridade racional-legal, que implica na aceitação de algumas premissas básicas apresentadas sucintamente: a) as normas legais visam a fins utilitários, a valores racionais ou a ambos; são estabelecidas por acordo entre competências ou imposição e atingem todas as pessoas dentro da organização ou área submetidas à autoridade ou poder de onde se originam. O exercício da autoridade legal está relacionado com o cargo ocupado pelo funcionário, o que implica em sua subordinação a uma ordem impessoal para a qual orienta suas ações, enquanto funcionário. Um dirigente eleito democraticamente, embora não sendo funcionário na concepção sociológica, está sujeito a esta mesma ordem; d) como corolário da impessoalidade, que reveste o exercício da autoridade legal, os membros da organização só devem obediência à autoridade enquanto investida no cargo e no desempenho das respectivas funções. 
Isto significa que a obediência não é devida ao indivíduo, mas ao cargo ocupado, que representa uma posição de autoridade com limites legalmente definidos. Em última análise, o membro da organização obedece ipsis litteris à lei. Seguindo a linha de raciocínio de Maquiavel, que atribui à esfera política uma ética particular, Max Weber, estabeleceu em princípios do século XX, a distinção entre ética da convicção e ética da responsabilidade. Assim, quanto maior o grau de inserção de determinado político na arena política, maior é o afastamento de suas convicções pessoais e adoção de comportamentos orientados pelas circunstâncias. Este afastamento das crenças e suposições pessoais e adoção de medidas, muitas vezes contraditórias, são determinados pela ética da convicção e ética da responsabilidade. A ética da convicção é, para Weber, o conjunto de normas e valores que orientam o comportamento do político na sua esfera privada. Já a ética da responsabilidade representa o conjunto de normas e valores que orientam a decisão do político a partir de sua posição social como governante ou mesmo legislador. A distinção proposta por Weber entre convicção e responsabilidade traduz um dilema que certamente aparecerá em algum estágio da formação da carreira de qualquer acadêmico. Na esfera política tal distinção permite também aos eleitores e analistas sociais, uma compreensão mais “elevada” dos meandros do mundo político. Porém, é muito importante ter em mente que a distinção entre uma ética da convicção e uma ética da responsabilidade não significa uma “carta branca”, ela apenas reconhece a necessidade de adaptação às circunstâncias sociais.    
A teoria da lata de lixo de cargos (“garbage can”) reitera que as soluções e problemas existem separadamente, possuem fluxos diferentes, mas em determinada conjuntura se encontram. É o caso chamado solução das “mesadas guardadas na gaveta” versus o aparente problema do fluxo de caixa ou vulgarmente, em política, chamado de “dinheiro curto dos pais”. Quando se trata com grandes problemas nacionais, que envolvem muitas pessoas e muitos recursos, não se pode decidir com base na mera opinião pautada por interesses partidários dos políticos ou dos técnicos. É preciso ter teorias muito bem fundamentadas sobre a solução daqueles problemas, regionais ou nacionais para depois iniciar os procedimentos regimentais e/ou estatutários das políticas públicas. Portanto, uma política pública de alcance geral tem como base a reflexividade em seus condicionamentos sociais e políticos associados a uma boa teoria que a fundamenta. Embora a política pública possa ser comparada com um projeto, a gestão de políticas públicas se assemelha mais com as fases de inicio e planejamento do projeto, e em colegiados competentes a execução e controle ganhem importância acadêmica e prática. A vida útil de um cargo deveria analogamente corresponder em sua eficácia simbólica a uma bateria de íons de lítio capaz de atingir 70% de sua capacidade em dois minutos de recarga de tempo/espaço em até 20 anos, uma vida útil dez vezes maior que a pesquisa. 
As políticas públicas são compostas por programas, ações e atividades que são desenvolvidas direta ou indiretamente pelo Estado e buscam assegurar os direitos sociais de cidadania, de uma forma difusa para a sociedade bem como, em alguns casos a determinados segmentos de classe. Elas visam garantir os direitos certificados na Constituição Federal de 1988, através do reconhecimento dos poderes públicos. Entendendo que as políticas públicas são financiadas a partir dos fundos públicos e, este por sua vez nutrido pelas tributações diretas sobre o salário dos trabalhadores e indiretas sobre o consumo, implica em dizer que o trabalhador/servidor tem financiado especialmente no modelo tributário brasileiro as políticas públicas. E mais, com as privatizações, o trabalhador não só financia tais políticas, mas também financia ainda que indiretamente a reprodução do capital.  Do ponto de vista da consolidação do Estado democrático de direitos, as políticas públicas possuem em si grande significado ideológico, tendo em vista que é produto das relações de força entre Estado e sociedade.
Existem três dinâmicas no ambiente das políticas públicas. A dinâmica dos problemas, a da política e a da política pública. Quando essas três dinâmicas se encontram há o surgimento de uma “policy window”, que permite à política pública convergir direto para a agenda de decisão. No governo a “policy coalition” pode nascer nos pontos importantes onde há divergências sobre os caminhos a seguir. Por exemplo: no programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal do Partido dos Trabalhadores (PT), existiram discussões políticas e defesas sobre quais faixas de renda da população de baixa renda que poderiam ser atendidas, por determinada política pública, já que para cada recorte de renda de regiões inteiras do Brasil poderiam ficar de fora, de modo que desatendesse aos interesses seja do governo, seja da base do governo no Congresso.
Seria preciso que uma resenha em história da filosofia atuasse como um verdadeiro duplo e que comportasse a modificação máxima própria do duplo. Imagina-se um Hegel filosoficamente barbudo, um Marx filosoficamente glabro, do mesmo modo que uma Gioconda bigoduda. Seria preciso expor um livro real da Filosofia passada como se se tratasse de um livro imaginário e fingido. Sabe-se que Borges se sobressai na resenha de livros imaginários. Mas ele vai mais longe quando considera um livro real, o Don Quixote, por exemplo, como se fosse um livro imaginário, ele próprio reproduzido por um autor imaginário, Pierre Ménard, que ele, por sua vez, considera como real. Então, a mais exata repetição, a mais rigorosa repetição, tem, como correlato, o máximo de diferença. As sínteses devem representar uma espécie de desaceleração, de congelamento ou de imobilização do texto: não só do texto ao qual eles se relacionam, mas também do texto no qual eles se inserem. Deste modo, elas têm uma existência dupla e comportam, como duplo ideal, a pura repetição do texto antigo e do texto atual um no outro. Eis por que, para nos aproximarmos desta dupla existência, tivemos algumas vezes de integrar notas históricas em nosso próprio texto.
Sociologicamente a tarefa da vida é fazer com que coexistam todas as repetições num espaço em que se distribui a diferença. Nossa vida moderna é tal que, encontrando-nos diante das repetições mais mecânicas, mais estereotipadas, fora de nós e em nós, não cessamos de extrair delas pequenas diferenças, variantes e modificações. Inversamente, repetições secretas, disfarçadas e ocultas, animadas pelo deslocamento perpétuo de uma diferença, restituem em nós e fora de nós repetições nuas, mecânicas e estereotipadas. No simulacro, a repetição já incide sobre repetições e a diferença já incide sobre diferenças. São repetições que se repetem e é o diferenciante que se diferencia. Há muitos perigos em invocar diferenças puras, liberadas do idêntico, tornadas independentes do negativo. O maior perigo é cair nas representações da bela-alma: apenas diferenças, conciliáveis e federáveis, longe das lutas sociais sangrentas.  É este o segredo do empirismo. De modo algum é o empirismo uma reação contra os conceitos, nem um simples apelo à experiência vivida. Ao contrário, ele empreende a mais louca criação de conceitos, uma criação jamais vista e maior que todas aquelas de que se ouviu falar. O empirismo é o misticismo do conceito e seu matematismo. Mas, precisamente, ele trata o conceito como o objeto de um encontro, como um aqui-agora, ou melhor, como um Erewhon de onde saem inesgotáveis, os “aqui” e os “agora” sempre novos, diversamente distribuídos. Só o empirista pode dizer: os conceitos são as próprias coisas, mas as coisas em estado livre e selvagem, para além dos “predicados antropológicos”. Eu faço, refaço e desfaço meus conceitos a partir de um horizonte movente, de um centro sempre descentrado, de uma periferia sempre deslocada que os repete e os diferencia. Graças a Nietzsche, mais do que Hegel, descobrimos o intempestivo como sendo mais profundo que o tempo e a eternidade.


A generalidade apresenta duas grandes ordens: a ordem qualitativa das semelhanças e a ordem quantitativa das equivalências. Os ciclos e as igualdades são seus símbolos. Mas, de toda maneira, a generalidade exprime um ponto de vista segundo o qual um termo pode ser trocado por outro, substituído por outro. A troca ou a substituição dos particulares define nossa conduta em correspondência com a generalidade. Eis por que os empiristas não se enganam ao apresentar a ideia geral como uma ideia em si mesma particular, à condição de a ela acrescentar um sentimento de poder substituí-la por qualquer outra ideia particular que se lhe assemelhe sob a relação de uma palavra. Nós, ao contrário, vemos bem que a repetição só é uma conduta necessária e fundada apenas em relação ao que não pode ser substituído. Como conduta e como ponto de vista, a repetição concerne a uma singularidade não trocável, insubstituível. Os reflexos, os ecos, os duplos, as almas não são do domínio da semelhança ou da equivalência; e assim como não há substituição possível entre os verdadeiros gêmeos, também não há possibilidade de se trocar de alma. Se a troca é o critério da generalidade, o roubo e o dom são os critérios da repetição. 
Há, pois, uma diferença econômica entre as duas. Repetir constitutivamente é comportar-se, mas em relação a algo único ou singular, algo que não tem semelhante ou equivalente na realidade. Como conduta externa, esta repetição talvez seja o eco de uma vibração mais secreta, de uma repetição interior e mais profunda no singular que a anima. Por outro lado, a generalidade é de fato da ordem das leis. Mas a lei só determina a semelhança dos sujeitos que estão a ela submetidos e sua equivalência aos termos que ela própria designa. Em vez de fundar a repetição, a lei mostra antes de tudo como a repetição permaneceria impossível para puros sujeitos da lei - os particulares. Ela os condena a mudar. Forma vazia da diferença, forma invariável da variação, a lei constrange seus sujeitos a só ilustrá-la à custa de suas próprias mudanças. Sem dúvida, há constantes assim como variáveis nos termos designados pela lei; e há permanências na natureza, perseveranças, assim como fluxos e variações. Mas uma perseverança não faz uma repetição. As constantes de uma lei em sua progressão, são variáveis de uma lei mais geral. Algo assim como os mais duros rochedos tornando-se matérias moles e fluídas na escala geológica de um milhão de anos. A cada nível, é com relação a objetos permanentes na natureza que um sujeito da lei experimenta sua própria impotência em repetir e descobre que essa impotência já está compreendida no pensamento, refletida no objeto permanente, onde ele vê sua condenação real.
Bibliografia geral consultada.

WEBER, Max, Essais sur la theorie de la science. Paris: Librarie Plon, 1965; Idem, El politico y el científico. Madrid: Alianza Editorial, 1967; FOUCAULT, Michel, El Ordem del Discurso. Barcelona: Ediciones Tusquets, 1973; SCHWARZ, Roberto, A Lata de Lixo da História. Farsa. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1977; Idem, “As Idéias Fora do Lugar”. In: Ao Vencedor as Batatas. São Paulo: Editoras Duas Cidades, 1977; ROSNAY, Joël de, L`homme Symbiotique. Regards sur le Troisième Millénaire. Paris: Éditions du Seuil, 1975; ROSEMBERG, Nathan, “Marx y la Tecnología”. In: Monthly Review. Seleciones en castellano, volume 28, n° 3, julio-ago., 1976; CORIAT, Benjamin, L`Atelier et le Chronomètre. Paris: Christian Bourgeois Editeur, 1979; JALÓN, Maurício, El Laboratório de Foucault: Descifrar y Ordenar. Barcelona: Ediciones Anthropos, 1994; DELEUZE, Gilles, Différence et Répétition. Paris: Presses Universitaires de France, 2005; DEJOURS, Christophe, Observations Cliniques en Psychopathologie du Travail. Paris: Presses Universitaires de France, Coll. «Souffrance et théorie», 2010; Idem, La Panne. Paris: Bayard Éditions, 2012; Idem, Le Choix - Souffrir au travail n'est pas une fatalité. Paris: Bayard Éditions, 2015; NAUROSKI, Everson Araújo, Trabalho Docente e Subjetividade: A Condição dos Professores Temporários (PSS) no Paraná. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Setor Ciências Humanas. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2014; CAINELLI, Clívia Martins de Oliveira, Professores Contratados por Tempo Determinado: Sentimentos de um Inquilinato Docente. Dissertação de Mestrado. Programa de Mestrado em Gestão e Práticas Educacionais. São Paulo: Universidade Nove de Julho, 2016;  entre outros.


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