quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Fritjof Capra – Pós-Física, Arte & Pensamento Abstrato.

Ubiracy de Souza Braga*

 O tempo dura muito para aqueles que sabem aproveitá-lo”. Leonardo da Vinci

          
 
            Fritjof Capra nasceu em 1° de fevereiro de 1939 na Áustria. Após ter recebido seu Ph. D em física teórica pela Universidade de Viena em 1966, Capra fez a pesquisa em física de partículas na Universidade de Paris (1966-68), esteve na Universidade de Califórnia em Santa Cruz (1968-70), no Accelerator linear do Centro de Stanford (1970), na faculdade imperial, na Universidade de Londres (1971-74), e no Laboratório de Lawrence Berkeley na Universidade de Califórnia (1975-88). Ensinou também na Universidade do Estado de Santa Cruz, de Berkeley, e de São Francisco nos Estados Unidos da América. No plano do conhecimento científico, particularmente, é um físico teórico e escritor que desenvolve trabalho de pesquisa etnológico na promoção atualíssima de reivindicação da educação ecológica. Tornou-se mundialmente reconhecido com seu livro: O Tao da Física, traduzido para vários idiomas. Nele, traça um paralelo entre a física moderna da relatividade, física quântica, física das partículas e as filosofias e pensamentos orientais tradicionais, como o taoísta de Lao Tsé, reconhecido por ser o autor do livro Tao Te Ching, por ser o fundador do taoísmo filosófico e por ser uma divindade no taoismo religioso e nas religiões tradicionais chinesas, o Budismo, incluindo o Zen e o Hinduísmo. Surgido na década dos 1970, O Tao da Física propõe a análise comparada dos pontos comuns entre as abordagens oriental e ocidental da realidade.
Outro livro de sua autoria que se tornou referência para o pensamento sistêmico: “O Ponto de Mutação”, cujo nome foi extraído de um hexagrama do I Ching. Nele, Capra compara o pensamento cartesiano, reducionista, modelo para o método científico desenvolvido nos últimos séculos, e o paradigma emergente do século XX, holista ou sistêmico que vê o todo como indissociável das partes, na esteira da filosofia de Edgar Morin, de modo que o estudo das partes, em sua articulação com o todo, não permite conhecer o funcionamento do organismo, em vários campos da cultura ocidental contemporânea, como a pobre medicina, a reticente biologia, a psicologia e a economia. Leonardo da Vinci, gênio da Renascença tem sido escopo de centenas de livros tanto   populares como eruditos. A diversidade de sua obra e a sua etnologia descrita em cientista atraíram inúmeros estudiosos de uma grande variedade de disciplinas acadêmicas e artísticas. Contudo, para Capra em The Science of Leonardo (2007), há poucos livros sobre sua ciência, ainda que ele tenha deixado volumosas anotações de pesquisa, repletas de descrições detalhadas de seus experimentos, magníficos desenhos e extensas análises de suas reveladoras descobertas.  
 

Nascido como filho dito ilegítimo de um notário Piero da Vinci e de uma camponesa, Caterina, em Vinci, na região da Florença, Leonardo da Vinci foi educado no ateliê do renomado pintor florentino, Verrocchio. Passou a maior parte do início de sua vida profissional a serviço de Ludovico Sforza (Ludovico il Moro), em Milão. Trabalhou posteriormente em Veneza, Roma e Bolonha, e passou seus últimos dias na França, numa casa que lhe foi presenteada pelo rei Francisco I. Leonardo era como até hoje, conhecido principalmente como pintor. Duas de suas obras, a “Mona Lisa” e “A Última Ceia”, estão entre as pinturas mais famosas, mais reproduzidas e mais parodiadas de todos os tempos, e sua fama se compara apenas à “Criação de Adão”, de Michelangelo. O desenho do “Homem Vitruviano”, feito por Leonardo, também é tido como um ícone cultural, e foi reproduzido por todas as partes, desde o euro até camisetas. Cerca de quinze de suas pinturas sobreviveram até os dias de hoje. O número pequeno se deve às suas experiências constantes e que ocorrem frequentemente de formas desastrosas com novas técnicas, além de sua procrastinação crônica. Estas poucas obras, juntamente com seus Cadernos de Anotações que contêm acumulação ordinária de desenhos, diagramas científicos, e pensamentos sobre a natureza da pintura, formam uma contribuição histórica e etnológica às gerações de artistas que só pode ser rivalizada à de seu contemporâneo, Michelangelo.
Leonardo é reverenciado pela sua engenhosidade tecnológica. Concebera ideias maquínicas muito à frente de seu tempo, como um protótipo de helicóptero, um tanque de guerra, o uso da energia solar, uma calculadora, o casco duplo nas embarcações, e uma teoria rudimentar das placas tectônicas. Um número relativamente pequeno de seus projetos chegou a ser construído durante sua vida (muitos nem mesmo eram factíveis), mas algumas de suas invenções menores, como uma bobina automática, e um aparelho que testa a resistência à tração de um fio, entraram sem crédito algum para o mundo da indústria. Como cientista, foi responsável por grande avanço na representação do conhecimento no âmbito da anatomia, da engenharia civil, da óptica e da hidrodinâmica. O homem representa todo o Universo e nele está consciente. Microcosmo é o Universo do ponto de vista pessoal e subjetivo, por oposição ao macrocosmo: ao Universo do ponto de vista coletivo e objetivo. No Homem encontram-se ambos o universal e o particular, ora na forma de conteúdo, o que é contido, ora na forma de continente, o que contém. O microcosmo é o mundo do homem consciente de si, e o mundo é a medida do homem. 
Além do microcosmo estende-se o macrocosmo, mas além desse último não há o que estender, porque não há medida fora do mundo. Leonardo da Vinci é considerado por vários letrados o maior gênio da história, devido a sua multiplicidade de talentos para ciências e artes, sua engenhosidade e criatividade, além de suas obras polêmicas. Por que “Outro Capra”? A resposta vem da pena etnográfica de Fritjof Capra quando admite: - Como cientista e autor, afastei-me do meu trabalho habitual neste livro: “The Science of Leonardo” (2007). No entanto, foi um livro profundamente gratificante de escrever, já que o trabalho científico de Leonardo tem me tem fascinado por mais de três décadas. Quando comecei minha carreira no início da década de 1970, meu plano era escrever um livro “popular sobre a física das partículas”. Concluí os três primeiros capítulos e abandonei o projeto para escrever The Tao of Physics, no qual incorporei a maior parte do manuscrito inicial. Começava com uma breve história da ciência ocidental moderna, e tinha como abertura a belíssima declaração de Leonardo sobre os fundamentos empíricos da ciência.  É radicalmente interessado em todos os campos do saber e do conhecimento.  Seu interesse vital parece ter sido a investigação científica.  
            Embora Leonardo nos tenha deixado, nas palavras do estudioso da Renascença Kenneth Clark, “um dos mais volumosos e completos registros de uma mente que já chegaram até nós”, seus cadernos de notas não nos fornece quase nenhuma pista do caráter e da personalidade do autor, o que parece ter cultivado certo mistério. E com essa aura sobre seus extraordinários talentos, Leonardo da Vinci se tornou uma figura lendária mesmo em vida, e sua lenda foi personificada, amplificando-se em diferentes graus nos séculos após a sua morte. Para Kenneth Clark, “Leonardo é o Hamlet da história da arte, que cada um de nós deve recriar para si mesmo”. Portanto, a imagem etnográfica, na abordagem de Capra, em termos científicos atuais, é a de um Leonardo como um pensador sistemático, um ecologista, um teórico da complexidade, cientista e artista com uma profunda reverência pela vida e o desejo de trabalhar pela humanidade.
É neste sentido que para Fritjof Capra, o “seu” manuscrito revela realmente “o  Leonardo de nosso tempo”, confirmado pela pesquisa posterior e a investigação dos cadernos de notas. Melhor dizendo, é como escreveu o historiador de arte Martin Kemp no catálogo de uma exposição anterior dos desenhos de Leonardo na Hayward Gallery, em Londres: - “Parece-me que há uma essência nas realizações [de Leonardo], embora imperfeitamente transmitida e recebida pelas diferentes gerações, que permanece intuitivamente acessível. Suas produções artísticas foram percebidas como sendo mais do que arte – elas são parte de uma visão que engloba um profundo senso do inter-relacionamento das coisas. A complexidade vida no mundo está de alguma forma implicada nisso, quando ele caracteriza uma de suas partes constituintes (...). Acredito que sua visão de totalidade do mundo como uma espécie de organismo único tem especial relevância para nós hoje, agora que nosso potencial tecnológico se tornou tão impressionante”.
        Em primeiro lugar Leonardo era dotado de excepcionais poderes de observação e memória visual típico da Renascença. Era capaz de desenhar os turbilhões da água ou os movimentos velozes de um pássaro com precisão que só seria alcançada novamente com o advento da fotografia serial. Ele, como um grande renascentista, estava bem consciente do extraordinário talento que possuía. Ele considerava o olho como o principal instrumento tanto do pintor como do cientista. – “O olho, do qual se diz ser a janela da alma”, ele escreveu, “é o principal meio pelo qual o senso comum pode mais abundante e magnificamente contemplar as infinitas obras da natureza”. Sua abordagem do conhecimento científico era visual. A pintura é a chave para entender a ciência de Leonardo, como declarou: - “contém em si mesma todas as formas da natureza”. A “teoria das cores” de Leonardo da Vinci representa as formulações históricas contidas em seus escritos e reunidas no livro:“Tratado da Pintura e da Paisagem - Sombra e Luz”. Trata-se das anotações recolhidas pelo artista ao longo de anos de observação e é a teoria mais corrente, sendo um legado para as artes visuais. A cor, elemento fundamental em qualquer processo social de comunicação, merece atenção especial.A cor é sentida: provoca emoção. Em Aquarela, Vinicius de Moraes lembra: - “Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo”. A cor é construtiva, é uma ideia, que pode ser de leveza, sobriedade, harmonia.
        A ciência como um todo é viva para Leonardo. Ele viu os padrões e processos do microcosmo como semelhantes àqueles do microcosmo. Com frequência, desenhou analogias entre a anatomia humana e a estrutura da Terra, como na bela passagem do Códex Leicester – “Poderíamos dizer que a Terra possui uma força vital de crescimento, que sua carne é o solo, seus olhos são os sucessivos estratos de rocha que formam as montanhas; sua cartilagem são as rochas poderosas; seu sangue, os cursos de água. O lago de sangue que se estende em volta do coração é o oceano. Sua respiração é o aumento e a diminuição do sangue na pulsação, assim como na Terra há o fluxo e refluxo dos mares”.  O mundo medieval toma para si a doutrina do microcosmo praticada no mundo antigo. De maneira similar essa doutrina servirá de base textual para as ilustrações medievais que versavam sobre a analogia do homem-mundo. A analogia entre microcosmo e macrocosmo remonta a Platão e se tornara bem conhecida na Idade Média e na Renascença, mas Leonardo desembaraçou-a de seu contexto mítico original e tratou-a estritamente como uma teoria científica.
   A principal ferramenta de Leonardo para a representação e análise mental (abstrata) das formas da natureza era a sua extraordinária facilidade para o desenho, que quase sempre correspondia à rapidez de sua visão. Observação e documentação eram fundidas num único ato shakespeariano. Ele usou talento artístico para produzi desenhos de uma beleza espantosa e que ao mesmo tempo serviam diagramas geométricos, formando um veículo perfeito para a formulação de seus modelos conceituais; uma matemática perfeita para a sua ciência das formas orgânicas. E neste duplo propósito dos desenhos de Leonardo – de arte e o de ferramenta abstrata de análise científica, ou de apropriação do real, demonstra-nos por que sua ciência não pode ser entendida sem sua arte, e neste âmbito dialeticamente, inversamente nem sua arte sem sua ciência. Para praticar sua arte, ele precisava de conhecimento científico das formas da natureza; para analisar as formas da natureza, ele precisava de suas habilidades artísticas para interpretá-las sob a forma de desenhos.     
                No seu Tratado de Pintura, Leonardo deixa claro que a pintura é a perspectiva unificadora e o encadeamento integrador que percorreu todas as áreas de estudo. Desse processo de trabalho e de comunicação, surge uma estrutura conceitual coerente, que ele deve ter pretendido usar na eventual publicação de seus cadernos de notas. Mas como todos os verdadeiros cientistas, baseou sua ciência na observação sistemática. Daí ser correto observar que seu ponto de partida ter sido o olho humano. Suas cuidadosas investigações da anatomia do olho e da origem da visão não tinham paralelo em seu tempo. Particularmente nas conexões de sentido entre o olho e o cérebro, que ele demonstrou pela primeira vez numa série de belos desenhos do crânio humano, usando dissecações anatômicas o percurso completo da visão através da pupila e das lentes do nervo óptico, até uma cavidade específica do cérebro, conhecida pelos neurologistas hoje como o terceiro ventrículo cerebral.
              Foi aí que ele situou “a sede da alma”, onde todas as impressões dos sentidos se encontram. Leonardo via as suas descobertas na óptica e na fisiologia da visão como as bases de sua ciência da pintura, a começar pela ciência da perspectiva, a admirável inovação da arte renascentista. Da perspectiva ele passou à exploração da geometria dos raios de luz, segundo Capra, conhecida hoje como óptica geométrica; os efeitos da luz incidindo sobre esferas e cilindros, a natureza da sombra e dos contrastes e a justaposição de cores. Esses estudos sistemáticos, ilustrados numa longa série de desenhos intricados, era a base científica da extraordinária habilidade artística para compreender reproduzir as mais sutis complexidades visuais: uma fusão de sombras, conhecida como “sfumato”, que borram delicadamente o contorno dos corpos. O sfumato é uma técnica artística usada para gerar suaves gradientes entre as tonalidades, é comumente aplicado em desenhos ou pinturas. Sfumato vem do italiano sfumare, que significa, de tom baixo, ou com o sentido de evaporar como fumaça.

            A ciência das formas vivas, para Leonardo e de resto pensadores renascentistas, é a ciência da transformação, seja quando ele estudava as montanhas, rios e plantas ou o corpo humano. Entender a forma humana significa entender o corpo em movimento: nervos, músculos, tendões, ossos e articulações trabalham juntos para movimentar os membros; como os membros e as expressões faciais executam gestões e ações. Nas palavras de Daniel Arasse, citado por Capra, desde as primeiras Madonnas, passando por retratos, até São João Batista, Leonardo capturou a figura do movimento. O impacto social imediato e excepcional da Última Ceia, nome que tem como representação à última refeição que, de acordo com os cristãos, Jesus dividiu com seus apóstolos em Jerusalém antes da crucificação ipso facto ao que parece têm dívida com a sabedoria renascentista, muito pelo fato de Leonardo ter substituído o “arranjo tradicional” por uma composição rítmica que mudou a própria ideia peculiar sobre o tema. Na weltanschauung de Leonardo, retratar a expressão corporal do espírito humano representava a mais elevada aspiração do artista.
            Leonardo não se dedicava à ciência e à engenharia para dominar a natureza, como ele observara no The Tao of Physics, como Francis Bacon advogaria um século mais tarde. De fato, “ele tinha um profundo respeito pela vida, uma compaixão especial pelos animais e grande admiração e respeito pela complexidade e abundância da natureza”. Embora ele mesmo um extraordinário inventor social, criador brilhante, sempre pensou que a “engenhosidade” da natureza era vastamente superior às criações humanas. Ele percebeu que seria sábio respeitarmos a natureza e aprender com ela. Essa é uma atitude que ressurge hoje, por exemplo, na prática do design ecológico. Para estudiosos de sua obra, o que caracterizou os trabalhos do mestre renascentista nessa área foi a abrangência. O artista não se intimidava e lidava com todo tipo de problema de construção. Os conhecimentos de mecânica, de hidráulica e das propriedades de materiais naturais permitiam que o gênio planejasse toda a construção de um prédio. Enfim, sobre o legado multidimensional de Leonardo da Vinci, precisamos nestas notas exatamente um conjunto de práticas e saberes sociais. O tipo de pensamento e ciência que Leonardo da Vinci antecipou na história social e na arte há séculos. No ápice da Renascença e da concepção científica moderna ocidental é que se forjou sob o signo das transformações políticas do século XVII a revolução técnico-científica do século XVIII.
Bibliografia geral consultada.                        

FREUD, Sigmund, Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1976; MONDOLFO, Rodolfo, Figuras e Ideas de la Figura del Renacimiento. Barcelona: Icaria Editorial, 1980; ESPOSITO, Roberto, Ordine e Conflito. Machiavelli e la Literatura Politica del Rinascimento. Roma: Editore Ligouri, 1984; BRAMLY, Serge, Leonardo da Vinci. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1989; PRIGOGINE, Ilya, O Fim das Certezas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 1996; CAPRA, Fritjof, Sabedoria Incomum. São Paulo: Editora Cultrix, 1988; Idem, A Teia da Vida: Uma Nova Compreensão Cientifica dos Sistemas Vivos. 11ª edição. São Paulo: Editora Cultrix, 1996; Idem, La Trama de la vida. Una Nueva Perspectiva de los Sistemas Vivos. 2ª ediciones. Barcelona: Editorial Anagrama, 1999; Idem, As Conexões Ocultas: Ciência para uma Vida Sustentável. São Paulo: Editora Cultrix, 2002; Idem, The Science of Leonardo; Inside the Mind of the Genius of the Renaissance. New York: Doubleday Editor, 2007; KICKHOFEL, Eduardo Henrique Peiruque, A Natureza, a Razão e a Ciência do Homem: Edição dos Estudos de Anatomia de Leonardo da Vinci e Notas para uma Interpretação de sua Ciência. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Departamento de Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2007; FRIDE-CARRASSAT, Patricia; MARCADE, Isabelle, Les Mouvements dans la Peinture. Paris: Éditions Larousse, 2008; OLIVEIRA, Amélia de Jesus, Duhem e Kuhn: Continuísmo e Descontinuísmo na História da Ciência. Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2012; CAVALCANTI, Márcia Maria Rodrigues Travassos, O Conceito Sustentabilidade na Comunicação Empresarial: Estudos sobre as Estratégias Utilizadas pelas Organizações. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2014; BATALLOSO NAVAS, Juan Miguel, “A Escola Criativa e Transdisciplinar do Futuro”. In: MORAES, Maria Cândida, Transdisciplinaridade, Criatividade e Educação: Fundamentos Ontológicos e Epistemológicos. Campinas, SP: Papirus, 2015; pp. 119-144; entre outros.

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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo. Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).    

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Agronegócio - Latifúndios, Resistência & Morte

                                                           Giuliane de Alencar &Ubiracy de Souza Braga

                       
No dia 19 de agosto de 2015, a Justiça Estadual de Limoeiro do Norte (CE) decidiu que os acusados do assassinato do líder comunitário e ambientalista José Maria Filho, o Zé Maria do Tomé, deverão ser levados à Júri Popular. A decisão de pronunciar os réus, levando a julgamento pelo Tribunal do Júri, ocorre mais de cinco anos (05) após o assassinato do líder comunitário, em 21 de abril de 2010, com mais de 20 tiros, depois de sofrer ameaças de morte. A morte ocorreu depois de Zé Maria denunciar as ilegalidades e violações de direitos civis cometidas pelas empresas do agronegócio instaladas na região da Chapada do Apodi, envolvidas com a grilagem de terras, poluição das águas e, principalmente, a pulverização aérea de agrotóxicos. O caso Zé Maria é emblemático no contexto dos assassinatos e violência no campo. José Maria F° morreu por defender direitos ao meio ambiente, à terra e ao território, à saúde e à vida.
Um dos réus é João Teixeira Júnior, proprietário da Frutacor e um dos mais importantes empresários do agronegócio brasileiro. Também são réus e vão ao Tribunal do Júri: José Aldair Gomes Costa, gerente da empresa Frutacor, que teria intermediado o homicídio e Francisco Marcos Lima Barros, morador da comunidade de Tomé, que teria dado suporte ao assassino. Além desses acusados, outros três estariam envolvidos na morte de Zé Maria do Tomé: Westilly Hytler Raulino Maia, é pistoleiro que teria cometido o homicídio, morto em operação policial em 2010, Sebastião Dantas de Barros, morador da comunidade de Tomé, que teria cometido suicídio em 2012 e Antônio Wellington Ferreira Lima, também morador de Tomé, assassinado em agosto deste ano de 2015, em uma desastrada operação da Polícia Militar. A concentração de terras, em posse dos grandes fazendeiros, tem sido com frequência apontada como a principal causa das injustiças sociais, para não falarmos no irresponsável inchaço demográfico das grandes cidades e do aumento da violência como um todo.



            Agronegócio é toda a relação comercial e industrial envolvendo a cadeia produtiva agrícola ou pecuária. No Brasil o conhecido termo agropecuário é usado para definir o uso econômico do solo para o cultivo da terra associado com a criação de animais. Agronegócio também chamado de agribusiness representa o conjunto de negócios relacionados à agricultura e pecuária dentro do ponto de vista econômico. Explora o solo pelo cultivo de árvores que serão transformadas em madeira, celulose ou produtos químicos para posterior utilização como matéria prima de várias indústrias, como a móvel/moveleira e construção civil, a indústria papeleira, ou mesmo a obtenção de lenha para combustível. O aprimoramento do agronegócio barateou o custo dos alimentos e deu a população um maior poder de consumo e de escolha, mas também trouxe vários problemas, principalmente ligados às questões ambientais e sociais. O maior desafio agora é a produção no campo sem impactos ao meio-ambiente, causados notadamente pelo uso de defensivos, pelo desmatamento e empobrecimento do solo, queimadas, contaminação de mananciais e do lençol freático, desequilíbrio ecológico e proliferação de pragas. Nas cidades a preocupação se dá com o lixo gerado após o consumo, mais precisamente com o descarte de embalagens.
            A Monsanto é uma multinacional de alcance global da área de agricultura e biotecnologia. Especializada em engenharia genética com produção de organismos geneticamente modificados de sementes e herbicidas que são apenas tratados com os herbicidas vendidos pela própria companhia, fato que condiciona os agricultores à dependência. Criada em 1901 como uma companhia na área da engenharia química, gradativamente se tornou a maior empresa do mundo no setor, fornecendo produtos para gigantes empresariais como a Coca-Cola, a Pepsico e a Kraft. Controla 90% do mercado de sementes transgênicas do mundo – materializando-se como um dos maiores monopólios contemporâneos. Recentemente, ela adquiriu diversas empresas na América do Sul e no Leste Europeu, dominando consistentes fatias de mercado em países como Argentina, México e Brasil. Este crescimento tem representado uma ameaça real à sobrevivência de pequenos produtores em todo o mundo. Os impactos sociais dos produtos comercializados pela empresa Monsanto vão além da esfera socioeconômica.
        Desde 1980, políticas federais americanas têm incentivado instituições públicas de ensino a produzir pesquisas nas áreas agrícolas e de biotecnologia em parceria com empresas privadas. Em consonância com esta política, a Monsanto tem inundado instituições públicas de ensino com investimentos. Em troca, tem seus produtos protegidos e fortalecidos por um arcabouço de pesquisas técnicas e científicas com viés favorável. Além de cargos no governo e na academia norte-americana, executivos da Monsanto posicionaram-se em cargos em instituições-chave para política alimentar e científica de seu país ou de âmbito internacional, como o “International Food and Agricultural Trade Policy Council”, o “Council for Bitechnology Information”, a “United Kingdom Academy of Medicine”, a “National Academy of Sciences Biological Weapons Working Group”, a “CropLife International” e o “Council of Foreign Relations”. Naturalmente, as posições privilegiadas alcançadas pela Monsanto renderam-lhe excelentes retornos. Em 1993, a Agência para Alimentação e Medicamentos [Food and Drug Administration”, FDA] dos EUA aprovou o uso de um produto denominado “Hormônio de Crescimento Bovino” [Recombinant Bovine Hormone, ou rBGH]. Desenvolvido pela Monsanto, trata-se de uma droga hormonal injetada em vacas de modo a incentivar a produção de leite. O rBGH foi a primeira substância geneticamente modificada aprovada pelo FDA.   
          Os programas oficiais divulgados pelos partidos nessa campanha eleitoral foram alvo de um estudo do Laboratório de Análises Estatísticas, Econômicas e Sociais das Relações Raciais, da UFRJ - LAESER demonstrou que não existe uma definição clara dos partidos políticos para a questão dos quilombolas. Trata-se de uma das questões mais importantes para a população negra brasileira. Remanescentes de comunidades escravas, muitos dos territórios quilombolas foram frutos da organização dos negros, que fugiam das senzalas e se organizavam em comunidades, como o histórico Quilombo dos Palmares. No estudo do LAESER, apenas PCB, PSB e o PCO apresentavam alguma discussão sobre a questão quilombola. O debate e as reivindicações sobre o tema são necessários. Em primeiro lugar, os quilombolas enfrentam a luta pela terra, que é uma das mais fatais no Brasil. Isso em virtude do latifúndio, muitas vezes acompanhados da polícia oficial, promover o massacre no campo. Por outro lado, os quilombolas enfrentam o racismo e em grande medida ainda são tratados como escravos, sem direito algum, a um trabalho, moradia, reconhecimento de suas terras, etc. Uma das questões políticas mais recentes, que tem sido a “bandeira de lutas” das comunidades quilombolas, é a questão da titulação de suas terras, que hoje sofrem de um processo altamente burocrático e que é influenciado pelo setor mais atrasado do país, o latifúndio. 


          
         Um estudo de 2009 do Journal of Biologycal Science mostrou que o consumo do milho proveniente da semente geneticamente modificada pode produzir efeitos negativos em órgãos como os rins e o fígado. Outro estudo, publicado em 2012 na Food And Chemical Toxicology, constatou que ratos submetidos a uma dieta à base de organismos geneticamente modificados morrem mais rápido e são mais propensos ao desenvolvimento de câncer. Para chegar a esta conclusão, cientistas administraram em 200 ratos, durante dois anos, três dietas distintas: uma à base de milho convencional, outra a base do milho transgênico NK603 e outra a base do NK603 tratado com o herbicida RoundUp. Tanto o milho transgênico NK603 como o herbicida RoundUp (o mais utilizado do mundo) são pertencentes à Monsanto. O resultado foi a morte acelerada de parte dos ratos e o aparecimento de tumores enormes naqueles cuja base da dieta fora o milho transgênico NK603, da empresa multinacional Monsanto.
          Historicamente já em torno do século XIX, o Código Napoleônico valorizou a propriedade privada, inspirando desta forma os códigos civis que através da proposta liberal favoreceram a concentração de propriedades rurais a reduzido grupo social. Isto acabou favorecendo o sub-aproveitamento agrícola e aumentando a exploração dos trabalhadores rurais, reduzindo assim as opções de trabalho e aumentando o êxodo rural e a miséria social. Atualmente, o latifúndio ainda é regime impróprio de países pobres e ditos “subdesenvolvidos” e um dos responsáveis pelo atraso e pelo subemprego nos campos e nas cidades. Este sistema de distribuição da propriedade rural ainda é injusto e muito comum no Brasil, com o tema tratado no campo jurídico pelo Estatuto da Terra, legislação estudada no ramo do Direito chamado “Direito Agrário”, além de interessar às políticas governamentais de reforma agrária que determinam o uso do solo rural no país. O latifúndio tem sido tradicionalmente uma fonte de instabilidade política e social.



         O Brasil é o país que por falta de políticas públicas de controle da produção agrícola mais consome agrotóxicos no mundo. Esta frase é mais do que conhecida e, por mais que tenha gravidade, não conseguimos ainda descer nenhuma posição no ranking dos maiores consumidores mundiais de agrotóxicos. Devido a todo o processo de produção-consumo que envolve essa primeira posição no ranking de consumo de agrotóxicos, que vai desde o incentivo fiscal aos produtos à falta de informação, milhares de pessoas foram às ruas em todo o país nesse dia 3 de dezembro, convocadas pela “Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida” para reivindicar um direito que deveria ser garantido pelo Estado: uma vida mais saudável. – “É uma data em que a gente relembra e faz um apanhado histórico de todos os casos envolvendo o agrotóxico e todas as violações que já foram sofridas. Uma data que serve para debater e trazer à tona como o problema do agrotóxico vem sendo tratado. É para relembrar e fortalecer a luta”, explicou uma das coordenadoras da Campanha, Fran Castro.  
Entre as principais pautas políticas estão: a)  o fim da “pulverização aérea” - que contamina plantas, solo e comunidades no entorno; b) a proibição de agrotóxicos que já estão proibidos em diversos países, como o Abamectina, Acefato e Tiram; c) a questão das isenções de impostos, que, segundo dados da Campanha, os agrotóxicos já acumulam 60% de isenção do ICMS, além de 100% de isenção do IPI, PIS/PASEP e COFINS. – “A Campanha traz para as ruas alguns pontos que envolvem, principalmente, o posicionamento do Estado brasileiro. Enfim, o caso da liberação da pulverização aérea é emblemático da responsabilidade que o governo não quer assumir. É importante relembrar os casos recentes como o de Rio Verde, em Goiás, e Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, onde diversas pessoas, entre elas crianças, foram envenenadas com a pulverização”, lembrou Fran Castro, que completou: - “Além disso, queremos ainda trazer à tona os casos que impactam a saúde como os relatos de câncer nas populações expostas constantemente”.

Bibliografia geral consultada:

FANON, Frantz, Peaux noires, masques blancs. Paris: Seuil, 1954; Idem, Les Damnés de la terre. Paris: Maspero, 1961; ASAD, Talal (Ed.), Anthropology & the Colonial Encounter. New York: Humanities Pres.; London/New York: Routledge, 1973; CHAYANOV, Alexander V., La organización de la unidad económica campesina. Buenos Aires: Nueva Visión, 1974; ASSELIN, Victor, Grilagem: corrupção e violência em terras do Carajás. Petrópolis (RJ): Comissão Pastoral da Terra/Vozes, 1982; ARICÓ, José, Marx e a América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982; KOTSCHO, Ricardo, O massacre dos posseiros. Conflito de terras no Araguaia-Tocantins. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982; LINHART, Robert, Lenin, Os Camponeses, Taylor. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983; GORGEN, Frei S. A., STÉDILE, João P. (Orgs.), Assentamentos: resposta econômica da reforma agrária. Petrópolis [(RJ): Vozes Editores, 1991; STÉDILE,]. P.; GORGEN, F. S., A luta pela terra no Brasil. São Paulo: Editora Scritta, 1993; STEDILE, Pedro João (Org.), A questão agrária no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2011; MOLINA, Mônica C., Pluralismo jurídico: o movimento dos trabalhadores rurais sem-terra e o direito à propriedade fundiária no Brasil. Campinas: IFCH/Unicamp, 1992; DELGADO, Nelson Giordano, Papel e lugar do rural no desenvolvimento nacional. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, 2009; MAZOYER, Marcel; ROUDART, Laurence, História das agriculturas no mundo: do neolítico à crise contemporânea. São Paulo: Edunesp; DF: NEAD, 2010; entre outros.

domingo, 27 de setembro de 2015

Mediterrâneo - Cinema, Comédia & Formações Discursivas.

Ubiracy de Souza Braga*

         Los tiempos felices en la humanidad son las páginas vacías de la historia”. Leopold von Ranke


         Nascido em Nápoles, na Itália, Gabriele Salvatores faz parte do seleto grupo de cineastas que têm um Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, como era reconhecida a categoria chamada de Filme Internacional. Gabriele Salvatores nascido em Nápoles, em 30 de julho de 1950 é um diretor e roteirista italiano. Seu filme Mediterrâneo (1991) recebeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1992. É um dos fundadores, junto com Maurizio Totti e Diego Abatantuono da produtora cinematográfica Colorado Film e de diversos projetos associados à empresa, como a editora Colorado Noir, esta última fundada em 2004 junto com Totti e Sandrone Duties. Perguntado sobre seu cineasta favorito, em certa ocasião, ele não citou um dos tantos mestres do cinema italiano pós-Segunda Guerra Mundial, mas admitiu a predileção pelo britânico Stanley Kubrick. Ao longo dos anos, Gabriele diversificou seus pontos de vista, fez dramas sociais, filmes de super-heróis, demonstrou personagens fugindo dos problemas do mundo moderno, etc. Gabriele Salvatores nasceu em 30 de julho de 1950 em Nápoles, mas mudou-se com os pais e a irmã para Milão aos seis anos. Formado no liceu clássico Cesare Beccaria, a sua primeira aproximação ao mundo cinematográfico do entretenimento não passou pelo cinema, mas exatamente quando iniciou a carreira no Teatro dell`Elfo, com Ferdinando Bruni (1972), com o qual dirigiu espetáculos per se definidos como vanguardistas.
            Em junho de 1941, um grupo de soldados italianos, liderado pelo tenente Raffaele Montini, chega a uma pequena ilha grega, no Mar Egeu, onde montam um Posto de Observação.  A pequena vila da ilha parece abandonada, não havendo o menor sinal do inimigo nem de seus habitantes. Logo, o rádio por eles trazido se quebra.  Algumas tentativas são feitas para recuperá-lo, sem sucesso, ficando o grupo sem qualquer contato com o resto do mundo. A população civil local, basicamente composta de idosos, mulheres e crianças, já que os homens mais jovens haviam partido por conta da guerra, sentindo o espírito pacífico dos italianos, deixa seus esconderijos e desce a montanha.  A princípio, os soldados se preocupam por acreditarem na possibilidade de uma emboscada, mas depois relaxam. O líder religioso informa ao tenente Montini que, antes deles chegarem, havia um grupo de alemães, os quais destruíram várias casas e afundaram seus barcos.  Assim, ao avistarem o navio que os trouxera, os moradores da vila se refugiaram nas montanhas, acreditando que os alemães estavam de volta. Uma bela jovem, de nome Vassilissa, procura o tenente Montini, em busca de trabalho.  Na sua ausência, o Sgt. Lorusso se faz passar por ele.  Perguntada sobre suas habilidades profissionais, ela responde que é puta.  O sargento lhe diz que vai ter que consultar o regulamento. Mas, depois de conversar com seus colegas de farda, é elaborada uma programação de atendimento de Vassilissa aos interessados.

O soldado Farina, que nunca havia tido relação sexual com uma mulher, logo se apaixona pela bela jovem e, ameaçando seus colegas com um fuzil, avisa que ninguém mais vai ficar com ela.  Alguns dias depois, o padre da comunidade celebra o casamento dos dois. O tempo passa.  Três anos depois da chegada do grupo à pequena ilha, um monomotor, pilotado pelo tenente Carmelo, sofre pane e o obriga a fazer um pouso de emergência na praia onde o grupo jogava futebol.  Ao verificar que seus colegas italianos não estavam sabendo do andamento da guerra, ele os informa que o líder fascista Benito Mussolini caiu e que a Itália se acha dividida em duas formas de oposições assimétricas.  No Sul, estão os ingleses e os norte-americanos, enquanto no Norte acham-se os alemães e os fascistas.  Depois de reparar o avião, o Ten. Carmelo se despede dizendo que vai falar com seu comandante, na ilha de Creta, para que eles sejam resgatados. Um navio inglês chega à pequena ilha, trazendo um grupo de gregos que lá moram.  Os italianos partem no mesmo, exceção de Farina que, casado, prefere desertar, refugiando-se com Vassilissa nas regiões montanhosas. Anos depois, agora um senhor grisalho, o antigo tenente Montini retorna à ilha.  Lá, reencontra o ex-sargento Lorusso, que não se readaptando à Itália, resolvera voltar pra ilha, bem como, protagonizando a história, Farina & esposa, proprietários do Restaurante Vassilissa.

                                       

Foi de uma dessas obras, em 1983, que nasceu o tema de sua primeira direção cinematográfica, Sonho de Uma Noite de Verão: inspirado em William Shakespeare, o filme é um híbrido caleidoscópico inclusivo em torno de cinema, teatro, música e dança com contos de fadas, cadências. De seu período teatral lembramos, em 1983, Class Enemy de Nigel Williams , drama de 1978 - traduzido e adaptado pelo ator e diretor Elio De Capitani - com protagonistas de nomes desconhecidos na época e que mais tarde se tornaram atores de grande importância (Claudio Bisio , Paolo Rossi , Antonio Catania , além do próprio De Capitani), Comediantes de Trevor Griffiths, em 1985, comédia de 1975 traduzida e adaptada pelo próprio Salvatores junto com a dupla Gino e Michele e na qual também estava Silvio Orlando e que depois o mesmo arguto diretor transporá livremente para o cinema em duas ocasiões distintas, Kamikazen - Ultima Notte a Milano, em 1988 e Call Me Kowalski do próprio Paolo Rossi, de 1987, espetáculo que consagrou o ator de Trieste como estrela histriônica do teatro italiano. Abandonou o teatro em 1989, passando para o mercado de trabalho para o mundo do cinema. 

Os filmes Marrakech Express (1989) e o seguinte Turné, de 1990 foram rodados com seu grupo de amigos atores, incluindo Diego Abatantuono, com quem é dono e dirige a produtora cinematográfica “Colorado”, e com quem se casou com a ex-esposa e Fabrizio Bentivoglio, e entre as atrizes está Laura Morante. Em 1990 recebeu uma indicação ao European Film Awards na categoria “Juventude” por Turné. Em 1990 foi também diretor do único videoclipe rodado pelo cantor e compositor Fabrizio De André, para a música “La Domenica delle Salme”. Em 1991 alcançou reconhecimento internacional com Mediterraneo, filme de enorme sucesso, que lhe rendeu o Oscar de melhor filme estrangeiro. O filme também ganhou outros prêmios, incluindo o David di Donatello de melhor filme, edição e som e um Nastro d`argento de direção. A sua chamada “trilogia de fuga”, composta pelos três filmes acima mencionados, é idealmente continuada em 1992 por Puerto Escondido, filme baseado no romance homônimo de Pino Cacucci, sobre temas próximos dos anteriores, ao qual Abatantuono é acompanhado pelo ator Claudio Bisio. No ano seguinte dirigiu Sud (1993), uma tentativa de denunciar a situação política da Itália dos marginalizados e desempregados, entre os quais se destaca a interpretação de Silvio Orlando.                            

Em primeiro lugar, não devemos esquecer que o mundo das “histórias nacionais” de Leopold von Ranke (1795-1886) é, assim, determinado, visto que sua particularidade refere-se a existenz, para lembramo-nos de Friedrich Hegel, na técnica de interpretação na literatura e na filosofia de um “mundo europeu”, que mal se dilata, mas sem perder o conteúdo essencial, sobre províncias e continentes do ultramar colonizados por povos europeus. Mas não é a Europa inteira o que o ocupa, e sim as fronteiras geográficas dessa Europa latina e germânica, protestante ou católica, que são também as fronteiras do espaço e do tempo histórico a que devotou o melhor de sua atividade intelectual: “somos mais vizinhos de Nova York e de Lima do que de Kiev e Smolensk”. Mas é melhor tentarmos entender sua ideia de “nexo de sentido”, posto que as razões dessa crítica só valessem se quisesse dizer que o mundo histórico cessava, para Ranke, “nos limites da Europa Ocidental com seus apêndices ultramarinos”. Sua ideia de “nexo de sentido”, que poderia justificar-se como um princípio de economia necessário, passa a ser um “mandato de exclusão sem apelo”. Os povos que não tiveram o privilégio de originar-se das grandes invasões dos séculos IV a VII, que não se puseram logo sob a égide da Igreja de Roma, que não tomaram parte nas cruzadas e direta ou indiretamente nos descobrimentos e conquistas ultramarinos, que não se viram envolvidos, dentro do mesmo espírito cristão, mas cristão ocidental, nas guerras de religião do século XVII e nem na Ilustração do século XVIII, “esses povos não têm salvação diante da História”.

Curioso é notar que em defesa do exclusivismo de Ranke poderia alegar-se que essa universalização da cultura ocidental parecia rigorosamente imprevisível à época em que ele viveu, e, no entanto é forçoso observar que sua noção científica da História, ao mesmo tempo em que lhe traçava limites fixos no espaço, também excluíam a dimensão do futuro. Nada há, em sua obra, que se assemelha a certas previsões feitas por homens de seu tempo. E nem há como exprobrá-lo por ter seguido a regra, que Hegel definiu, mas não seguiu, de que não é da competência dos historiadores o arvorar-se em profetas ou dramaturgos. A limitação metodológica de Ranke, neste particular, não está em que para  ele o tempo histórico pode comportar “um ontem”, quando muito “hoje”, cujo conhecimento nos é acessível através de pesquisas ou de experiências. A história se baseia num tempo incompleto, inacabado, que em si mesmo é uma exigência de mudança. O passado jamais se entrega imediatamente a nós, por isso devemos considerar ideológica a pretensão de estabelecer “o que efetivamente aconteceu”. Ou seja, a ideia conspícua de Leopold von Ranke, contida em seu Zur Kritik neurer Geschichsreiber do “como efetivamente aconteceu” (essen Sie tatsächlich, es passierte). Nosso ponto de partida é articulado emtorno do conceito de “tempo-de-agora” (Jetztzeit); é nele que tomamos consciência e que podemos nos relacionar em termos novos com o passado e exercermos a crítica analítica como veremos adiante.
História das mentalidades é modalidade que privilegia os modos “de pensar e de sentir” dos indivíduos de uma mesma época. Segundo Michel Vovelle, em Ideologies et Mentalités (1982), é o “estudo das mediações e da relação dialética entre, de um lado, as condições objetivas da vida dos homens e, de outro, a maneira como eles a narram e mesmo como a vivem”; ou, Le Mort et l’Occident de 1300 à nous Jours, à Paraître fin 1982, ou ainda, segundo Robert Mandrou, no livro Magistrados e Feiticeiros na França do Século XVII - Uma Análise de Psicologia Histórica em que interpreta “uma história centrada nas visões de mundo”. Esta obra apresenta os resultados de uma longa investigação pelos arquivos judiciários e pelos trabalhos consagrados à caça às bruxas na França no século XVII. Através de um itinerário intelectual e afetivo complexo, os Magistrados das cortes supremas (os Parlamentos) em Paris, Dijon, Bordeaux etc. renunciaram com dificuldades, lentamente, a condenação automática à fogueira dos suspeitos de bruxaria; longa tomada de consciência na qual os médicos, teólogos e juízes colaboram através de polêmicas veementes suscitadas em particular por alguns processos que causaram grande escândalo e puseram em causa os confessores de conventos femininos presos do demônio: em Aix-em-Provence, em Louviers. Segundo Roger Chartier, uma “história do sistema de crenças, de valores e de representações próprios a uma época ou grupo”. Segundo Georges Duby, a designação ajustava-se à necessidade de explicar o que de mais fundo “persiste e dá sentido à vida material das sociedades”, ou seja, representam as ideias que formam das suas condições reais de existência e que além disso “comandam de forma imperativa a organização e o destino dos grupos humanos”. 
Haveria uma “mentalidade coletiva”? Lucien Febvre (1953; 1978) perguntava-se se existiriam “modos de sentir e de pensar” que fosse comum a “Cristóvão Colombo e ao mais humilde marinheiro de suas caravelas”. Esta pergunta foi retomada a partir dos anos 1960, e começou a se formar mais claramente como “uma nova técnica de orientação da pesquisa histórica” a partir de autores como Philippe Ariès (1982b), e ainda, George Duby & Robert Mandrou, em Histoire de la civilization française. Moyen Âge - XVIe siècle (1958). Deve-se ainda ter em vista que a História das mentalidades associou-se também ao conceito de “la longue durée” ou “tempo longo”, característico da Escola dos Annales. Tal como o compreendia Fernand Braudel, as mentalidades constituiriam um “padrão de pensamento” ou de “sensibilidade” que mudaria muito lentamente, “vindo a formar uma estrutura de longa duração”. Objetos típicos da História das mentalidades são: “as sensibilidades do Homem diante da morte”, a história dos “grandes medos dos seres humanos nos diversos períodos” (cf. Jean Delumeau), da feitiçaria (cf. Robert Mandrou) e tantas outras que à época em que começa aflorar a História das mentalidades, que “pareciam constituir temáticas exóticas para os historiadores que se dedicavam a temas historiográficos mais tradicionais”. Não temos história do amor, da morte, da piedade, da crueldade, da alegria. A queixa de Lucien Febvre, em 1948, muito repetida desde então, tornou-se quase um manifesto da disciplina que se convencionou chamar a “história das mentalidades”. Uma das lacunas que o fundador da Escola dos Annales deplorava foi preenchida pela História do medo no Ocidente, de Jean Delumeau. Ao tomar como objeto de estudo o medo,  ele parte da ideia de que não apenas os indivíduos mas também as coletividades estão engajadas num diálogo permanente com a menos heroica das paixões humanas.
Revelando-nos os pesadelos mais íntimos da civilização ocidental do século XIV ao XVIII, por exemplo, o mar, os mortos, as trevas, a peste, a fome, a bruxaria, o Apocalipse, Satã e seus agentes (o judeu, a mulher, o muçulmano) -, o grande pensador francês realiza uma obra sem precedentes na historiografia do Ocidente. Alguns autores postulam que a história das mentalidades apresentou como principais precursores dois grandes historiadores ligados à escola dos Annales: Marc Bloch, que publicou em 1922, Os Reis Taumaturgos, uma obra comparativa que examinava “a relação entre a crença no poder curativo dos reis e a autoridade das grandes dinastias francesas e inglesas”, e Lucien Febvre, que publicou O Problema do Ateísmo no Século XVI: a religião de Rabelais, obra na qual já “defendia a tese da História como estudo interdisciplinar”. A chamada História das mentalidades é um ramo da Teoria da História. É considerada uma análise de tipo mais profundo da História, pois visa perscrutar e compreender as grandes alterações nas formas de “pensar e agir do Homem ao longo dos tempos”. Inscreve-se no chamado “tempo longo” (a “longa duração”), de teor essencialmente estrutural e que atua nos mais diversos fatores de uma sociedade.
Por ser do domínio do “tempo longo”, a perspectiva temporal é fundamental para seu estudo. Devido à sua abrangência intrínseca, permite ampliar o conceito de documento, extravasando em muito o mero documento escrito de cariz oficial. Os atos inconscientes são tão ou mais importantes que a formalidade dos decretos e das ordens régias; a Arte, a Literatura, os costumes, os ritos, os mitos e os símbolos (Augé), a religião são manifestações fundamentais para revelar a consciência auto reflexiva que o homem tem de si numa determinada época” (Hegel). Com a história das mentalidades, a elaboração histórica deu um salto qualitativo, quer em termos científicos quer no concernente ao seu ensino. A História Nova, de Marc Bloch foi a grande impulsionadora da história das mentalidades. Outro grande impulsionador desta teoria foi o filósofo e epistemólogo francês Michel Foucault, ligado à influência de Sigmund Freud na esfera de saber da psicologia e psicanálise.
A história das mentalidades é um meio de compreensão dos mecanismos sócio históricos sobre um plano de fundo onde os conceitos elaboram-se a partir dos “estados mentais de grupos coletivos”. Desse modo, as manifestações que estão ligadas ao amar, lazer, morrer e viver num sentido de desvelar os discursos. Para além do óbvio visando uma interação entre o antropológico, a sociologia e a psicanálise. Em que a autoridade, tradição e passado está ligado à investigação multidisciplinar. Apesar de estudar o modo de agir e pensar do indivíduo a História das mentalidades estava ficando “fora de moda” e os historiadores não gostam de serem tratados e rotulados como “historiador do mental” e a partir de meados da década de 1980, na França, esse tipo de análise histórica já estava sendo reformulada, dando lugar a sua principal herdeira, a Nova História Cultural. A história cultural no Brasil, mutatis mutandis, para sermos breves, deu-se através do historiador Sérgio Buarque de Holanda e do antropólogo Gilberto Freyre, a partir de suas respectivas obras “Raízes do Brasil”, publicada em 1936, e “Casa Grande e Senzala”, publicada em 1933. Para compreender a história das mentalidades é preciso remontar aos séculos XIX e XX, onde conceitos estabelecidos pelo historiador Leopold von Ranke (1979a; 1979b) que idealizava uma história tradicional, política voltada à biografia dos reis, foi contestada mais tarde por Marc Bloch e Lucien Febvre que, em busca de uma história-problema e de uma história do cotidiano fundaram a “Revue des Annales”, em torno da qual se estabeleceu a chamada Escola dos Annales. A história das mentalidades teve como destaques principais dois historiadores que com suas obras mostraram o pensar e o agir na História do mental: Bloch editou “Os Reis Taumaturgos”, uma obra comparativa entre crença e autoridades dos Reis e Febvre publicou “O Problema do Ateísmo no Século XVI: a religião de Rabelais” onde defendia a tese da História representar uma forma de estudo interdisciplinar. 
Gabriele Salvatores participando do 52° Festival Internacional de Cinema de Veneza (1995). Delineou-se assim o que se poderia chamar, de acordo com Michel Foucault, uma genealogia, ou melhor, pesquisas “genealógicas múltiplas”, ao mesmo tempo redescoberta exata das lutas e memória bruta dos combatentes. E esta genealogia, como acoplamento do saber erudito e do saber das pessoas, como ocorre com a historiografia varnhageniana, para o caso brasileiro, só foi possível e só se pôde tentar realizá-la à condição de que fosse eliminada a tirania dos discursos englobantes com suas hierarquias e com os privilégios da vanguarda teórica, mas que não trataremos agora. A noção de região, tratada como instrumento da ação política, é inseparável da noção de “regionalismo nordestino”. Este, visto como o discurso que a representa, é um movimento de reivindicação de tratamento diferenciado a um determinado espaço territorial. É uma expressão de luta de poder no interior dos espaços regionais quanto ao direito sobre a representação externa da região nas diversas escalas de poder. Um grande historiador de nosso tempo assinalou, no entanto, a ambiguidade da fórmula do tal “como efetivamente aconteceu”, dizendo que essa ambiguidade é característica de muitas máximas e serve para explicar sua grande repercussão. Porque, continua Marc Bloch, a ideia de que o sábio, neste caso o historiador, deve apagar-se ante os fatos, pode entender-se, por um lado, como um conselho de probidade, “e não se pode duvidar que fosse esse o sentido que lhe deu Ranke”, mas, além disso, é lícito interpretá-la como um convite à passividade. 
E à pergunta sobre se é possível ao historiador ser absolutamente imparcial, responde que a palavra “parcialidade” também tem duplo significado, pois se pode ser “imparcial à maneira do sábio e imparcial à maneira do juiz”. Ambas as maneiras teriam suporte comum, que é a honesta sujeição à verdade. Os dois caminhos assinalados por Bloch não diferem substancialmente dos caminhos descritos e separados por Ranke: o da Filosofia que, no seu entender, é o reino das leis gerais ou abstratas, e o da História, que, partindo da observação do único, deverão, entretanto, explicá-lo, o que só pode fazer recorrendo aos meios que servem para se comunicarem os homens entre si, pois que são geralmente inteligíveis. Ranke foi historiador sem pretensões a filósofo, mas teve mais de uma vez o cuidado de definir “quase filosoficamente o ofício do estudioso do passado”. Entendia, ainda assim, que a História é uma “ciência do único”, separando-se por esse lado da Filosofia que, segundo ele, se ocupa de abstrações e generalizações. 
Por outro lado, pretende que a observação e o “conhecimento do único” representem só o ponto de partida do historiador. Para alçar-se ao conhecimento dos grandes nexos de sentido, faz-se necessário que siga sempre seus “próprios” caminhos, que, afirmou, “não são os caminhos do filósofo”. Nesse passo, porém, seu raciocínio é pouco preciso. O certo é que, embora alguns autores, reagindo mais tarde contra as correntes positivistas na historiografia, tentassem emancipar o conhecimento histórico das generalizações e abstrações, que passariam a ser privatista das ciências nomotéticas, e interpretasse o legado rankiano ao sabor de suas teorias, esse modo de ver já não se pode justificar. Uma notável ilustração dos métodos de Ranke, nesse particular, aparece no desenvolvimento que dá à sua ideia da unidade fundamental (Ranke, 1979a: 65 e ss.; Ranke, 1979b) dos “povos românticos e germânicos na origem de toda história moderna”, que ainda em seus dias lhe parecia guardar essa marca originária. 
É possível que não fosse uma ideia nova ou inteiramente sua, e, com efeito, ela já aparece, em termos muito semelhantes aos que emprega, em uma carta de Guilherme de Humboldt datada de 1799, e que o historiador provavelmente ignorava. Essa ideia, “minha ideia favorita”, escreverá posteriormente, já se define em seu primeiro livro, que lhe abriu as portas do professorado de Berlim, onde trata da história dos povos latinos e germânicos, entre 1494 e 1530. Assim, a “ideia da unidade”, até do parentesco, dos povos românticos e germânicos, prepara-se, segundo ele, no Sul da Europa, como resultado das grandes migrações dos povos nos séculos IV a VIII, para expandir-se ao Norte, com o império carolíngio, e é quando, a bem dizer, se forma o sentimento nacional tanto da Itália, como da França e da Alemanha, ganhando logo a Grã-Bretanha, a Espanha e a Escandinávia. Sua importância singular está em que, sobre essa ideia, descansa para ele, até na época contemporânea, toda a vida europeia, além de seus prolongamentos ultramarinos, como os do continente americano. 
Para ele, protestantes e católicos são galhos de uma só árvore, a da cristandade ocidental, separada do mundo bizantino. Depois das lutas religiosas, a unidade manifesta-se sob a forma de afeições, preceitos, instituições, códigos de compostura, que, tendo raiz comum, são patrimônio que esses povos se formam como uma vasta República. Ipso facto não queremos perder de vista que “não importa que o historiador se dedique ao estudo das diferentes histórias nacionais, quando não perca de vista o pano de fundo que de algum modo as congrega”. Não devemos perder de vista que o mundo das “histórias nacionais” de Leopold von Ranke é, assim, determinado historicamente, visto que sua particularidade refere-se à existenz para lembramo-nos de Hegel, na técnica de interpretação na literatura e na filosofia de um “mundo europeu”, que mal se dilata, mas sem perder o conteúdo essencial, sobre províncias e continentes do ultramar colonizados por povos europeus. Mas não é a Europa inteira o que o ocupa, e sim as fronteiras geográficas dessa Europa latina e germânica, protestante ou católica, que são também as fronteiras do espaço e do tempo histórico a que devotou o melhor de sua atividade intelectual: “somos mais vizinhos de Nova York e de Lima do que de Kiev e Smolensk”. Melhor dizendo, fora da Europa, de sua Europa e, quando muito, fora das terras colonizadas por europeus, só existiam para ele “o caos e o cemitério”. 
Em tais condições hão de ficarem fora de seu horizonte aqueles mundos informes ou álgidos que lhe parecem, efetivamente, “terras sem história”. Daí a referência idiossincrática em Varnhagen, repetimos, quando analogamente refletindo sobre o Brasil afirma: “De tais povos na infância não há história: há só etnografia”. Do engano sugere uma história carregada de interpretação da cultura. O regionalismo é um discurso apoiado numa aliança de forças e grupos sociais que forja uma identidade referida a um espaço; forja uma ideia de história e de práticas comuns; apresenta uma leitura do passado, do presente e projeta um futuro em cima de interesses gerais remetidos a uma circunscrição territorial. Ele legitima um determinado “bloco de poder” e o seu monopólio da representação dos interesses gerais numa determinada região, outorgando autoridade aos seus membros de porta-vozes para exercer essa representação. 
Esse “grupo dominante”, enquanto fração das classes dominantes, através da reivindicação de um tratamento diferenciado por parte das diversas escalas de “poder supralocais”, busca monopolizar a interlocução com essas instâncias e exercer o controle sobre os recursos fundamentais que interferem na reprodução das condições locais de desenvolvimento. A identidade cultural não está na condição de ser “nordestino”, mas sim no modo como esta condição é apreendida e organizada simbolicamente. Percebe-se assim, que determinados enunciados audiovisuais se produziram e permaneceram como representações acerca do Nordeste, como sua essência. É preciso questionar e criticar a própria ideia de identidade, que é concebida como “uma repetição, uma semelhança de superfície”. Porém, apesar desses estereótipos do Nordeste a ser propagados no contexto geral da chamada “indústria cultural” e de massa, a expressão “região Nordeste”, possui significados muito cristalizados que evocam uma série de imagens das características geográficas culturais, sociais e econômicas. Entre as primeiras, podemos citar elementos da paisagem que incluem desde o recorte litorâneo com suas praias e seus remanescentes coqueirais, até a paisagem mais seca do agreste e, sobretudo, a do sertão. Veillons!
Bibliografia Geral Consultada.

BRAUDEL, Fernand, A Longa Duração. In: História e Ciências Sociais2ª edição. Lisboa: Editorial Presença, 1976; RANKE, Leopold von, Pueblos y Estados en la Historia Moderna. México: Fondo de Cultura Económica, 1979: Idem, Leopold von Ranke: História/Organizador [da coletânea] Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Editora Ática, 1979; CASTORIADIS, Cornelius, A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1982; VOVELLE, Michel, Ideologies et Mentalités. Paris: Éditions François Maspero, 1982; Idem, Le Mort et l’Occident de 1300 à nous jours, à paraître fin 1982. Paris: Éditions Gallimard, 1982; BLOCH, Marc, Os Reis Taumaturgos. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1993; DELUMEAU, Jean, História do Medo no Ocidente: 1300-1800, Uma Cidade Sitiada. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1989; SALLMANN, Jean-Michel, “Santi Patroni e Protezione Collettiva”. Santi barocchi: modelli di santità, pratiche devozionali e comportamenti religiosi nel regno di Napoli dal 1540 al 1750. Lecce: Argo Ediciones, 1996; FEBVRE, Lucien, “Une Vie d’Ensemble: Histoire et Psychologie”. In: Combats pour l’Histoire. Paris: Armand Colin, 1953, pp. 207-15; MOTA, Carlos Guilherme (org.), Febvre. São Paulo: Editora Ática, 1978; FURET, François, A Oficina da História. Lisboa: Gradiva, 1991; DOBB, Maurice Herbert, Estudios sobre el Desarrollo del Capitalismo. Ciudad de México: Siglo XXI Editores, 2005; SILVA LIMA, Sheila Conceição, Em Nome do Pai, do Filho e do Poder Joanino: Portugal e a Santa Sé na Primeira Metade do Século XVIII. Tese Doutorado em História Política. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2013; MOREIRA, Vivane Venâncio, Leopold von Ranke e a Questão Oriental: O Caso d`A Revolução Sérvia (1829-1879). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História Social. Departamento de História. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014; GÓMEZ, Bárbara Natalia, El Secreto de la História Universal: Un Misterio para Leopold von Ranke. Tese Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura. Departamento de História. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2015; entre outros.

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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes. São  Paulo: Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).