segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Notas Sobre a Representação Teórica da Crise do Ethos.

Antonio Carlos da Silva Pinheiro*



Segundo a definição da Enciclopédia Logos (2009: 334-335), “ética é um adjetivo substantivado em cuja origem etimológica encontrou dois termos: (éthos) – costume, uso, maneira (exterior) de proceder - (êthos) – morada habitual, toca, maneira de ser, caráter”. Ruth Amossy (2005: 10) declara que “os antigos designavam pelo termo ethos a construção de uma imagem de si destinada a garantir o sucesso do empreendimento oratório”. Em uma época em que na Grécia antiga as coisas pareciam serem resolvidas “no grito”, Isócrates, segundo Cruz (2009: 36), afirmava que “além da qualidade estilística do discurso, objeto de vários de seus ensinamentos, o elemento central na persuasão é o éthos do orador, entendido como a reputação deste perante seu grupo social” e acrescenta “os bons oradores, isto é, os que têm um éthos que os torna dignos de confiança, são também os que falam com apuro”.
Elisa Guimarães reitera dizendo que “parte integrante do discurso, o ethos propõe-se como condição mesma da menor ou maior eficácia dos efeitos decorrentes do pronunciamento discursivo” e completa afirmando que o mesmo pode ser considerado “um dos recursos mais poderosos para a obtenção da adesão do ouvinte”. Assim, o éthos que dar origem a ideia moderna de ética, começa ganhar forma e força. Como Jaeger bem observa: Nos tempos primitivos, quando ainda não existia uma compilação de leis nem um pensamento ético sistematizado (exceto alguns preceitos religiosos e a sabedoria dos provérbios transmitida por via oral de geração em geração), nada tinha como guia da ação, eficácia igual à do exemplo (cf. Jaeger, 2001: 57). É justamente sobre a eficácia do exemplo, que o éthos, cada vez mais, ganha espaço no mundo helênico. Tendo como principal fonte empírica na construção de sua formação espiritual e educacional, o homem grego encontra nos poetas antigos a sua principal fonte de conhecimento, como afirmam Reale e Antiseri (2003: 06) em sua obra “História da Filosofia”, a onde se diz que “O helenismo inicial buscou alimento espiritual de modo predominante nos poemas homéricos, ou seja, na Ilíada e na Odisseia” e Jaeger (2001: 98) acrescenta, afirmando que “O éthos da cultura e da moral aristocrática encontra na Odisseia o poema da sua vida”.


Figueiredo (2008: 02) defende que “embora se tenha atribuído a Sócrates o início dessa reflexão, a primeira apresentação sistemática da Ética encontra-se em Aristóteles”. Segundo Cruz (2009: 67) é ele, Aristóteles, o “pai” do conceito de éthos. Para ser mais especifico, é na Retorica de Aristóteles, que Cruz afirma que podemos encontra a “certidão de nascimento” do éthos: Os argumentos inerentes ao discurso são de três espécies: alguns residem no caráter moral [éthos] do orador; outros na disposição do auditório [pathos] e outros, enfim, no discurso propriamente dito [logos], quando este é demonstrativo ou parece sê-lo. É o caráter moral (do orador) que conduz à persuasão, quando o discurso é constituído de tal maneira que inspira confiança no orador [...] É preciso, aliás, que tal resultado seja obtido pela força do discurso e não apenas por uma predisposição do auditório favorável ao orador. Não é exato dizer que [...] a probidade do orador não contribui em nada para conduzir à persuasão, mas, [ao contrário], é ao caráter moral que o discurso deve seu maior poder de persuasão. [...] Enfim, é pelo próprio discurso que persuadimos quando demostramos a verdade ou o que parece sê-lo, segundo as provas apresentadas, deduzidas uma a uma (cf. Retórica, I, cap. II, IV-VI – grifos nossos).
Cruz (2009: 68) ainda sintetiza esse conceito, afirmando que o éthos se trata da “imagem que o enunciador constrói de si no discurso para impressionar o enunciatário e, assim ganhar sua confiança”, Elisa Guimarães integra declarando que “é do saber aristotélica a definição do ethos como “imagem de si” construída no discurso. Para ele, a ponderação, a simplicidade, a sinceridade são predicados capazes de tecer a confiança no exercício oratório”. Contudo, vale lembrar que o foco de Aristóteles ao tratar do éthos em suas obras, não está se referindo a atributos próprios do indivíduo real, como fazia Isócrates, mas tendo em vista a imagem do personagem criada pelo discurso.
A funcionalidade do éthos como ferramenta de apoio a retorica, “não se limita apenas ao mundo helênico e ganha magnificência em Roma na pessoa de Cícero, um político acostumado, como todo bom orador, a fazer da palavra um instrumento de seu trabalho. Cruz (2009: 49) explica que [...] ao lado de Cícero, a retórica alcança a maturidade, afirma sua identidade e vive dias de esplendor”. Cícero foi adepto das ideias de Aristóteles e foi a elas que ele recorreu na hora de construí a sua concepção de convencimento, que segundo Cruz, se daria na confluência entre logos e éthos, que por sua vez, levaria aos ouvintes a um pathos, que na sua concepção em última análise, era a vontade de Cícero. O pathos, na concepção de Cícero, é a chave para o convencimento de seus ouvintes. Nesse caso, o éthos se apresenta como um instrumento de construção do caráter, ainda que inverossímil, do orador. Como explica Cruz (2009: 53) [...] “para Cícero o éthos tem as mesmas características e funções que lhe conferia Aristóteles, mas agora se encontra como que amalgamado ao pathos”, que é a emoção produzida pelo discurso.

Apesar de todas essas contribuições, é com Quintiliano, um dos seguidores de Cícero, que a ideia de éthos irá prevalecer na história. Como explicar Cruz: “Quintiliano, que foi, digamos, o primeiro retórico oficial da história. Professor pago pelo Estado, Quintiliano promoveu a recuperação da obra de Cícero, porém sem segui-la integralmente. O éthos continua a ocupar uma posição de destaque, porém não mais relacionada à demonstração das emoções que movem o orador, mas ao conjunto de atributos morais (integridade, coragem), intelectuais (conhecimento, capacidade de raciocínio) e verbais (eloquência) que deve possuir aquele que toma a palavra. Para Quintiliano, não é possível falar bem sem ser probo. Em outras palavras, não é o éthos construído pelo discurso que convence, mas a reputação do homem público, sua posição pessoal e sua inserção junto ás instituições que sustentam seu discurso. O éthos equivale, portanto, a fama do orador e esta é seu melhor argumento para imprimir autoridade a seu discurso (cf. Cruz, 2009: 55-56).
A partir dessa concepção, o éthos deixou de ser uma mera fermenta linguística e tornasse um fator pratico na vida pessoa do indivíduo. Agora, já não há mais espaço para uma construção verossimilhante de um éthos discursivo de si, mas uma construção exterior ao discurso que confirme na práxis o discurso de seu orador. Crise! Está tem sido a palavra mais usada, debatida, questionada, e propagada nesses últimos dias aqui no Brasil. Minimizada pelos mais otimistas, alardeada pelos pessimistas e discutida de forma moderada por outros, a palavra crise, mais do que nunca, tem sido o centro de discussões por todo o país. Com certeza essa não é a primeira vez que a palavra é usada em nossa pátria, mas provavelmente, também nunca causou tantas expectativas e controvérsias como na contemporaneidade.
Enquanto pesquisadores mais experientes defendem que a crise que o país passa, é imensamente inferior a outras crises que o Brasil já teve aonde a inflação, segundo um deles, chegou a ultrapassar a casa dos 80%. Os mais jovens, por sua vez, defendem que essa é a maior de todas as crises que já enfrentamos. O fato é que todos possuem argumentos para defenderem suas opiniões. Com tanta discursão acontecendo em torno desse tema, o debate saiu da sua informalidade e ganhou espaço principalmente nos meios de comunicação. Uma determinada emissora de TV decidiu promover uma campanha inteiramente dedicada a busca de soluções para esse momento tão difícil que o país enfrenta. Intitulado de “Saídas para crise”, a campanha tem como responsáveis a “Fundação Padre Anchieta [TV Cultura], a OAB/SP - Ordem dos Advogados do Brasil, em São Paulo, a Assembleia Legislativa de São Paulo e pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo”, segundo dados disponíveis no site Adital.
A campanha que acontecerá nos dias 27 de agosto e 15 de setembro, procuram discutir vários temas relacionados a crise no Brasil. Dentre os muitos temas tratados nos debates um deles nos chamou muito atenção. No debate que aconteceu no dia 27 de agosto, na emissora já citada, os debatedores discutiam o que estaria tornando está crise tão proeminente as demais, haja visto, como já dissemos, esse não seria um tema novo. Em meio as controvérsias, os debatedores parecem ter chegado ao âmago da questão. Todos parecem acreditar que além dessa crise está inserida em uma confluência de crises, política e econômica, que se desdobram não só aqui mais por partes do mundo, o agravante da crise que enfrentamos parece se encontra em um tema tão antigo quanto a própria crise, que é, como foi dito no debate, “a crise moral” ou a “crise ética”.

Tendo em vista que a palavra que dar origem ao conceito hodierno de ética que na definição de Figueiredo (2008: 03) “o ético compreende, antes de tudo, as disposições do homem na vida, seu caráter, seus costumes e, naturalmente, também a sua moral”, é tão antiga quanto a própria ideia de crise. Pretendemos portanto, fazermos um breve apanhado histórico sobre esse assunto que ganhou tanta relevância nos dias atuais, buscando no contexto histórico a origem da palavra, a sua relevância nos vários períodos da história e sua atualidade pertinente no contexto social em que vivemos. Historicamente, Herrero explicando como surgiu o éthos contemporâneo, atribui a Kant a maior contribuição para a formação do novo éthos da sociedade, afirmando que “com ele chegou-se a proclamar como princípio universal que a liberdade do indivíduo enquanto tal é a alavanca básica sobre a qual o homem se move e que, portanto, o homem não pode reconhecer outra autoridade que atente contra essa liberdade. É o reconhecimento deste princípio universal da liberdade que distingue a modernidade da Antiguidade” (cf. Herrero, 2004: 151).
Nesse sentido Tedesco e Rebelatto (2013: 20928) explicam que “a formação do éthos ocidental constituiu-se nas estruturações das racionalidades nos períodos antigo, medieval, moderno e contemporâneo”, Aranha e Martins (2013: 174) completam, afirmando que “até a segunda metade do século XX prevaleceu uma ética antropocêntrica, pois a ética dizia respeito ao indivíduo e à sua relação com os demais”. Dessa maneira, muita das vezes a ideia de éthos na modernidade é restringida a valores morais individuais, que nada tem a ver com o Estado. O problema de assumir um caráter ético ambivalente como esse, está na falsa ideia de que, se tratando do indivíduo consequentemente, se tratará da sociedade como todo, o que é claramente logico, haja vista que a sociedade é formada por indivíduos, contudo, não é necessariamente verdadeiro, como todo silogismo ilegítimo. Aranha e Martins (2013: 176) alerta que “um projeto moral desligado de um projeto político destina-se ao fracasso” e acrescenta afirmando que “os dois processos caminham juntos, pois formar o ser humano plenamente moral só é possível na sociedade que também se esforça para ser justa e democrática”.
Podemos concluir provisoriamente admitindo que diante de um quadro tão caótico em que vivemos na modernidade, restado de, não só uma, nem duas, mas de uma confluência de crises, que o éthos apesar de sua origem longínqua no mundo helênico, sua relevância é de grande importância para os dias de hoje. Diante da oportunidade que o assunto demonstra, deveríamos dedicar mais atenção para a sua contemporaneidade. E assim discutirmos quais seriam as melhores formas de identificarmos alternativas para essa crise do éthos. De caminharmos para uma sociedade global em que o éthos não seja apenas uma construção “verossimilhante”, do orador, de si mesmo, mas uma práxis legítima que se harmoniza com que se é apregoada.
Referencias bibliográficas. 
LOGOS. Coleção Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa/São Paulo: Editor Verbo, 1989; ARISTÓTELES, Rhétorique. Tradução Charles Émile Ruelle. Paris: Livre de Poche, 1991; REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario, História da Filosofia: Filosofia Pagã Antiga. Volume 1. São Paulo: Editora Paulus. 2003; AUBENQUE, Pierre, A Prudência em Aristóteles. São Paulo: Discurso Editorial, 2003; AMOSSY, Ruth, Da Noção Retórica de Ethos à Análise do Discurso. Imagens de si no Discurso: A Construção do Ethos. São Paulo: Editor Contexto, pp. 9-28, 2005; FIGUEIREDO, Antônio Macena, Ética: Origens e Distinção da Moral. In: Saúde, Ética & Justiça, vol. 13, n° 1, 2008; CRUZ, Dilson Ferreira, O Éthos dos Romances de Machado de Assis: Uma Leitura Semiótica. São Paulo: Nankin. Editora da Universidade de São Paulo, 2009;  HERRERO, Francisco Javier, “O Ethos Atual e a Ética. Síntese”. In: Revista de Filosofia, v.ol. 31, n°. 100, 2010; JAEGER, Werner, Paideia: A Formação do Homem Grego. 4ª edição. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001; PEREIRA, Virgínia Soares, Plínio e a Sombra Tutelar de Cícero. In: http://www2.dlc.ua.pt/classicos/sombratutelar.pdf; TEDESCO, Anderson Luiz; REBELATTO, Durlei Maria Bernardon, “A Contemporaneidade do Ethos: Desafios à Educação”. In: http://educere.bruc.com.br/ANAIS2013/pdf; RIBEIRO, Renato Janine, “Ética para o Juiz: Entre a Poesia e a Investigação”. In: José Renato Nalini (Org.), Magistratura e Ética. 1ª edição. São Paulo: Contexto, 2013, pp. 52-59, ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires, Filosofando: Introdução à Filosofia. 5ª edição São Paulo: Moderna. 2013; GIMBO, Fernando Sepe, Foucault, o Ethos e o Pathos de um Pensamento. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Departamento de Filsoofia e Metodologia das Ciências. Centro de Educação e Ciências Humanas. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2015; entre outros.
___________________
* Aluno do curso de bacharelado de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

Nenhum comentário:

Postar um comentário