“A
vergonha de ser um homem: haverá razão melhor para escrever?”. Gilles
Deleuze
É difícil escapar à impressão de que
em geral as pessoas usam medidas falsas, dizia Freud (2011), com razão, sobre
a questão tópica do mal-estar na civilização, de que buscam poder,
sucesso, riqueza para si mesmas e admiram aqueles que os têm, assim subestimando
os autênticos valores da vida. E, no entanto, corremos o risco, num julgamento assim
genérico, de esquecer a variedade do humano - last but not least – e de
sua vida psíquica. Existem homens que não deixam de ser venerados pelos
contemporâneos, como Herman Hesse, embora sua grandeza repouse em qualidades e realizações
inteiramente alheias aos objetivos e ideais da multidão. Provavelmente se há de
supor que apenas uma minoria reconhece esses grandes homens, enquanto a maioria
os ignora. Mas a coisa, é claro, pode não ser tão simples assim, devido à
incongruência entre as ideias e os atos das pessoas e à diversidade dos seus
desejos. A ideia de que o homem adquire noção de seu vínculo com o mundo por um
sentimento imediato, desde o início orientado para isso, é tão estranha,
ajusta-se tão mal à nossa trama, que podemos tentar uma explicação
psicanalítica, isto é, genética para esse sentimento. A seguinte linha de
pensamento se oferece. Normalmente nada é mais seguro do que o sentimento de
nós mesmos, de nosso Eu. Este Eu nos aparece como autônomo, unitário, bem
demarcado de tudo o mais. Que esta aparência é enganosa, que o Eu na verdade se
prolonga para dentro, sem fronteira nítida, numa entidade psíquica inconsciente
a que denominamos Id, à qual ele serve de fachada – isto aprendemos com
a pesquisa psicanalítica, mas que não é bem o nosso caso, na sociologia
que propugnamos.
De
todo modo a patologia nos apresenta um grande número de estados em que a
delimitação do Eu ante o mundo externo se torna problemática, e nos faz lembrar
a expressão de despedida de Gilles Deleuze (1997) que tomamos de empréstimo,
através das palavras, entre as palavras, que se vê e que se ouve: - “A vergonha
de ser um homem: haverá razão melhor para escrever?”. Ipso facto, no
prefácio à 2ª edição da obra Da Divisão do Trabalho Social, de Émile Durkheim
(2010) lembra-nos da ideia que ficou na penumbra na primeira edição e que
parece útil ressaltar e determinar melhor, pois ela esclarecerá melhor algumas
partes do presente trabalho. Trata-se do papel que os agrupamentos
profissionais estão destinados a desempenhar na organização social dos
povos contemporâneos. Mas o que
proporciona, particularmente nos dias de hoje, excepcional gravidade a esse
estado é o desenvolvimento então desconhecido, que as funções econômicas
adquiriram nos últimos dois séculos, aproximadamente. Estamos longe do tempo em
que eram desdenhosamente abandonadas às classes inferiores, pois diante delas,
vemos as funções militares, administrativas, religiosas recuarem cada vez mais.
Somente as funções científicas, adverte o pragmático sociólogo, que encetou sua
obra magnífica em torno de dez anos de produção ininterrupta, de
reconhecimento, estão em condição de disputar-lhes o lugar – e ainda assim, a
ciência contemporaneamente só tem prestígio na medida em que pode servir à prática,
isto é, em grande parte, às “profissões econômicas”. É por isso que se pode
dizer, não sem alguma razão, que elas são ou tendem a ser essencialmente
industriais.
Uma forma de atividade generalizada que tomou lugar na vida social não pode, evidentemente, permanecer tão desregulamentada, em seu desempenho e atividade, sem que disso resulte os impactos sociais sobre a divisão do trabalho e as mais profundas perturbações. Mas sofrer no trabalho não é uma fatalidade. É, em particular, como decorre e testemunhamos, uma fonte de desmoralização geral real. Pois, precisamente porque as funções econômicas absorvem o maior número de cidadãos, para o pleno desenvolvimento da vida social, há uma multidão de indivíduos, como dizia Freud, cuja vida transcorre quase toda no meio industrial e comercial; a decorrência disso é que, como tal meio é pouco marcado pela moralidade, a maior parte da existência transcorre fora de toda e qualquer ação moral. A tese funcionalista expressa na pena de Émile Durkheim, como uma espécie de antídoto da civilização, e que o sentimento do dever cumprido se fixe fortemente em nós, é preciso que as próprias circunstâncias em que vivemos permanentemente desperto. A atividade de uma profissão só pode ser regulamentada eficazmente por “um grupo próximo o bastante dessa mesma profissão para conhecer bem seu funcionamento, para sentir todas as suas necessidades e poder seguir todas as variações destas”. O único grupo que corresponde a essas condições é o que seria formado por todos os agentes de uma mesma condição reunidos num mesmo corpo. E que a sociologia durkheimiana conceitua de corporação ou grupo profissional. É na ordem econômica que o grupo profissional existe tanto quanto a moral profissional. Desde que, não sem razão, com a supressão das antigas corporações, não se fizeram mais do que tentativas fragmentárias e incompletas para reconstituí-las em novas bases sociais.
Os
únicos agrupamentos dotados de permanência são os que se chamam sindicatos,
seja de patrões, seja de operários. Historicamente, temos aí in statu
nascendi o começo e o princípio ético de uma organização profissional, mas ainda
de forma rudimentar. Isto porque, em primeiro lugar, um sindicato é uma
associação privada, sem autoridade legal, desprovida, por conseguinte, de
qualquer poder regulamentador. O número deles é teoricamente ilimitado, mesmo
no interior de uma categoria industrial; e, como cada um é independente dos outros,
se não se constituem em federação e se unificam, não há neles nada que exprima
a unidade da profissão em seu conjunto de práticas e saberes sociais. Não só os
sindicatos de patrões e de empregados são distintos uns dos outros, o que é
legítimo e necessário, como não há entre eles contatos regulares. Não existe organização
comum que os aproxime sem fazê-los perder sua individualidade e na qual possam
elaborar em comum uma regulamentação que, estabelecendo suas relações mútuas,
imponha-se a ambas as partes com a mesma autoridade; por conseguinte, é sempre
a “lei dos mais forte” que resolve os conflitos, e o estado de guerra subiste
inteiro. Salvo no caso de seus atos pertencentes à esfera moral comum estão na
mesma situação. A tese sociológica é a seguinte: para que uma moral e um
direito profissionais possam se estabelecer nas diferentes profissões, é
necessário, pois, que a corporação, em vez de permanecer um agregado
confuso e sem unidade, se torne, ou antes, volte a ser, um grupo definido, organizado, uma instituição pública. Um bom exemplo é a Universidade Estadual do Ceará (UECE), na cidade de
Fortaleza, onde após obter o bacharelado em Ciências Sociais na Universidade Federal
Fluminense (UFF), ingressei na carreira de sociólogo, há 23 anos, por concurso público de provas
e títulos, quando obtive o 1º lugar no cargo de professor Adjunto, mas que ainda permanece este
agregado confuso e sem unidade científico-social.
A
primeira observação familiar da crítica de Émile Durkheim, é que a corporação
tem contra si seu próprio passado histórico. De fato, ela é tida como
intimamente solidária do antigo regime político e, por conseguinte, como
incapaz de sobreviver a ele. Na história da filosofia, o que permite considerar
as corporações uma organização temporária, boa apenas para uma época e uma
civilização determinada, é, ao mesmo tempo, sua grande antiguidade e a maneira
como se desenvolveram na história. Se elas datassem unicamente da Idade Média, poder-se-ia
crer, de fato que, nascidas com um sistema político, deviam necessariamente
desaparecer com ele. Mas, na realidade, têm uma origem bem mais antiga. Em
geral, elas aparecem desde que as profissões existem, isto é, desde que a atividade
deixa de ser puramente agrícola. Se não parecem ter sido conhecidas na Grécia,
até o tempo da conquista romana, é porque os ofícios, sendo desprezados, eram
exercidos exclusivamente por estrangeiros e, por isso mesmo, achavam-se
excluídos da organização legal da cidade. Mas em Roma, comparativamente, elas
datam pelo menos dos primeiros tempos da República; uma tradição chegava até a atribuir
sua criação ao rei Numa, um sabino escolhido como segundo rei de Roma. Sábio,
pacífico e religioso, dedicou-se a elaboração das primeiras leis de Roma, assim
como dos primeiros ofícios religiosos da cidade e do primeiro calendário. É verdade
que, por tempo, elas tiveram de levar uma existência bastante humilde, pois os historiadores
e os monumentos só raramente as mencionam; não sabemos muito bem como eram organizadas.
Desde de Cícero, sua quantidade tornara-se considerável e elas
começavam a desempenhar um papel. Nesse momento, diz J.-P
Waltzing (1857-1929), “todas as classes de trabalhadores parecem possuídas
pelo desejo de multiplicar as associações profissionais” (cf. Durkheim, 2010).
Mas
o caráter desses agrupamentos se modificou; eles acabaram tornando-se “verdadeiras
engrenagens da administração” (cf. Altbach; Knight, 2007). Desempenhavam
funções oficiais; cada profissão era vista como um serviço público, cujo
encargo e cuja responsabilidade ante o Estado cabiam à corporação correspondente.
Foi a ruína da instituição. Porque, segundo Durkheim, essa dependência em
relação ao Estado não tardou a degenerar numa servidão intolerável que os
imperadores só puderam manter pela coerção. Todas as sortes de procedimentos
foram empregadas para impedir que os trabalhadores escapassem das pesadas
obrigações que resultavam, para eles, de sua própria profissão. Evidentemente,
tal sistema de trabalho só podia durar enquanto o poder político fosse o
bastante para impô-lo. É por isso que ele não sobreviveu à dissolução do Império.
Aliás, as guerras civis e as invasões haviam destruído o comércio e a indústria;
os artesãos aproveitaram essas circunstâncias para fugir das cidades e se
dispersar nos campos. Assim, os primeiros séculos de nossa era viram
produzir-se um fenômeno que devia se repetir tal qual no fim do século XVII: a
vida corporativa se extinguiu quase por completo. Mal subsistiram alguns
vestígios seus, na Gália e na Germânia, nas cidades de origem romana. Portanto,
naquele momento, um teórico tivesse tomado consciência da situação, teria
provavelmente concluído, como o fizeram mais tarde os economistas, que as
corporações não tinham, ou, em todo caso, não tinham mais razão de ser, que
haviam desaparecido irreversivelmente, e sem dúvida teria tratado de retrógrada
e irrealizável toda tentativa de reconstituí-las. Os acontecimentos
desmentiriam uma tal profecia.
Elas renasceram por volta dos
séculos XI e XII. Desde esse momento, diz Emile Levasseur, “os artesãos começam
a sentir a necessidade de se unir e formam suas primeiras associações”. Em todo caso, no século XII, elas estão outra
vez florescentes e se desenvolvem até o dia em que começa para elas uma nova
decadência. Uma instituição tão persistente assim não poderia depender de uma
particularidade contingente e acidental; muito menos ainda é possível admitir
que tenha sido o produto de não sei que “aberração coletiva”. Se, desde a
origem da cidade até o apogeu do Império, desde o alvorecer das sociedades
cristãs aos tempos modernos, elas foram necessárias, é porque correspondem a
necessidades duradouras e profundas. Sobretudo, vale lembrar que o próprio fato
de que, depois de terem desaparecido uma primeira vez, reconstituíram-se por si
mesmas e sob uma nova forma, retira todo e qualquer valor ao argumento que
apresenta sua desaparição violenta no fim do século passado como uma prova de
que não estão mais em harmonia com as novas condições de existência coletiva. A
necessidade que todas as grandes sociedades civilizadas sentem de chamá-las de
volta à vida é o mais seguro sintoma evidente dessa supressão radical não era um remédio
e de que a reforma de Jacques Turgot requeria outra que não poderia ser indefinidamente
adiada. Mas nem toda organização corporativa é anacronismo histórico. Acreditamos que ela seria chamada a desempenhar,
nas sociedades contemporâneas, menos pelo papel considerável que julgamos
indispensável, por causa não dos serviços econômicos que ela poderia prestar,
mas da influência moral que poderia ter. O que vemos antes de mais nada no grupo
profissional é um poder moral capaz de conter os egoísmos individuais, de manter
no coração dos trabalhadores um sentimento vivo de solidariedade comum, de
impedir que a “lei do mais forte” se aplique de maneira brutal nas relações
industriais e comerciais.
Mas
é preciso evitar estender a todo regime corporativo o que pode ter sido válido
para certas corporações e durante um curto lapso de tempo de seu
desenvolvimento. Longe de ser atingido por uma sorte de enfermidade moral
devida à sua própria constituição, foi sobretudo um papel moral que ele representou
e continua representando ainda, na maior parte de sua história. Isso é
particularmente evidente no caso das corporações romanas. Sem dúvida, a
associação lhes dava mais forças para salvaguardar, se necessário, seus interesses
comuns. Mas era isso apenas um dos contragolpes úteis que a instituição
produzia, lembra Durkheim: “não era sua razão de ser, sua função principal.
Antes de mais nada, a corporação era um colégio religioso”. Cada uma tinha seu
deus particular, cujo culto quando ela tinha meios, era celebrado num templo
especial. Do mesmo modo que cada família tinha seu Lar familiaris, cada
cidade seu Genius publicus, cada colégio tinha seu deus tutelar, Genius
collegi. Naturalmente, o culto profissional não se realizava sem festas,
que eram celebradas em comum sem sacrifícios e banquetes. Todas as espécies de
circunstâncias serviam, aliás, de ocasião para alegres reuniões, além
disso, distribuições de víveres ou de dinheiro ocorriam com frequência às
expensas da comunidade. Indagou-se se a corporação tinha uma caixa de auxílio,
se ela assistia regularmente seus membros necessitados, e as opiniões a esse
respeito são divididas. Mas o que retira da discussão parte de seu interesse e
de seu alcance é que esses banquetes comuns, mais ou menos periódicos, e as
distribuições que os acompanharam serviam de auxílios e faziam não raro as
vezes de uma assistência direta. Os infortunados sabiam que podiam contar com
essa subvenção dissimulada. Como corolário do caráter religioso, o colégio de
artesãos era, ao mesmo tempo, um colégio funerário. Unidos, como gentiles,
num mesmo culto durante sua vida, os membros da corporação queriam, como eles,
dormir juntos seu derradeiro sono.
A
importância tão considerável que a religião tinha em sua vida, tanto em Roma
quanto na Idade Média, põe particularmente em evidência a verdadeira natureza
de suas funções; porque toda comunidade religiosa constituía, então, um
ambiente moral, do mesmo modo que toda disciplina moral tendia necessariamente
a adquirir uma forma religiosa. A partir do instante em que, no seio de uma sociedade
política, certo número de indivíduos tem em comum ideias, interesses,
sentimentos, ocupações que o resto da população não partilha com eles, é
inevitável que, sob a influência dessas similitudes eles sejam atraídos uns
para os outros, que se procurem, teçam relações, se associem e que se forme
assim, pouco a pouco, um grupo restrito, com sua fisionomia especial da
sociedade em geral. Porque é impossível que homens vivam juntos, estejam
regularmente em contato, sem adquirirem o sentimento do todo que formam por sua
união, sem que se apeguem a esse todo, se preocupem com seus interesses e o
levem em conta em sua conduta. Enfim, basta que esse sentimento se precise e se
determine, que, aplicando-se às circunstâncias mais ordinárias e mais importantes
da vida, se traduza em fórmulas definidas, para que se tenha um corpo de regras
morais em via de se constituir. Ao mesmo tempo que se produz por si mesmo e
pela força das coisas, esse resultado é útil e o sentimento de sua utilidade
contribui para confirma-lo. A vida em comum é atraente, ao mesmo tempo que coercitiva.
Para o ponto de vista conservantista do método analítico durkheimiano, a coerção
é necessária para levar o homem a se superar, a acrescentar à sua natureza
física outra natureza; mas, à medida que aprende a apreciar os encantos dessa
nova existência, ele contrai a sua necessidade e não há ordem de atividade que
não os busque com paixão.
A moral doméstica não se formou de outro modo. Por causa do prestígio que a família conserva ante nossos olhos, parece-nos que, se e ela foi e é sempre uma escola de dedicação e de abnegação, o foco por excelência da moralidade, é em virtude de características bastante particulares que teria o privilégio e que não se encontrariam em ouro lugar em nenhum grau. Costuma-se crer que exista na consanguinidade uma causa excepcionalmente poderosa de aproximação moral. A prova está em que, num sem-número de sociedades, os não-consanguíneos são muitos no seio da família; o parentesco dito artificial se contrai então com grande facilidade e exerce todos os efeitos do parentesco natural. Inversamente, acontece com grande frequência consanguíneos bem próximos serem, moral ou juridicamente, estranhos uns aos outros; é, por exemplo, o caso dos cognatos na família romana. Portanto, a família não deve suas virtudes à unidade de descendência: ela é, simplesmente, um grupo de indivíduos que foram aproximados uns dos outros, no seio da sociedade política, por uma comunidade mais particularmente estreita de ideias, sentimentos e interesses. A consanguinidade pode ter facilitado essa concentração, pois ela tem por efeito natural inclinar as consciências umas em relação às outras. Outros fatores intervieram: a proximidade material, a solidariedade de interesses, a necessidade de união contra um perigo comum, ou simplesmente de se unir, foram causas muito mais poderosas de comunicação social no processo produtivo.
Mas, para dissipar todas as prevenções, adverte Durkheim, para mostrar bem que o sistema corporativo não é apenas uma instituição do passado, seria necessário mostrar que transformações ele deve e pode sofrer para se adaptar às sociedades modernas, pois é evidente que ele não pode ser o que era na Idade Média. Para tanto, seriam necessários estudos comparativos que não estão feitos e que não podemos fazer de passagem. Talvez, porém, não seja impossível perceber desde já, mas apenas em suas linhas mais gerais, o que foi esse desenvolvimento. O historiador que empreende resolver em seus elementos a organização política dos romanos não encontra, no decurso de sua análise, nenhum fato que possa adverti-lo da existência das corporações. Elas não entravam na constituição romana, na qualidade de unidades definidas e reconhecidas. Em nenhuma das assembleias eleitorais, em nenhuma das reuniões do exército, os artesãos se reuniam por colégios, em parte alguma o grupo profissional tomava parte, como tal, na vida pública, seja em corpo, seja por intermédio de representantes regulares. No máximo, a questão pode se colocar a propósito de três ou quatro colégios que se imaginou poder identificar com algumas das centúrias constituídas por Sérvio Túlio, a saber: tignari (construtores de casas), aerari (corporação clerical), tibicines (monumento funerário), corporações cornicínes (espécie de pizza enrolada), mas o fato não está bem estabelecido.
Quanto
às outras corporações, estavam certamente fora da organização oficial do povo
romano. Ora, por muito tempo os ofícios não foram mais do que uma forma
acessória e secundária da atividade social dos romanos. Roma era essencialmente
uma sociedade agrícola e guerreira. No primeiro era dividida em gentes e
em cúrias; a assembleia por centúrias refletia antes a organização militar. Quanto
às funções industriais, eram demasiado rudimentares para afetar a estrutura
política da cidade. Aliás, até um momento bem avançado da história romana, os
ofícios permaneceram marcados por um descrédito moral que não lhes permitia
ocupar uma posição regular no Estado. Sem dúvida, veio um tempo em que sua
condição social melhorou. Mas a própria maneira como foi obtida essa melhora é
significativa. Para conseguir fazer respeitar seus interesses e desempenhar um
papel na vida pública, os artesãos tiveram de recorrer a procedimentos
irregulares e extralegais. Só triunfaram sobre o desprezo de que eram objeto
por meios de intrigas, complôs, agitação clandestina. E, se, mais tarde,
acabaram sendo integrados ao Estado para se tornar engrenagens da máquina
administrativa, essa situação como foi, para eles, uma conquista gloriosa, mas uma
penosa dependência; se entraram então no Estado, não foi para nele ocupar a posição
a que seus serviços sociais podiam lhes dar direito, mas simplesmente para
poder ser mais bem vigiados pelo poder governamental.
Quando as cidades se emanciparam da tutela senhorial, quando a comuna se formou, o corpo de ofícios, que antecipara e preparara esse movimento, tornou-se a base da constituição comunal. De fato, segundo J.-P Waltzing, “em quase todas as comunas, o sistema político e a eleição dos magistrados baseiam-se na divisão dos cidadãos em corpos de ofícios”. Era costumeiro votar-se por corpos de ofícios e elegiam-se ao mesmo tempo os chefes da corporação e os da comuna. – Em Amiens, por exemplo, os artesãos se reuniam todos os anos para eleger os prefeitos de cada corporação ou bandeira (bannière); os prefeitos eleitos nomeavam em seguida doze escabinos, que nomeavam outros doze, e o escabinato apresentava, por sua vez, aos prefeitos das bandeiras três pessoas, dentre as quais eles escolhiam o prefeito da comuna... Em algumas cidades, o modo de eleição era ainda mais complicado, mas, em todas, a organização política e municipal era intimamente ligada á organização do trabalho. Inversamente, assim como a comuna era um agregado de corpos de ofícios, o corpo de ofício era uma comuna em miniatura, pelo próprio fato de que fora o modelo do qual a instituição comunal era a forma ampliada e desenvolvida. Queremos dizer com isso, que sabemos o que a comuna foi na história de nossas sociedades, de que se tornou, com o tempo, a pedra angular. Ipso facto, já que era uma reunião de corporações e que se formou com base no tipo da corporação, foi esta em última análise, que serviu de base a todo o sistema político oriundo do movimento comunal. Vê-se que, em sua trajetória, ela cresceu singularmente em importância e dignidade. Em Roma, começou estando quase fora dos contextos normais, ela serviu de marco elementar para sociedades contemporâneas. É um motivo para que recusemos a considera-la uma instituição arcaica, destinada a desaparecer.
A
obra do sociólogo não é a do homem público, assevera Émile Durkheim. O que a experiência
do passado demonstra, antes de mais nada, é que os marcos do grupo profissional
devem guardar sempre uma relação com os marcos da vida econômica; foi por ter
faltado com essa condição que o regime corporativo desapareceu. Portanto, já
que o mercado, de municipal que era, tornou-se nacional e internacional, a corporação
deve adquirir a mesma extensão. Em vez de ser limitada apenas aos artesãos de uma cidade, ela deve ampliar-se, de maneira a compreender todo os membros da
profissão, dispersos em toda a extensão do território, porque, qualquer que
seja a região em que se encontram, quer no campo, todos são solidários uns com
os outros e participam da vida comum. Já que essa vida comum é, sob certos
aspectos, independente de qualquer determinação territorial, tem que ser criado
um órgão apropriado, que a exprima e regularize seu funcionamento. Por causa de
suas dimensões, tal órgão estaria necessariamente em contato relacional com o
órgão central da vida coletiva, pois os acontecimentos importantes o bastante
para envolverem toda uma categoria de empresas industriais num país tem
necessariamente repercussões bastante gerais, que o Estado não pode sentir, o
que o leva a intervir. Não foi sem fundamento que o poder real tendeu
indistintamente a não deixar fora de sua ação a grande indústria. Era
impossível que ele se desinteressasse por uma forma de atividade que por sua
natureza, é capaz de afetar o conjunto da sociedade. Essa organização unitária
para o conjunto de um mesmo país não exclui, de modo algum, a formação
de órgãos secundários, que compreendam os trabalhadores similares de uma mesma
região ou localidade, e cujo papel seria especializar ainda mais a regulamentação
profissional segundo as necessidades locais ou regionais. A vida econômica
poderia ser regulada e determinada, sem nada perder de sua diversidade.
Por isso mesmo, o regime corporativo seria protegido contra essa propensão ao imobilismo,
que lhe foi frequente e justamente criticada no passado, porque é um defeito
que resultava do caráter estreitamente comunal da corporação.
Na
síntese durkheimiana representada sobre o lugar de análise das corporações
deve-se até supor que esteja destinada a se tornar a base, ou uma das bases
essenciais de nossa organização política. Ela começa por ser exterior ao
sistema social, tenderá a se empenhar de forma cada vez mais profunda nele, à
medida que a vida econômica se desenvolve. Ela foi outrora a a divisão elementar
da organização comunal. Agora que a comuna, de organismo autônomo que era outrora,
veio se perder no Estado, como o mercado municipal no mercado nacional, acaso
não é legítimo pensar que a corporação também deveria sofrer uma transformação
correspondente e tornar-se a divisão elementar do Estado, a unidade política
fundamental? A sociedade, em vez de continuar sendo o que ainda é hoje, um
agregado de distritos territoriais justapostos, tornar-se-ia um vasto sistema
de corporações nacionais. Mas essas divisões geográficas são, em sua maioria,
artificiais e já não despertam em nós sentimentos profundos. O espírito
provinciano desapareceu irremediavelmente: o patriotismo de paróquia tornou-se
um arcaísmo que não se pode restaurar à vontade. Para o sociólogo uma nação só
se pode manter se, entre o Estado e os particulares, se intercalar toda uma
série de grupos secundários bastante próximos dos indivíduos para atraí-los
fortemente em sua esfera de ação e arrastá-los, assim, na torrente geral da
vida social. Isso não quer dizer, porém, que a corporação seja uma espécie de
panaceia capaz de servir a tudo. Será necessário que, em cada profissão, um
corpo de regras se constitua, fixando a quantidade de trabalho, a justa remuneração
dos diferentes funcionários, seu dever para com os demais e para com a
comunidade, etc. Estaremos, pois, não
menos que atualmente, em presença de uma tábula rasa.
A vida social deriva inexoravelmente de uma dupla fonte: a similitude das consciências e a divisão do trabalho social. O indivíduo é socializado no primeiro caso, porque, não tendo individualidade própria, confunde-se como seus semelhantes, no seio de um mesmo tipo coletivo; no segundo, porque, tendo uma fisionomia e uma atividade pessoais que o distinguem dos outros, depende deles na mesma medida em que se distingue e, por conseguinte, da sociedade que resulta de sua união. Esta divisão dá origem às regras jurídicas que determinam as relações das funções divididas, mas cuja violação acarreta apenas medidas reparadoras sem caráter expiatório. De todos os elementos técnicos e sociais da civilização, a ciência nada mais é que a consciência levada a seu mais alto ponto de clareza. Nunca é demais repetir que para que as sociedades possam viver nas condições de existência que lhes são dadas, é necessário que o campo da consciência se estenda e se esclareça. Quanto mais obscura uma consciência, mais é refratária à mudança social, porque não vê depressa o que é necessário mudar. Nem em que sentido é preciso mudar. Uma consciência esclarecida sabe preparar de antemão a maneira de se adaptar a essa mudança risível. Eis porque é necessário que a inteligência guiada disciplinarmente pela ciência adquira uma importância maior no curso da vida coletiva. Tais sentimentos são capazes de inspirar não apenas esses sacrifícios cotidianos, mas também atos de renúncia completa e de abnegação exclusiva. A sociedade aprende a ver os membros que a compõem como cooperadores que ela não pode dispensar e para com os quais tem deveres. Na realidade, a cooperação também tem sua moralidade intrínseca. Há apenas motivos para crer, que, em nossas sociedades, essa moralidade ainda não tem todo o desenvolvimento que lhes seria necessário. Daí resulta duas grandes correntes da vida social, que correspondem dois tipos de estrutura não menos diferentes. Dessas correntes, a que tem sua origem nas similitudes sociais ocorre quando um grupo é capaz de criar e reproduzir para si e para os outros a princípio só e sem rival.
Bibliografia
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