sexta-feira, 31 de julho de 2020

Maria Sylvia de Carvalho Franco – Karl Marx & Discursos Didascálicos.

O próprio Marx foi intensamente explorado em discursos didascálicos”. Maria Sylvia de Carvalho Franco

 

                    

            Maria Sylvia Carvalho Franco formou-se em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP) em 1952 e foi colega de turma do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Doutorou-se em 1964, sob a orientação do sociólogo Florestan Fernandes, com a tese: Homens Livres na Velha Civilização do Café (FFLCH/USP), considerada por um júri de intelectuais um dos 20 ensaios mais significativos da história do país. Maria Sylvia dirigiu o Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) nos anos mais repressivos da ditadura militar (1964-1979). Tornou-se Livre-Docente em 1970 e professora titular em 1989. A Universidade de São Paulo tem um padrão: o teor de herança europeia, de ordem liberal e positivista trazido por aqueles célebres sociólogos, filósofos e cientistas políticos franceses. Desde Roger Bastide, que tem uma carga formalista enorme, até os que seguem a orientação de Émile Durkheim, um dos pais da sociologia moderna. Essa herança vem modelando a esfera social de uma tradição acadêmica que é calcada na pesquisa, fortemente de base tecnológica.  

             O sistema de Cátedras implantado na Universidade de São Paulo modificar-se-ia com a criação dos Departamentos na década de 1970. Tornava difícil a possibilidade de ascensão para mulheres. Muitas acabavam nem tentando os cargos mais altos ou a titulatura. Outros nem os perseguiam. As condições objetivas não eram realmente as mesmas igualmente para todos, o que não impediria que as mulheres escrevessem trabalhos clássicos, do ponto de vista acadêmico, como por exemplo, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens Livres na Ordem Escravocrata (1964); Paula Beiguelman, A Formação do Povo no Complexo Cafeeiro: Aspectos Políticos (1978); Maria do Carmo Campello de Souza, Estado e Partidos Políticos no Brasil (1930-1964) (1976); Eunice Ribeiro Durham, A Caminho da Cidade: A Vida Rural e a Migração para São Paulo (1973); Maria Isaura Pereira de Queiroz, O Mandonismo Local na Vida Política Brasileira (1969), entre outros.  Maria Isaura P. de Queiroz, por exemplo, nunca pretendeu a titulação máxima, seja a regência da Cátedra, seja a Titulatura, por não querer ter a vida de pesquisadora e de professora atrapalhada pelas infindáveis atividades burocráticas e  administrativas típicas desses cargos. Mas talvez não corresponda à realidade: teve de concordar em ceder para Azis Simão o cargo de Titular.

            A primeira grande contribuição de Azis Simão para a sociologia brasileira foi publicada em 1947: uma pesquisa sobre o voto operário em São Paulo. Pela primeira vez, a universidade estudava o comportamento político proletário. Estava definida uma linha de pesquisas que pautaria a carreira universitária do sociólogo e professor. A tese de Livre-Docência, defendida em 1964, transformou-se no livro: Sindicato e Estado. Suas Relações na Formação do Proletariado de São Paulo (1966), que aborda a gênese e formação do proletariado paulista. Contudo, tornou-se professor em 1957, vencendo os obstáculos impostos por sua cegueira. A nomeação oficial só veio dois anos depois de já estar trabalhando. Azis foi reprovado no exame e suas aulas, durante esse período, eram acompanhadas pela designação de um corpo médico. A contratação só pôde se dar oficialmente por meio de uma Lei Especial, apesar de o diploma de Azis Simão credenciá-lo ao magistério. Nascido em 1° de maio de 1912, tinha uma vocação política e vinculou-se ao movimento operário. Ligado aos intelectuais modernistas, também atuou no jornalismo e participou ativamente da oposição ao Estado Novo. Foi um dos fundadores da União Democrática Socialista. Azis Simão morreu em 1990 deixando sua contribuição e seu exemplo afetivo de vida e superação.


A chave para explicar o ressurgimento da escravidão nas empresas açucareiras,  segundo Franco (1978: 30 e ss.), está na organização destas últimas, determinada pela estrutura dos mercados capitalistas, que já envolviam a interferência nos centros produtores. É a isso que se deve a configuração do latifúndio, das grandes unidades de produção para a obtenção regular quantitativamente do produto, mediante trabalhadores numerosos, conjugados e controlados por sujeitos que detinham a propriedade do trabalho. Trata-se de uma situação social em que se opera a dissociação radical entre o produtor direto, os meios de produção e o produto do trabalho. Significava isto que se determinava historicamente a constituição de uma categoria de homens expropriados dos meios de produção e postos a serviço de outros. O recurso ao trabalho escravo poderia ser explicado erroneamente com o argumento de que na colônia seria impossível a preservação de homens livres, na condição de expropriados, dada a abundância de terras, onde todos poderiam encontrar meios de subsistência. O entrosamento entre produção colonial e comércio capitalista, levou à organização das grandes propriedades latifundiárias, numa época em que jamais poderiam ter sido utilizados homens livres, pela simples e forte razão de que o sujeito expropriado   obrigado a vender sua força de trabalho não existia como categoria social, capaz de preencher as necessidades de mão-de-obra requeridas pela produção colonial. 

         Ipso facto, a formação dos empreendimentos açucareiros não só implicou a exploração sistemática e maciça de homens expropriados, mas seu próprio crescimento, integrado aos mercados em expansão, estava condicionado a um crescimento regular de mão-de-obra. Inscrita no movimento de expansão do setor açucareiro, a escravidão moderna representa um momento importante na organização social do trabalho, em vista de objetivos econômicos. Desse modo, impõe-se a necessidade de uma massa de homens disponíveis, prontos para serem incorporados ao processo de produção. A escravidão representa, face à exigência, a possibilidade de mobilização rápida e plástica de mão-de-obra, adequando-a às necessidades da produção crescente. Correspondendo a essas exigências, a empresa açucareira assume a forma de grande unidade de produção, assentada numa base técnica simples, necessária e estável e cuja via de crescimento dependia da extensão, em termos absolutos, da exploração dos fatores de produção.              

          A grande propriedade colonial sintetizou dois princípios reguladores da vida econômica: produção direta dos meios de existência e produção de lucro, que são essencialmente contraditórios. Na história de acumulação do capital, a particularidade brasileira, as duas práticas são constitutivas uma da outra. A produção e o consumo diretos encontram sua razão de ser na atividade mercantil, como meios determinado juntamente com a extensão das terras apropriadas, a tecnologia rudimentar, a escravaria. A combinação colonial dos fatores de produção assentou, em larga medida, na possibilidade do latifúndio auto-suprir-se, concebendo desse modo o vínculo entre a produção direta dos meios de vida e a produção mercantil, como práticas que se engam e se determinam, não correrá o risco de perder o significado histórico da economia e da sociedade coloniais. Para compreender o curso da história colonial, é preciso acentuar que a produção de gêneros tropicais fez parte desse movimento, em que se generalizam as relações de troca. Contudo, com o latifúndio e a escravaria se instala um modo de produção presidido pelo capital, vale dizer, um sistema particular de dominação social.

           Neste sentido, o trabalho escravo inscrito na modalidade particular de produção definida na Colônia, configura-se como contrapartida necessária do trabalho livre na Europa. O desenvolvimento de ambos e o crescimento dos mercados, na Europa e na Colônia, formaram uma rede unitária de determinações. Também entrelaçado nessa rede, está o destino do homem livre e pobre no Brasil, com sua existência quase dispensável, mas que por longo tempo o colocou a salvo de transformar-se num assalariado. A contradição não antagônica é que o trabalho livre na Europa e na Colônia se negam e se determinam através da mediação da escravidão. A modalidade de dominação que se desenvolveu na sociedade colonial apresenta regularidades, muito embora esteja marcada pelas diferenças existentes entre o estatuto do escravo e do homem livre. Em seu sentido mais profundo e mais amplo, nunca é demais repetir, essa dominação social tem suas raízes engendradas no regime de produção estabelecida, e mais especificamente, na estrutura das propriedades agrícolas. A escravidão, que nelas concentrou pessoal numeroso, e o caráter de latifúndio, que as manteve isoladas umas das outras e distantes dos povoados, tornaram necessária uma complicada diferenciação de funções internas relativas ao cultivo de gêneros alimentares, indústria doméstica, oficinas de manutenção, serviços religiosos etc., lhes conferiu o cunho que chama atenção: a aparência de uma unidade autônoma de produção e consumo.

        A tendência é conselheira quando temos de um lado, um quadro de pensamento que vai se formando e, de outro, que não se mistura, não amadurece no plano das ideias, pois encontra dificuldade da corporação admitir as hierarquias, as subjetividades culturais das práticas de trabalho e das práticas em grupos que se constituem na troca de favores.  O Caso da Vara é um dos contos mais famosos de Machado de Assis. Publicado inicialmente na Gazeta de Notícias, no ano de 1891.  Neste conto, Machado tem como escopo o drama pessoal de Damião, o protagonista, que deseja abandonar o seminário. Damião, seminarista sem vocação, fugido do seminário, troca a vara com que Sinhá Rita irá castigar a negra Lucrécia - pelo trabalho não terminado - pelos favores que a mesma lhe prestará intercedendo junto ao padrinho e, por este ao pai, no caso da fuga do seminário. Neste conto, que o autor situa em 1850, fica claro a relação de favor que caracterizava as relações sociais no século XIX brasileiro. Pode-se perceber a intenção do autor em analisar as cruéis relações de dominação entre seres iguais. Todos subjugados por um sistema político e social marcado pelo autoritarismo, mas que não hesitam em reproduzir e legitimar a opressão de que são as próprias vítimas. O ensaio Caso da Vara representa um dos exemplos típicos da crítica analítica machadiana, sutil, mas repleta de uma ironia amarga tendo como escopo a educação escolar. 

          Sobre seu processo de formação técnico-metodológico Maria Sylvia de Carvalho Franco responde da seguinte forma: - Parece-me que o melhor como resposta, é reconstituir um pouco a atmosfera intelectual dos anos 1950 e 1960. Havia a preocupação de estabelecer, entre nós, a sociologia e a antropologia como disciplinas científicas autônomas e rigorosas, afastando-se tudo o que se considerava “impressionista” na discussão metodológica. Duas premissas parecem ter conduzido a essa orientação. Primeiro a própria criação da Faculdade, o modo como foi implantada. A tradição francesa, com seu racionalismo de um lado, e seu positivismo de outro, veio ao encontro das tendências autoritárias do setor liberal paulista. Nem foi por outro motivo que o grupo [em torno de] de O Estado de S. Paulo, ligado ao organicismo e ao evolucionismo, empenhou-se em trazer a missão de jovens agregés. Vindo com eles, o cientificismo passou pelas senhoras diletantes, como salienta Lévi-Strauss sem dar-se conta de que isto não acontecia por acaso e do quanto o saber formal e abstrato de que era portador vinculava-se à burguesia que o festejava. Nos setores de Ciências Sociais, Émile Durkheim e Marcel Mauss tiveram grande importância. Mais tarde, os alemães, notadamente Max Weber e Ferdinand Tönnies, foram lidos com espírito análogo, atravessados pelo interesse “positivo”. Os conceitos a priori do último, ou as formas lógicas do primeiro, foram compreendidos pelo prisma empirista. Preparado este campo, o desenvolvimentismo dos anos 1950 e 1960 teve seara fértil.

            Os conceitos a priori do último, ou as formas lógicas do primeiro, foram compreendidos pelo mesmo prisma analítico e empirista. A passagem do orgânico para o mecânico, do tradicional para o moderno, da comunidade para a sociedade, do estamento para a classe, tornou-se a moeda corrente do pensamento, parâmetros propícios a colher os resultados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe. Criticava-se Parsons, mas prevalecia sua leitura “sistemática” dos alemães, aqui difundida pela versão de Gino Germani. Nessa altura, o próprio Marx foi intensamente explorado em discursos didascálicos, sucedendo-se os esquemas doutrinários expressos pelas fórmulas estabelecidas, sem maiores preocupações de ordem conceituai. Misturava-se, deste modo, noções dos mais divergentes setores intelectuais, mas não como simples “bovarismo”, tal como dizia Cruz Costa. Esta abstração - realidade brasileira - até hoje constitui a varinha mágica de valorização, bastante autoritária, dos estudos chamados “concretos”. Não ocorre, um só instante, a esses defensores do "real", que este último, usado como Abre-te-Sésamo, não passa de metafísica deplorável. Esta limitação fechou o campo à própria compreensão da dialética moderna. Tome-se, por exemplo, o problema do materialismo. Dadas as restrições definidas pelas famosas três fontes - filosofia clássica alemã, socialismo francês e economia política inglesa - sua gênese em Marx é entendida apenas em função desses resultados históricos. Jamais se questiona o trabalho de remodelação realizado pelo renascimento inglês, pelas luzes francesas e pela revolução teológica alemã, frente ao materialismo greco-romano. Não é por mera erudição acadêmica que o jovem Marx inicia seu trabalho com a tese [de doutorado] sobre a Diferença [da Filosofia da Natureza] dos Sistemas de Demócrito e Epicuro, e termina com a inversão completa do idealismo, propondo, no Capital e na Critica do Programa de Gotha, uma distinção originária entre Natureza e a alienação radical vigente na sociedade capitalista.

        De outra parte, o positivismo sempre foi contrário ao liberalismo e este sempre se moveu em seu campo originário de rompimento com as bases teológicas do saber e do poder. Entre nós, uma seleção muito precisa foi operada no campo da consciência burguesa, em continuidade com a visão acadêmica herdada dos franceses: o pensamento sofreu, por assim dizer, um corte nítido e arbitrário no século XVII. De um lado, isto é compreensível pela vulgarização do iluminismo, onde o medievo confunde-se com as trevas. Conserva-se, entre nós, de preferência este lado das Luzes, sem incorporar sua contrapartida necessária: a valorização do pensamento anterior e independente do cristianismo. Até hoje (1981) o Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP). não conta com um curso de Filosofia Medieval, visto como requinte de especialização, e os próprios cursos de Filosofia Antiga não recebem o apoio de que necessitam. No campo de análise da filosofia os rumos de interpretação foram diversos. Houve maior cautela teórica e até mesmo certa “polícia do conceito”, como se dizia então, sobretudo no terreno da tradição dialética, mas sem grande repercussão construtiva. A divisão do trabalho intelectual, valorizando o tecnicismo, fechava, pela especialização, todo contato mais profícuo (...). Justamente por causa das restrições do cientificismo, as pessoas que se aventuravam a refletir sobre seus próprios procedimentos [metodológicos] de trabalho ficavam sem recursos [analíticos].  

            Ler interminavelmente Descartes, segundo a ordem das razões, é cortar de modo arbitrário uma questão subjacente ao próprio texto do filósofo: a recusa de fundar o saber sobre a ordem das matérias. Ora, este é o problema-chave de toda a controvérsia teológico-política, simultaneamente epistemológica, dessa virada dos tempos. Quando nos encontramos face aos textos materialistas e anti cartesianos do século XVIII, como o anônimo Alma Material, constatamos a força com que se estabelecia a junção materialismo - ateísmo, no ataque desencadeado pela política religiosa. Descartes aí surge, num primeiro momento, como baluarte da Igreja, antes da segunda investida dos católicos aristotélicos contra sua obra. Querer captar a articulação interna do discurso cartesiano, sem considerar rigorosamente o ponto em que ele se torna significativo, é sem dúvida passar longe de sua “ordem das razões”. Foi nesse ambiente intelectual que me formei – afirma Maria Sylvia - e contra ele procurei pensar. Por exemplo, foi com o acervo de conhecimentos recebidos em Sociologia e Antropologia que iniciei uma pesquisa sociológica sobre comunidade, num vilarejo do interior de São Paulo, em região tida por tradicional. Com surpresa – afirma Franco - comecei a constatar que nem teórica, nem empiricamente, minhas observações tinham qualquer coisa a ver com as chamadas relações comunitárias, de parentesco, de vizinhança ou de trabalho.

Depois de demorada, atenta e infrutífera pesquisa de campo, e levada pelas pistas que aí se apresentaram, dei-me conta de que a única possibilidade de compreender o que se passava diante de mim seria através de uma reconstituição histórica da vida caipira. Nos arquivos, nova surpresa: a violência que os esquemas acadêmicos atribuíam essencialmente à escravidão e esta com sua violência e irracionalidade, é contraposta à exploração capitalista racional; a violência colonial continua explicada tautologicamente pelo trabalho compulsório, revelava-se enraizada em outro solo, mais compreensivo, permeando a sociedade como um todo, inclusive as “harmoniosas” comunidades.  Pouco a pouco o quadro foi tomando forma e o recurso ao regime escravista - sua própria violência - foi se determinando no interior do sistema capitalista, não como elemento justaposto pela atividade mercantil, mas como recurso rápido e plástico para suprir as necessidades de organização do trabalho postas pelas novas articulações da produção e da circulação de mercadorias. Com essa trajetória da sociologia à história, à filosofia e à literatura; da pesquisa de campo ao arquivo e à análise e texto - minha carreira tem sido contestada por alguns colegas “especialistas”. A exigência de não me fechar em compartimentos estanques tem me valido, embora com dificuldades, a vantagem de pensar mais livremente e tem me permitido também - a experiência com alunos é decisiva - ajudar outras pessoas a refletir com independência, a usufruir da cultura e ser responsável na atividade intelectual. Nos últimos anos venho me empenhado - diante da febre do popular, do prático, do nacional - em discutir as falácias e componentes de dominação, quando não a irresponsabilidade, presentes na imediatez das preocupações com a realidade brasileira.

Entendemos que o regime iniciado com o golpe de Estado em 1° de abril de 1964, houve um aumento permanente do autoritarismo, marcado na área da educação com o banimento de organizações estudantis como a União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1967, consideradas subversivas. Em 1969, foi tornado obrigatório o ensino de Educação Moral e Cívica nos graus de ensino sendo que, no ensino secundário, a denominação mudava para a famigerada Organização Social e Política Brasileira (OSPB). Em 1964, no contexto da chamada Guerra Fria, foram assinados os acordos MEC-Usaid, entre o Ministério da Educação e a Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos, através dos quais foram introduzidas algumas mudanças de caráter tecnicista. Em 1968, a Lei de Diretrizes e Bases passaria por mudanças significativas, com base em diretrizes do Relatório Atcon (de Rudolph Atcon) e do Relatório Meira Mattos, coronel da Escola Superior de Guerra. Foram negociados secretamente e só se tornaram públicos em novembro de 1966 após intensa pressão política e, sobretudo popular. Foram estabelecidos entre o Ministério da Educação (MEC) do Brasil e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), na sigla em inglês para reformar o ensino brasileiro de acordo com padrões impostos pelos Estados Unidos da América (EUA). Apesar da ampla discussão anterior sobre a educação, iniciada ainda em 1961, essas reformas foram implantadas pelos militares que tomaram o poder após o golpe militar de 1964.

O fiasco intitulado Movimento Brasileiro de Alfabetização foi criado em 1967, objetivando diminuir os níveis de analfabetismo entre os adultos. O primeiro presidente da Fundação Mobral foi o capelão militar Filipe Spotorno, substituído pelo banqueiro, economista, ministro da Fazenda e ministro do Planejamento Mário Henrique Simonsen. Este foi substituído por Arlindo Lopes Correia, engenheiro e antigo colaborador de Roberto Campos no Ministério do Planejamento desde 1964. A ineficiência pedagógica do Mobral foi comprovada através dos resultados estatísticos do Censo de 1980, que revelaram o aumento de 540 mil pessoas no número absoluto de analfabetos de 15 anos e mais no decênio 1970-1980. Entre os anos 1960 e 1970, foi realizada uma aparente “reforma universitária”, substituindo-se o sistema de Cátedras pelo de Departamentos ou Institutos, além de ocorrer o desmembramento das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL). Em 1971, com uma nova LDB, ocorreu a reforma dos ensinos fundamental e médio, durante o governo do general Médici. Foram integrados o primário, ginásio, secundário e técnico. Disciplinas como Filosofia (no 2º grau) desapareceram e outras foram aglutinadas em História e Geografia formaram, no 1º grau, os chamados “Estudos Sociais”. As Escolas Normais foram extintas. Em 1971, é inventado o “vestibular classificatório”, garantindo a vaga nas universidades apenas até o preenchimento das vagas disponíveis. Em 1982, foi retirada a obrigatoriedade do ensino profissional nas instituições de Ensino Médio.

            Um Colégio de Aplicação (CA) representa um tipo de escola, uma instituição de ensino fundamental e/ou médio, mantido e gerido por uma universidade publica em geral, e dedicado a aplicar as práticas pedagógicas nela desenvolvidas. Por ser ligado a uma universidade, um colégio de aplicação serve de campo de experimentação para inovações em didática e gestão escolar. Sua função social é integrar a relação teoria e prática na formação de alunos e professores. Universidades utilizam os colégios de aplicação como local de testes de hipóteses das pedagogias, bem como local de estágio profissional para os formandos das universidades. Os colégios de aplicação têm a função de pôr em prática inovações que sejam estudadas e pesquisadas no campo da Educação como área de conhecimento. Como parte integrante de universidades, os colégios de aplicação têm a função de disciplinar o tempo para o exercício das atividades de ensino, pesquisa e extensão. Universidades públicas manietadas por reconhecido Esprit de corps, por aquela capacidade inventada de um grupo fechado de manter a crença em uma instituição ou objetivo, diante de oposição ou dificuldades, não vislumbram nem por acidente constituir um Colégio de Aplicação.

         Os professores de ensinos fundamental e médio nesses colégios são também professores da universidade ainda que não dedicados ao ensino superior, muitos com titulação acadêmica de pós-graduação (Mestrado, Doutorado), que cumprem tarefas como pesquisadores, produzindo novas concepções de ensino e pesquisa e no plano da extensão acadêmica retornando o conhecimento (feedback) da instituição para a sociedade. Frequentemente, os alunos graduandos em cursos de Educação, Pedagogia e as tradicionais licenciaturas em Letras, Matemática, Química, História, Biologia, Geografia, Física e Educação Física de universidades que mantêm colégios de aplicação realizam obrigatoriamente seus estágios docentes nessas escolas. Mesmo inseridos na estrutura institucional de universidades, devido à história social da universidade, nem sempre os Colégios de Aplicação têm instalações localizadas no campus universitário. Alguns podem ter prédios próprios, separados dos campi principais. Mas a maioria das instituições públicas, no plano estadual e federal, não têm colégios de aplicação. A questão nevrálgica diz respeito a seguinte pergunta: o que é que os professores, os coordenadores e chefes de unidades colocaram em seu respectivos lugares?

A Universidade Federal de Santa Catarina, por exemplo, foi criada pela Lei n° 3.849, de 18 de dezembro de 1960, vinculada ao Ministério da Educação e Cultura. Em fevereiro de 1961, foi criado um Ginásio de Aplicação, visando a dar cumprimento ao que estabelece o Decreto-Lei n° 9.053, de 12 de março de 1946. O funcionamento do Ginásio de Aplicaçao proporcionou ao aluno do curso de Didática, a prática de ensino, requisito exigido para a formação pedagógica necessária ao desempenho da função docente do primeiro ciclo do Ensino Médio, o curso ginasial, na Universidade Federal de Santa Catarina, foi autorizado pela Portaria n° 673, de 17/07/61, da Diretoria do Ensino Secundário do Ministério de Educação o e Cultura, filiando-o ao Sistema Federal de Ensino. De acordo com depoimentos dos professores do Centro de Ciências da Educação que atuaram na década de 1960, os professores do Departamento de Métodos de Ensino do Centro de Educação (CED) eram também professores do Ginásio de Aplicação. Isto é, estes professores ministravam aulas nas diversas práticas de ensino e eram responsáveis pela regência de classe neste Colégio. Estes dados não constam das atas da Congregação da referida Faculdade. No primeiro ano de funcionamento, a Diretora do Instituto Estadual de Educação, de Florianópolis, definiu que duas turmas daquele estabelecimento de ensino passariam a constituir as 5ª e 6ª séries do Ginásio de Aplicação, conforme o Livro nº 1 de Atas da Congregação de Professores da Faculdade Catarinense de Filosofia, 1961 (cf. Sena, 1987).

No caso da professora Guiomar Osório de Sena, O Colégio de Aplicação no Contexto das Universidades Brasileiras (1987) é pesquisa pioneira por três motivos: a) foi realizada pelo emergente curso de Mestrado em Administração da Universidade Federal de Santa Catarina; b) trata-se de pesquisa teórica e empírica realizada entre 1978 a 1984, e na relação das entidades brasileiras cujos dirigentes são membros do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB) de dimensão nacional; c) com os dados colhidos na periodização da pesquisa no Catálogo das Universidades Brasileiras, existem cinquenta e nove (59) Instituições de Ensino Superior (IES) federais, oitenta e cinco (85) estaduais, cento e vinte e duas (122) pertencentes â rede municipal de ensino e seiscentas e vinte e duas (622) vinculadas ã rede particular de ensino. O universo da pesquisa é constituído de onze (11) Colégios de Aplicação pertencentes a universidades federais, cinco (5) Colégios de Aplicação Estaduais, dos quais três (3) vinculados a universidades estaduais e dois (2) a instituições isoladas estaduais, um (l) vinculado a instituição isolada municipal, um (1) pertencente à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e, consequentemente, da rede particular de ensino e vinte e um (21) Colégios de Aplicação vinculados a instituições isoladas particulares. Dos trinta e nove (39) Colégios de Aplicaçao analisados na pesquisa empírica, dois (2) foram criados antes de 1950, sendo um deles anterior ao surgimento do Decreto-Lei n° 9053, de l2 de março de 1946, que “cria um Ginásio de Aplicaçao anexo às Faculdades de Filosofia do País”. Isto é,  2,5% do total existente.

            A ocupação de um cargo representa uma profissão. Isso se evidencia primeiro, na exigência de um treinamento rígido, que demanda toda a capacidade de trabalho durante um longo período de tempo e nos exames especiais que, em geral, são pré-requisitos para o emprego. A posição do funcionário tem a natureza de um dever. Isso determina a estrutura interna de suas relações, jurídica e praticamente, pois a ocupação de um cargo não é considerada como uma fonte de rendas ou emolumentos a ser explorada como ocorria, comparativamente, durante a Idade Média e frequente até recentemente. Nem é  a ocupação do cargo considerada como uma troca habitual de serviços por equivalentes, como é o caso dos contratos livres de trabalho. Seu ingresso, inclusive na economia privada, é considerado como a aceitação de uma obrigação específica de administração fiel, em troca de uma existência de trabalho segura. É decisivo para a natureza específica da fidelidade, que no tipo puro utilizado na análise social, ele não estabeleça uma relação pessoal, como era no caso da fé que tinha o senhor ou patriarca nas relações feudais ou patrimoniais. A lealdade moderna é dedicada a finalidades impessoais e funcionais. Atrás das segundas, estão habitualmente, é claro, “ideias de valores culturais”. 

            A burocracia moderna, segundo Max Weber (1982), funciona da seguinte forma específica: 1. As atividades regulares necessárias aos objetivos são distribuídas de forma fixa como deveres oficiais; 2. A autoridade de dar ordens se distribui de forma estável, sendo rigorosamente delimitada  pelas normas relacionadas com os meios de coerção, físicos, sacerdotais ou outros que possam ser colocados à disposição dos funcionários ou autoridades; 3. Tomam-se as medidas metódicas para a realização regular e contínua desses deveres e para a execução dos direitos correspondentes; somente as pessoas que têm qualificações previstas por um regulamento geral serão empregadas. Nos governos públicos e legais, esses três elementos constituem a autoridade burocrática. No domínio econômico privado, constituíam a administração burocrática. A burocracia assim compreendida se desenvolve plenamente em comunidades políticas e eclesiásticas apenas no Estado moderno, e na economia privada, apenas nas mais avançadas instituições do capitalismo. A autoridade permanente e pública com jurisdição fixa, não constitui a norma histórica, mas a exceção. Os princípios da hierarquia dos postos e dos níveis de autoridades significam um sistema firmemente ordenado de mando e subordinação no qual há uma supervisão dos postos inferiores pelos superiores. Com o pleno desenvolvimento do tipo burocrático de dominação legítima, a hierarquia dos cargos é organizada burocraticamente. 

          Assim, o princípio da autoridade hierárquica de cargo encontra-se em todas as organizações burocráticas: no Estado e nas organizações eclesiásticas, bem como nas grandes organizações partidárias e empresas privadas. A administração de um cargo moderno se baseia em documentos escritos (“os arquivos”), apresentados em sua forma original ou em esboço. Há, porém, um quadro de funcionários e escreventes subalternos de todos os tipos. O quadro institucional de funcionários que ocupe ativamente um cargo público, juntamente com seus arquivos de documentos e expedientes, constitui uma “repartição”. Na empresa privada a “repartição” é frequentemente chamada “escritório”. Mas, em princípio, a organização, a organização moderna do serviço público separa a repartição do domicílio privado do funcionário e, em geral, a burocracia segrega a atividade oficial como algo distinto da esfera da vida privada. Enfim, a administração burocrática, pelo menos toda a administração especializada, pressupõe habitualmente um treinamento especializado e aparentmente completo.

       O mesmo quase não correra com Paula Beiguelman (1953; 2003), que pretendia abertamente a obtenção da regência. Ou, de outra forma, Gioconda Mussolini (1953; 1980), que não conseguiu a Cátedra, por causa de infindáveis auto-exigências. Esses fatos sociais não isolados nas universidades públicas supõem que o modo de funcionamento  das Cadeiras, segundo Espirandelli (2008: 86), seja realmente um bom pressuposto para pensar as formas de sua organização e estrutura assimétricas, bem como sua relação com as origens sociais dos respectivos integrantes, além das relações de gênero e de geração entre eles. Estariam todas as condições dadas na lógica do interior do sistema burocrático. Esta cartografia do desejo demonstra o quanto o formato rígido e patriarcal delas limitava, restringia ou moldava os destinos intelectuais, escolhas e opções por temas e objetos de pesquisas. Esse funcionamento estava, portanto, na base da produção das obras das professoras que integram essas mesmas Cadeiras.  Daí que a suposição sobre preconceito oriundo das relações de gênero soma-se às injunções de origens sociais, de geração e de disputas de poder nas relações no interior das cadeiras, para a compreensão da questão. Nos anos 1970 “migraram” para a área de Ciência Política do tradicional Departamento do curso de Ciências Sociais.

          Paula Beiguelman fora (1953; 2003) uma grande amiga de Gioconda Mussolini (1953; 1980) na Faculdade nasceu na cidade litorânea de Santos em 1926. Com origens proletárias e urbanas e de família judia modesta, teve dificuldades econômicas na infância. Estudou em colégio público em sua cidade natal, tendo uma das histórias de vida mais diferenciadas entre as demais. De origem judaica, proveniente do proletariado, seria aluna dedicada e precoce pelos anos de seu nascimento e de formaturas, 1926 e 1944/1945, ingressou na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo com 16 anos de idade por ter sido arrojada. Ao terminar o bacharelado e a licenciatura pela faculdade de Filosofia em 1945 e antes de iniciar a carreira como cientista social, tornou-se funcionária pública concursada do Departamento de Serviço Público. Depois transferiu-se para o Departamento Estadual de Estatística , da Secretaria do Governo. Deixou o emprego quando foi convidada por Lourival Gomes Machado para, comissionada como horista, lecionar na Faculdade em 1949, como Auxiliar de Ensino na Cadeira de Política, no momento em que esta era regida por Charles Morazé. Substituiu em 1952, o primeiro assistente da Cadeira de Política, Lourival Gomes Machado. Foi seu colaborador na Cadeira por vários anos, ao tempo em que ele, regente titular encontrava-se na Europa, trabalhando para a fabulosa Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).   

            Ao longo de seu trabalho na Faculdade teve como principais colaboradores Célia Nunes Galvão Quirino dos Santos e Maria do Carmo Campello de Souza; e, por certo período, contou com o auxílio de Nely Pereira Pinto Curti, Cecy Martinho e Marly Martinez Ribeiro Spínola. Doutorou-se na área de Política com a tese intitulada: Teoria e Ação no Pensamento Abolicionista, em 1961, e tornou-se professora livre-docente com a tese: Contribuição à Teoria da Organização Política Brasileira, em 1967. A importância de Paula Beiguelman reside no estudo da formação política do povo brasileiro, estando esta temática sistematizada nas obras Formação Política do Brasil. Pequenos Estudos de Ciência Política e, a tese A Formação do Povo no Complexo Cafeeiro: Aspectos Políticos. Esta tese foi apresentada no concurso em que disputou com o Livre-docente Fernando Henrique Cardoso, em 1968, a obtenção da regência da Cadeira de Política, tornada vaga com o falecimento de Lourival Gomes Machado. O sociólogo foi o vencedor com a tese: Política e Desenvolvimento em Sociedades Dependentes: Ideologias do Empresariado Industrial Argentino e Brasileiro. Paula Beiguelman era a candidata mais natural ao cargo, devido ter trabalhado com Lourival de modo mais sistemático desde 1954. A esse respeito Spirandelli (2008) sustenta a ideia de que a hegemonia da forma de se fazer ciência na Faculdade de Filosofia da USP era o intuito do grupo em torno de Florestan Fernandes – grupo este que, além de dominante contava com o também predomínio de homens. Ou seja, poderia ser também um “acordo de cavalheiros” sua vitória. Assim eram muitos concursos para Cátedras.

Bibliografia geral consultada.

ALVES, Márcio Moreira, Beabá do Mec-Usaid. Rio de Janeiro: Editor Gernasa, 1968. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho, Homens Livres na Velha Civilização do Café. Tese de Doutorado. Departamento de Ciências Sociais. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1964; Idem, “Organização Social do Trabalho no Período Colonial”. In: Discurso. Revista do Departamento de Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Semestral, n° 8, maio de 1978; Idem, “Entrevista”. In: Trans/Form/Ação. Vol. 4. Marília (SP), jan. 1981; Idem, “Vocação Política, Poder, Vaidade”. In: Folha de São Paulo, 7 de abril de 1996; SIMÃO, Azis, Sindicato e Estado. Suas Relações na Formação do Proletariado de São Paulo. São Paulo: Editora Dominus; Editora da Universidade de São Paulo, 1966; MUSSOLINI, Gioconda, Ensaios de Antropologia Indígena e Caiçara. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1980; BEIGUELMAN, Paula, “Cultura Acadêmica Nacional e Brasilianismo”. In: Cultura Brasileira: Temas e Situações. São Paulo: Editora Ática, 2003; SPIRANDELLI, Claudinei Carlos, Trajetórias Intelectuais: Professoras do Curso de Ciências Sociais da FFCL-USP (1934-1969). São Paulo. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Departamento de Sociologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009; RODRIGUES, Lidiane Soares, Produção Social do Marxismo em São Paulo: Mestres, Discípulos e Um Seminário (1958-1978). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História Social. Departamento de História. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011; CAZES, Pedro, A Sociologia Histórica de Maria Sylvia de Carvalho Franco: Pessoalização, Capitalismo e Processo Social. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013; PINHEIRO, Dimitri, “Jogo de Damas: Trajetórias de Mulheres nas Ciências Sociais Paulistas (1934-1969)”. In: Cadernos Pagu (46), Janeiro-abril de 2016:165-196; ZUCCHI, Mariano Nicolás, “Una Clasificación del Discurso Didascálico desde una Perspectiva Polifónica de la Enunciación”. Disponível em: Revista Digital. Programa de Pós-Graduação em Letras. Porto Alegre: Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, vol. 11, n° 4, pp. 452-464, outubro-dezembro 2018; entre outros.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Maria Isaura P. de Queiroz - Objeto Abstrato & Condecoração em Vida.

                                
        Ubiracy de Souza Braga

Maria Isaura é uma pesquisadora consagrada”. Olga Simson

                  
                              
            Maria Isaura Pereira de Queiroz ingressou no curso de Ciências Sociais da Faculdade Filosofia, Ciências e Letras, atual Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em março de 1946, concluindo a Licenciatura em 1949. Na ocasião destacou que, quando resolveu entrar na Faculdade de Filosofia, foi considerada uma “menina desobediente”, pois no ano de seu ingresso, esse não era o caminho habitual que poderia ser trilhado, como ocorreram guardadas as proporções, com Simone de Beauvoir, em Paris, ipso facto, por uma mulher de classe média na sociedade. Foi nomeada Auxiliar de Ensino da Cadeira de Sociologia I, dirigida por Roger Bastide, na qual trabalhou no período de 1950 a 1955. Em 1951, obteve bolsa do governo francês para cursar a École Pratique des Hautes Études en Sciences Sociales, na Universidade de Paris, permanecendo até 1953. Ela se diplomou em maio de 1956, com tese examinada pelos próceres Roger Bastide (orientador), Claude Lévi-Strauss e Gabriel Le Bras. Ao ingressar no curso de ciências sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Maria Isaura tomou conhecimento da orientação que predominava institucionalmente na formação dos alunos.
            Em primeiro lugar, historicamente as comendas das ordens foram facilitadas aos viventes coloniais no período de instalação da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808, pois foi neste momento que se deu a instalação da Mesa de Consciência e Ordens na Colônia, instituição que regulava todo o mecanismo de concessão de comendas e hábitos. Com a proximidade do regime e de suas instituições e devido às necessidades pecuniárias da Coroa, as comendas ficaram mais acessíveis aos coloniais, embora não deixassem de premiar as elites portuguesas. A Mesa permaneceu na Corte com a volta de D. João e foi utilizada por D. Pedro no Brasil independente até 1828, quando foi substituída pelo Supremo Tribunal de Justiça. Este não herdou as funções da Mesa relativas às ordens. Os adeptos das teorias liberais radicais criticavam a existência de foros privilegiados de justiça para os membros das ordens, o que discriminava uma sociedade calcada na diferença representada pela existência de um juiz de cavaleiros (cf. Duby, 1988). Entretanto, a Mesa não regulava todas as ordens do Reinado, apenas as três ordens militares portuguesas. As nomeações das ordens criadas por D. Pedro I, que tinham o status de civis, eram feitas diretamente por ele, somente passando por um chanceler e, no II Reinado, pelo Secretário de Estado de Negócios do Império.  
Assim, por intermédio das ordens, criaram-se e recriaram-se laços afetivos de fidelidade e uma elite política que girava em torno da Coroa, visto ter esta o monopólio dessas mercês, além de premiar todo tipo de serviços, gerando um dilatado grupo de condecorados. Em segundo lugar, mutatis mutandis, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) estava instalada naquela conjuntura no Instituto de Educação Caetano de Campos, na Praça da República, originalmente reconhecida como Largo dos Curros era, no século XIX, palco de rodeios e touradas. Após essa fase, foi chamada de Largo da Palha, Praça das Milícias, Largo Sete de Abril, Praça 15 de Novembro e, em 1889, passou a ser Praça da República. Palco de grandes manifestações políticas que mudaram a história social do país abriga edifícios históricos, como a Escola Normal Caetano de Campos, tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), em 1978, que em seus anos de operação, recebeu grandes personalidades nacionais, é o prédio onde funciona a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, constituindo um dos mais tradicionais logradouros da cidade de São Paulo. A grande frequência urbana de populares é explicada pela proximidade com avenidas importantes, como a Ipiranga e a São João, ruas comerciais, como a Sete de Abril e Barão de Itapetininga, além de alguns dos principais pontos turísticos da metrópole, como o Theatro Municipal, Viaduto do Chá e o famoso Edifício Copan. 



Em terceiro lugar, percebera que a orientação do curso consistia, além dos objetivos iniciais que eram, na formação de professores para o ensino secundário e na melhoria da qualificação da elite dirigente, também a formação de cientistas sociais. A formação de cientistas e pesquisadores, embora não reconhecida como orientação inicial da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) tornou-se hegemônica devido principalmente ao trabalho dos professores europeus, colaboradores nas décadas iniciais da faculdade, admite Maria Isaura. Entre estes, estava Roger Bastide de quem Maria Isaura Pereira de Queiroz se tornou discípula. O interesse de Bastide pela literatura e o seu respeito pelos próprios pontos de vista dos alunos se conjugavam e permitiam uma identificação talvez maior na relação entre o mestre e seus discípulos. Concluída a licenciatura em ciências sociais em 1949, Maria Isaura se tornou orientanda e Assistente de Bastide na Cadeira de Sociologia I. Em 1957, obteve o diploma de doutorado na École Pratique des Hautes Études com a tese intitulada: La Guerre Sainte au Brésil: Le Mouvement Messianique du Contestado, cuja banca examinadora foi composta pela trindade de professores Claude Lévi-Strauss, Gabriel Le Bras e Roger Bastide (cf. Queiroz, 1978)  Dois pontos fundamentais sustentam a dilatada obra de Maria Isaura Queiroz e a trajetória institucional: sua proposta para a consolidação da área de sociologia política no Brasil e a análise detida na categoria prática “mundo rústico”.
O trabalho parece ser uma categoria muito simples. A ideia de trabalho nesta universalidade, segundo Marx, como trabalho, em geral, é, também das mais antigas. No entanto, concebido do ponto de vista  econômico nesta forma simples, o trabalho é uma categoria tão moderna como as relações que esta abstração simples engendra. Assim, a abstração mais simples, que a economia política moderna coloca em primeiro lugar e que exprime uma relação muito antiga e validada para todas  as formas de sociedade, só aparece no entanto sob esta forma abstrata como verdade prática enquanto categoria da sociedade mais moderna. Poder-se-ia dizer que esta indiferença em relação a uma forma determinada de trabalho, que se apresenta nos Estados Unidos da América como produto histórico, se manifesta na Rússia, por exemplo, como uma disposição natural. Mas, por um lado, que extraordinária diferença entre os bárbaros que têm uma tendência natural para se deixar  empregar em odos os trabalhos, e os civilizados que empregam a si próprios. E, por outro lado, a esta indiferença em relação a um trabalho determinado corresponde na prática, entre os russos, a sua sujeição tradicional a um trabalho bem determinado, ao qual só as influências exteriores podem arrancá-los.
O todo, na forma em que aparece no espírito como todo-de-pensamento, é um produto do cérebro pensante, que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, de um modo que difere da apropriação desse mundo pela arte, pela religião, pelo espírito prática. Antes coo depois, o objeto real conserva a independência fora do espírito, e isso durante o tempo em que o espírito tiver uma atividade meramente especulativa, meramente teórica. Por consequência também no emprego do método teórico é necessário que o objeto, a sociedade, esteja constantemente presente no espírito como dado primeiro. Mas as categorias simples não terão também uma existência independente, de caráter histórico e natural, anterior à das categorias mais concretas? Depende. Hegel, tem razão em começar a filosofia do direito pelo estudo da posse, constituindo esta a relação jurídica mais simples do problema. Em relação a este ponto de vista, fez-se um grande progresso quando o sistema industrial ou comercial transportou a fonte de riqueza do objeto para a atividade subjetiva - o trabalho comercial e fabril -, concebendo esta atividade do trabalho -  agricultura - como a forma de trabalho criadora de riqueza, e admite o próprio objeto não sob a forma dissimulada do dinheiro, mas como produto enquanto resultado geral do trabalho (cf. Marx, 2011: 249).
Com o sugestivo título: Contribuição para o Estudo da Sociologia Política no Brasil, a socióloga apresentou no I Congresso Brasileiro de Sociologia, em 1954, as linhas gerais de uma agenda de pesquisas para o desenvolvimento da área, tendo como fulcro os estudos sociológicos de nosso passado político que serviriam de background para pesquisas empíricas efetuadas a partir do município. Expressivos dessa proposta foram os ensaios: O Mandonismo Local na Vida Política Brasileira (1956) e O Coronelismo numa Interpretação Sociológica (1975), nos quais a investigação das relações sociais de mando estabelecidas entre grupos no âmbito do poder local serviram de apoio para a interpretação da autora de uma estrutura hierárquica mais ampla que conformou em diversas conjunturas históricas a formação da sociedade brasileira. Nesses estudos, Maria Isaura não queria perder de vista as respostas dos agentes no plano de análise individual (o sonho) e coletivo (os mitos, os ritos, os símbolos) às estruturas de dominação que se inseriam, destacando a multiplicidade e complexidade da vida nominal rústica. Essas configurações de poder poderiam ser identificadas em entrevistas estruturadas no papel político de lideranças religiosas messiânicas e em grupos sociais como os típicos cangaceiros. Tendo em vista a formulação do objeto de pensamento Maria Isaura, ao lado de outros colegas do Departamento de Ciências Sociais criou o Centro de Estudos Rurais e Urbanos (CERU), da Universidade de São Paulo (1964) para formação de pesquisadores.
Sociologia política é o meio de trabalho da sociologia que analisa os efeitos sociais específicos - as práticas de poder, o Estado e o dever político. É o estudo das bases sociais de representação da política. A distinção entre ciência política e sociologia política, não se refere apenas a questão tópica de espaço, enquanto lugar praticado e lugar, que deve ser precisa do ponto de vista teórico da análise. Mas caracteriza-se pela explicação concreta dos fatos que têm determinada orientação nos processos do mundo político, mas que podem mudar de forma. O cientista político busca regularidades e conexões de sentido entre os fatos em torno do mundo político. Qualquer que seja o nível de estrutura da sociedade é sempre possível pensar como Montesquieu, isto é, analisar a forma própria da heterogeneidade de uma determinada sociedade pelo equilíbrio dos poderes em confronto, a garantia da moderação e da liberdade. Para os liberais, todo indivíduo têm direitos humanos inatos. Muitos viram aí uma filosofia implícita de representação do progresso inspirada por valores liberais que, em última instância, desembocou na ideia de que o ser humano é capaz de descobrir como reparar as injustiças sociais fomentadas pelos retrocessos da história humana.
Seu interesse pelo messianismo se desdobrou mais tarde, na conturbada década de 1960, com o colapso do populismo, nos estudos sobre o campesinato brasileiro com a formulação do conceito de grupos rústicos. Seguindo a trilha do mestre francês, Maria Isaura dedicou-se a vários campos de saber, entrecortando a sociologia da religião, a sociologia política, a sociologia rural e a sociologia da cultura. Florestan Fernandes destacou a amplitude e a diversidade de sua obra bem como o seu reconhecimento em relação à Bastide. Tais características podem ser encontradas na trajetória intelectual de Maria Isaura e na sua concepção. Influenciada por Roger Bastide, Maria Isaura também defendeu “a necessidade de utilizar diferentes métodos de investigação e análise não importando se eram reconhecidos como pertencentes a outras disciplinas ou teorias rivais”. Acredita Maria Isaura que a realidade é que indica o método mais apropriado para que o pesquisador possa melhor reconhecê-la, e não o contrário. Maria Isaura, diferentemente dos cientistas sociais de sua geração fez outras escolhas temáticas. Por outro lado, aproxima-se em grande medida dos mesmos pelo mesmo rigor analítico na elaboração de suas pesquisas. Observadora atenta, Glaucia Villas Bôas percebe que as escolhas de tema e de método de pesquisa pelas quais optou Maria Isaura devem ser imiscuídas a partir da produção teórica das ciências sociais entre os anos 1940 e 1960.
Um ano após a morte de Roger Bastide (1974), Maria Isaura Pereira de Queiroz escreveu a Jeanne Bastide, viúva de seu amigo, desculpando-se pelo atraso no envio de prefácio para a publicação, na França, de Arte e sociedade. As cartas de Maria Isaura à viúva Jeanne Bastide e à sua filha, Suzanne, são entremeadas de notícias do dia a dia político e econômico e que revelam aspectos da vida da intelectualidade brasileira na segunda metade da década de 1970. Maria Isaura começa a formular o projeto de publicação das obras completas de Roger Bastide em novembro de 1976, com o apoio de Manuel Diégues Júnior, diretor do Departamento de Assuntos Culturais do Ministério da Cultura e membro do Conselho Nacional de Cultura. Diégues ficou interessado na iniciativa conjunta do Centro de Estudos Rurais e Urbanos, que Maria Isaura criara e dirigia, e do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), dirigido por José Aderaldo Castelo. Ela pretendia reunir os artigos esparsos de Bastide em volumes, a começar com os artigos publicados no Brasil, uma vez que estavam traduzidos, e depois os artigos publicados em francês, de tal forma que pudessem integrar uma coleção de Obras completas à qual daria o nome de Bastidiana (cf. Villas Bôas, 2014).
A ascensão dos regimes populistas (cf. Laclau, 2005) foi analisada com certa  desconfiança por determinados grupos políticos internos ou estrangeiros, dentro e fora do continente latino-americano. A capacidade de mobilização das massas estabelecidas por tais governos, o apelo aos interesses nacionais e a falta de uma perspectiva política clara poderia colocar em risco os interesses defendidos pelas elites que controlavam a propriedade das terras ou das forças produtivas do setor industrial. Sob o aspecto teórico, o governante populista fundamentava seu discurso em projetos de inclusão social que, em seu modus operandi de interpelação popular democrática, legitimavam a crença na construção social de uma nação promissora. Definindo seus aliados como imprescindíveis ao progresso nacional, o populismo saudava valores e ideias que colocavam no centro um “grande líder”, seja masculino ou feminino como porta-voz das massas. Suas ações não demonstravam sua natureza individual, mas transformavam-no em “homem do progresso”, “defensor da nação” ou “representante do povo”.
Construía-se a imagem singular do indivíduo que desaparecia em prol de causas individuais e coletivas. Na América Latina, os inúmeros exemplos de experiência populistas podem ser compreendidos na ascensão dos governos populares de Juan Domingo Perón (1946-1955-1973-1974), Evita Perón (1946-1952) na Argentina; Lázaro Cárdenas (1934-1940), no México; Gustavo Rojas Pinilla (1953-1957), na Colômbia; e Getúlio Dornelles Vargas (1930-1937; 1951-1954), no Brasil. O mais impressionante na história da vida de Eva foi o caminho meteórico que ela percorreu na vida pública. Entre a total obscuridade ao mais absoluto resplendor pessoal e político da vida e em seguida a morte, tudo ocorreu em apenas 7 anos. Nesse curto período ela saiu do anonimato para se tornar uma das mulheres mais importantes e poderosas do mundo. Na breve existência (morreu aos 33 anos de idade) há muitos mistérios, muitos fatos obscuros, mas há principalmente uma personalidade tragicamente marcante.
Apesar de se reportar a uma prática do passado recente, ainda podemos notar a presença de reconhecidas práticas populistas em governos estabelecidos na América Latina. Em verdade a Grande Depressão dos anos 1930 demarca a crise do domínio oligárquico, conservador (ou de direita), e a ascensão ao poder de governos e partidos políticos populistas. O populismo não é uma ideologia e uma prática política de esquerda, mas os partidos de esquerda na América Latina participaram dos governos populistas e com eles em grande parte se confundiram, ainda que alguns setores mais radicais da esquerda fossem frequentemente reprimidos por esses governos. A relativa identificação da esquerda com o ideário populista é válida para os setores políticos moderados, reformistas, mas é válida também para a esquerda comunista. Nos termos do chamado pacto populista essa ala esquerda aliava-se aos empresários industriais, a setores da oligarquia agrário-comercial, às classes médias tecnoburocrática do Estado e intelectualizadas, onde residia a força da esquerda e aos trabalhadores urbanos. E cabia à liderança na definição do diagnóstico político através da metáfora do  subdesenvolvimento e no estabelecimento de novas estratégias de desenvolvimento.
O crescimento populacional brasileiro e a abertura dos novos desafios conviviam com a polarização da política internacional, que dividiu as nações do mundo entre o capitalismo versus o comunismo. Desta forma, grupos ultraconservadores e setores de esquerda se encontravam em pontos longínquos do cenário conciliador do fenômeno populista brasileiro. A ascensão da Revolução Cubana, em 1959, trouxe esperança e afeto político a diferentes grupos da nossa sociedade. Ao mesmo tempo, grupos militares instituíram a urgência de uma intervenção política que impedisse a formação de um governo socialista no Brasil. Viveu-se numa economia que sabia muito bem promover a prosperidade e aumentar a miséria. Nessa conjuntura que durante o governo popular de João Goulart (1961-1964), os movimentos sociais pró e antirrevolucionários eclodiram no país. A urgência de reformas sociais e políticas conviveram em conflito com o interesse do capital internacional. Em um cenário tenso os militares chegaram ao poder instaurando um governo autoritário e centralizador. Em 1964, o Estado de Direito escafedeu-se sem ao menos confirmar se vivemos no âmbito populista uma democracia.

Centenário de Isaura Pereira de Queiroz
O processo social de redemocratização compreendeu uma série de medidas que, progressivamente, foram ampliando novamente as garantias individuais e a liberdade de imprensa até culminar na eleição do primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura militar. Esse processo, contudo, foi composto por momentos de avanço e recuo dos militares, uma vez que desejavam garantir uma transição controlada sem que os setores mais radicais da oposição chegassem ao poder. Por isso, medidas de distensão como a Lei de Anistia, conviveram com medidas de repressão, como o Pacote de Abril e a recusa da Emenda Dante de Oliveira, que pedia eleições diretas para presidente da República. O período chamado de redemocratização compreendeu os anos de 1975 a 1985, entre os governos dos generais Ernesto Geisel e João Figueiredo e as eleições indiretas que devolveram o poder às mãos de um presidente civil. Por mais que as Diretas tenham mobilizado milhões de pessoas em manifestações memoráveis em São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, a Emenda Dante de Oliveira foi derrotada no Congresso Nacional e as eleições diretas só ocorreram em 1989. O primeiro presidente civil foi eleito, portanto, de forma indireta, sendo este Tancredo Neves (PMDB) que, devido a problemas de saúde que o levaram a óbito, deixou o cargo de primeiro presidente da chamada Nova República para seu vice-presidente, José Sarney.
A visão protocrítica de inúmeros cientistas sociais e historiadores articulados na zona estabelecida entre as cidades Rio de Janeiro e São Paulo, prevaleceram sobre as considerações favoráveis que também lhe foram feitas mediante a globalização do mercado, inclusive entre pesquisadores em Pesquisa & Desenvolvimento. Não obstante, a força expressiva das críticas analíticas, a crítica das armas e a realização de pesquisas funcionalistas estimuladas por instituições poderosas de financiamento de programas de pós-graduação, institucionalizados de fora para dentro do país, permitiu o avanço do processo de normalização metodológica das ciências sociais, com o treinamento de uma geração de pesquisadores mediante o condicionamento empírico de enquetes operárias e pesquisas ditas de campo. Também dentre esses estudos, as ciências sociais revelaram importantes pensadores sobre questões econômicas, políticas e sociais contextualizadas histórica e teoricamente, para não falarmos das questões políticas remanescentes na década de 1920 por Caio Prado Jr., visto que estiveram voltadas para comunidades eclesiais em processo de surgimento, numa conjuntura marcada pela transformação de um país essencialmente agrário em uma região urbano e industrial automotivo. 
Em maio de 1956, regressou ao Brasil, sem deixar seu trabalho cooperativo na França e, pari passu na Universidade de São Paulo, quando se aposentou em 1982. Maria Isaura era sobrinha da primeira deputada federal da história do Brasil, eleita em 1934, Carlota Pereira de Queiroz, uma mulher feita, mas não por si mesma. Era neta por parte de pai de um proprietário de terras da região de Jundiaí (São Paulo), membro do Partido Republicano Paulista (PRP), uma das principais expressões políticas na queda da monarquia e também um dos fundadores do jornal A Província de São Paulo, precursor do liberal O Estado de S. Paulo. Do lado da mãe, um avô prócer regionalista de Lorena, filiado ao Partido Conservador. A mãe, Maria Vicentina de Azevedo Pereira de Queiroz, vinha de uma família extremamente católica, seu pai inversamente, contrariando Franz Kafka, o também prestigioso político José Pereira de Queiroz Neto, exibia convicções ateístas e anticlericais. É neto do Patrono da Escola Estadual. Dr. José Pereira de Queiroz, sobrinho de Carlota Pereira de Queiroz, primeira Deputada Federal do Brasil e irmão de Maria Isaura Pereira de Queiroz, nossa renomada Socióloga.
Em 1952 formou-se agrônomo junto à Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo, trabalhou no Instituto Agronômico de Campinas até 1967, como pesquisador. O Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, começa a tomar conhecimento de suas ideias em 1964 quando é convidado pelo professor Aroldo de Azevedo, chefe do Departamento, para proferir palestras temáticas Conservação dos Recursos Naturais com ênfase nos solos e seus múltiplos usos e no ano seguinte quando, os Profs. Aziz Ab’ Saber e Ari França convidam-no a permanecer no quadro docente como professor Colaborador, função em que fica contratado por dois anos até que em 1967 vem a ingressar nos quadros permanentes desta Faculdade, passando ao regime de Dedicação Exclusiva (DE), integralmente ao ensino e à pesquisa. Assim constituiu imediatamente um Grupo de Trabalho sobre Solos, coordenando o Laboratório de Pedologia e Sedimentologia do Instituto de Geografia, tornando-se referência por se pautar em novas visões teóricas e metodológicas. Sua trajetória foi marcada pela coordenação de programas de pesquisa e ensino integrados e viabilizados mediante intercâmbios interinstitucionais, inclusive bilaterais França-Brasil, centrados na questão dos solos e que permitiram a capacitação de vários docentes e pesquisadores, posteriormente disseminados pelo país.                    
A obra analítica de Maria Isaura se divide em três níveis de análises temáticos: I - Análises sobre reforma e revolução (cf. Queiroz, 1968) por meio dos movimentos religiosos, messiânicos e do mandonismo local (cf. Queiroz, 1956); II - Os estudos rurais, com análise do campesinato brasileiro a partir da definição de grupos rústicos (cf. Queiroz, 1973); e, III - Os estudos sobre a cultura brasileira (cf. Kosminsky, 1999), com destaque para as histórias de vida (cf. Villas Boas, 2014), relações de gênero e o carnaval (cf. Queiroz, 1992). A ilustre socióloga faleceu em 29 de dezembro de 2018, no município de São Paulo aos 100 anos. O historiador marxista Eric Hobsbawm, como dizia Paulo Sérgio Pinheiro, o mais eminente historiador de língua inglesa era notável apreciador de sua literatura, traduzindo-a para o idioma inglês. Foi sepultada no Cemitério da Consolação, a mais antiga necrópole em funcionamento em São Paulo.
Embora a teoria de Maria Isaura se aproxime de Antonio Candido, ela apresenta uma visão sobre grupos rústicos um pouco diferente. Apesar de escolher também como objeto de análise a população do interior de São Paulo, ela chega a conclusões opostas. Ela reconhece uma maior capacidade de adaptação das populações rústicas ao processo de modernização e urbanização a partir da década de 1960, porque constatou que, por meio de seus próprios elementos dinâmicos, geravam autotransformações na busca da melhoria de sua vida. Ao reconhecer a capacidade de adaptação e acomodação das populações rústicas, não nega, contudo, que o processo de modernização provocava uma alteração dos meios e modos de vida dos grupamentos rústicos que poderia levá-los à extinção. A resposta metodológica que dá à indagação sobre se os sitiantes tradicionais estariam condenados à desorganização socioeconômica, com o advento do processo de modernização, é a de que não havia um comportamento-padrão quanto ao modo de reagir aos processos de transformação em curso a partir da década de 1960.
Os sitiantes tradicionais tanto se adaptavam a esse processo, utilizando-se do cabedal de sua própria cultura, quanto reagiam de forma incongruente às transformações socioeconômicas promovidas pela modernização, desenvolvendo comportamentos que geravam sua autodestruição. O aprofundamento do capitalismo no Brasil não promovia necessariamente a abolição das especificidades socioculturais comuns à sociedade brasileira afeita às relações de vizinhança. Seu estudo sobre a reação das populações rústicas ao processo modernização e a consideração da possibilidade de sua persistência fundamenta sua hipótese central: no Brasil, não havia uma oposição rígida entre tradicional e moderno. A possibilidade de coexistência entre surto industrial e cultura caipira foi demonstrada por Queiroz através da dinâmica engendrada pelos chamados bairros rurais. Em seu livro: Bairros Rurais Paulistas (1963), ela faz um estudo sobre a socialização dos sitiantes tradicionais e modernos e sobre sua inserção na sociedade brasileira. Ela conclui que tanto um quanto outro independente da orientação que davam à produção continuava seguindo, apesar do aprofundamento do capitalismo, o padrão tradicional caipira de crenças e valores que tem como base os bairros rurais.
Deste modo, segundo (Vasconcellos, 2014: 312-13) identifica dois tipos de bairros rurais: o tradicional composto por camponeses, e o moderno, formado por agricultores que comercializavam sua produção, mas que também adotavam a dinâmica social mantida no interior dos bairros rurais. Ambos, a despeito de sua diferença no comportamento econômico, apresentavam a mesma cultura, a caipira. Esse fato comprovava que as relações de trabalho e as relações sociais, alicerçadas pelas ligações vicinais, permitiam que a população caipira fosse regulada ao mesmo tempo pelos princípios da população rústica e pelos princípios do modo de ser moderno. Afinal, tanto camponeses praticantes de uma economia fechada, como agricultores modernos, praticantes de uma economia aberta, adotavam a mesma cultura rústica. A mudança no comportamento econômico dos sitiantes não implicava a ruína da população campesina. A partir deste estudo sobre bairros rurais paulistas, conclui que esse tipo de organização permitia a coexistência do modo de vida tradicional, associado às relações de vizinhança, e de um modo de vida moderno, mais afeito à racionalidade econômica.
            No momento em que ocorreu seu falecimento em dezembro de 2018, rememora Campos (2019), pareceu-nos oportuno traduzi-lo e publicá-lo no Brasil, a pessoa e a obra da socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz aos leitores alemães, como uma forma de homenagem à nossa grande socióloga e fundadora do Centro de Estudos Rurais e Urbanos. Um fato de grande relevância em sua vida – a recepção, em setembro de 1998, das mãos do sociólogo e presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), a mais alta condecoração científica no Brasil, o prêmio Almirante Álvaro Alberto de 1997, instituído recentemente, em 1981, de caráter individual e indivisível, atribuído ao pesquisador que tenha se destacado pela realização de obra científica, distinguiu-a como a primeira representante das ciências sociais e, além disso, do sexo feminino a receber essa condecoração. Em 1998 Maria Isaura completava oitenta anos, mas felizmente viveria mais vinte anos, podendo olhar para o passado de sua gloriosa carreira científica. Assim, se distinguia não tanto pelo ersatz de numerosas pesquisas empíricas, que é um preço caro pago com a sua institucionalização, mas, sobretudo, pela formação de gerações (cf. Mannheim, 1993) nas ciências sociais, ao que se dedicou com grande engajamento pessoal. O objetivo das pesquisas permaneceu com significado de mesmo teor teórico, a saber, decifrar seu país sob um ponto de vista sociológico.
            As unidades de geração desenvolvem perspectivas, reações e posições políticas e afetivas diferentes em relação a um mesmo dado problema. O nascimento em um contexto social idêntico, mas em um período específico, faz surgirem diversidades nas ações dos sujeitos. Outra característica é a adoção ou criação de estilos de vida distintos pelos indivíduos, mesmo vivendo em um mesmo âmbito social. Em outras palavras: a unidade geracional constitui uma adesão mais concreta em relação àquela estabelecida pela conexão geracional. Mas a forma como grupos de uma mesma conexão geracional lidam com os fatos históricos vividos, por sua geração, fará surgir distintas unidades históricas geracionais no âmbito daquela conexão geracional no conjunto da sociedade. Essa situação real impõe-nos um procedimento reflexivo teórico (mental) constante de distanciamento social do sociólogo em relação ao lugar de onde ele fala. Duvidamos que alguém possa se tornar sociólogo sem ter adquirido uma experiência direta das formas de sociedades e de meios sociais de subsistência distantes daqueles em que vive. Além da formação pessoal também é preciso de bom grado que a situação profissional  lhe permita resistir às pressões culturais que sobre ele se exercem.  
O conhecimento sociológico só pode desenvolver-se em um meio que não reproduza as desigualdades, mas que procure meios de reduzi-las. Ocorre que, na prática os sociólogos estão encerrados em guetos cujo isolamento seria cômodo demais para a ordem social dominante: o pensamento crítico estaria sendo enclausurado como se enclausuram os “loucos” e os “delinquentes” e pelas mesmas razões de ordem, para analisar as categorias, normas e discursos da prática. O objeto da sociologia não pode ser definido sem a bidimensionalidade dos meios. Esse duplo procedimento deve ou deveria levara a definir o método sociológico. Enfim, é inútil discutir a pertinência relativa da análise qualitativa ou da análise quantitativa. A sociologia não pretende dominar a resposta a essa questão de fundo. Fernando Henrique Cardoso demonstra que os críticos nem sempre foram generosos com Gilberto Freyre e, mesmo os que foram como o próprio Darcy Ribeiro, raramente deixaram de mostrar suas contradições, seu conservadorismo, o gosto pela palavra sufocando o rigor científico, suas idealizações e tudo que, contrariando seus argumentos era simplesmente esquecido. Elas procedem com mordacidade, impiedosamente ou com ternura, com compreensão, como seja. O fato é que já perdeu a graça repeti-las ou contestá-las. Vieram para ficar. É isso que admira: Casa-Grande & senzala foi, é e será referência para a compreensão do Brasil.  
É impossível deixar de admitir que Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos, que compõem a decadência do senhoriato rural num livro só e deveriam ser publicados juntos, mas que na realidade de um “lugar praticado” tiveram que se mudar da casa-grande para os sobrados em áreas dinâmicas urbanas. Darcy Ribeiro refere-se a essas contribuições assinaláveis à ciência, que se convertem em livros clássicos que todos devemos ler pelo sabor das emoções que eles nos dão de conhecimento novo e fresco. Ordem e Progresso (1957), por exemplo, não é assim. Corresponde melhor à segunda categoria, talvez também porque Gilberto pretendeu seguir um método. Melhor dizendo, em Ordem & Progresso ele tenta obedecer a um plano analítico tão rigoroso quanto é possível a “natureza indisciplinada e anárquica como a sua”. O que resultou foi um livro de qualidade inferior que não se pode comparar aos dois primeiros. O cenário etnográfico de Casa-Grande & Senzala (1933) é o litoral “fértil” e dinâmico da região nordestina. É a região do bode e da paçoca, de securas e fome geralmente associada ao nome da região, o Nordeste do siri e do pirão, da cana e do massapé etc., como é descrito em seu reconhecido texto, onde Freyre retrata a sua região tão amada.
O tema é o estudo integrado do complexo sociocultural que se construiu na zona florestal úmida do litoral nordestino do Brasil, com base na força de trabalho escrava, quase exclusivamente negra; na religiosidade católica impregnada de crenças indígenas e de práticas africanas; no domínio patriarcal do senhor de engenho, recluído na casa-grande com sua esposa e seus filhos, mas polígamo, cruzando com as negras e as mestiças. O objeto de estudo é essa família patriarcal a que o Autor devota toda a sua atenção. Mas, bem pouca ou nenhuma à outra família, resumida na mãe – gerando filhos emprenhados por diversos pais – não raro pelo próprio senhor – que os cria com zelo e carinho, sabendo embora que são bens alheios e que quaisquer dias lhe serão tomados para o destino que o senhor lhes der. O que há de primícias para o texto etnográfico sobre o Brasil é que nos dá um quadro vivo e colorido como não haverá outro em literatura alguma sobre o processo de formação de um país. Nele surgem, redivivos, os variados avós índios, negros, lusitanos e, por via desses, os mouros, judeus e orientais que plasmaram o brasileiro com suas singularidades de gente mestiça de quase todas as culturas, além de aquinhoadas de bens trazidos de toda a Terra. Falando dos primeiros varões portugueses, ingleses, franceses e alemães que viveram dispersos pela costa dos quinhentos, Gilberto Freyre os caracteriza como povoadores à toa, “afeiçoados à vida selvagem em meio de mulher fácil e à sombra de cajueiros e araçazeiros”.
 Curiosamente a experiência antropológica de Renato Ortiz (2020) ocorre ao reconhecer a dinâmica e transformação do contato com Maria Isaura Pereira de Queiroz em Paris. Quando era concièrge em Paris (isto é, o profissional responsável por assistir clientes de hotéis, cruzeiros, entre outros, em qualquer pedido que estes tenham relativos a sua estada), afirma Ortiz, numa rua sem saída, apenas um quarteirão, logo ao lado do Jardim do Luxemburgo, sempre que saía de casa ou voltava, parava em frente a uma livraria que não mais existe. Na época fazia meus estudos de graduação em Vincennes e praticamente desconhecia a geração de pensadores brasileiros que me antecedera. Tinha passado quatro anos na Escola Politécnica (USP), mas deixei o curso de engenharia no último ano e parti. As ciências sociais brasileiras me eram estranhas. Mesmo assim, sem a conhecer, parava em frente à vitrine para contemplar o livro exibido: Réforme et Révolution dans les Sociétés Traditionnelles (Anthropos, 1968).
Uma sensação de orgulho me invadia − Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018), brasileira, me contemplava do outro lado do vidro. A última vez que a vi foi em novembro de 2002 um pouco antes de ela sucumbir à doença do esquecimento. Conversamos e, generosa, presenteou-me com uma edição de I Cangaceiros. I Banditi d’Onore Brasiliani (Liguri Editori, 1993). A conheci em francês e me despedi em italiano. O leitor pode se surpreender com a descrição de algo assim tão banal, mas ao direcionar dessa forma sua atenção, desde a abertura deste texto, tenho clara uma intenção: narrar minha pequena homenagem de um ponto de vista pouco usual. Sei que Maria Isaura fez toda sua carreira na FFLCH da USP, fundou o Centro de Estudos Rural e Urbano, deu aulas, orientou pesquisas e estudantes de pós-graduação. Sua vida entrelaça-se à cidade de São Paulo e à universidade na qual ingressou ainda em 1946. Alguns textos que consultei, sobre a autora e sua obra, realçam esse aspecto. Entretanto, ao tomar como ponto de partida o exterior, o que se encontra lá fora, meu olhar quer deslocar uma certa narrativa que se faz sobre a história das ciências sociais brasileiras. Consigo assim retocar o retrato de uma grande senhora e, talvez, abrir uma pequena brecha nas interpretações consagradas em relação a nosso próprio passado.
Resumidamente esta experiência de contato revela os seguintes dados sociais: Apesar da diferença de idade, quase 30 anos, tínhamos uma relação de amizade. Ao consultar seus livros na estante do escritório, nas dedicatórias de alguns deles está escrito: “com amizade constante e afetuosa” (Carnaval Brésilienne, Gallimard, 1993); “com toda amizade” (edição italiana de Os cangaceiros). Ela, aliás, tinha participado da banca examinadora de minha livre-docência quando me presenteou com o livro que eu cobiçava na vitrine parisiense: “lembrança de uma velha livre-docência comemorando a sua, novíssima, e o abraço afetuoso” (“Réforme et Révolution”). Eu a visitava com certa frequência, telefonava e era convidado para um café. Em 1977, quando estava na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pediu que eu organizasse o encontro do grupo de profissionais de sociologia da cultura na reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) realizada em Belo Horizonte. Participamos no Seminário que organizei em Ouro Preto, e que vieram a compor meu livro: Cultura Brasileira e Identidade Nacional (1985) foram primeiro publicados como artigos nos Cadernos do CERU, do qual ela era a editora principal.
- Maria Isaura não era uma pessoa de fácil convivência; tinha sido educada nos moldes tradicionais da elite paulista dos anos 1920-1930. Esquece-se de que nessa hierárquica sociedade brasileira as relações entre professor e aluno, pais e filhos, homens e mulheres eram bastante formais, havia todo um código, bastante rígido  regendo a interação das pessoas. De alguma maneira tal formalidade se desfazia entre nós, talvez por causa da diferença de idade − minha geração tinha sido educada dentro de outros moldes. O trabalho intelectual nos unia, mas outros aspectos também nos aproximavam. Eu era um outsider, estrangeiro, não tinha cursado a USP; conhecia a história das disputas entre as cadeiras de Sociologia I e II, os conflitos envolvendo o meio acadêmico paulistano, mas essas coisas eram indiferentes para mim. Tínhamos ainda dois pontos em comum: Paris e Roger Bastide. Maria Isaura dizia que seu pai era francófilo desde cedo a submergira na cultura francesa; em meados dos anos 30, ela saindo da adolescência, seu pai ganhou na loteria e foi com a mulher e as duas filhas a Paris. Ficaram vários meses em um hotel. Esse tipo de relato e de experiência me fascinava, lembrava os escritores “malditos” norte-americanos “exilados” nessa França pós-Grande Guerra. Ela retornou a Paris inúmeras vezes, numa época em que o deslocamento se fazia por navio; nos anos 1950 fez seu doutorado sobre o messianismo do Contestado na École Pratique des Hautes Études. Seu livro Os Cangaceiros (Queiroz, 1977) foi escrito em francês tendo sido publicado pelo editor Julliard em 1968, mas a tradução para o português, realizada pela autora, é bem posterior. 

Maria Isaura, afirma o antropólogo Renato Ortiz (2020), foi a mais importante socióloga brasileira. Uma das poucas que conseguiram reconhecimento internacional com tradução de seus livros para o francês, italiano e espanhol. No entanto, a afirmação que faço não se impõe enquanto tal. A velha senhora nunca conseguiu no Brasil o prestígio que merecia. Nos encontramos assim diante de uma espécie de esquecimento modelar pelos pares. Nem mesmo a literatura feminina ou feminista − que procura redefinir o papel das mulheres na sociedade e se contrapõe com outros olhos a uma versão da história que se solidificou - se interessou por seu destino. Esse esquecimento sistemático, inconsciente ou não, é problemático, distorce o passado e compromete o presente. Por que a considero importante? Certamente por causa de sua obra. A noção de obra implica uma totalidade, ou seja, a continuidade do trabalho intelectual. Mais do que isso: em literatura se aplica tanto a um manuscrito, como a uma produção, seja de uma pessoa, seja de uma coletividade. 
Neste sentido difere da ideia de produtividade, atualmente vigente, quando se refere aos critérios, geralmente quantitativo, relativo à produção científica. A produtividade sublinha a particularidade de cada ponto descontínuo e por isso pode ser contabilizada em números. É preciso um esforço disciplinar e engajamento para que ela se prolongue no tempo e se realize em textos, livros ou artigos, que se articulem à sua totalidade. Uma obra se define ainda pela variedade de temas sobre os quais se debruça. Ela lecionou na França em vários centros: na Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais, no Instituto da América Latina e na Universidade de Paris XI.  Foi  Visitante no front da Révolution Tranquille (Canadá) e no Senegal. Publicou na França e  traduziu uma parte em outra parte: o italiano, inglês e espanhol. A Dança de São Gonçalo num Município Bahiano venceu o 11º concurso Mário de Andrade em 1957, o Prêmio Jabuti em 1976, pelo ensaio: O Messianismo no Brasil e no Mundo.   Em 1990, Maria Isaura Pereira de Queiroz se tornou a primeira professora Emérita mulher da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
Seu labor criativo no âmbito da sociologia das emoções estende-se por vários anos tendo como ponto de partida A Guerra Santa no Brasil e de chegada o Carnaval brasileiro: um curioso destino. Sua capacidade de síntese cobre um extenso período profissional, de pluralidade e diversidade onde irrompe folclore, messianismo, religiões populares, mandonismo rural, campesinato, banditismo social, cultura brasileira. Michel Foucault admitia a insuficiência de podermos deslocar para os dispositivos e os procedimentos técnicos uma multiplicidade humana, capaz de transformar, disciplinar e depois gerir, classificar e hierarquizar os desvios concernentes à aprendizagem, saúde, justiça, forças armadas ou trabalho. Nas instituições contemporâneas o que faz andar são relíquias de sentido e muitas vezes detritos: os restos invertidos de nossas grandes ambições. Nome que no sentido preciso da memória deixaram de ser próprios. Mas o que é gozoso na atividade intelectual são os níveis simbolizadores da existência que Berger e Luckmann denominaram-no construção social da realidade. E que na fenomenologia de Certeau se fundem três domínios espaciais e significantes: o crível, o memorável e o primitivo.
Bibliografia geral consultada.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, Historia y Etnologia de los Movimientos Mesiánicos. Reforma y Revolución en las Sociedades Tradicionales. México: Siglo Veintiuno Editores, 1969; Idem, “Uma Nova Interpretação do Brasil: A Contribuição de Roger Bastide à Sociologia Brasileira”. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (20), 101-121; 1978; Idem, Roger Bastide, professor da Universidade de São Paulo. São Paulo: Edição Estudos Avançados, 8 (22), 1994;  MANNHEIM, Karl, “El Problema de las Generaciones”. In: Revista Española de Investigaciones Sociológicas, n° 62, pp. 193-242; 1993; LACLAU, Ernesto, La Razón Populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2005; LE BRAS, Gabriel; LEGENDRE, Pierre, La Police Religieuse dans L`Anciene France. Paris: Editeur Mille et Une Nuits, 2010; MARX, Karl, Contribuição à Crítica da Economia Política. 4ª edição. São Paulo: Editora WMF/Martins Fontes, 2011; LOPES, Aline Marinho, Vida Rural e Mudança Social no Brasil: Tradição e Modernidade na Sociologia de Maria Isaura Pereira de Queiroz. Tese de Doutorado em Sociologia. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012; VASCONCELLOS, Dora Vianna, “Maria Isaura Pereira de Queiroz: Uma Interpretação sobre o Desenvolvimento Brasileiro e seus Processos de Inovação Social”. In: Estud. Soc. e Agric. Rio de Janeiro, vol. 22, n° 2, 2014: 310-326; VILLAS BÔAS, Glaucia, “Para Ler a Sociologia Política de Maria Isaura Pereira de Queiroz”. In: Revista Estudos Políticos, n° 0. Rio de Janeiro: Universidade federal do Rio de Janeiro, março, 2010; Idem, “Amizade e Memória: Maria Isaura Pereira de Queiroz e Roger Bastide”. In: Revista Lua Nova, (91), 2014; CAMPOS, Maria Christina, “Maria Isaura Pereira de Queiroz, a socióloga que tentou decifrar o Brasil”. In: Cadernos CERU, 30 (1), 395-442; 2019; LANG, Alice, “Maria Isaura Pereira de Queiroz: um olhar sobre a política”. In: Cadernos CERU, 30(2), 156-166; 2020; ORTIZ, Renato, “Pequena homenagem a uma grande senhora”. In: Sociol. Antropol. Vol.10, n°1. Rio de Janeiro, jan./apr. 2020; entre outros.