sexta-feira, 31 de julho de 2020

Maria Sylvia de Carvalho Franco – Karl Marx & Discursos Didascálicos.

O próprio Marx foi intensamente explorado em discursos didascálicos”. Maria Sylvia de Carvalho Franco

 

                    

            Maria Sylvia Carvalho Franco formou-se em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP) em 1952 e foi colega de turma do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Doutorou-se em 1964, sob a orientação do sociólogo Florestan Fernandes, com a tese: Homens Livres na Velha Civilização do Café (FFLCH/USP), considerada por um júri de intelectuais um dos 20 ensaios mais significativos da história do país. Maria Sylvia dirigiu o Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) nos anos mais repressivos da ditadura militar (1964-1979). Tornou-se Livre-Docente em 1970 e professora titular em 1989. A Universidade de São Paulo tem um padrão: o teor de herança europeia, de ordem liberal e positivista trazido por aqueles célebres sociólogos, filósofos e cientistas políticos franceses. Desde Roger Bastide, que tem uma carga formalista enorme, até os que seguem a orientação de Émile Durkheim, um dos pais da sociologia moderna. Essa herança vem modelando a esfera social de uma tradição acadêmica que é calcada na pesquisa, fortemente de base tecnológica.  

             O sistema de Cátedras implantado na Universidade de São Paulo modificar-se-ia com a criação dos Departamentos na década de 1970. Tornava difícil a possibilidade de ascensão para mulheres. Muitas acabavam nem tentando os cargos mais altos ou a titulatura. Outros nem os perseguiam. As condições objetivas não eram realmente as mesmas igualmente para todos, o que não impediria que as mulheres escrevessem trabalhos clássicos, do ponto de vista acadêmico, como por exemplo, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens Livres na Ordem Escravocrata (1964); Paula Beiguelman, A Formação do Povo no Complexo Cafeeiro: Aspectos Políticos (1978); Maria do Carmo Campello de Souza, Estado e Partidos Políticos no Brasil (1930-1964) (1976); Eunice Ribeiro Durham, A Caminho da Cidade: A Vida Rural e a Migração para São Paulo (1973); Maria Isaura Pereira de Queiroz, O Mandonismo Local na Vida Política Brasileira (1969), entre outros.  Maria Isaura P. de Queiroz, por exemplo, nunca pretendeu a titulação máxima, seja a regência da Cátedra, seja a Titulatura, por não querer ter a vida de pesquisadora e de professora atrapalhada pelas infindáveis atividades burocráticas e  administrativas típicas desses cargos. Mas talvez não corresponda à realidade: teve de concordar em ceder para Azis Simão o cargo de Titular.

            A primeira grande contribuição de Azis Simão para a sociologia brasileira foi publicada em 1947: uma pesquisa sobre o voto operário em São Paulo. Pela primeira vez, a universidade estudava o comportamento político proletário. Estava definida uma linha de pesquisas que pautaria a carreira universitária do sociólogo e professor. A tese de Livre-Docência, defendida em 1964, transformou-se no livro: Sindicato e Estado. Suas Relações na Formação do Proletariado de São Paulo (1966), que aborda a gênese e formação do proletariado paulista. Contudo, tornou-se professor em 1957, vencendo os obstáculos impostos por sua cegueira. A nomeação oficial só veio dois anos depois de já estar trabalhando. Azis foi reprovado no exame e suas aulas, durante esse período, eram acompanhadas pela designação de um corpo médico. A contratação só pôde se dar oficialmente por meio de uma Lei Especial, apesar de o diploma de Azis Simão credenciá-lo ao magistério. Nascido em 1° de maio de 1912, tinha uma vocação política e vinculou-se ao movimento operário. Ligado aos intelectuais modernistas, também atuou no jornalismo e participou ativamente da oposição ao Estado Novo. Foi um dos fundadores da União Democrática Socialista. Azis Simão morreu em 1990 deixando sua contribuição e seu exemplo afetivo de vida e superação.


A chave para explicar o ressurgimento da escravidão nas empresas açucareiras,  segundo Franco (1978: 30 e ss.), está na organização destas últimas, determinada pela estrutura dos mercados capitalistas, que já envolviam a interferência nos centros produtores. É a isso que se deve a configuração do latifúndio, das grandes unidades de produção para a obtenção regular quantitativamente do produto, mediante trabalhadores numerosos, conjugados e controlados por sujeitos que detinham a propriedade do trabalho. Trata-se de uma situação social em que se opera a dissociação radical entre o produtor direto, os meios de produção e o produto do trabalho. Significava isto que se determinava historicamente a constituição de uma categoria de homens expropriados dos meios de produção e postos a serviço de outros. O recurso ao trabalho escravo poderia ser explicado erroneamente com o argumento de que na colônia seria impossível a preservação de homens livres, na condição de expropriados, dada a abundância de terras, onde todos poderiam encontrar meios de subsistência. O entrosamento entre produção colonial e comércio capitalista, levou à organização das grandes propriedades latifundiárias, numa época em que jamais poderiam ter sido utilizados homens livres, pela simples e forte razão de que o sujeito expropriado   obrigado a vender sua força de trabalho não existia como categoria social, capaz de preencher as necessidades de mão-de-obra requeridas pela produção colonial. 

         Ipso facto, a formação dos empreendimentos açucareiros não só implicou a exploração sistemática e maciça de homens expropriados, mas seu próprio crescimento, integrado aos mercados em expansão, estava condicionado a um crescimento regular de mão-de-obra. Inscrita no movimento de expansão do setor açucareiro, a escravidão moderna representa um momento importante na organização social do trabalho, em vista de objetivos econômicos. Desse modo, impõe-se a necessidade de uma massa de homens disponíveis, prontos para serem incorporados ao processo de produção. A escravidão representa, face à exigência, a possibilidade de mobilização rápida e plástica de mão-de-obra, adequando-a às necessidades da produção crescente. Correspondendo a essas exigências, a empresa açucareira assume a forma de grande unidade de produção, assentada numa base técnica simples, necessária e estável e cuja via de crescimento dependia da extensão, em termos absolutos, da exploração dos fatores de produção.              

          A grande propriedade colonial sintetizou dois princípios reguladores da vida econômica: produção direta dos meios de existência e produção de lucro, que são essencialmente contraditórios. Na história de acumulação do capital, a particularidade brasileira, as duas práticas são constitutivas uma da outra. A produção e o consumo diretos encontram sua razão de ser na atividade mercantil, como meios determinado juntamente com a extensão das terras apropriadas, a tecnologia rudimentar, a escravaria. A combinação colonial dos fatores de produção assentou, em larga medida, na possibilidade do latifúndio auto-suprir-se, concebendo desse modo o vínculo entre a produção direta dos meios de vida e a produção mercantil, como práticas que se engam e se determinam, não correrá o risco de perder o significado histórico da economia e da sociedade coloniais. Para compreender o curso da história colonial, é preciso acentuar que a produção de gêneros tropicais fez parte desse movimento, em que se generalizam as relações de troca. Contudo, com o latifúndio e a escravaria se instala um modo de produção presidido pelo capital, vale dizer, um sistema particular de dominação social.

           Neste sentido, o trabalho escravo inscrito na modalidade particular de produção definida na Colônia, configura-se como contrapartida necessária do trabalho livre na Europa. O desenvolvimento de ambos e o crescimento dos mercados, na Europa e na Colônia, formaram uma rede unitária de determinações. Também entrelaçado nessa rede, está o destino do homem livre e pobre no Brasil, com sua existência quase dispensável, mas que por longo tempo o colocou a salvo de transformar-se num assalariado. A contradição não antagônica é que o trabalho livre na Europa e na Colônia se negam e se determinam através da mediação da escravidão. A modalidade de dominação que se desenvolveu na sociedade colonial apresenta regularidades, muito embora esteja marcada pelas diferenças existentes entre o estatuto do escravo e do homem livre. Em seu sentido mais profundo e mais amplo, nunca é demais repetir, essa dominação social tem suas raízes engendradas no regime de produção estabelecida, e mais especificamente, na estrutura das propriedades agrícolas. A escravidão, que nelas concentrou pessoal numeroso, e o caráter de latifúndio, que as manteve isoladas umas das outras e distantes dos povoados, tornaram necessária uma complicada diferenciação de funções internas relativas ao cultivo de gêneros alimentares, indústria doméstica, oficinas de manutenção, serviços religiosos etc., lhes conferiu o cunho que chama atenção: a aparência de uma unidade autônoma de produção e consumo.

        A tendência é conselheira quando temos de um lado, um quadro de pensamento que vai se formando e, de outro, que não se mistura, não amadurece no plano das ideias, pois encontra dificuldade da corporação admitir as hierarquias, as subjetividades culturais das práticas de trabalho e das práticas em grupos que se constituem na troca de favores.  O Caso da Vara é um dos contos mais famosos de Machado de Assis. Publicado inicialmente na Gazeta de Notícias, no ano de 1891.  Neste conto, Machado tem como escopo o drama pessoal de Damião, o protagonista, que deseja abandonar o seminário. Damião, seminarista sem vocação, fugido do seminário, troca a vara com que Sinhá Rita irá castigar a negra Lucrécia - pelo trabalho não terminado - pelos favores que a mesma lhe prestará intercedendo junto ao padrinho e, por este ao pai, no caso da fuga do seminário. Neste conto, que o autor situa em 1850, fica claro a relação de favor que caracterizava as relações sociais no século XIX brasileiro. Pode-se perceber a intenção do autor em analisar as cruéis relações de dominação entre seres iguais. Todos subjugados por um sistema político e social marcado pelo autoritarismo, mas que não hesitam em reproduzir e legitimar a opressão de que são as próprias vítimas. O ensaio Caso da Vara representa um dos exemplos típicos da crítica analítica machadiana, sutil, mas repleta de uma ironia amarga tendo como escopo a educação escolar. 

          Sobre seu processo de formação técnico-metodológico Maria Sylvia de Carvalho Franco responde da seguinte forma: - Parece-me que o melhor como resposta, é reconstituir um pouco a atmosfera intelectual dos anos 1950 e 1960. Havia a preocupação de estabelecer, entre nós, a sociologia e a antropologia como disciplinas científicas autônomas e rigorosas, afastando-se tudo o que se considerava “impressionista” na discussão metodológica. Duas premissas parecem ter conduzido a essa orientação. Primeiro a própria criação da Faculdade, o modo como foi implantada. A tradição francesa, com seu racionalismo de um lado, e seu positivismo de outro, veio ao encontro das tendências autoritárias do setor liberal paulista. Nem foi por outro motivo que o grupo [em torno de] de O Estado de S. Paulo, ligado ao organicismo e ao evolucionismo, empenhou-se em trazer a missão de jovens agregés. Vindo com eles, o cientificismo passou pelas senhoras diletantes, como salienta Lévi-Strauss sem dar-se conta de que isto não acontecia por acaso e do quanto o saber formal e abstrato de que era portador vinculava-se à burguesia que o festejava. Nos setores de Ciências Sociais, Émile Durkheim e Marcel Mauss tiveram grande importância. Mais tarde, os alemães, notadamente Max Weber e Ferdinand Tönnies, foram lidos com espírito análogo, atravessados pelo interesse “positivo”. Os conceitos a priori do último, ou as formas lógicas do primeiro, foram compreendidos pelo prisma empirista. Preparado este campo, o desenvolvimentismo dos anos 1950 e 1960 teve seara fértil.

            Os conceitos a priori do último, ou as formas lógicas do primeiro, foram compreendidos pelo mesmo prisma analítico e empirista. A passagem do orgânico para o mecânico, do tradicional para o moderno, da comunidade para a sociedade, do estamento para a classe, tornou-se a moeda corrente do pensamento, parâmetros propícios a colher os resultados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe. Criticava-se Parsons, mas prevalecia sua leitura “sistemática” dos alemães, aqui difundida pela versão de Gino Germani. Nessa altura, o próprio Marx foi intensamente explorado em discursos didascálicos, sucedendo-se os esquemas doutrinários expressos pelas fórmulas estabelecidas, sem maiores preocupações de ordem conceituai. Misturava-se, deste modo, noções dos mais divergentes setores intelectuais, mas não como simples “bovarismo”, tal como dizia Cruz Costa. Esta abstração - realidade brasileira - até hoje constitui a varinha mágica de valorização, bastante autoritária, dos estudos chamados “concretos”. Não ocorre, um só instante, a esses defensores do "real", que este último, usado como Abre-te-Sésamo, não passa de metafísica deplorável. Esta limitação fechou o campo à própria compreensão da dialética moderna. Tome-se, por exemplo, o problema do materialismo. Dadas as restrições definidas pelas famosas três fontes - filosofia clássica alemã, socialismo francês e economia política inglesa - sua gênese em Marx é entendida apenas em função desses resultados históricos. Jamais se questiona o trabalho de remodelação realizado pelo renascimento inglês, pelas luzes francesas e pela revolução teológica alemã, frente ao materialismo greco-romano. Não é por mera erudição acadêmica que o jovem Marx inicia seu trabalho com a tese [de doutorado] sobre a Diferença [da Filosofia da Natureza] dos Sistemas de Demócrito e Epicuro, e termina com a inversão completa do idealismo, propondo, no Capital e na Critica do Programa de Gotha, uma distinção originária entre Natureza e a alienação radical vigente na sociedade capitalista.

        De outra parte, o positivismo sempre foi contrário ao liberalismo e este sempre se moveu em seu campo originário de rompimento com as bases teológicas do saber e do poder. Entre nós, uma seleção muito precisa foi operada no campo da consciência burguesa, em continuidade com a visão acadêmica herdada dos franceses: o pensamento sofreu, por assim dizer, um corte nítido e arbitrário no século XVII. De um lado, isto é compreensível pela vulgarização do iluminismo, onde o medievo confunde-se com as trevas. Conserva-se, entre nós, de preferência este lado das Luzes, sem incorporar sua contrapartida necessária: a valorização do pensamento anterior e independente do cristianismo. Até hoje (1981) o Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP). não conta com um curso de Filosofia Medieval, visto como requinte de especialização, e os próprios cursos de Filosofia Antiga não recebem o apoio de que necessitam. No campo de análise da filosofia os rumos de interpretação foram diversos. Houve maior cautela teórica e até mesmo certa “polícia do conceito”, como se dizia então, sobretudo no terreno da tradição dialética, mas sem grande repercussão construtiva. A divisão do trabalho intelectual, valorizando o tecnicismo, fechava, pela especialização, todo contato mais profícuo (...). Justamente por causa das restrições do cientificismo, as pessoas que se aventuravam a refletir sobre seus próprios procedimentos [metodológicos] de trabalho ficavam sem recursos [analíticos].  

            Ler interminavelmente Descartes, segundo a ordem das razões, é cortar de modo arbitrário uma questão subjacente ao próprio texto do filósofo: a recusa de fundar o saber sobre a ordem das matérias. Ora, este é o problema-chave de toda a controvérsia teológico-política, simultaneamente epistemológica, dessa virada dos tempos. Quando nos encontramos face aos textos materialistas e anti cartesianos do século XVIII, como o anônimo Alma Material, constatamos a força com que se estabelecia a junção materialismo - ateísmo, no ataque desencadeado pela política religiosa. Descartes aí surge, num primeiro momento, como baluarte da Igreja, antes da segunda investida dos católicos aristotélicos contra sua obra. Querer captar a articulação interna do discurso cartesiano, sem considerar rigorosamente o ponto em que ele se torna significativo, é sem dúvida passar longe de sua “ordem das razões”. Foi nesse ambiente intelectual que me formei – afirma Maria Sylvia - e contra ele procurei pensar. Por exemplo, foi com o acervo de conhecimentos recebidos em Sociologia e Antropologia que iniciei uma pesquisa sociológica sobre comunidade, num vilarejo do interior de São Paulo, em região tida por tradicional. Com surpresa – afirma Franco - comecei a constatar que nem teórica, nem empiricamente, minhas observações tinham qualquer coisa a ver com as chamadas relações comunitárias, de parentesco, de vizinhança ou de trabalho.

Depois de demorada, atenta e infrutífera pesquisa de campo, e levada pelas pistas que aí se apresentaram, dei-me conta de que a única possibilidade de compreender o que se passava diante de mim seria através de uma reconstituição histórica da vida caipira. Nos arquivos, nova surpresa: a violência que os esquemas acadêmicos atribuíam essencialmente à escravidão e esta com sua violência e irracionalidade, é contraposta à exploração capitalista racional; a violência colonial continua explicada tautologicamente pelo trabalho compulsório, revelava-se enraizada em outro solo, mais compreensivo, permeando a sociedade como um todo, inclusive as “harmoniosas” comunidades.  Pouco a pouco o quadro foi tomando forma e o recurso ao regime escravista - sua própria violência - foi se determinando no interior do sistema capitalista, não como elemento justaposto pela atividade mercantil, mas como recurso rápido e plástico para suprir as necessidades de organização do trabalho postas pelas novas articulações da produção e da circulação de mercadorias. Com essa trajetória da sociologia à história, à filosofia e à literatura; da pesquisa de campo ao arquivo e à análise e texto - minha carreira tem sido contestada por alguns colegas “especialistas”. A exigência de não me fechar em compartimentos estanques tem me valido, embora com dificuldades, a vantagem de pensar mais livremente e tem me permitido também - a experiência com alunos é decisiva - ajudar outras pessoas a refletir com independência, a usufruir da cultura e ser responsável na atividade intelectual. Nos últimos anos venho me empenhado - diante da febre do popular, do prático, do nacional - em discutir as falácias e componentes de dominação, quando não a irresponsabilidade, presentes na imediatez das preocupações com a realidade brasileira.

Entendemos que o regime iniciado com o golpe de Estado em 1° de abril de 1964, houve um aumento permanente do autoritarismo, marcado na área da educação com o banimento de organizações estudantis como a União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1967, consideradas subversivas. Em 1969, foi tornado obrigatório o ensino de Educação Moral e Cívica nos graus de ensino sendo que, no ensino secundário, a denominação mudava para a famigerada Organização Social e Política Brasileira (OSPB). Em 1964, no contexto da chamada Guerra Fria, foram assinados os acordos MEC-Usaid, entre o Ministério da Educação e a Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos, através dos quais foram introduzidas algumas mudanças de caráter tecnicista. Em 1968, a Lei de Diretrizes e Bases passaria por mudanças significativas, com base em diretrizes do Relatório Atcon (de Rudolph Atcon) e do Relatório Meira Mattos, coronel da Escola Superior de Guerra. Foram negociados secretamente e só se tornaram públicos em novembro de 1966 após intensa pressão política e, sobretudo popular. Foram estabelecidos entre o Ministério da Educação (MEC) do Brasil e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), na sigla em inglês para reformar o ensino brasileiro de acordo com padrões impostos pelos Estados Unidos da América (EUA). Apesar da ampla discussão anterior sobre a educação, iniciada ainda em 1961, essas reformas foram implantadas pelos militares que tomaram o poder após o golpe militar de 1964.

O fiasco intitulado Movimento Brasileiro de Alfabetização foi criado em 1967, objetivando diminuir os níveis de analfabetismo entre os adultos. O primeiro presidente da Fundação Mobral foi o capelão militar Filipe Spotorno, substituído pelo banqueiro, economista, ministro da Fazenda e ministro do Planejamento Mário Henrique Simonsen. Este foi substituído por Arlindo Lopes Correia, engenheiro e antigo colaborador de Roberto Campos no Ministério do Planejamento desde 1964. A ineficiência pedagógica do Mobral foi comprovada através dos resultados estatísticos do Censo de 1980, que revelaram o aumento de 540 mil pessoas no número absoluto de analfabetos de 15 anos e mais no decênio 1970-1980. Entre os anos 1960 e 1970, foi realizada uma aparente “reforma universitária”, substituindo-se o sistema de Cátedras pelo de Departamentos ou Institutos, além de ocorrer o desmembramento das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL). Em 1971, com uma nova LDB, ocorreu a reforma dos ensinos fundamental e médio, durante o governo do general Médici. Foram integrados o primário, ginásio, secundário e técnico. Disciplinas como Filosofia (no 2º grau) desapareceram e outras foram aglutinadas em História e Geografia formaram, no 1º grau, os chamados “Estudos Sociais”. As Escolas Normais foram extintas. Em 1971, é inventado o “vestibular classificatório”, garantindo a vaga nas universidades apenas até o preenchimento das vagas disponíveis. Em 1982, foi retirada a obrigatoriedade do ensino profissional nas instituições de Ensino Médio.

            Um Colégio de Aplicação (CA) representa um tipo de escola, uma instituição de ensino fundamental e/ou médio, mantido e gerido por uma universidade publica em geral, e dedicado a aplicar as práticas pedagógicas nela desenvolvidas. Por ser ligado a uma universidade, um colégio de aplicação serve de campo de experimentação para inovações em didática e gestão escolar. Sua função social é integrar a relação teoria e prática na formação de alunos e professores. Universidades utilizam os colégios de aplicação como local de testes de hipóteses das pedagogias, bem como local de estágio profissional para os formandos das universidades. Os colégios de aplicação têm a função de pôr em prática inovações que sejam estudadas e pesquisadas no campo da Educação como área de conhecimento. Como parte integrante de universidades, os colégios de aplicação têm a função de disciplinar o tempo para o exercício das atividades de ensino, pesquisa e extensão. Universidades públicas manietadas por reconhecido Esprit de corps, por aquela capacidade inventada de um grupo fechado de manter a crença em uma instituição ou objetivo, diante de oposição ou dificuldades, não vislumbram nem por acidente constituir um Colégio de Aplicação.

         Os professores de ensinos fundamental e médio nesses colégios são também professores da universidade ainda que não dedicados ao ensino superior, muitos com titulação acadêmica de pós-graduação (Mestrado, Doutorado), que cumprem tarefas como pesquisadores, produzindo novas concepções de ensino e pesquisa e no plano da extensão acadêmica retornando o conhecimento (feedback) da instituição para a sociedade. Frequentemente, os alunos graduandos em cursos de Educação, Pedagogia e as tradicionais licenciaturas em Letras, Matemática, Química, História, Biologia, Geografia, Física e Educação Física de universidades que mantêm colégios de aplicação realizam obrigatoriamente seus estágios docentes nessas escolas. Mesmo inseridos na estrutura institucional de universidades, devido à história social da universidade, nem sempre os Colégios de Aplicação têm instalações localizadas no campus universitário. Alguns podem ter prédios próprios, separados dos campi principais. Mas a maioria das instituições públicas, no plano estadual e federal, não têm colégios de aplicação. A questão nevrálgica diz respeito a seguinte pergunta: o que é que os professores, os coordenadores e chefes de unidades colocaram em seu respectivos lugares?

A Universidade Federal de Santa Catarina, por exemplo, foi criada pela Lei n° 3.849, de 18 de dezembro de 1960, vinculada ao Ministério da Educação e Cultura. Em fevereiro de 1961, foi criado um Ginásio de Aplicação, visando a dar cumprimento ao que estabelece o Decreto-Lei n° 9.053, de 12 de março de 1946. O funcionamento do Ginásio de Aplicaçao proporcionou ao aluno do curso de Didática, a prática de ensino, requisito exigido para a formação pedagógica necessária ao desempenho da função docente do primeiro ciclo do Ensino Médio, o curso ginasial, na Universidade Federal de Santa Catarina, foi autorizado pela Portaria n° 673, de 17/07/61, da Diretoria do Ensino Secundário do Ministério de Educação o e Cultura, filiando-o ao Sistema Federal de Ensino. De acordo com depoimentos dos professores do Centro de Ciências da Educação que atuaram na década de 1960, os professores do Departamento de Métodos de Ensino do Centro de Educação (CED) eram também professores do Ginásio de Aplicação. Isto é, estes professores ministravam aulas nas diversas práticas de ensino e eram responsáveis pela regência de classe neste Colégio. Estes dados não constam das atas da Congregação da referida Faculdade. No primeiro ano de funcionamento, a Diretora do Instituto Estadual de Educação, de Florianópolis, definiu que duas turmas daquele estabelecimento de ensino passariam a constituir as 5ª e 6ª séries do Ginásio de Aplicação, conforme o Livro nº 1 de Atas da Congregação de Professores da Faculdade Catarinense de Filosofia, 1961 (cf. Sena, 1987).

No caso da professora Guiomar Osório de Sena, O Colégio de Aplicação no Contexto das Universidades Brasileiras (1987) é pesquisa pioneira por três motivos: a) foi realizada pelo emergente curso de Mestrado em Administração da Universidade Federal de Santa Catarina; b) trata-se de pesquisa teórica e empírica realizada entre 1978 a 1984, e na relação das entidades brasileiras cujos dirigentes são membros do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB) de dimensão nacional; c) com os dados colhidos na periodização da pesquisa no Catálogo das Universidades Brasileiras, existem cinquenta e nove (59) Instituições de Ensino Superior (IES) federais, oitenta e cinco (85) estaduais, cento e vinte e duas (122) pertencentes â rede municipal de ensino e seiscentas e vinte e duas (622) vinculadas ã rede particular de ensino. O universo da pesquisa é constituído de onze (11) Colégios de Aplicação pertencentes a universidades federais, cinco (5) Colégios de Aplicação Estaduais, dos quais três (3) vinculados a universidades estaduais e dois (2) a instituições isoladas estaduais, um (l) vinculado a instituição isolada municipal, um (1) pertencente à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e, consequentemente, da rede particular de ensino e vinte e um (21) Colégios de Aplicação vinculados a instituições isoladas particulares. Dos trinta e nove (39) Colégios de Aplicaçao analisados na pesquisa empírica, dois (2) foram criados antes de 1950, sendo um deles anterior ao surgimento do Decreto-Lei n° 9053, de l2 de março de 1946, que “cria um Ginásio de Aplicaçao anexo às Faculdades de Filosofia do País”. Isto é,  2,5% do total existente.

            A ocupação de um cargo representa uma profissão. Isso se evidencia primeiro, na exigência de um treinamento rígido, que demanda toda a capacidade de trabalho durante um longo período de tempo e nos exames especiais que, em geral, são pré-requisitos para o emprego. A posição do funcionário tem a natureza de um dever. Isso determina a estrutura interna de suas relações, jurídica e praticamente, pois a ocupação de um cargo não é considerada como uma fonte de rendas ou emolumentos a ser explorada como ocorria, comparativamente, durante a Idade Média e frequente até recentemente. Nem é  a ocupação do cargo considerada como uma troca habitual de serviços por equivalentes, como é o caso dos contratos livres de trabalho. Seu ingresso, inclusive na economia privada, é considerado como a aceitação de uma obrigação específica de administração fiel, em troca de uma existência de trabalho segura. É decisivo para a natureza específica da fidelidade, que no tipo puro utilizado na análise social, ele não estabeleça uma relação pessoal, como era no caso da fé que tinha o senhor ou patriarca nas relações feudais ou patrimoniais. A lealdade moderna é dedicada a finalidades impessoais e funcionais. Atrás das segundas, estão habitualmente, é claro, “ideias de valores culturais”. 

            A burocracia moderna, segundo Max Weber (1982), funciona da seguinte forma específica: 1. As atividades regulares necessárias aos objetivos são distribuídas de forma fixa como deveres oficiais; 2. A autoridade de dar ordens se distribui de forma estável, sendo rigorosamente delimitada  pelas normas relacionadas com os meios de coerção, físicos, sacerdotais ou outros que possam ser colocados à disposição dos funcionários ou autoridades; 3. Tomam-se as medidas metódicas para a realização regular e contínua desses deveres e para a execução dos direitos correspondentes; somente as pessoas que têm qualificações previstas por um regulamento geral serão empregadas. Nos governos públicos e legais, esses três elementos constituem a autoridade burocrática. No domínio econômico privado, constituíam a administração burocrática. A burocracia assim compreendida se desenvolve plenamente em comunidades políticas e eclesiásticas apenas no Estado moderno, e na economia privada, apenas nas mais avançadas instituições do capitalismo. A autoridade permanente e pública com jurisdição fixa, não constitui a norma histórica, mas a exceção. Os princípios da hierarquia dos postos e dos níveis de autoridades significam um sistema firmemente ordenado de mando e subordinação no qual há uma supervisão dos postos inferiores pelos superiores. Com o pleno desenvolvimento do tipo burocrático de dominação legítima, a hierarquia dos cargos é organizada burocraticamente. 

          Assim, o princípio da autoridade hierárquica de cargo encontra-se em todas as organizações burocráticas: no Estado e nas organizações eclesiásticas, bem como nas grandes organizações partidárias e empresas privadas. A administração de um cargo moderno se baseia em documentos escritos (“os arquivos”), apresentados em sua forma original ou em esboço. Há, porém, um quadro de funcionários e escreventes subalternos de todos os tipos. O quadro institucional de funcionários que ocupe ativamente um cargo público, juntamente com seus arquivos de documentos e expedientes, constitui uma “repartição”. Na empresa privada a “repartição” é frequentemente chamada “escritório”. Mas, em princípio, a organização, a organização moderna do serviço público separa a repartição do domicílio privado do funcionário e, em geral, a burocracia segrega a atividade oficial como algo distinto da esfera da vida privada. Enfim, a administração burocrática, pelo menos toda a administração especializada, pressupõe habitualmente um treinamento especializado e aparentmente completo.

       O mesmo quase não correra com Paula Beiguelman (1953; 2003), que pretendia abertamente a obtenção da regência. Ou, de outra forma, Gioconda Mussolini (1953; 1980), que não conseguiu a Cátedra, por causa de infindáveis auto-exigências. Esses fatos sociais não isolados nas universidades públicas supõem que o modo de funcionamento  das Cadeiras, segundo Espirandelli (2008: 86), seja realmente um bom pressuposto para pensar as formas de sua organização e estrutura assimétricas, bem como sua relação com as origens sociais dos respectivos integrantes, além das relações de gênero e de geração entre eles. Estariam todas as condições dadas na lógica do interior do sistema burocrático. Esta cartografia do desejo demonstra o quanto o formato rígido e patriarcal delas limitava, restringia ou moldava os destinos intelectuais, escolhas e opções por temas e objetos de pesquisas. Esse funcionamento estava, portanto, na base da produção das obras das professoras que integram essas mesmas Cadeiras.  Daí que a suposição sobre preconceito oriundo das relações de gênero soma-se às injunções de origens sociais, de geração e de disputas de poder nas relações no interior das cadeiras, para a compreensão da questão. Nos anos 1970 “migraram” para a área de Ciência Política do tradicional Departamento do curso de Ciências Sociais.

          Paula Beiguelman fora (1953; 2003) uma grande amiga de Gioconda Mussolini (1953; 1980) na Faculdade nasceu na cidade litorânea de Santos em 1926. Com origens proletárias e urbanas e de família judia modesta, teve dificuldades econômicas na infância. Estudou em colégio público em sua cidade natal, tendo uma das histórias de vida mais diferenciadas entre as demais. De origem judaica, proveniente do proletariado, seria aluna dedicada e precoce pelos anos de seu nascimento e de formaturas, 1926 e 1944/1945, ingressou na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo com 16 anos de idade por ter sido arrojada. Ao terminar o bacharelado e a licenciatura pela faculdade de Filosofia em 1945 e antes de iniciar a carreira como cientista social, tornou-se funcionária pública concursada do Departamento de Serviço Público. Depois transferiu-se para o Departamento Estadual de Estatística , da Secretaria do Governo. Deixou o emprego quando foi convidada por Lourival Gomes Machado para, comissionada como horista, lecionar na Faculdade em 1949, como Auxiliar de Ensino na Cadeira de Política, no momento em que esta era regida por Charles Morazé. Substituiu em 1952, o primeiro assistente da Cadeira de Política, Lourival Gomes Machado. Foi seu colaborador na Cadeira por vários anos, ao tempo em que ele, regente titular encontrava-se na Europa, trabalhando para a fabulosa Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).   

            Ao longo de seu trabalho na Faculdade teve como principais colaboradores Célia Nunes Galvão Quirino dos Santos e Maria do Carmo Campello de Souza; e, por certo período, contou com o auxílio de Nely Pereira Pinto Curti, Cecy Martinho e Marly Martinez Ribeiro Spínola. Doutorou-se na área de Política com a tese intitulada: Teoria e Ação no Pensamento Abolicionista, em 1961, e tornou-se professora livre-docente com a tese: Contribuição à Teoria da Organização Política Brasileira, em 1967. A importância de Paula Beiguelman reside no estudo da formação política do povo brasileiro, estando esta temática sistematizada nas obras Formação Política do Brasil. Pequenos Estudos de Ciência Política e, a tese A Formação do Povo no Complexo Cafeeiro: Aspectos Políticos. Esta tese foi apresentada no concurso em que disputou com o Livre-docente Fernando Henrique Cardoso, em 1968, a obtenção da regência da Cadeira de Política, tornada vaga com o falecimento de Lourival Gomes Machado. O sociólogo foi o vencedor com a tese: Política e Desenvolvimento em Sociedades Dependentes: Ideologias do Empresariado Industrial Argentino e Brasileiro. Paula Beiguelman era a candidata mais natural ao cargo, devido ter trabalhado com Lourival de modo mais sistemático desde 1954. A esse respeito Spirandelli (2008) sustenta a ideia de que a hegemonia da forma de se fazer ciência na Faculdade de Filosofia da USP era o intuito do grupo em torno de Florestan Fernandes – grupo este que, além de dominante contava com o também predomínio de homens. Ou seja, poderia ser também um “acordo de cavalheiros” sua vitória. Assim eram muitos concursos para Cátedras.

Bibliografia geral consultada.

ALVES, Márcio Moreira, Beabá do Mec-Usaid. Rio de Janeiro: Editor Gernasa, 1968. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho, Homens Livres na Velha Civilização do Café. Tese de Doutorado. Departamento de Ciências Sociais. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1964; Idem, “Organização Social do Trabalho no Período Colonial”. In: Discurso. Revista do Departamento de Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Semestral, n° 8, maio de 1978; Idem, “Entrevista”. In: Trans/Form/Ação. Vol. 4. Marília (SP), jan. 1981; Idem, “Vocação Política, Poder, Vaidade”. In: Folha de São Paulo, 7 de abril de 1996; SIMÃO, Azis, Sindicato e Estado. Suas Relações na Formação do Proletariado de São Paulo. São Paulo: Editora Dominus; Editora da Universidade de São Paulo, 1966; MUSSOLINI, Gioconda, Ensaios de Antropologia Indígena e Caiçara. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1980; BEIGUELMAN, Paula, “Cultura Acadêmica Nacional e Brasilianismo”. In: Cultura Brasileira: Temas e Situações. São Paulo: Editora Ática, 2003; SPIRANDELLI, Claudinei Carlos, Trajetórias Intelectuais: Professoras do Curso de Ciências Sociais da FFCL-USP (1934-1969). São Paulo. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Departamento de Sociologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009; RODRIGUES, Lidiane Soares, Produção Social do Marxismo em São Paulo: Mestres, Discípulos e Um Seminário (1958-1978). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História Social. Departamento de História. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011; CAZES, Pedro, A Sociologia Histórica de Maria Sylvia de Carvalho Franco: Pessoalização, Capitalismo e Processo Social. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013; PINHEIRO, Dimitri, “Jogo de Damas: Trajetórias de Mulheres nas Ciências Sociais Paulistas (1934-1969)”. In: Cadernos Pagu (46), Janeiro-abril de 2016:165-196; ZUCCHI, Mariano Nicolás, “Una Clasificación del Discurso Didascálico desde una Perspectiva Polifónica de la Enunciación”. Disponível em: Revista Digital. Programa de Pós-Graduação em Letras. Porto Alegre: Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, vol. 11, n° 4, pp. 452-464, outubro-dezembro 2018; entre outros.

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