Ubiracy de Souza Braga
“Maria Isaura é uma pesquisadora consagrada”.
Olga Simson
Maria Isaura Pereira de Queiroz ingressou
no curso de Ciências Sociais da Faculdade Filosofia, Ciências e Letras, atual Faculdade
de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em março de
1946, concluindo a Licenciatura em 1949. Na ocasião destacou que, quando
resolveu entrar na Faculdade de Filosofia, foi considerada uma “menina
desobediente”, pois no ano de seu ingresso, esse não era o caminho habitual que
poderia ser trilhado, como ocorreram guardadas as proporções, com Simone de
Beauvoir, em Paris, ipso facto, por
uma mulher de classe média na sociedade. Foi nomeada Auxiliar de Ensino da Cadeira de Sociologia I, dirigida por Roger
Bastide, na qual trabalhou no período de 1950 a 1955. Em 1951, obteve bolsa do
governo francês para cursar a École
Pratique des Hautes Études en Sciences Sociales, na Universidade de Paris,
permanecendo até 1953. Ela se diplomou em maio de 1956, com tese examinada
pelos próceres Roger Bastide (orientador), Claude Lévi-Strauss e Gabriel Le
Bras. Ao ingressar no curso de ciências sociais da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Maria Isaura tomou conhecimento
da orientação que predominava institucionalmente
na formação dos alunos.
Em primeiro lugar, historicamente as
comendas das ordens foram facilitadas aos viventes coloniais no período de
instalação da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808, pois foi neste
momento que se deu a instalação da Mesa
de Consciência e Ordens na Colônia, instituição que
regulava todo o mecanismo de concessão de comendas e hábitos. Com a proximidade
do regime e de suas instituições e devido às necessidades pecuniárias da Coroa,
as comendas ficaram mais acessíveis
aos coloniais, embora não deixassem de premiar as elites portuguesas. A Mesa
permaneceu na Corte com a volta de D. João e foi utilizada por D. Pedro no
Brasil independente até 1828, quando
foi substituída pelo Supremo Tribunal de Justiça. Este não
herdou as funções da Mesa relativas às ordens. Os adeptos das teorias liberais radicais criticavam a existência de
foros privilegiados de justiça para os membros das ordens, o que discriminava
uma sociedade calcada na diferença representada pela existência de um juiz de
cavaleiros (cf. Duby, 1988). Entretanto, a Mesa não regulava todas as ordens do
Reinado, apenas as três ordens militares portuguesas. As nomeações das ordens
criadas por D. Pedro I, que tinham o status
de civis, eram feitas diretamente por ele, somente passando por um chanceler e,
no II Reinado, pelo Secretário de Estado de Negócios do Império.
Assim,
por intermédio das ordens, criaram-se e recriaram-se laços afetivos de
fidelidade e uma elite política que girava em torno da Coroa, visto ter esta o
monopólio dessas mercês, além de premiar todo tipo de serviços, gerando um
dilatado grupo de condecorados. Em segundo lugar, mutatis mutandis, a
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) estava instalada naquela
conjuntura no Instituto de Educação Caetano de Campos, na Praça da República,
originalmente reconhecida como Largo dos Curros era, no século XIX, palco de
rodeios e touradas. Após essa fase, foi chamada de Largo da Palha, Praça das
Milícias, Largo Sete de Abril, Praça 15 de Novembro e, em 1889, passou a ser
Praça da República. Palco de grandes manifestações políticas que mudaram a
história social do país abriga edifícios históricos,
como a Escola Normal Caetano de Campos, tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e
Turístico (Condephaat), em 1978, que em seus anos de operação, recebeu
grandes personalidades nacionais, é o prédio onde funciona a Secretaria de Educação
do Estado de São Paulo, constituindo um dos mais tradicionais logradouros da
cidade de São Paulo. A grande frequência urbana de populares é explicada pela
proximidade com avenidas importantes, como a Ipiranga e a São João, ruas
comerciais, como a Sete de Abril e Barão de Itapetininga, além de alguns dos
principais pontos turísticos da metrópole, como o Theatro Municipal, Viaduto do
Chá e o famoso Edifício Copan.
Em
terceiro lugar, percebera que a orientação
do curso consistia, além dos objetivos iniciais que eram, na formação de
professores para o ensino secundário e na melhoria da qualificação da elite dirigente, também a formação de
cientistas sociais. A formação de cientistas e pesquisadores, embora não
reconhecida como orientação inicial da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras (FFCL) tornou-se hegemônica devido principalmente ao trabalho dos
professores europeus, colaboradores nas décadas iniciais da faculdade, admite
Maria Isaura. Entre estes, estava Roger Bastide de quem Maria Isaura Pereira de
Queiroz se tornou discípula. O interesse de Bastide pela literatura e o seu respeito
pelos próprios pontos de vista dos alunos se conjugavam e permitiam uma
identificação talvez maior na relação entre o mestre e seus discípulos.
Concluída a licenciatura em ciências sociais em 1949, Maria Isaura se tornou
orientanda e Assistente de Bastide na Cadeira
de Sociologia I. Em 1957, obteve o diploma de doutorado na École Pratique des
Hautes Études com a tese intitulada: La
Guerre Sainte au Brésil: Le Mouvement Messianique du Contestado, cuja banca
examinadora foi composta pela trindade
de professores Claude Lévi-Strauss, Gabriel Le Bras e Roger Bastide (cf.
Queiroz, 1978) Dois pontos fundamentais
sustentam a dilatada obra de Maria
Isaura Queiroz e a trajetória institucional: sua proposta para a consolidação
da área de sociologia política no Brasil e a análise detida na categoria prática
“mundo rústico”.
O
trabalho parece ser uma categoria muito simples. A ideia de trabalho nesta
universalidade, segundo Marx, como trabalho, em geral, é, também das mais
antigas. No entanto, concebido do ponto de vista econômico nesta forma simples, o trabalho é
uma categoria tão moderna como as relações que esta abstração simples engendra. Assim, a abstração mais simples, que a
economia política moderna coloca em primeiro lugar e que exprime uma relação
muito antiga e validada para todas as
formas de sociedade, só aparece no entanto sob esta forma abstrata como verdade
prática enquanto categoria da sociedade mais moderna. Poder-se-ia dizer que
esta indiferença em relação a uma forma determinada de trabalho, que se
apresenta nos Estados Unidos da América como produto histórico, se manifesta na
Rússia, por exemplo, como uma disposição natural. Mas, por um lado, que
extraordinária diferença entre os bárbaros que têm uma tendência natural para
se deixar empregar em odos os trabalhos,
e os civilizados que empregam a si próprios. E, por outro lado, a esta
indiferença em relação a um trabalho determinado corresponde na prática, entre
os russos, a sua sujeição tradicional a um trabalho bem determinado, ao qual só
as influências exteriores podem arrancá-los.
O
todo, na forma em que aparece no espírito como todo-de-pensamento, é um produto
do cérebro pensante, que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível,
de um modo que difere da apropriação desse mundo pela arte, pela religião, pelo
espírito prática. Antes coo depois, o objeto real conserva a independência fora
do espírito, e isso durante o tempo em que o espírito tiver uma atividade
meramente especulativa, meramente teórica. Por consequência também no emprego
do método teórico é necessário que o objeto,
a sociedade, esteja constantemente presente no espírito como dado primeiro. Mas
as categorias simples não terão também uma existência independente, de caráter
histórico e natural, anterior à das categorias mais concretas? Depende. Hegel,
tem razão em começar a filosofia do direito pelo estudo da posse, constituindo
esta a relação jurídica mais simples do problema. Em relação a este ponto de
vista, fez-se um grande progresso quando o sistema industrial ou comercial
transportou a fonte de riqueza do objeto para a atividade subjetiva - o
trabalho comercial e fabril -, concebendo esta atividade do trabalho - agricultura - como a forma de trabalho
criadora de riqueza, e admite o próprio objeto não sob a forma dissimulada do
dinheiro, mas como produto enquanto resultado geral do trabalho (cf. Marx,
2011: 249).
Com
o sugestivo título: Contribuição para o
Estudo da Sociologia Política no Brasil, a socióloga apresentou no I Congresso Brasileiro de Sociologia, em
1954, as linhas gerais de uma agenda de pesquisas para o desenvolvimento da
área, tendo como fulcro os estudos sociológicos de nosso passado político que
serviriam de background para
pesquisas empíricas efetuadas a partir do município. Expressivos dessa proposta
foram os ensaios: O Mandonismo Local na
Vida Política Brasileira (1956) e O
Coronelismo numa Interpretação Sociológica (1975), nos quais a investigação
das relações sociais de mando estabelecidas entre grupos no âmbito do poder
local serviram de apoio para a interpretação da autora de uma estrutura
hierárquica mais ampla que conformou em diversas conjunturas históricas a
formação da sociedade brasileira. Nesses estudos, Maria Isaura não queria
perder de vista as respostas dos agentes no plano de análise individual (o
sonho) e coletivo (os mitos, os ritos, os símbolos) às estruturas de dominação
que se inseriam, destacando a multiplicidade e complexidade da vida nominal rústica. Essas configurações de poder poderiam ser identificadas em entrevistas estruturadas
no papel político de lideranças religiosas messiânicas
e em grupos sociais como os típicos cangaceiros.
Tendo em vista a formulação do objeto de pensamento Maria Isaura, ao lado de
outros colegas do Departamento de Ciências Sociais criou o Centro de Estudos Rurais e Urbanos
(CERU), da Universidade de São Paulo (1964) para formação de pesquisadores.
Sociologia
política é o meio de trabalho da sociologia que analisa os efeitos sociais
específicos - as práticas de poder, o Estado e o dever político. É o estudo das
bases sociais de representação da política. A distinção entre ciência política
e sociologia política, não se refere apenas a questão tópica de espaço,
enquanto lugar praticado e lugar, que deve ser precisa do ponto de vista
teórico da análise. Mas caracteriza-se pela explicação concreta dos fatos que
têm determinada orientação nos processos do mundo político, mas que podem mudar
de forma. O cientista político busca regularidades e conexões de sentido entre
os fatos em torno do mundo político. Qualquer que seja o nível de estrutura da
sociedade é sempre possível pensar como Montesquieu, isto é, analisar a forma
própria da heterogeneidade de uma determinada sociedade pelo
equilíbrio dos poderes em confronto, a garantia da moderação e da liberdade.
Para os liberais, todo indivíduo têm direitos humanos inatos. Muitos viram aí
uma filosofia implícita de representação do progresso inspirada por valores
liberais que, em última instância, desembocou na ideia de que o ser humano é
capaz de descobrir como reparar as injustiças sociais fomentadas pelos
retrocessos da história humana.
Seu
interesse pelo messianismo se desdobrou mais tarde, na conturbada década de
1960, com o colapso do populismo, nos
estudos sobre o campesinato brasileiro com a formulação do conceito de grupos
rústicos. Seguindo a trilha do mestre francês, Maria Isaura dedicou-se a vários
campos de saber, entrecortando a sociologia da religião, a sociologia política,
a sociologia rural e a sociologia da cultura. Florestan Fernandes destacou a
amplitude e a diversidade de sua obra bem como o seu reconhecimento em relação
à Bastide. Tais características podem ser encontradas na trajetória intelectual
de Maria Isaura e na sua concepção. Influenciada por Roger Bastide, Maria
Isaura também defendeu “a necessidade de utilizar diferentes métodos de
investigação e análise não importando se eram reconhecidos como pertencentes a
outras disciplinas ou teorias rivais”. Acredita Maria Isaura que a realidade é que indica o método mais apropriado para que o
pesquisador possa melhor reconhecê-la, e não o contrário. Maria Isaura,
diferentemente dos cientistas sociais de sua geração fez outras escolhas
temáticas. Por outro lado, aproxima-se em grande medida dos mesmos pelo mesmo
rigor analítico na elaboração de suas pesquisas. Observadora atenta, Glaucia Villas
Bôas percebe que as escolhas de tema e de método de pesquisa pelas quais optou
Maria Isaura devem ser imiscuídas a partir da produção teórica das ciências sociais
entre os anos 1940 e 1960.
Um
ano após a morte de Roger Bastide (1974), Maria Isaura Pereira de Queiroz escreveu
a Jeanne Bastide, viúva de seu amigo, desculpando-se pelo atraso no envio de
prefácio para a publicação, na França, de Arte
e sociedade. As cartas de Maria Isaura à viúva Jeanne Bastide e à sua filha,
Suzanne, são entremeadas de notícias do dia a dia político e econômico e que
revelam aspectos da vida da intelectualidade brasileira na segunda metade da década
de 1970. Maria Isaura começa a formular o projeto de publicação das obras
completas de Roger Bastide em novembro de 1976, com o apoio de Manuel Diégues
Júnior, diretor do Departamento de Assuntos Culturais do Ministério da Cultura
e membro do Conselho Nacional de Cultura. Diégues ficou interessado na
iniciativa conjunta do Centro de Estudos
Rurais e Urbanos, que Maria Isaura criara e dirigia, e do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), dirigido
por José Aderaldo Castelo. Ela pretendia reunir os artigos esparsos de Bastide
em volumes, a começar com os artigos publicados no Brasil, uma vez que estavam
traduzidos, e depois os artigos publicados em francês, de tal forma que
pudessem integrar uma coleção de Obras
completas à qual daria o nome de
Bastidiana (cf. Villas Bôas, 2014).
A
ascensão dos regimes populistas (cf.
Laclau, 2005) foi analisada com certa desconfiança
por determinados grupos políticos internos ou estrangeiros, dentro e fora do
continente latino-americano. A capacidade de mobilização das massas
estabelecidas por tais governos, o apelo aos interesses nacionais e a falta de
uma perspectiva política clara poderia colocar em risco os interesses
defendidos pelas elites que controlavam a propriedade das terras ou das forças
produtivas do setor industrial. Sob o aspecto teórico, o governante populista
fundamentava seu discurso em projetos de inclusão social que, em seu modus operandi de interpelação popular democrática, legitimavam a crença
na construção social de uma nação promissora. Definindo seus aliados como
imprescindíveis ao progresso nacional, o populismo saudava valores e ideias que
colocavam no centro um “grande líder”, seja masculino ou feminino como
porta-voz das massas. Suas ações não demonstravam sua natureza individual, mas
transformavam-no em “homem do progresso”, “defensor da nação” ou “representante
do povo”.
Construía-se
a imagem singular do indivíduo que desaparecia em prol de causas individuais e coletivas.
Na América Latina, os inúmeros exemplos de experiência populistas podem ser
compreendidos na ascensão dos governos populares de Juan Domingo Perón
(1946-1955-1973-1974), Evita Perón (1946-1952) na Argentina; Lázaro Cárdenas
(1934-1940), no México; Gustavo Rojas Pinilla (1953-1957), na Colômbia; e
Getúlio Dornelles Vargas (1930-1937; 1951-1954), no Brasil. O mais
impressionante na história da vida de Eva foi o caminho meteórico que ela
percorreu na vida pública. Entre a total obscuridade ao mais absoluto
resplendor pessoal e político da vida e em seguida a morte, tudo ocorreu em
apenas 7 anos. Nesse curto período ela saiu do anonimato para se tornar uma das
mulheres mais importantes e poderosas do mundo. Na breve existência (morreu aos
33 anos de idade) há muitos mistérios, muitos fatos obscuros, mas há
principalmente uma personalidade tragicamente marcante.
Apesar
de se reportar a uma prática do passado recente, ainda podemos notar a presença
de reconhecidas práticas populistas em governos estabelecidos na América
Latina. Em verdade a Grande Depressão dos anos 1930 demarca a crise
do domínio oligárquico, conservador (ou de direita), e a ascensão ao poder de
governos e partidos políticos populistas. O populismo
não é uma ideologia e uma prática política de esquerda, mas os partidos de
esquerda na América Latina participaram dos governos populistas e com eles em
grande parte se confundiram, ainda que alguns setores mais radicais da esquerda
fossem frequentemente reprimidos por esses governos. A relativa identificação
da esquerda com o ideário populista é válida para os setores políticos
moderados, reformistas, mas é válida também para a esquerda comunista. Nos
termos do chamado pacto populista essa ala esquerda aliava-se
aos empresários industriais, a setores da oligarquia agrário-comercial, às
classes médias tecnoburocrática do Estado e intelectualizadas, onde residia a
força da esquerda e aos trabalhadores urbanos. E cabia à liderança na definição do diagnóstico político através da metáfora do subdesenvolvimento
e no estabelecimento de novas estratégias de desenvolvimento.
O
crescimento populacional brasileiro e a abertura dos novos desafios conviviam
com a polarização da política internacional, que dividiu as nações do mundo
entre o capitalismo versus o
comunismo. Desta forma, grupos ultraconservadores e setores de esquerda se
encontravam em pontos longínquos do cenário conciliador do fenômeno populista brasileiro.
A ascensão da Revolução Cubana, em 1959, trouxe esperança e afeto político a
diferentes grupos da nossa sociedade. Ao mesmo tempo, grupos militares
instituíram a urgência de uma intervenção política que impedisse a formação de
um governo socialista no Brasil. Viveu-se numa economia que sabia muito bem
promover a prosperidade e aumentar a
miséria. Nessa conjuntura que durante o governo popular de João Goulart
(1961-1964), os movimentos sociais pró e antirrevolucionários eclodiram no
país. A urgência de reformas sociais e políticas conviveram em conflito com o
interesse do capital internacional. Em um cenário tenso os militares chegaram
ao poder instaurando um governo autoritário e centralizador. Em 1964, o Estado
de Direito escafedeu-se sem ao menos confirmar se vivemos no âmbito populista uma
democracia.
O
processo social de redemocratização
compreendeu uma série de medidas que, progressivamente, foram ampliando
novamente as garantias individuais e a liberdade de imprensa até culminar na
eleição do primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura militar. Esse
processo, contudo, foi composto por momentos de avanço e recuo dos militares,
uma vez que desejavam garantir uma transição controlada sem que os setores mais
radicais da oposição chegassem ao poder. Por isso, medidas de distensão como a Lei de
Anistia, conviveram com medidas de
repressão, como o Pacote de Abril
e a recusa da Emenda Dante de Oliveira, que pedia
eleições diretas para presidente da República. O período chamado de redemocratização compreendeu os anos de
1975 a 1985, entre os governos dos generais Ernesto Geisel e João Figueiredo e
as eleições indiretas que devolveram o poder às mãos de um presidente civil.
Por mais que as Diretas Já tenham mobilizado milhões de pessoas
em manifestações memoráveis em São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, a
Emenda Dante de Oliveira foi derrotada no Congresso Nacional e as eleições
diretas só ocorreram em 1989. O primeiro presidente civil foi eleito, portanto,
de forma indireta, sendo este Tancredo Neves (PMDB) que, devido a problemas de
saúde que o levaram a óbito, deixou o cargo de primeiro presidente da chamada Nova República
para seu vice-presidente, José Sarney.
A
visão protocrítica de inúmeros
cientistas sociais e historiadores articulados na zona estabelecida entre as
cidades Rio de Janeiro e São Paulo, prevaleceram sobre as considerações
favoráveis que também lhe foram feitas mediante a globalização do mercado,
inclusive entre pesquisadores em Pesquisa
& Desenvolvimento. Não obstante,
a força expressiva das críticas analíticas, a crítica das armas e a realização
de pesquisas funcionalistas estimuladas por instituições poderosas de
financiamento de programas de pós-graduação, institucionalizados de fora para
dentro do país, permitiu o avanço do processo de normalização metodológica das
ciências sociais, com o treinamento de uma geração de pesquisadores mediante o
condicionamento empírico de enquetes operárias e pesquisas ditas de campo.
Também dentre esses estudos, as ciências sociais revelaram importantes
pensadores sobre questões econômicas, políticas e sociais contextualizadas
histórica e teoricamente, para não falarmos das questões políticas
remanescentes na década de 1920 por Caio Prado Jr., visto que estiveram
voltadas para comunidades eclesiais em processo de surgimento, numa conjuntura
marcada pela transformação de um país essencialmente agrário em uma região
urbano e industrial automotivo.
Em
maio de 1956, regressou ao Brasil, sem deixar seu trabalho cooperativo na
França e, pari passu na Universidade de São Paulo, quando se aposentou em 1982.
Maria Isaura era sobrinha da primeira deputada federal da história do Brasil,
eleita em 1934, Carlota Pereira de Queiroz, uma mulher feita, mas não por si
mesma. Era neta por parte de pai de um proprietário de terras da região de
Jundiaí (São Paulo), membro do Partido Republicano Paulista (PRP), uma das
principais expressões políticas na queda da monarquia e também um dos
fundadores do jornal A Província de São
Paulo, precursor do liberal O Estado
de S. Paulo. Do lado da mãe, um avô prócer regionalista de Lorena, filiado
ao Partido Conservador. A mãe, Maria Vicentina de Azevedo Pereira de Queiroz,
vinha de uma família extremamente católica, seu pai inversamente, contrariando
Franz Kafka, o também prestigioso político José Pereira de Queiroz Neto, exibia
convicções ateístas e anticlericais. É neto do Patrono da Escola Estadual. Dr.
José Pereira de Queiroz, sobrinho de Carlota Pereira de Queiroz, primeira
Deputada Federal do Brasil e irmão de Maria Isaura Pereira de Queiroz, nossa
renomada Socióloga.
Em
1952 formou-se agrônomo junto à Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz,
da Universidade de São Paulo, trabalhou no Instituto Agronômico de Campinas até
1967, como pesquisador. O Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da USP, começa a tomar conhecimento de suas ideias em 1964
quando é convidado pelo professor Aroldo de Azevedo, chefe do Departamento,
para proferir palestras temáticas Conservação
dos Recursos Naturais com ênfase nos solos e seus múltiplos usos e no ano seguinte
quando, os Profs. Aziz Ab’ Saber e Ari França convidam-no a permanecer no
quadro docente como professor Colaborador, função em que fica contratado por
dois anos até que em 1967 vem a ingressar nos quadros permanentes desta
Faculdade, passando ao regime de Dedicação
Exclusiva (DE), integralmente ao ensino
e à pesquisa. Assim constituiu imediatamente um Grupo de Trabalho sobre Solos,
coordenando o Laboratório de Pedologia e
Sedimentologia do Instituto de Geografia, tornando-se referência por se pautar
em novas visões teóricas e metodológicas. Sua trajetória foi marcada pela
coordenação de programas de pesquisa e ensino integrados e viabilizados
mediante intercâmbios interinstitucionais, inclusive bilaterais França-Brasil,
centrados na questão dos solos e que permitiram a capacitação de vários
docentes e pesquisadores, posteriormente disseminados pelo país.
A
obra analítica de Maria Isaura se divide em três níveis de análises temáticos: I - Análises sobre reforma e revolução (cf.
Queiroz, 1968) por meio dos movimentos religiosos, messiânicos e do mandonismo
local (cf. Queiroz, 1956); II - Os estudos rurais, com análise do campesinato brasileiro a partir da
definição de grupos rústicos (cf.
Queiroz, 1973); e, III - Os estudos sobre a cultura brasileira (cf. Kosminsky,
1999), com destaque para as histórias de
vida (cf. Villas Boas, 2014), relações
de gênero e o carnaval (cf.
Queiroz, 1992). A ilustre socióloga faleceu em 29 de dezembro de 2018, no
município de São Paulo aos 100 anos. O historiador marxista Eric Hobsbawm, como
dizia Paulo Sérgio Pinheiro, o mais eminente historiador de língua inglesa era
notável apreciador de sua literatura, traduzindo-a para o idioma inglês. Foi
sepultada no Cemitério da Consolação,
a mais antiga necrópole em funcionamento em São Paulo.
Embora
a teoria de Maria Isaura se aproxime de Antonio Candido, ela apresenta uma
visão sobre grupos rústicos um pouco
diferente. Apesar de escolher também como objeto de análise a população do
interior de São Paulo, ela chega a conclusões opostas. Ela reconhece uma maior
capacidade de adaptação das populações rústicas ao processo de modernização e
urbanização a partir da década de 1960, porque constatou que, por meio de seus
próprios elementos dinâmicos, geravam autotransformações na busca da melhoria
de sua vida. Ao reconhecer a capacidade de adaptação e acomodação das populações
rústicas, não nega, contudo, que o processo de modernização provocava uma alteração
dos meios e modos de vida dos grupamentos rústicos que poderia levá-los à
extinção. A resposta metodológica que dá à indagação sobre se os sitiantes
tradicionais estariam condenados à desorganização socioeconômica, com o advento
do processo de modernização, é a de que não havia um comportamento-padrão quanto
ao modo de reagir aos processos de transformação em curso a partir da década de
1960.
Os
sitiantes tradicionais tanto se adaptavam a esse processo, utilizando-se do
cabedal de sua própria cultura, quanto reagiam de forma incongruente às
transformações socioeconômicas promovidas pela modernização, desenvolvendo
comportamentos que geravam sua autodestruição. O aprofundamento do capitalismo
no Brasil não promovia necessariamente a abolição das especificidades
socioculturais comuns à sociedade brasileira afeita às relações de vizinhança.
Seu estudo sobre a reação das populações rústicas ao processo modernização e a
consideração da possibilidade de sua persistência fundamenta sua hipótese central:
no Brasil, não havia uma oposição rígida entre tradicional e moderno. A
possibilidade de coexistência entre surto industrial e cultura caipira foi
demonstrada por Queiroz através da dinâmica engendrada pelos chamados bairros
rurais. Em seu livro: Bairros Rurais
Paulistas (1963), ela faz um estudo sobre a socialização dos sitiantes
tradicionais e modernos e sobre sua inserção na sociedade brasileira. Ela conclui
que tanto um quanto outro independente da orientação que davam à produção
continuava seguindo, apesar do aprofundamento do capitalismo, o padrão
tradicional caipira de crenças e valores que tem como base os bairros rurais.
Deste
modo, segundo (Vasconcellos, 2014: 312-13) identifica dois tipos de bairros
rurais: o tradicional composto por camponeses, e o moderno, formado por
agricultores que comercializavam sua produção, mas que também adotavam a
dinâmica social mantida no interior dos bairros rurais. Ambos, a despeito de sua
diferença no comportamento econômico, apresentavam a mesma cultura, a caipira.
Esse fato comprovava que as relações de trabalho e as relações sociais,
alicerçadas pelas ligações vicinais, permitiam que a população caipira fosse
regulada ao mesmo tempo pelos princípios da população rústica e pelos princípios
do modo de ser moderno. Afinal, tanto camponeses praticantes de uma economia
fechada, como agricultores modernos, praticantes de uma economia aberta, adotavam
a mesma cultura rústica. A mudança no comportamento econômico dos sitiantes não
implicava a ruína da população campesina. A partir deste estudo sobre bairros
rurais paulistas, conclui que esse tipo de organização permitia a
coexistência do modo de vida tradicional, associado às relações de
vizinhança, e de um modo de vida moderno, mais afeito à racionalidade econômica.
No momento em que ocorreu seu falecimento
em dezembro de 2018, rememora Campos (2019), pareceu-nos oportuno traduzi-lo e
publicá-lo no Brasil, a pessoa e a obra da socióloga Maria Isaura Pereira de
Queiroz aos leitores alemães, como uma forma de homenagem à nossa grande socióloga
e fundadora do Centro de Estudos Rurais e
Urbanos. Um fato de grande relevância em sua vida – a recepção, em setembro
de 1998, das mãos do sociólogo e presidente da República, Fernando Henrique
Cardoso (1995-2003), a mais alta condecoração científica no Brasil, o prêmio Almirante Álvaro Alberto de 1997, instituído
recentemente, em 1981, de caráter individual e indivisível, atribuído ao
pesquisador que tenha se destacado pela realização de obra científica, distinguiu-a
como a primeira representante das
ciências sociais e, além disso, do sexo feminino a receber essa condecoração.
Em 1998 Maria Isaura completava oitenta anos, mas felizmente viveria mais vinte
anos, podendo olhar para o passado de sua gloriosa carreira científica. Assim, se
distinguia não tanto pelo ersatz de
numerosas pesquisas empíricas, que é um preço caro pago com a sua
institucionalização, mas, sobretudo, pela formação
de gerações (cf. Mannheim, 1993) nas ciências sociais, ao que se dedicou com
grande engajamento pessoal. O objetivo das pesquisas permaneceu com significado
de mesmo teor teórico, a saber, decifrar
seu país sob um ponto de vista sociológico.
As unidades de geração desenvolvem perspectivas, reações e posições políticas e
afetivas diferentes em relação a um mesmo dado problema. O nascimento em um
contexto social idêntico, mas em um período específico, faz surgirem
diversidades nas ações dos sujeitos. Outra característica é a adoção ou criação
de estilos de vida distintos pelos indivíduos, mesmo vivendo em um mesmo âmbito
social. Em outras palavras: a unidade geracional constitui uma adesão mais
concreta em relação àquela estabelecida pela conexão geracional. Mas a forma como grupos de uma mesma conexão
geracional lidam com os fatos históricos vividos, por sua geração, fará surgir distintas unidades históricas
geracionais no âmbito daquela conexão geracional no conjunto da sociedade. Essa
situação real impõe-nos um procedimento reflexivo teórico (mental) constante de
distanciamento social do sociólogo em relação ao lugar de onde ele fala. Duvidamos
que alguém possa se tornar sociólogo sem ter adquirido uma experiência direta das formas de sociedades e de
meios sociais de subsistência distantes daqueles em que vive. Além da formação pessoal também é preciso de bom
grado que a situação profissional lhe permita resistir às pressões culturais que sobre ele se exercem.
O
conhecimento sociológico só pode
desenvolver-se em um meio que não reproduza as desigualdades, mas que procure meios
de reduzi-las. Ocorre que, na prática os sociólogos estão encerrados em guetos
cujo isolamento seria cômodo demais para a ordem social dominante: o pensamento
crítico estaria sendo enclausurado como se enclausuram os “loucos” e os “delinquentes”
e pelas mesmas razões de ordem, para analisar as categorias, normas e discursos
da prática. O objeto da sociologia não pode ser definido sem a
bidimensionalidade dos meios. Esse duplo procedimento deve ou deveria levara a
definir o método sociológico. Enfim, é inútil discutir a pertinência relativa
da análise qualitativa ou da análise quantitativa. A sociologia não pretende
dominar a resposta a essa questão de fundo. Fernando Henrique Cardoso demonstra
que os críticos nem sempre foram generosos com Gilberto Freyre e, mesmo os que
foram como o próprio Darcy Ribeiro, raramente deixaram de mostrar suas
contradições, seu conservadorismo, o gosto pela palavra sufocando o rigor
científico, suas idealizações e tudo que, contrariando seus argumentos era
simplesmente esquecido. Elas procedem com mordacidade, impiedosamente ou com
ternura, com compreensão, como seja. O fato é que já perdeu a graça repeti-las
ou contestá-las. Vieram para ficar. É isso que admira: Casa-Grande & senzala foi, é e será referência para a
compreensão do Brasil.
É
impossível deixar de admitir que Casa-Grande
& Senzala e Sobrados e Mucambos, que compõem a decadência do
senhoriato rural num livro só e deveriam ser publicados juntos, mas que na
realidade de um “lugar praticado” tiveram que se mudar da casa-grande para os sobrados
em áreas dinâmicas urbanas. Darcy Ribeiro refere-se a essas contribuições
assinaláveis à ciência, que se convertem em livros clássicos que todos devemos
ler pelo sabor das emoções que eles
nos dão de conhecimento novo e fresco. Ordem
e Progresso
(1957), por exemplo, não é assim. Corresponde melhor à segunda categoria,
talvez também porque Gilberto pretendeu seguir um método. Melhor dizendo, em Ordem
& Progresso ele tenta obedecer a um plano analítico tão rigoroso
quanto é possível a “natureza indisciplinada e anárquica como a sua”. O que
resultou foi um livro de qualidade inferior que não se pode comparar aos dois
primeiros. O cenário etnográfico de Casa-Grande & Senzala (1933) é o
litoral “fértil” e dinâmico da região nordestina. É a região do bode e da
paçoca, de securas e fome geralmente associada ao nome da região, o Nordeste do siri e do pirão, da cana e do massapé etc., como é descrito em seu reconhecido
texto, onde Freyre retrata a sua região tão amada.
O
tema é o estudo integrado do complexo sociocultural que se construiu na zona florestal
úmida do litoral nordestino do Brasil, com base na força de trabalho escrava,
quase exclusivamente negra; na religiosidade católica impregnada de crenças
indígenas e de práticas africanas; no domínio patriarcal do senhor de engenho,
recluído na casa-grande com sua esposa e seus filhos, mas polígamo, cruzando
com as negras e as mestiças. O objeto de estudo é essa família patriarcal a que
o Autor devota toda a sua atenção. Mas, bem pouca ou nenhuma à outra família,
resumida na mãe – gerando filhos emprenhados por diversos pais – não raro pelo
próprio senhor – que os cria com zelo e carinho, sabendo embora que são bens
alheios e que quaisquer dias lhe serão tomados para o destino que o senhor lhes
der. O que há de primícias para o texto etnográfico sobre o Brasil é que nos dá
um quadro vivo e colorido como não haverá outro em literatura alguma sobre o processo
de formação de um país. Nele surgem, redivivos, os variados avós índios,
negros, lusitanos e, por via desses, os mouros, judeus e orientais que plasmaram o brasileiro com suas
singularidades de gente mestiça de quase todas as culturas, além de aquinhoadas
de bens trazidos de toda a Terra. Falando dos primeiros varões portugueses,
ingleses, franceses e alemães que viveram dispersos pela costa dos quinhentos,
Gilberto Freyre os caracteriza como povoadores à toa, “afeiçoados à vida
selvagem em meio de mulher fácil e à sombra de cajueiros e araçazeiros”.
Curiosamente a experiência antropológica de
Renato Ortiz (2020) ocorre ao reconhecer a dinâmica e transformação do contato com Maria Isaura Pereira de
Queiroz em Paris. Quando era concièrge
em Paris (isto é, o profissional responsável por assistir clientes de hotéis,
cruzeiros, entre outros, em qualquer pedido que estes tenham relativos a sua
estada), afirma Ortiz, numa rua sem saída, apenas um quarteirão, logo ao lado
do Jardim do Luxemburgo, sempre que saía de casa ou voltava, parava em frente a
uma livraria que não mais existe. Na época fazia meus estudos de graduação em
Vincennes e praticamente desconhecia a geração de pensadores brasileiros que me
antecedera. Tinha passado quatro anos na Escola Politécnica (USP), mas deixei o
curso de engenharia no último ano e parti. As ciências sociais brasileiras me
eram estranhas. Mesmo assim, sem a conhecer, parava em frente à vitrine para
contemplar o livro exibido: Réforme et
Révolution dans les Sociétés Traditionnelles (Anthropos, 1968).
Uma
sensação de orgulho me invadia − Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018),
brasileira, me contemplava do outro lado do vidro. A última vez que a vi foi em
novembro de 2002 um pouco antes de ela sucumbir à doença do esquecimento.
Conversamos e, generosa, presenteou-me com uma edição de I Cangaceiros. I Banditi d’Onore Brasiliani (Liguri Editori, 1993).
A conheci em francês e me despedi em italiano. O leitor pode se surpreender com
a descrição de algo assim tão banal, mas ao direcionar dessa forma sua atenção,
desde a abertura deste texto, tenho clara uma intenção: narrar minha pequena
homenagem de um ponto de vista pouco usual. Sei que Maria Isaura fez toda sua
carreira na FFLCH da USP, fundou o Centro de Estudos Rural e Urbano, deu aulas,
orientou pesquisas e estudantes de pós-graduação. Sua vida entrelaça-se à
cidade de São Paulo e à universidade na qual ingressou ainda em 1946. Alguns
textos que consultei, sobre a autora e sua obra, realçam esse aspecto.
Entretanto, ao tomar como ponto de partida o exterior, o que se encontra lá
fora, meu olhar quer deslocar uma certa narrativa que se faz sobre a história
das ciências sociais brasileiras. Consigo assim retocar o retrato de uma grande
senhora e, talvez, abrir uma pequena brecha nas interpretações consagradas em
relação a nosso próprio passado.
Resumidamente
esta experiência de contato revela os
seguintes dados sociais: Apesar da diferença de idade, quase 30 anos, tínhamos
uma relação de amizade. Ao consultar seus livros na estante do escritório, nas dedicatórias
de alguns deles está escrito: “com amizade constante e afetuosa” (Carnaval Brésilienne, Gallimard, 1993);
“com toda amizade” (edição italiana de Os
cangaceiros). Ela, aliás, tinha participado da banca examinadora de minha
livre-docência quando me presenteou com o livro que eu cobiçava na vitrine
parisiense: “lembrança de uma velha livre-docência comemorando a sua,
novíssima, e o abraço afetuoso” (“Réforme
et Révolution”). Eu a visitava com certa frequência, telefonava e era
convidado para um café. Em 1977, quando estava na Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), pediu que eu organizasse o encontro do grupo de profissionais de
sociologia da cultura na reunião da Associação
Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) realizada em Belo Horizonte. Participamos no Seminário que organizei em Ouro Preto, e que vieram a compor meu livro: Cultura Brasileira e Identidade Nacional
(1985) foram primeiro publicados como artigos nos Cadernos do CERU, do qual ela era a editora principal.
-
Maria Isaura não era uma pessoa de fácil convivência; tinha sido educada nos
moldes tradicionais da elite paulista dos anos 1920-1930. Esquece-se de que
nessa hierárquica sociedade brasileira as relações entre professor e aluno,
pais e filhos, homens e mulheres eram bastante formais, havia todo um código,
bastante rígido regendo a interação das
pessoas. De alguma maneira tal formalidade se desfazia entre nós, talvez por
causa da diferença de idade − minha geração
tinha sido educada dentro de outros moldes. O trabalho intelectual nos unia,
mas outros aspectos também nos aproximavam. Eu era um outsider, estrangeiro, não tinha cursado a USP; conhecia a história
das disputas entre as cadeiras de Sociologia I e II, os conflitos envolvendo o
meio acadêmico paulistano, mas essas coisas eram indiferentes para mim.
Tínhamos ainda dois pontos em comum: Paris
e Roger
Bastide. Maria Isaura dizia que seu
pai era francófilo desde cedo a submergira na cultura francesa; em meados dos
anos 30, ela saindo da adolescência, seu pai ganhou na loteria e foi com a
mulher e as duas filhas a Paris. Ficaram vários meses em um hotel. Esse tipo de
relato e de experiência me fascinava, lembrava os escritores “malditos”
norte-americanos “exilados” nessa França pós-Grande Guerra. Ela retornou a
Paris inúmeras vezes, numa época em que o deslocamento se fazia por navio; nos
anos 1950 fez seu doutorado sobre o messianismo do Contestado na École Pratique
des Hautes Études. Seu livro Os Cangaceiros (Queiroz, 1977) foi escrito em francês tendo sido
publicado pelo editor Julliard em 1968, mas a tradução para o português,
realizada pela autora, é bem posterior.
Maria
Isaura, afirma o antropólogo Renato Ortiz (2020), foi a mais importante
socióloga brasileira. Uma das poucas que conseguiram reconhecimento
internacional com tradução de seus
livros para o francês, italiano e espanhol. No entanto, a afirmação que faço
não se impõe enquanto tal. A velha senhora nunca conseguiu no Brasil o
prestígio que merecia. Nos encontramos assim diante de uma espécie de
esquecimento modelar pelos pares. Nem mesmo a literatura feminina ou feminista
− que procura redefinir o papel das mulheres na sociedade e se contrapõe com
outros olhos a uma versão da história que se solidificou - se interessou por
seu destino. Esse esquecimento sistemático, inconsciente ou não, é
problemático, distorce o passado e compromete o presente. Por que a considero
importante? Certamente por causa de sua obra. A noção de obra implica uma
totalidade, ou seja, a continuidade do trabalho intelectual. Mais do que isso: em literatura se aplica tanto a um manuscrito, como a uma produção, seja de uma pessoa, seja de uma coletividade.
Neste
sentido difere da ideia de produtividade, atualmente vigente, quando se refere
aos critérios, geralmente quantitativo, relativo à produção científica. A
produtividade sublinha a particularidade de cada ponto descontínuo e por isso
pode ser contabilizada em números. É preciso um esforço disciplinar e
engajamento para que ela se prolongue no tempo e se realize em textos, livros
ou artigos, que se articulem à sua totalidade. Uma obra se define ainda pela
variedade de temas sobre os quais se debruça. Ela lecionou na França em vários
centros: na Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais, no Instituto da
América Latina e na Universidade de Paris XI.
Foi Visitante no front
da Révolution
Tranquille (Canadá) e no Senegal. Publicou
na França e traduziu uma parte em outra
parte: o italiano, inglês e espanhol. A
Dança de São Gonçalo num Município Bahiano venceu o 11º concurso Mário de
Andrade em 1957, o Prêmio Jabuti em 1976, pelo ensaio: O Messianismo no Brasil e no Mundo. Em
1990, Maria Isaura Pereira de Queiroz se tornou a primeira professora Emérita mulher
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
Seu
labor criativo no âmbito da sociologia das emoções estende-se por vários anos
tendo como ponto de partida A Guerra
Santa no Brasil e de chegada o Carnaval
brasileiro: um curioso destino. Sua capacidade de síntese cobre um extenso
período profissional, de pluralidade e diversidade onde irrompe folclore, messianismo,
religiões populares, mandonismo rural, campesinato, banditismo social, cultura
brasileira. Michel Foucault admitia a insuficiência de podermos deslocar para
os dispositivos e os procedimentos técnicos uma multiplicidade humana, capaz de
transformar, disciplinar e depois gerir, classificar e hierarquizar os desvios
concernentes à aprendizagem, saúde, justiça, forças armadas ou trabalho. Nas
instituições contemporâneas o que faz andar são relíquias de sentido e muitas vezes detritos: os restos invertidos
de nossas grandes ambições. Nome que no sentido preciso da memória deixaram de ser
próprios. Mas o que é gozoso na atividade intelectual são os níveis
simbolizadores da existência que Berger e Luckmann denominaram-no construção social da realidade. E que na
fenomenologia de Certeau se fundem três domínios espaciais e significantes: o
crível, o memorável e o primitivo.
Bibliografia
geral consultada.
QUEIROZ, Maria
Isaura Pereira de, Historia y Etnologia
de los Movimientos Mesiánicos. Reforma y Revolución en las Sociedades
Tradicionales. México: Siglo Veintiuno Editores, 1969; Idem, “Uma Nova
Interpretação do Brasil: A Contribuição de Roger Bastide à Sociologia
Brasileira”. In: Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros, (20), 101-121; 1978; Idem, Roger Bastide, professor da Universidade de São Paulo. São Paulo: Edição
Estudos Avançados, 8 (22), 1994; MANNHEIM,
Karl, “El Problema de las Generaciones”. In: Revista Española de Investigaciones
Sociológicas, n° 62, pp. 193-242; 1993;
LACLAU, Ernesto, La Razón Populista. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 2005; LE BRAS, Gabriel; BOAS, Glaucia
Villas, “Para Ler a Sociologia Política de Maria Isaura Pereira de Queiroz”.
In: Revista de Estudos Políticos, nº 0, pp. 37-44; 2010; LEGENDRE, Pierre, La Police Religieuse dans L`Anciene France. Paris:
Editeur Mille et Une Nuits, 2010; MARX, Karl, Contribuição à Crítica da Economia Política. 4ª edição. São Paulo:
Editora WMF/Martins Fontes, 2011; LOPES, Aline Marinho, Vida Rural e Mudança Social no Brasil: Tradição e Modernidade na
Sociologia de Maria Isaura Pereira de Queiroz. Tese de Doutorado em
Sociologia. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2012; VASCONCELLOS, Dora Vianna, “Maria Isaura Pereira de Queiroz: Uma
Interpretação sobre o Desenvolvimento Brasileiro e seus Processos de Inovação Social”.
In: Estud. Soc. e Agric. Rio de
Janeiro, vol. 22, n° 2, 2014: 310-326; VILLAS BÔAS,
Glaucia, “Para Ler a Sociologia Política de Maria Isaura Pereira de Queiroz”.
In: Revista Estudos Políticos, n° 0. Rio de Janeiro: Universidade
federal do Rio de Janeiro, março, 2010; Idem, “Amizade e
Memória: Maria Isaura Pereira de Queiroz e Roger Bastide”. In: Revista Lua Nova, (91), 2014; CAMPOS, Maria Christina, “Maria Isaura
Pereira de Queiroz, a socióloga que tentou decifrar o Brasil”. In: Cadernos CERU, 30 (1), 395-442; 2019; LANG,
Alice, “Maria Isaura Pereira de Queiroz: um olhar sobre a política”. In: Cadernos CERU, 30(2), 156-166; 2020; ORTIZ, Renato, “Pequena homenagem a uma
grande senhora”. In: Sociol. Antropol.
Vol.10, n°1. Rio de Janeiro, jan./apr. 2020; entre outros.
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