sábado, 25 de janeiro de 2020

Poder & Vigilância - Cinema & Dispositivos da Crítica Analítica.


                                                                                                      Ubiracy de Souza Braga
 
      O poder possui uma eficácia produtiva, uma riqueza estratégica”. Michel Foucault


      
             
            No estudo da relação entre genealogia e poder, observava Michel Foucault que a primeira característica do que ocorria de forma nebulosa dizia respeito ao caráter local da crítica, uma espécie de produção teórica autônoma, não centralizada, isto é, que não tem necessidade, para estabelecer sua validade, da concordância de um sistema comum. Esta crítica local se efetuou através do que se poderia chamar de “retorno do saber”. Em um caso como no outro, no saber da erudição como naquele desqualificado, nestas duas formas de saber sepultado ou dominado, se tratava na realidade de saber histórico da luta. Nos domínios especializados da erudição como nos saberes desqualificados das pessoas jazia a memória dos combates, exatamente aquela que até então havia sido subordinada. Delineou-se o que se poderia chamar uma genealogia, ou, pesquisas genealógicas múltiplas: a redescoberta exata das lutas e memória bruta dos combates. E esta genealogia, como acoplamento do saber acadêmico e do saber das pessoas, só será possível se for eliminada a tirania dos colegiados (cf. Mitzman, 1976), com suas hierarquias e os privilégios de sua posição que permeia o discurso religioso/científico em saberes regionais.    
            Trata-se de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia depurá-los, hierarquiza-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma concepção de ciência detida por alguns. Trata-se da insurreição dos saberes não tanto contra os conteúdos, os métodos e os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição dos saberes antes de tudo contra os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior da sociedade. Pouco importa que esta institucionalização do discurso científico se realize em uma universidade ou, de modo mais geral, em um aparelho político com todas as suas aferências, pois são os efeitos de poder próprios a um discurso considerado como científico que a genealogia deve combater, seja diante do processo de gentrificação do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, objeto de pesquisa de pós-doutoramento em curso em análise comparada da degradação do Centro Poliesportivo da Universidade Estadual do Ceará. Não se trata de estudos de caso, mas com a pesquisa efetiva, torna-los capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e científico. Poderíamos lançar o desafio: - “Tentem colonizar-nos”.



       A burocracia moderna engendrou o intelectual específico nas universidades públicas, através das atividades regulares necessárias aos objetivos da estrutura governada burocraticamente, que por sua vez são distribuídas de forma fixa como deveres oficiais que contém uma orientação, mas podem mudar de forma e sentido. A autoridade de dar ordens necessárias à execução desses deveres oficiais se distribui de forma estável, sendo rigorosamente delimitada pelas normas relacionadas com os meios de trabalho e de coerção, físicos, sacerdotais ou outros, que possam ser colocados à disposição dos funcionários ou autoridades. O princípio da autoridade hierárquica de cargo encontra-se em todas as organizações burocráticas. Não importa, para o caráter da burocracia, que sua autoridade seja compreendida como privada ou pública. É o que tenta demonstrar,  de forma hilária, o escritor gaúcho Luís Fernando Veríssimo em uma série de ensaios temáticos.
Quando o cargo está plenamente desenvolvido, a atividade oficial exige a plena capacidade de trabalho do funcionário, a despeito do fato de ser rigorosamente delimitado o tempo de permanência na repartição, que lhe é exigido. O desempenho do cargo segue regras gerais, mais ou menos estáveis, mais ou menos exaustivas, e que podem ser apreendidas. O conhecimento dessas regras representa um aprendizado técnico especial, a que se submetem esses funcionários. Envolve jurisprudência, ou administração pública e privada. A redução do cargo a regras está profundamente arraigada à sua própria natureza. A teoria da moderna administração pública, sustenta que a autoridade para ordenar certos assuntos através decretos não dá à repartição o direito de regular o assunto através de normas expelidas em cada caso, mas na prática, converte-se em relações através dos privilégios individuais e concessão de favores, que domina de forma absoluta as relações entre indivíduos no âmbito do patrimonialismo.
A ocupação de um cargo é considerada uma profissionalização ou estágio, com a exigência de um treinamento rígido, que demanda toda a capacidade de trabalho durante um longo período de tempo e nos exames especiais que, em geral, são pré-requisitos para o emprego. A posição de um funcionário tem a natureza de um dever, sendo a lealdade dedicada a finalidades impessoais e funcionais. Sua posição social é assegurada pelas normas que se referem à hierarquia ocupada. A posse de diplomas educacionais está habitualmente ligada à qualificação técnica para o cargo. O tipo puro sociológico de funcionário burocrático é nomeado por uma autoridade superior. Mas uma autoridade eleita pelos governados não é como tal, uma figura exclusivamente burocrática. A nomeação independe dos estatutos legais, mas da forma pela qual funciona o sistema. Em todas as circunstâncias, a designação de funcionários por meio de uma eleição entre os governados modifica o rigor da subordinação hierárquica. O funcionário se prepara para uma carreira por concurso público, o que não impede que ocorra por determinado tempo a vigilância hierárquica para o cargo no serviço público. Foi esse tipo específico de poder que Michel Foucault chamou de “disciplina” ou “poder disciplinar”. 

E é justamente esse aspecto que explica o fato de que tem como alvo o corpo humano, não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestra-lo. O que lhe interessa não é expulsar os homens da vida social, impedir o exercício de suas atividades, e sim gerir a vida dos homens, controla-los em suas ações para que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades. É um objetivo ao mesmo tempo econômico e político: aumento do efeito de seu trabalho, isto é, tornar os homens força de trabalho dando-lhes uma utilidade econômica máxima; diminuição de sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de insurreição contra as ordens do poder, neutralização dos efeitos sociais de contrapoder, isto é, tornar os homens dóceis politicamente. Portanto, aumentar a utilidade econômica e diminuir os inconvenientes, os perigos políticos; aumentar a força econômica e diminuir expressivamente a sua força política. Situemos as suas características básicas. Em primeiro lugar, a disciplina é um tipo de organização do espaço. É uma técnica de distribuição dos indivíduos através da inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório.
Isola em um espaço fechado, esquadrinhado, hierarquizado, capaz de desempenhar funções diferentes segundo o objetivo específico que deles se exige. Mas, como relações de poder disciplinar não necessitam de espaço fechado para se realizar, é essa sua característica menos importante. Em segundo lugar, e mais fundamentalmente, a disciplina é um controle do tempo. Isto é, ela estabelece uma sujeição do corpo ao tempo, com o objetivo de produzir o máximo de rapidez e o máximo de eficácia. Em terceiro lugar, a vigilância é um dos seus principais instrumentos de controle. Não uma vigilância que reconhecidamente se exerce de modo fragmentar e descontínuo; mas que é ou precisa ser vista pelos indivíduos que a ela estão expostos como forma contínua, perpétua, permanente; que não tenha limites, penetre nos lugares mais recônditos, esteja presente em toda extensão do espaço. Olhar invisível que permite impregnar quem é vigiado de tal modo que este adquira de si mesmo a visão panóptica de quem o olha. A disciplina implica um registro contínuo de conhecimento. O olhar que observa para controlar não é o mesmo que transfere as informações para os pontos mais altos da hierarquia do poder? Seu objetivo econômico e político é tornar o homem útil e dócil.
A grande importância estratégica que as relações de poder disciplinar desempenham nas sociedades modernas depois do século XIX, vem justamente do fato delas não serem negativas. Mas positivas, quando tiramos desses termos qualquer juízo de valor moral ou político e pensarmos unicamente na tecnologia empregada. É então, que, segundo Foucault, surge uma das teses fundamentais da genealogia: “o poder é produtor de individualidade”. O indivíduo é uma produção do poder e do saber. Atuando sobre uma massa confusa, desordenada e desordeira, o esquadrinhamento disciplinar faz nascer uma multiplicidade ordenada no seio da qual o indivíduo emerge como alvo do poder. O nascimento da prisão em fins do século XVIII, não representou uma massificação com relação ao modo como anteriormente se era encarcerado. O nascimento do hospício não destruiu a especificidade da loucura. É o hospício, ao contrário, que produz o louco como doente mental. Um personagem individualizado a partir da instauração de relações disciplinares. E antes da constituição das ciências humanas, no século XIX, a organização das paróquias, a institucionalização do exame de consciência e da direção espiritual e a reorganização do sacramento da confissão, que aparecem como importantes dispositivos de individualização. Em suma, o poder disciplinar não destrói o indivíduo; ao contrário, ele o fabrica. O indivíduo não é o outro do poder, realidade exterior, que é por ele anulado; é um de seus mais importes efeitos. 
O objetivo é neutralizar a ideia que faz da ciência um conhecimento em que o sujeito vence as limitações reais ou imaginárias de suas condições particulares de existência instalando-se na neutralidade objetiva do universal e da ideologia um conhecimento em que o sujeito tem sua relação com a verdade perturbada, obscurecida, velada pelas condições reais de existência. Todo conhecimento, seja ele científico ou ideológico, só pode existir a partir de condições políticas que são as condições para que se formem tanto o sujeito quanto os domínios do saber. A investigação do saber não deve remeter a um sujeito de conhecimento que seria a sua origem, mas a relações de poder que lhe constituem. Não há saber neutro. Todo saber é político. E isso não porque cai nas malhas do Estado, é apropriado por ele, que dele se serve como instrumento de dominação, descaracterizando seu núcleo essencial. Mas porque todo saber tem sua gênese em relações de poder. O fundamental da análise teórica é que saber e poder se implicam mutuamente; não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder.
Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saber. É assim que o hospital não é apenas local de cura, mas também instrumento de produção, acúmulo e transmissão de saber. Do mesmo modo que a escola está na origem da pedagogia, a prisão da criminologia, o hospício da psiquiatria. Mas a relação ainda é mais intrínseca: é o saber enquanto tal que se encontra dotado estatutariamente, institucionalmente, de determinado poder. O saber funciona dotado de poder. E enquanto é saber tem poder. A configuração do que Foucault denomina de “intelectual específico” se desenvolveu na 2ª grande guerra, e talvez o físico atômico tenha sido quem fez a articulação entre intelectual universal e intelectual específico. É porque tinha uma relação direta e localizada com a instituição e o saber científico que o físico atômico intervinha; mas já que a ameaça atômica concernia todo o gênero humano e o destino do mundo, seu discurso podia ser ao mesmo tempo o discurso do universal.
Sob a proteção deste protesto que dizia respeito a todos, o cientista atômico desenvolveu uma posição específica na ordem do saber. E admite Foucault, pela primeira vez o intelectual foi perseguido pelo poder político, não mais em função do seu discurso geral, mas por causa do saber que detinha: é neste nível que ele se constituía como um perigo político. Mas o intelectual específico deriva de uma figura muito pobre e diversa do “jurista-notável”. O “cientista-perito”. O importante é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder. A verdade é deste mundo, produzida nele graças a múltiplas coerções que produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, seus tipos de discursos que faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados, sob nosso olhar, para a obtenção da verdade. Quem está de fora do poder, mas tem a capacidade analítica de interpretar o estatuto que delimita o seu campo de saber, percebe os efeitos de poder do que funciona como verdadeiro.  
É preciso repensar os problemas políticos dos intelectuais não mais em termos exclusivos da relação entre ciência e ideologia, mas sem abandoná-la, tendo em vista que a universidade pública é um domínio de casta, “a forma natural pela qual costumam socializarem-se as comunidades étnicas que creem no parentesco de sangue com os membros de comunidades exteriores e o relacionamento social. Essa situação de casta é parte do fenômeno de povos párias e se encontra em todo o mundo” (cf. Weber, 1982; pp. 449-470), a análise pode ser religada na medida em que a questão da profissionalização do intelectual, da divisão entre trabalho manual e intelectual, na esfera pública pode ser retomada. A verdade está circularmente ligada a sistemas de poder que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e a reproduzem. Ipso facto, o problema político essencial para o intelectual não é apenas criticar os conteúdos ideológicos que privilegiam grupos no sistema educacional que estariam ligados à ciência ou fazer com que sua prática científica seja acompanhada por métodos de inclusão democráticos. O que está em jogo num sistema de castas, que tomou o poder na universidade pública  nos últimos 20 anos, é se podemos constituir uma nova arena política da verdade. Mas não se trata de libertar a verdade do sistema de poder, mas de desvincular o poder da verdade das formas com as quais ele legitima suas formas de saber. A genealogia exige a minúcia do saber, evidenciando um grande número de materiais acumulados.
Na universidade estes materiais se esgueiram como sombras. Fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do conhecimento não será, portanto, partir em busca do que lhe é originário, mas ao contrário, se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos projetos interrompidos pelos predecessores, prestar uma atenção escrupulosa à sua derrisória maldade; esperar vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro, num trabalho de escavação incessante no campus, nos arquivos, sem deixar-lhes o tempo emascular o labirinto onde nenhuma verdade as manteve jamais sob a guarda. É preciso saber reconhecer os acontecimentos da história, seus abalos, suas surpresas, as vacilantes vitórias, as derrotas mal digeridas que dão conta dos atavismos e das hereditariedades. A história, com suas intensidades, seus desfalecimentos, seus furores secretos, suas grandes agitações febris como suas síncopes, é o próprio corpo do devir. É preciso ter um espírito metafísico para encontrar na alma a idealidade distinta. A pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo. Façamos a análise genealógica dos reitores universitários em sua atenção “desinteressada”, em sua ligação à objetividade.
Longe de ser uma categoria de semelhança, tal origem permite ordenar, para coloca-las a parte, todas as marcas diferentes. O genealogista parte em busca do começo, esta marca quase apagada que não saberia enganar um olho, por pouco histórico que seja; a análise da proveniência permite dissocia o Eu e fazer pulular lugares e recantos de sua síntese vazia, entre acontecimentos aparentemente perdidos. A proveniência permite também reencontrar sob o aspecto único de um caráter ou de um conceito a proliferação dos acontecimentos através dos quais eles se formaram. Metodologicamente a genealogia não pretende recuar no tempo para restabelecer uma grande continuidade para além da dispersão do esquecimento; sua tarefa não é a de mostrar que o passado ainda está lá, bem vivo no presente, animando-o ainda em segredo, depois de ter imposto a todos os obstáculos do percurso uma forma delineada desde o início. Seguir o filão complexo da proveniência é, ao contrário, manter o que se passou na dispersão que lhe é própria: é demarcar os acidentes, os ínfimos desvios, os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que existe e tem valor para nós; é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos – não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente. Na universidade basta o que ficou da gestão passada para compreendermos o presente. Na vã política em geral e particularmente na gestão acadêmica o passado nos condena.
A cena pública da verdade é sempre a mesma em que repetem indefinidamente os dominadores e os dominados. Homens dominam outros homens e é assim que nasce a diferença de valores; classes dominam classes e é assim que nasce a ideia de liberdade, homens se apoderam de coisas das quais eles têm necessidade para viver, eles lhes impõem uma duração que elas não têm, ou eles as assimilam pela força – e é o nascimento da lógica. Nem a relação de dominação é mais uma relação, nem o lugar onde ela se exerce é um lugar. E é por isto precisamente que em cada momento da história a dominação se fixa em um ritual; ela impõe obrigações e direitos; ela constitui cuidadosos procedimentos. Ela estabelece marcas, grava lembranças e até nos corpos; ela se torna responsável pelas dívidas. Universo de regras que não é destinado a adoçar, mas ao contrário a satisfazer a violência. A regra é o prazer calculado da obstinação, é o sangue prometido. Ela permite reativar sem cessar o jogo da dominação; ela põe em cena uma violência meticulosamente repetida. A humanidade não progride lenta de combate em combate, ela instala cada uma de suas violências em um sistema de regras, e prossegue assim num processo ad infinitum de dominação em dominação.
É justamente a regra que permite que seja feita a violência à violência e que uma outra dominação possa dobrar aqueles que dominam. Em si mesmas as regras são vazias, violentas, não finalizadas; elas são feitas para servir a isto ou aquilo; elas podem ser burladas ao sabor da vontade de uns e outros. O grande jogo da história será, segundo Foucault, de quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para perverte-las, utilizá-las ao inverso e volta-las contra aqueles  que as tinham imposto; de quem, se introduzindo no aparelho complexo, o fizer funcionar de tal modo que os dominadores encontrar-se-ão dominados por suas próprias regras. As diferenças emergenciais que se podem demarcar não são figuras sucessivas de uma mesma significação; são efeitos de substituição, reposição e deslocamento, conquistas disfarçadas, inversões sistemáticas. Se interpretar eras colocar lentamente em foco uma significação oculta na origem, apenas a metafísica poderia interpretar o devir da humanidade. Mas se interpretar é se apoderar por violência ou sub-repção, de um sistema de regras que não tem em si significado essencial, e lhe impor uma direção, dobrá-lo a uma nova vontade, fazê-lo entrar noutro jogo e submetê-lo a novas regras, então o devir da humanidade é uma série de interpretações. E a genealogia dever ser a sua história: história das morais (lei Maria da Penha), dos ideais (uma universidade de verdade), dos conceitos metafísicos, história do conceito de liberdade ou da vida ascética, como emergências de interpretações diferentes. Trata-se de fazê-las aparecer como acontecimentos reais no teatro dos procedimentos.
Mas a demagogia deve ser hipócrita. Na história social da universidade pública os edifícios que estão sendo construídos na entrada da Universidade Estadual do Ceará e mesmo do novo prédio da reitoria, esconde a perversidade com que foi tratado o Centro Poliesportivo da instituição, seguindo a tradição fascista na política brasileira de desconstrução do legado de gestão anterior. É um aspecto extremamente negativo, mas agora bisado pela gestão dos colegiados de curso que apoiam a corrupção nesta gestão. Mas a corrupção administrativa não para neste episódio. Há o envolvimento de pró-reitores da gestão (e negação) de documentos de afastamento de pesquisadores em projetos de pesquisa de pós-doutoramentos, mesmo os que ocorrem no mesmo estado na Universidade Federal do Ceará, deixando claro o assédio moral de “pareceristas”, enfim, da pró-reitoria de pós-graduação e pesquisa da instituição. O genealogista sabe o que é necessário pensar desta história mascarada. Não que ele a rechace por espírito de seriedade; ele quer leva-la ao extremo: porque quer por em cena um grande carnaval (cf. DaMatta, 1981) do tempo em que as máscaras reapareçam incessantemente.   
Não queremos perder de vista que a disciplina é, antes de tudo, a análise do espaço. É a individualização pelo espaço, a inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório. A disciplina exerce seu controle, não sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu desenvolvimento. No século XVII, nas oficinas de tipo corporativo, o que se exigia do companheiro ou do mestre era que fabricasse um produto com determinadas qualidades. A maneira de fabricá-lo dependia da transmissão de geração em geração. Do mesmo modo, se ensinava o soldado a lutar, a ser mais forte do que o adversário na luta individual da batalha. A partir do século XVIII, se desenvolve uma arte do corpo humano. Observa-se de que maneira os gestos são feitos, qual o mais eficaz, rápido e melhor ajustado. Nas oficinas aparece o famoso e sinistro personagem do contramestre, destinado não só a observar se o trabalho foi feito, mas como é feito, como pode ser mais rapidamente realizado e com gestos melhor adaptados. O famoso Regulamento da Infantaria Prussiana, que assegurou as vitórias de Frederico da Prússia, consiste em mecanismos de gestão disciplinar dos corpos.  
A disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos. Não basta olhá-los às vezes ou ver se o que o que fizeram é conforme à regra. É preciso vigiá-los durante todo o tempo da atividade e submetê-los a uma perpétua “pirâmide de olhares”. Mas a disciplina implica um registro contínuo. Anotação do indivíduo e transferência da informação de baixo para cima, de modo que, no cume da pirâmide disciplinar escape a esse saber. No sistema clássico o exercício do poder era confuso, global e descontínuo, do soberano sobre grupos constituídos por famílias, cidades, paróquias, isto é, por unidades globais, e não um poder contínuo atuando sobre o indivíduo. A disciplina é o conjunto de técnicas pelas quais os sistemas de poder vão ter por alvo e resultado os indivíduos em sua singularidade. O exame é a vigilância permanente, classificatória, que permite distribuir os indivíduos, julgá-los, medi-los, localizá-los e, por conseguinte, utilizá-los ao máximo. Através do exame, a individualidade torna-se um elemento de uso pertinente para o exercício do poder.
A invenção dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apoiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um presunçoso método geral. Não se trata de fazer aqui a história das diversas instituições disciplinares no que podem ter cada uma de singular: 1) ambas, neste caso, são instituições públicas gerenciadas por uma casta no poder (cf. Weber, 1982; Dumont, 1992); 2) Existe uma série de exemplos de algumas das técnicas essenciais empregadas que, de uma a outra, se generalizaram mais facilmente. Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente suspeitos, são dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza (assédio moral), são eles, entretanto que levaram à mutação do regime punitivo contemporâneo; 3) Descrevê-los metodicamente, nominalmente, implicará a demora sobre o detalhe da corrupção do pensamento e a atenção às minúcias: sob as mínimas figuras, procurar não um sentido, mas uma precaução; recoloca-las não apenas na solidariedade de um funcionamento, mas na coerência de uma tática; 4) Astúcias, não tanto de grande razão que trabalha até durante o sono, no sentido freudiano, e dá coerência ao insignificante quando da atenta malevolência que de tudo alimenta. A disciplina é uma anatomia política do detalhe. O que nos interessa é a racionalização utilitária do detalhe na contabilidade moral e no controle político. A regra das localizações funcionais vai pouco a pouco codificar um espaço que a arquitetura deixava geralmente  livre e pronto para vários usos.
Lugares determinados se definem para satisfazer não só à necessidade de vigiar, de romper as comunicações perigosas, mas também de criar um espaço útil. Temos assim, um dispositivo que asfixia e quadricula; tem que realizar uma apropriação sobre toda essa mobilidade e esse formigar humano, decompondo a confusão da ilegalidade e do mal. Essa gente, através do impedimento de elementos intercambiáveis, conquistados a duras penas, quer através da vigilância e punição, da prevaricação e do ressentimento acadêmico, quer individualizar corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa série de relações. O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e a sua combinação num procedimento que lhe é específico. A vigilância se torna um operador decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem especial do poder disciplinar.    
A arte de punir, no regime de poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo campos de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação usn aos outros e em função dessa regra de conjunto – que se deve fazer funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a natureza humana dos indivíduos. Fazer funcionar, através dessa medida valorizadora negativamente, a coação de uma conformidade a realizar. E por último, traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira externa do “anormal”. A penalidade que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza.  Bibliografia geral consultada.

DUMONT, Louis, Homo Hierarchicus. O Sistema de Castas e suas Implicações. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992; KEHL, Maria Rita, Ressentimento. São Paulo: Editor Casa do Psicólogo, 2007; FOUCAULT, Michel, Arqueologia do Saber. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 1971; Idem, El Orden del Discurso. Barcelona: Ediciones Tusquets, 1973; Idem, Hermeneutica del Sujeto. Madrid: Ediciones de la Piqueta, 1987; Idem, Nietzsche, Marx, Freud. Buenos Aires: Ediciones Anagrama, 2010; Idem, Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão. 42ª edição. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 2014; CHAUI, Marilena, “Carta Aberta de Chauí: Vigiar e Punir Foucault?”. In: https://outraspalavras.net/25/06/2015; WITTMANN, Douglas, A Indústria de Energia Elétrica no Brasil e o Desenvolvimento Sustentável: Uma Proposta para o Horizonte 2050 à Luz da Teoria dos Sistemas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Energia. Instituto de Energia e Ambiente. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014; BACH, Augusto, Michel Foucault e a História Arqueológica. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Metodologia das Ciências. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2016; RAGO, Margareth; GALLO, Sílvio, Michel Foucault e as Insurreições. É Inútil Revoltar-se. São Paulo: Editora Intermeios, 2017; FOUCAULT, Michel; BENEDETTI, Ivone Castilho, Malfazer, Dizer Verdadeiro. São Paulo: Editora WMF; Martins Fontes, 2018; PEREIRA, Karoline Machado Freire, Governamentalidade, Vigilância e Heterotopia na Sociedade Banóptica: Análise Discursiva de Propagandas de Condomínios Residenciais Fechados da Alphaville Urbanismo. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Linguística. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2019; MELCHIOR, Stela Candioto, Vigilância Pós-Comercialização de Produtos para Saúde, Questões sobre Organização, Gestão e Implantação no Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. Tese de Doutorado. Programa de Pòs-Graduação em Saúde Pública. Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2020;  entre  outros.

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