quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Folclore Fandango - Aspectos da Tradição Meridional.


                                                                                                  Ubiracy de Souza Braga

     Divertir os outros, um dos modos mais emocionantes de existir”. Clarice Lispector

                
A classificação tradicional dos sociólogos e do nascimento da sociologia como ciência, impele-os à sua relação profissional pelo tipo de sistema social que condiciona seu trabalho e seu objeto - as relações sociais – em uma tipologia social determinada a que são mais sensíveis. Além dessa formação pessoal também é preciso que a situação profissional lhe permita resistir às pressões culturais e sociais que sobre ele se exercem nas instituições. Mas o que ocorre é que os sociólogos estão encerrados em guetos cujo aparente isolamento seria cômodo demais para a ordem social dominante: o pensamento crítico estaria sendo enclausurado como se enclausuram os loucos e os delinquentes e pelas mesmas razões de ordem, para analisar as categorias, normas e discursos da prática. O objeto da sociologia não pode ser definido sem a bidimensionalidade dos meios de trabalho (cf. Gramani, 2009). Esse procedimento deve ou deveria levar a definir o método sociológico. Enfim, é inútil discutir a pertinência relativa da análise qualitativa ou da análise quantitativa. A sociologia não pretende dominar a resposta a essa questão teorética.
Argumentava Fernandes (2003) que converter o folclore em ciência positiva autônoma trazia, consigo, limitações e dificuldades insuperáveis. Está fora de dúvida que o folclore pode ser objeto de investigação científica. E nem por isso, sua complexidade e importância serão menores. Por um lado, o campo de trabalho do folclorista é simétrico ao dos especialistas no estudo das artes, da literatura e da filosofia. Apenas duas diferenças parecem relevantes: a) o folclorista precisa difundir, com frequência, indagações que podem ser feitas separadamente por aqueles especialistas; b) quando o folclorista trata de expressões orais ou dramáticas do folclore, muitas vezes se vê obrigado a documentar, ele próprio, os exemplares que pretende investigar. De qualquer forma, parece claro que as tarefas específicas do folclorista começam depois de constituídas as coleções de materiais folclóricos. Elas se revelam na análise do tema, no estudo de sua distribuição cronológica e espacial, na comparação deles entre si, através de diferentes sistemas folclóricos. Não se deve inferir que o folclore, particularmente, esteja condenado a desaparecer. Em outras palavras, o folclore, como disciplina humanística, versa conhecimentos que escapam ao âmbito das investigações empíricas ou dentro de uma forma parcial e fragmentária (cf. Costa, 2015; Ferreira, 2016). Aliás, conduz-nos a colocar em outras bases a questão da interdependência entre o folclore e as ciências sociais. 


      
O primeiro fandango gaúcho foi formado pelo hibridismo com a dança do Lundu que desciam das capitanias brasileiras, ou seja, pela grande variedade de danças desenvolvidas pelos negros africanos, com o fandango que a Espanha enviava às cidades sul-americanas. Isso resultou uma série de sapateados, misturados às cantigas. Essas cantigas eram o que se hoje se conhece como muitas das Danças Gaúchas: o tatu, o anu, a quero-mana, o balaio, o cará, e assim por diante, às quais vieram se unir cantos europeus, como a tirana muito popular desde aquela época. Em Portugal, o lundu recebeu polimentos da corte, como o uso dos instrumentos de corda, mas foi proibido por Dom Manuel por ser “contrário aos bons costumes”. Ao vir diretamente de Angola para o Brasil, porém, recuperou aqui o acento jocoso, mordaz e sensual que incomodara a sociedade lisboeta. Nos finais do século XVIII, presente tanto no Brasil como em Portugal, o lundu evolui como uma forma de música urbana, acompanhada de versos, na maior parte das vezes de cunho humorístico e lascivo, tornando-se uma popular dança de salão. Em terras brasileiras, a dança do lundu foi cultivada por negros, mestiços e brancos e, durante o século XIX, o lundu virou lundu-canção, sendo apreciadas em circos, casas de chope e salões do Reinado. Com essa popularidade, tornou-se o primeiro gênero musical a ser gravado, com “Isto é bom”, na voz de Bahiano em 1902, pela Casa Edison.
            O lundu saiu de evidência no início do século XX, mas deixou seu legado, principal no que tange ao ritmo sincopado, no maxixe que também deve suas origens à polca e à habanera (cf. Alcure, 2015). É simultaneamente dança e canto de origem africana introduzido no Brasil provavelmente por escravos de Angola. Originado no batuque africano, o lundu em fins do século XVIII não era ainda uma dança brasileira, mas uma dança africana do Brasil, e começou a ser mencionada em documentos históricos a partir de 1780. O lundu na suas origens tinha sistemática simples, a qual ainda podemos observar na dança de roda, sua familiaridade. Músicos iniciam o ritmo lundu. As pessoas que querem dançar aproximam-se, já entrando na dança. Um sinal da viola é emitido e a primeira dançarina abre espaço no centro da roda que logo se forma com o grupo. Forma-se a roda e nela fica no centro dançando até convidar alguém para substituí-la. O convite pode ser uma batida de pé diante da pessoa, palmas diante da pessoa, uma umbigada ou um toque de ombros à esquerda e em seguida outro à direita. A dançarina convidada vai para o centro do salão dançar. Dança no centro até escolher quem vai substituí-la. Pode ser uma mulher ou um homem.
      As substituições continuam repetidas vezes. Quando esta no meio da roda, e de corpo relaxado, os braços ao longo do corpo, as pernas meio fletidas, mantem um “sapateado com a planta do pé bate inteira no chão, ao ritmo da música”. No litoral do Paraná e de São Paulo, o fandango representa um gênero musical e coreográfico fortemente associado ao modo de vida da população caiçara. Sua prática sempre esteve vinculada à organização de trabalhos coletivos - mutirões, puxirões ou pixiruns - nos roçados, nas colheitas, nas puxadas de rede ou na construção de benfeitorias, onde o organizador oferecia como pagamento aos ajudantes voluntários, um fandango, espécie de baile com comida farta. Para além dos encontros habituais de mutirões, o fandango representa a principal expressão folclórica e diversão coletiva em momento de socialização étnica das comunidades caiçaras, estando presentes em diversas festas religiosas, assim como na representação de batizados, casamentos e, especialmente, no coroamento de carnaval, quando os quatro dias de festa são realizados ao som de ritmos e compassos dos instrumentos do fandango. 

Quanto à produção dos folcloristas, que subordinaram suas pesquisas à  referida orientação, pensamos que ela pode ser apreciada positivamente tanto do angulo do folclore propriamente dito, como disciplina humanística, quanto do ângulo das ciências sociais. Primeiro, as coleções com intuitos especificamente documentativos representam um importante começo para os estudos propriamente folclóricos. Eles poderão encontrar, nas coleções realizadas, um rico e indispensável ponto de partida. Segundo, essas coleções registram ocorrências que, de outro modo, não seriam documentadas. Como tais aspectos de ocorrências interessam, direta ou indiretamente, às investigações históricas, psicológicas, etnológicas e sociológicas, é óbvio que os futuros desenvolvimentos das ciências terão muito que aproveitar das contribuições precursoras dos folcloristas. Terceiro, quer dizer que a discussão crítica do assunto, em vez de conduzir a uma apreciação negativista, permite avaliar, com espírito positivo, o significado e o alcance da obra pioneira dos nossos folcloristas. Quarto, o folclore oferece um campo ideal de pesquisa para os cientistas sociais: a) natureza dos valores culturais de uma coletividade, b) as circunstâncias ou condições em que eles se atualizam, c) a importância deles na formação do horizonte cultural de seus portadores e na criação ou na motivação de seus centros de interesse, d) a relação das situações sociais em que emergem com os sentimentos compartilhados coletivamente, sua significação como índices do tipo de integração, do grau de estabilidade e do nível civilizatório do sistema.  
   O fato folclórico se caracteriza pela sua espontaneidade e pelo seu poder de motivação sobre os componentes da referida coletividade. A espontaneidade indica que o fato folclórico é um mundo de sentir, pensar e agir, que os membro da coletividade exprimem ou identificam como seu, sem que a isso sejam levados por influência direta ou instituições estabelecidas. O fato folclórico, contudo, pode resultar tanto na invenção como na difusão. Por poder de motivação do fato folclórico se tem em vista que, sendo ele uma expressão da experiência peculiar de vida da coletividade, é constantemente vivido e revivido pelos componentes desta, inspirando e orientando o seu comportamento. E, além disso, como expressão da experiência, o fato folclórico é   sempre atual, isto é, encontra-se em constante reatualização. Portanto, sua concepção de sobrevivência, como anacronismo ou vestígio de um passado mais ou menos remoto, reflete o etnocentrismo ou outro preconceito do observador estranho à coletividade, que o leva a reputar como mortos ou em via de desaparecimento os modos de sentir, pensar e de agir desta coletividade orgânica. Como expressão da experiência de vida peculiar da coletividade, o fato folclórico se contrapõe à intuição da moda, como à arte, à ciência e à técnicas eruditas modernas, ainda que estas lhes possam dar origem.
Do ponto de vista sociológico, o que caracteriza a abordagem do folclorista é a maneira pela qual ele considera os fatos folclóricos, no plano da descrição e no plano da interpretação. Ao contrário do cientista social: 1°) no plano etnográfico da descrição, ele precisa focalizar o folclore nas condições imediatas totais, que cercam a atualização dos elementos observados, pondo ênfase nas particularidades que fazem da situação descrita algo único e inconfundível; 2°) no plano da interpretação, ele tem de abstrair, nos limites em que isso é possível mediante a indução circunstancial, os elementos analisados do contexto psicocultural e social em que eles se inserem. Por causa da primeira implicação do ponto de vista folclórico, sua descrição interna constitui uma modalidade histórica de representação da realidade: os fatos são incorporados na discussão mais complexa do acontecimento, em que contam todos os elementos da situação, independentemente do papel relativo que cada um deles possa preencher na determinação dos efeitos registrados. Por causa da segunda implicação, a interpretação folclórica tende para o modelo da explicação estética: apanha os aspectos estáveis da realidade nas condições em que eles se apresentam como partes, segundo Fernandes (2003), de “um sistema fechado”, que tem a capacidade de reproduzir-se preservando, ininterruptamente, os componentes essenciais da estrutura dos sistemas; e compreende os aspectos instáveis da realidade nas condições em que eles se associam a influências particulares irreversíveis que é dispensável insistir sobre tal assunto.    
O folclore surgiu como um problema prático a resolver: determinar o tipo de conhecimento peculiar ao povo, através da analise dos elementos que constituem a sua cultura material e imaterial. O fandango Caiçara (cf. Gramani, 2009) é uma representação musical-coreográfica-poética e festiva, cuja área de ocorrência abrange o litoral sul do Estado de São Paulo e o litoral norte do Estado do Paraná. Essa forma de expressão nativa é um dos bens imateriais que compõe o patrimônio cultural do Brasil. Estas danças desembarcaram nas praias paranaenses pelas mãos dos portugueses açorianos, que detinham memória da cultura espanhola em torno de 1750. O termo fandango, no Brasil, se aplica a dois grandes grupos de folguedos populares: 1) o baixoto marítimo do ciclo natalino, encontrado em alguns estados nordestinos; 2) o baile sulista, encontrado no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Em 2011, o Fandango foi reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), como o primeiro bem imaterial do Sul do Brasil, principalmente no estado do Paraná, por suas características das culturas que colonizaram simultaneamente as regiões do litoral sul paulista e paranaense. A criança ou o adulto, por seu intermédio, não só participam de um sistema de ideias, mas de um sistema comunicativo de sentimentos e valores. Pensam e agem em função dele, quando as circunstâncias o exigem.
A região Sul é a menor das cinco regiões do país, com área territorial em torno de 576 774,31 km², sendo maior que a área da França metropolitana e menor que o estado brasileiro de Minas Gerais. Sua maior característica é o modo de colonização e o tipo de colonizadores (cf. Cardoso, 1977) durante os séculos XVII e XVIII. Em 1648, os portugueses foram os fundadores da vila de Paranaguá, a mais antiga cidade da região e do Paraná. Sua diversidade é composta por uma pequena quantidade hic et nunc de escravos africanos, e uma grande quantidade de imigrantes oriundos do Uruguai, da Argentina, dos Açores, da Espanha, da Alemanha, da Itália, da Polônia, da Ucrânia, dos Países Baixos, entre outros. A característica herdada pelos europeus que contribuíram para o processo de miscigenação do século XIX foi a predominante etnia caucasiana, sendo deixado nas características dos países de onde originaram suas casas, transportes, uso do solo etc. Os europeus foram os introdutores do sistema de pequenas e médias fazendas. A ciência agrícola dominante antes do processo de industrialização trazida da Europa para o Sul foi a viticultura, adaptada à massa verde da Serra Gaúcha.           
Comparativamente em qualquer espaço e lugar do mundo ocidental, na região  há pobreza, problemas sociais urbanos, mas, em grau menor em comparação ao restante da nação. O Sul merece destaque por ter apresentado a maior taxa de alfabetização, o mais alto nível de consumo alimentar, a mais elevada expectativa de vida, a menor desigualdade de renda, a melhor educação e saúde pública, o mais alto nível de bem-estar social e a menor taxa de corrupção do Brasil. Em números absolutos, a região Sudeste possui o maior PIB per capita, a maior quantidade de estabelecimentos escolares públicos, algumas dentre as melhores universidades do mundo, os melhores estabelecimentos hospitalares, entre outros aspectos sociais, concentradas, sobretudo nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. De acordo com pesquisa recente, a região Sul, apesar de apresentar um número menor de escolas públicas, hospitais, estabelecimentos governamentais, teriam eles melhor distribuídos pelo seu respectivo território e atendendo de forma bem mais eficiente a sua demanda populacional.

A Convenção n° 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em países independentes aprovada pela Organização Internacional do Trabalho (1989) se apoia na consciência da própria identidade a pertença a uma comunidade ou povo. Quanto à comunidade tradicional caiçara produtora e gestora do bem cultural imaterial Fandango Caiçara (cf. Novak, 2005) entende-se uma sobrevivência formada por traços semelhantes manifestados na contribuição étnica dos povos indígenas no processo civilizatório dos colonizadores portugueses e em menor grau produto da miscigenação dos escravos africanos, baseadas em atividade de agricultura itinerante, da produção de pesca, do extrativismo vegetal e do artesanato. É considerado território caiçara o lugar praticado do espaço litorâneo entre o sul do Rio de Janeiro e o Paraná, em territórios descontínuos de populações esparsas, como o mesmo modo de vida. Embora a migração seja constitutiva da comunidade tradicional caiçara, não queremos perder de vista que diversos fatores “empurraram” a comunidade até a formação de unidades de preservação, como por exemplo: urbanização das cidades, instalação e o aumento de igrejas evangélicas, levando-os a viver de outras atividades distintas das tradicionais, como a construção civil, serviços urbanos e o subemprego.
Neste contexto a forma de expressão denominada Fandango Caiçara se mantém como fruto e gênese do estabelecimento e valorização da cultura, combinando diferentes processos culturais de origem não sendo a caiçara uma exceção. O fandango parece ter decorrido da miscigenação do contingente humano colonizador em outras matrizes culturais, tendo se regionalizado e, por conseguinte, vindo a apresentar peculiaridades nos lugares em que se estabeleceu. Como consequência da sistemática perseguição no Paraná, por exemplo, foi criado o Código de Posturas que proibia “o ajuntamento para batuques e fandangos”. Neste sentido, o fandango do século XX tornou-se uma festa exclusivamente rural e litorânea, tendo se consolidado com o padrão e a configuração semelhantes destes dias, como síntese da musicalidade portuguesa e caiçara, ambos compostos por rabecas e violas estendendo-se até o litoral norte de São Paulo. É um instrumento de origem árabe tendo-se notícias de sua utilização desde a Idade Média. A Rabeca é um instrumento popular de arco, precursor na linhagem instrumental do violino. Ela é tocada em manifestações individuais e coletivas, populares e religiosas desde os remotos tempos da colonização brasileira.
Sua construção, a afinação e a maneira de tocar mudam conforme a região de origem. A rabeca tem sido difundida por músicos populares que a trouxeram para os grandes centros urbanos. A palavra rabeca é usada tradicionalmente em Portugal e no Brasil para designar “os instrumentos de corda friccionada com arco”. Na Península Ibérica, desde a Idade Média à atualidade, que palavras de influência árabe como “rebab”, “rebec” ou “rabil” designam esses instrumentos oriundos do Norte da África. Em Portugal, até ao século XIX, em conservatórios como o Conservatório Real de Lisboa, o instrumento era chamado “rabeca”. A denominação foi substituída por “violino” somente em 1903. Foi extinto como instituição singular em 1983, dando origem a diversas escolas artísticas autônomas entre si: a Escola Superior de Música de Lisboa, a Escola Superior de Dança, a Escola Superior de Teatro e Cinema, a Escola de Música do Conservatório Nacional e a Escola de Dança do Conservatório Nacional. As três escolas superiores foram integradas no ensino politécnico, fazendo hoje parte do Instituto Politécnico de Lisboa.  
De tom mais baixo que o do violino, tem um timbre fanhoso e percebido, geralmente, como tristonho. Existem rabecas de três, quatro, e mais raramente, de cinco cordas. As cordas podem ser de tripa ou aproveitadas de outros instrumentos como o cavaquinho, bandolim ou violão. Suas afinações variam de acordo com o rabequeiro, sendo as duas mais comuns, em quintas: réu-lá-mi-si, reconhecida popularmente como “afinação pernambucana”, ou em sol-ré-lá-mi, como o violino e o bandolim. O tocador encosta a rabeca no braço e no peito, friccionando suas cordas com arco de crina, untado no breu. Juntamente com a viola, é um instrumento tradicional dos cantadores nordestinos. Muitas pessoas confundem a rabeca com o violino, apesar de não terem o mesmo som e timbre. No litoral de São Paulo e do Paraná a rabeca caiçara é usada no fandango, na folia-do-divino etc. No interior de São Paulo e em Minas Gerais, a rabeca é tocada no moçambique, nas congadas, na dança-de-são-gonçalo e na folia-de-reis. No Nordeste foi popularizada por inúmeras bandas, onde também é fabricada por artesãos do interior de Alagoas, como Nelson da Rabeca, um maravilhoso rabequista, acordeonista e compositor brasileiro.  Mas ao contrário do que “a maioria das pessoas pensam, a rabeca foi o primeiro instrumento melódico utilizado no forró”. Na modernidade (cf. Berman, 2012), esboça-se um movimento que tende ao aproveitamento mais profundo desses valores folclóricos.

De um lado, liga-se a uma concepção mais ampla do folclore como uma expressão das condições presentes, típicas, da vida do povo, envolvendo seu amplo estilo de vida, articulando uma mediação complexa entre a literatura e o folclore, antes imobilizado pela tradição e incapaz de absorver a categoria de progresso. Surge daí o homem que interessa à literatura contemporânea, revelando em suas canções, em suas cantigas, em suas modinhas, em seus desafios, aquilo que ele pensa, sente e fala, e também o que ele deseja e o revolta. Melhor dizendo, os valores folclóricos como uma forma fática de expressão da história contemporânea do povo e também de sua ideologia política. Neste sentido, é possível apropriar o material folclórico de outra maneira. Primeiro, em si mesmo como um documentário; segundo, como uma espécie de busca da verdadeira imagem do homem do povo. Assim, os limites entre a literatura e o folclore não só se tornam menos nítidos, como a literatura se apresenta como uma forma fecunda de revelação instigante do fato folclórico. Para sermos breves, lembramos que a contribuição literária e sociológica de Mário Andrade ao folclore brasileiro ainda não foi convenientemente estudada.
Tampouco mereceu, inversamente, a devida atenção por parte dos especialistas na bibliografia do nosso folclore, pois não se pronunciaram sobre o significado e as consequências das suas inovações literárias. Isto porque o seu estudo minucioso revela em movimento não só as técnicas de transposição do folclórico ao plano erudito, peculiares de Andrade, mas também a sua compreensão ampla do folclore brasileiro e seus problemas, e das possibilidades do romance folclórico. Apesar de índio, originalmente preto e depois branco, Macunaíma é o mais mulato dos heróis brasileiros. O representante por excelência de um povo mestiço no sangue e mestiço nas ideias. Pois concebido á imagem dos heróis místicos, tudo lhe é possível – vive num clima onde espaço e tempo são reversíveis e imponderáveis. E em que a própria morte aparece como um meio de retorno à vida e de eternização heroica – Macunaíma vira Ursa maior, e sua conduta desconhece os padrões de comportamento habituais, mas principalmente por ser brasileiro e culturalmente híbrido, não tem caráter. Mas não é isso uma consequência do fato de ele incorporar todos os atributos díspares de seu povo? É assim que, Mário de Andrade vai compondo lentamente o seu herói e ao mesmo tempo um compêndio do folclore. Do ponto de vista teórico, histórico e sociológico nele se pode estudar analisando pari passu a contribuição folclórica do branco, do negro, do índio, a função modificadora e criadora dos mestiços e dos imigrantes, as lendas, os contos, a paremiologia, as pegas, os acalantos, a escatologia, as práticas mágicas (magia branca e negra), todo o folclore brasileiro. É um mosaico benjaminiano, uma síntese viva e uma biografia humanizada do folclore. Bibliografia geral consultada.

CARDOSO, Fernando Henrique, Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1977; FERNANDES, Florestan, O Folclore em Questão. 2ª edição. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003; LISPECTOR, Clarice, Revelación de un mundo. Buenos Aires: Ediciones Hidalgo, 2004; NOVAK, Patrícia, Fandango Paranaense da Ilha dos Valadares: Uma Manifestação Caiçara. Curitiba: Imprensa Oficial, 2005; PICCOLO, Helga, “Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul, de FHC”. In:  http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/20/11/2006; GRAMANI, Daniella da Cunha, O Aprendizado e a Prática da Rabeca do Fandango Caiçara: Estudo de Caso com os Rabequistas da Família Pereira da Comunidade Ariri. Dissertação de Mestrado.  Programa de Pós-Graduação em Música. Departamento de Artes. Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2009; ALCURE, Adriana Schneider, “Contribuição dos Estudos de Caso e da Pesquisa Indiciária para a História do Espetáculo: O Lundu que Maria Baderna teria Dançado em Recife”. Disponível em: Revista Sala Preta. Volume 15, n° 1, 2015; COSTA, Bruno Esslinger de Brito, O Fandangueiro Narrador: Cultura Popular, Território e as Contradições do Brasil Moderno nas Modas de Viola Caiçara. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Estudos Brasileiros. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015; FERREIRA, Thais de Jesus, Fandango Paranaense da Ilha de Valadares – Processos de Tradução Cultural e Aprendizagem Inventiva de Dança. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2016; BEZERRA, Cicera Patrícia Alcântara, Um Celeiro de (Re)encenações: Cartografias e Arquiteturas de um Cariri Folclórico no Sul Cearense (1950-1970). Tese de Doutorado. Programa de Pòs-Graduação em História. Recife: UNiversidde Federal de Pernambuco, 2017; DANIEL, Ary Fabio Giordani, O Fandango Caiçara nos Tempos da Comunicação Instantânea: Musicologia Política ou Etnografia do Estado da Arte? Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduaçao em Música. Escoal de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São paulo, 2019; BERTOLO, Gabriel, 1000 Fandangos Amanhecer. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Centro de Educação e Ciências Humanas. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2020; entre outros.

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