quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Chiquinha Gonzaga – Estilo, Pianista Chorona & Maestrina do Brasil.


                                                                                                      Ubiracy de Souza Braga

Ela foi a primeira mulher do país a reger uma orquestra”. In: Correio Braziliense, 17 de outubro de 2017

       

      Antônia Louisa Brico (1902-1989) foi uma Regente de orquestra e pianista neerlandesa, radicada nos Estados Unidos da América. E uma das primeiras mulheres a obter reconhecimento como Regente. Antônia nasceu com o nome Wilhelmina Wolthius em Roterdã. Ela e seus pais adotivos imigraram para os Estados Unidos em 1908 e estabeleceram-se na Califórnia. Ao terminar a Oakland Technical High School em Oakland no ano de 1919, Antônia já era uma pianista e possuía experiência em conduzir uma orquestra. Na Universidade da Califórnia em Berkeley, Antônia trabalhou como regente assistente na Ópera de São Francisco. Após graduar-se em 1923, ela estudou piano com diversos professores, principalmente com Sigismond Stojowski. Em 1927, ela entrou para a Escola Estatal de Música e Belas Artes de Berlim e em 1929 formou-se na sua Master Class em regência, tornando-se a primeira mulher estado-unidense a fazê-lo. Durante esse período, ela também foi aluna de Karl Muck (1859-1940), o maestro da Orquestra Filarmónica de Hamburgo, com quem estudou por mais três anos após a graduação. Em 1892, é designado para maestro principal da Royal Ópera de Berlim; em 1908, é o seu diretor geral musical. Em 1912, Muck é nomeado para o cargo de diretor da Orquestrea Simfônica de Boston. Depois da sua estreia como regente profissional na Orquestra Filarmónica de Berlim em fevereiro de 1930, Antônia trabalhou com a Orquestra Sinfónica de São Francisco e a Filarmônica de Hamburgo, ganhando aplausos da crítica e do público.
         Apresentou-se como regente convidada na Orquestra Sinfónica de Detroit e na Orquestra Sinfónica Nacional em Washington, D.C. e outros locais em seguida. Em 1934 ela foi nomeada Regente da recém-fundada Orquestra Sinfónica das Mulheres, que em janeiro de 1939 e após a admissão de homens, tornou-se a Orquestra Sinfônica Brico. Em julho de 1938, tornou-se a primeira mulher a conduzir a Orquestra Filarmónica de Nova Iorque, e em 1939 conduziu a Orquestra Federal nos concertos da Feira Mundial de Nova Iorque de 1939-40. Durante uma vasta digressão europeia, onde foi pianista e regente, Antonia foi convidada por Jean Sibelius para conduzir a Orquestra Filarmónica de Helsínquia. Antônia estabeleceu-se em Denver, Colorado, a partir de 1942 em diante. Lá ela fundou a Sociedade Bach (Bach Society) e o Conjunto de Instrumentos de Cordas para Mulheres (Women`s String Ensemble). Ela também conduziu a Orquestra dos Empresários de Denver, que em 1968 tornou-se a Orquestra Sinfônica Brico, e em 1948 Antônia tornou-se regente da Comunidade Sinfônica de Denver reconhecida posteriormente como Orquestra Filarmónica de Denver. Ela também conduziu a Orquestra Filarmónica de Boulder entre 1958 e 1963. Também foi professora de piano e regência, ensinando para alunos como Judy Collins, Donald Loach, James Erb e Karlos Moser. Antônia continuou a apresentar-se como regente nas orquestras de todo o mundo, incluindo a Orquestra Sinfônica de Mulheres do Japão.

Francisca Gonzaga nascida em 17 de outubro de 1847 no Rio de Janeiro, de Rosa de Lima Maria, uma filha de escrava alforriada, e do oficial do Exército brasileiro marechal de campo José Basileu Neves Gonzaga. Os pais não eram legalmente casados, mas a família paterna era marcada por rigidez de costumes e pretensões aristocráticas.  Começou a estudar piano cedo, com o maestro Elias Álvares Lobo, e aos 11 anos, apresentou sua primeira composição, Canção dos Pastores, numa festa de Natal. Obrigada pelo pai, em 1863 casou com um oficial da Marinha Mercante e seis anos depois, decidiu abandonar o casamento. Foi expulsa de casa e proibida de levar consigo dois de seus três filhos. Ao escolher a música em detrimento da família, Chiquinha Gonzaga rompeu com a sociedade patriarcal, sofreu preconceito e passou a ser renegada pela família, constituindo duplamente uma ruptura pessoal e profissional. Nos primeiros anos da República e mesmo nos anos finais do Segundo Reinado, as grandes sociedades carnavalescas apresentavam carros de ideias, ou carros de crítica política, onde a figura da República ou da Liberdade era representada por uma mulher. Muitas vezes essa alegoria da mulher de carne e osso ou estátua, trazia “na cabeça o barrete frígio e a indumentária romana”. Em 1891, em meio aos debates sobre a Constituição, o préstito dos Democráticos trazia um carro d`A República e nele: um globo com suas estrelas giratórias, e uma larga fita com o dístico positivista – “Ordem e Progresso. Sobre o globo uma graciosa dama”.

           Chiquinha Gonzaga passou a lecionar piano e a frequentar a boemia e rodas de choro. Aos 30 anos, editou sua primeira música: a polca para piano Atraente. Entrou para o conjunto instrumental Choro Carioca, formado por flauta, cavaquinho e dois violões, inovando ao incluir o piano quando passa a ser reconhecida como “pianeira”. Com este fato social se tornou, então, a primeira mulher e a primeira pianista de choro. Como pioneira, antecipou na própria démarche em algumas das lutas feministas da segunda metade do século XX, ao passar por divórcio e busca por uma carreira própria e por independência intelectual e financeira. Um dos institutos universais do mundo jurídico é o divórcio. Com exceção dos países islâmicos, o restante, que possui cultura ocidental, tem em seu ordenamento jurídico a figura do divórcio. Foi a primeira maestrina a reger uma orquestra, e nos anos 1880, integrou movimentos abolicionistas e republicanos no Brasil, inclusive arrecadando fundos com a venda de suas partituras. A composição da cançoneta Aperte o Botão, em 1893 pari passu com a Revolta da Armada, um movimento de rebelião promovido por unidades da Marinha contra os dois primeiros governos republicanos, que estavam tomando feições nitidamente da ditadura militar, expressando de forma surpreendente os códigos de representação da censura.  



Em novembro de 1891, registrou-se como reação à atitude do presidente da República, marechal Deodoro da Fonseca que, em meio a uma crise institucional, agravada por uma grave crise econômica, e com dificuldades em negociar com a oposição, em flagrante violação da Constituição recém-promulgada em 1891, ordenou o fechamento do Congresso. Unidades da Armada na baía de Guanabara, sob a liderança do almirante Custódio de Melo, sublevaram-se e ameaçaram bombardear a cidade do Rio de Janeiro, então capital da República. Para evitar uma guerra civil, o marechal Deodoro renunciou à Presidência da República em 23 de novembro de 1891. Com a renúncia de Deodoro, que ocorreu apenas nove meses depois do início de seu governo, o vice-presidente Floriano Peixoto assumiu o cargo (1892). A Constituição de 1891,  garantia que se a presidência ou a vice-presidência ficassem vagas antes de  completarem dois anos de mandato, deveria ocorrer uma nova eleição, o que fez com que a oposição começasse a acusar o marechal Floriano Peixoto por manter-se ilegalmente à frente da sociedade brasileira como presidente da nação.
A revolta desenvolveu-se em dois momentos: uma no governo de Deodoro da Fonseca e outra no governo de Floriano Peixoto. Ipso facto, considerada ofensiva pelo governo reacionário e golpista de Floriano Peixoto, o que ocasionou “a apreensão das partituras e lhe rendeu uma ordem de prisão”. Em 1899, consagrada como pianista compôs a reconhecida primeira marcha-rancho Ó abre alas. Na segunda década do século XX, Chiquinha foi novo alvo de grandes especulações ao se permitir relacionar e casar com Joãozinho, músico 36 anos mais novo que a idade dela. Ao lado do músico, a maestrina que lutou para ser dona da própria existência, atravessou o restante dos dias que a vida lhe permitiu: a velhice. Fundada em 1917, a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT) completava oito anos de existência e, como prova de admiração, inaugurava o retrato de uma de suas fundadoras: a compositora e maestrina Francisca Gonzaga. Seu reconhecimento surgiu de duas formas: através da composição ao piano, e popular, no âmbito da música como Chiquinha Gonzaga em sua vida.  
A primeira pianista chorona, autora da primeira marcha carnavalesca com letra, intitulada: Ó Abre Alas (1899), e também a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil. Estava em curso a criação do Partido Republicano, da Sociedade de Emancipação do Rio de Janeiro e da Sociedade de Emancipação do Trabalho Servil. Politicamente participou da campanha abolicionista (cf. Nabuco, 1997), da proclamação da República, como fundadora da Sociedade Brasileira de Autores  Teatrais. Como artista compôs músicas para 77 peças teatrais, além de duas mil nos gêneros valsas, polcas, tangos, lundus, maxixes, fados, quadrilhas, mazurcas, choros e serenatas. No Passeio Público do Rio de Janeiro há um pilar em sua homenagem, do escultor Honório Peçanha. Em maio de 2012 foi sancionada a Lei 12 624, que instituiu o dia da música popular brasileira, coincidentemente comemorado no dia de  nascimento da compositora. A Medalha de reconhecimento Chiquinha Gonzaga, é conferida a todas as mulheres que empenhadas socialmente, testemunham em prol das causas humanitárias, artísticas e culturais no âmbito do Estado brasileiro. A palavra choro designou, na década de 1870, o conjunto musical Choro Carioca.  Liderado pelo flautista Joaquim Antonio Callado da Silva Junior (1848-1880) e, por extensão, aos conjuntos instrumentais responsáveis pelos métodos e técnicas de execução dos instrumentos oriundos de países europeus.
     Na primeira década do século XX, encontramos o vocábulo nomeando bailes populares animados pelo característico agrupamento musical. Um exemplo está nos versos de “Coplas de Pedrinho”, da peça de costumes Não venhas!, musicada pela maestrina. Em Forrobodó, a famosa burleta de Chiquinha Gonzaga, Luiz Peixoto e Carlos Bettencourt, é caso típico de representação de um choro no bairro da Cidade Nova. A ação da peça se desenrola em torno de um baile no grêmio recreativo Flor do Castigo do Corpo da Cidade Nova. Somente mais tarde, o original estilo interpretativo dos gêneros musicais importados tornou-se ele próprio um gênero. Marcelo Verzoni observou que o emprego da designação choro foi um hábito muito posterior à época em que a compositora construiu o corpus da sua obra, e que as peças que passaram a ser chamadas de choro aparecem no século XIX como polcas, tangos ou habaneras.
Quando ocorre o surgimento do choro em meados de 1870, era considerado um estilo musical, um jeito de tocar, até sua caraterização no começo do século XX. Durante as primeiras décadas o choro se estabeleceu como gênero, delimitando suas características próprias de melodias, harmonias e ritmos, definindo os típicos agrupamentos de instrumentos e suas respectivas funções. Os temas tocados pelos músicos de choro em sua maioria transplantados da Europa, como polcas, schottisches, valsas, serenatas. O sentido musical do termo choro passará por um processo d metamorfose de evento social a prática musical, de prática a repertório instrumental, de repertório a estilo interpretativo, de estilo a gênero. Um dos elementos que nos leva a conceituar um gênero é a instrumentação característica dos seus grupos. No caso  do choro, passou a ser de um conjunto composto por flauta, violão e cavaquinho, para agrupamentos mistos onde se incorporaram tanto o piano, como vemos no estudo de Chiquinha Gonzaga, como os instrumentos trazidos das bandas: o clarinete, o trombone e o trompete. O violão de sete cordas, que assumiu a função dos baixos, foi adicionado um pouco mais tarde, e se tornou essencial na definição do timbre do grupo.
Tomando como parâmetro as edições de Alma Brasileira feitas por João Batista Gonzaga, realizadas e comercializadas com a concordância da compositora, Verzoni toma o ano de 1932 como data oficial do início de uma aceitação do hábito de se chamarem choros peças de Chiquinha Gonzaga, outrora concebidas como polcas, habaneras e tangos. Observamos que nas 30 partituras para flauta e para saxofone, os gêneros são designados simplesmente de choros e valsas, embora haja exceção para três rancheiras, duas delas, originalmente, mazurcas. As partituras manuscritas para piano que acompanham a primeira série marcada para saxofone ainda trazem referência aos gêneros originais; polca, tango, habanera, valsa e até um pas-de-quatre. Da segunda série até o fim, nas partituras manuscritas para piano, a regra já é a hifenização dos gêneros, com a origem exposta do mesmo, mas camuflada: polca-choro, tango-choro, habanera-choro, valsa-choro. Outra curiosidade é a predileção da maestrina em dar nomes da etnografia indígena aos choros: Tupã, Tupi, Tamoio, Tupiniquins, Carioca, Arariboia, Aguará, Caobimpará, Angá-catú-rama, Ary, Aracê, Timbira, Tapuia, Angá, Carijó, Paraguaçu, Cecy, Guaianases, Cariri como a acentuar o caráter nativo do gênero.
O Ocidente é etnocida porque é etnocêntrico, porque se pensa e se quer a civilização. Uma questão, porém se coloca: nossa cultura detém o monopólio do etnocentrismo? A experiência etnológica permite responder a isso. Consideremos a maneira como as sociedades primitivas nomeiam a si mesmas. Percebe-se que, na realidade, não há autodenominação, na medida em que, de modo recorrente, as sociedades se atribuem quase sempre um único e mesmo nome: os Homens. Ilustrando com alguns exemplos esse traço cultural, lembraremos que os índios Guarani nomeavam-se Ava, que significa os Homens; que os Guayaki da Venezuela se proclamam O Yanomani, a “Gente”; que os esquimós são Innuit, “Homens”. Poder-se-ia estender indefinidamente a lista desses nomes próprios que num dicionário em que todas as palavras têm o mesmo sentido: homens. Inversamente, cada sociedade  designa sistematicamente seus vizinhos por nomes pejorativos, desdenhosos, injuriosos.
Daí o fato cultural que reitera o etnocentrismo quando se afirma que: “Toda cultura opera assim uma divisão entre ela mesma, que se afirma como representação por excelência do humano, e os outros, que participam da humanidade apenas em grau menor. O discurso que as sociedades primitivas fazem sobre si mesmas, discurso condensado nos nomes que elas se dão, é, portanto etnocêntrico de uma ponta á outra: afirmação da superioridade de sua existência cultural, recusa de reconhecer os outros como iguais. O etnocentrismo aparece então como a coisa do mundo mais bem distribuída e, desse ponto de vista pelo menos, a cultura do Ocidente não se distingue das outras. Convém mesmo, aprofundando um pouco mais a análise, pensar o etnocentrismo como uma propriedade formal de toda formação cultural, como imanente à própria cultura. Pertence à essência da cultura ser etnocêntrica, na medida exata em que toda cultura se considera como a cultura por excelência. Em outras palavras, a alteridade cultural nunca é apreendida como diferença positiva, mas sempre como inferioridade segundo um eixo hierárquico”.  Desta forma é aceito que o etnocídio “é a supressão das diferenças culturais julgadas inferiores e más”; é a aplicação de um princípio de identificação, de um projeto de redução do outro ao mesmo, e com o índio amazônico suprimido como outro e reduzido como cidadão brasileiro.
Em outras palavras, o etnocídio resulta na dissolução do múltiplo no Um. O que significa agora o Estado? Ele é, por essência, o emprego de uma força centrípeta que tende, quando as circunstâncias o exigem, a esmagar as forças centrífugas inversas. O Estado se quer e se proclama o centro da sociedade, o todo do corpo social, o mestre absoluto dos diversos órgãos desse corpo. Descobre-se assim, no núcleo mesmo dessa substância do Estado, a força atuante do Um, a vocação de recusa do múltiplo, o temor e o horror da diferença. Nesse nível formal em que nos situamos atualmente, afirma Pierre Clastres, constata-se que a prática etnocida e a máquina estatal funcionam da mesma maneira e produzem os mesmos efeitos: sob as espécies da civilização ocidental ou do Estado, revelam-se sempre a vontade de redução da diferença e da alteridade, o sentido e o gosto do idêntico e do Um.  Isto porque, compreendemos as consequências imediatas da conquista e ocupação das áreas mais densamente povoadas da civilização indígena nas Américas foram etnocida. O somatório de doenças epidêmicas como varíola, sarampo, febre tifoide, sífilis, a superexploração do trabalho e debilitação física resultante com a “chegada do estranho” invasor para a aculturação de uma sociedade comunal orientada para o lucro, acabou por produzir nos séculos XVI e XVII um dos declínios demográficos mais desastrosos jamais registrados pela história civil mundial.
Os instrumentos de percussão também se uniram ao grupo, principalmente o pandeiro, sendo um dos mais utilizados. Outro componente que distingue o choro, ainda relacionado ao seu aspecto timbrístico, são as funções que os instrumentos assumiram om o tempo, revelando uma textura polifônica particular. O que antes era simplesmente uma melodia, acompanhada se transformou em algo mais complexo, os instrumentos começaram a ter funções claramente definida e este é um ponto especial na identificação do gênero musical. Etimologicamente o surgimento termo “choro” estudado nas pesquisas sobre música popular brasileira, não há consenso quanto á sua origem e significado. Choro pode ter se originado da maneira melancólica, chorosa de se tocar as músicas estrangeiras no final do século XIX, ou de “xolo”, a partir de então uma das características mais marcantes. O choro não é reconhecido por possuir uma harmonia complexa, segundo Valente (2014: 38), “são em sua maioria simples, maiores, menores, diminutos e dominantes. Existe uma tendência em se justificar a simplicidade da harmonia pelo andamento das melodias que exige virtuosismo de seus executantes”.
Em relação à estrutura melódica do choro, notamos que a maioria das melodias do gênero são idiomáticas, ou seja, vinculam-se diretamente a um tipo de baile que reunia os escravos das fazendas, que depois passou a ser conhecida como “xoro”, e finalmente a expressão passou a ser grafada com “ch”. A estrutura formal do choro relaciona-se diretamente com a chamada forma rondó, das danças de salão das cortes  europeias a partir do século XVIII, adotavam a forma rondó, entre elas a polca. Eram comuns, as partituras importadas de polca, na sociedade do Rio de Janeiro do Segundo Reinado (1840-1889), e esta foi rapidamente nacionalizada pelas interpretações dos grupos de choro seguisse sua estrutura formal, o rondó, que seria ao instrumento para a qual foi composta. Normalmente, as melodias são baseadas em arpejos que se relacionam às progressões harmônicas, escalas e sequências cromáticas. Na maioria das vezes, a melodia é apresentada por um instrumento solista, podendo ser a flauta, o bandolim ou o cavaquinho. Ordinariamente estes instrumentistas sabem ler partitura, mas também adotam a qualidade entre os que tocam choro de cor. Nãoão é necessário que o solista respeite o que está escrito, pois é comum acrescentar-se alguma improvisação realizando variações melódicas e rítmicas durante as repetições.
Chiquinha Gonzaga morreu trabalhando com a música e o teatro, participando com entusiasmo da cultura carioca em sua versão urbana, ao lado de artistas de diversas origens e estilos, acompanhando ao piano músicos do choro carioca, do grupo boêmio formado por Joaquim Callado, músico compositor e flautista considerado um dos criadores do choro ou como o pai dos chorões. Seu grupo, que ficou reconhecido como O Choro de Callado, era constituído por um instrumento de solo, no caso sua flauta de ébano, dois violões e um cavaquinho, onde os acompanhantes instrumentistas de cordas, tinham a capacidade de improvisar sobre o acompanhamento harmônico, ou compondo para os principais gêneros do teatro musicado, como na opereta de Viriato Correia, Juriti, em três atos de 1919, com música de Chiquinha Gonzaga e libreto de Viriato Corrêa.  A obra estreou em 16 de julho de 1919 no Teatro São Pedro de Alcântara, depois Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, encenada pela Grande Companhia de Operetas e Melodramas e direção de Eduardo Vieira. Vicente Celestino e Abigail Maia interpretaram os papeis principais, e o elenco incluía ainda Procópio Ferreira. O regente foi o maestro Luiz Moreira. É do grande tribuno a frase exclamativa com que se referia à compositora: - “Aquela Chiquinha é o diabo!”. Temos notícia de execução deste tango pela extraordinária Banda dos Meninos Desvalidos, regida pelo jovem maestro Luiz Moreira na récita em benefício a Chiquinha no Teatro Lírico em 20 de abril de 1891.
         Em 1900, Viriato Correia foi residir em Pernambuco e ingressou na Faculdade de Direito do Recife. Ficou nessa universidade por três anos e mudou-se para o Rio de Janeiro, então capital federal. Ainda em 1903, aos 19 anos de idade, lançou seu primeiro livro, Minaretes. Concluiu o curso na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro em 1907. Depois de formado pouco trabalhou como advogado, mas teve larga atuação nos campos jornalístico, literário e político. Com a ajuda de Medeiros de Albuquerque, logo conseguiu ingressar no jornal carioca Gazeta de Notícias. Durante estes anos colaborou em vários periódicos, como os jornais Correio da Manhã, Jornal do Brasil e Folha do Dia, e as revistas Careta, Ilustração Brasileira, Cosmos, A Noite Ilustrada, Para Todos, O Malho e Tico-Tico. Fundou os jornais Fafazinho e A Rua. Conviveu com importantes nomes do jornalismo e literatura, como Alcindo Guanabara e João do Rio, e foi também professor de História do teatro na Escola Dramática do Rio de Janeiro. Em 1917, fundou a Associação Brasileira de Autores Teatrais, que foi considerada uma das primeiras instituições defensoras dos direitos autorais,  sem fins lucrativos que arrecada e distribui direitos autorais de seus associados.
      A imprensa registrou a obra como a grande “marcha triunfal” dedicada a Lopes Trovão, apresentada por orquestra, banda dos Meninos Desvalidos e piano. A música foi incluída como tango de salão para dançar na opereta de costumes portugueses e brasileiros em 3 atos O Minho em festa, escrita por Cândido Costa e rebatizada como De volta à pátria, em 1922. Integra a série de choros Alma Brasileira, para saxofone (mi b), publicada em 1932. Foi gravado pela Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro em disco Columbia, com o subtítulo de Deus do Fogo, e lançado em 1913; também por Clara Sverner (piano), em 1998; e por Talitha Peres (piano), em 1999. Naquele ano, foram mais de 200 apresentações da peça, com um público total superior a 2.800 pessoas e as revistas de ano de Arthur Azevedo, Chiquinha Gonzaga conseguiu constituir sólida carreira como instrumentista, compositora e regente de espetáculos teatrais. Embora sua vida tenha sido pouco biografada, mas destinaram-se a narrar uma vida que brindou a liberdade, venceu preconceitos sociais descortinando o signo da excepcionalidade. Mais do que isso: dedicaram-se a transformar sua vida em uma história singular. Uma narrativa consequente dotada de começo, meio e fim, e cujas partes não poderiam aparecer descoladas do significativo papel de mulher e artista na sociedade.
Não devemos perder de vista o busílis em que operavam essas relações sociais e raciais ao nível político-ideológico diante da hipocrisia senhorial. Se ela era facilmente desmascarável pelo caráter lisonjeiro de paradigma da democracia racial, como no “passado a igualdade perante a Deus não proscrevia a escravidão, no presente a igualdade perante a Lei só iria fortalecer a hegemonia do homem branco”. Poucos atentaram, e ainda assim mais recentemente, para o fato de que o teste verdadeiro de uma filosofia racial democrática “repousaria no modo de lidar com os problemas suscitados pela destituição do escravo, pela desagregação das formas de trabalho livre vinculadas ao regime servil e, principalmente, pela assistência sistemática a ser dispensada à população de cor em geral”. Imposto de “cima para baixo”, como algo essencial à respeitabilidade do brasileiro, ao funcionamento normal das instituições e equilíbrio da ordem nacional, aquele mito acabou caracterizando a “ideologia racial brasileira”, perdendo-se por completo as identificações sociais que o confinavam à ideologia e às técnicas de dominação de uma classe social. 
      O mito em questão teve alguma utilidade prática, mesmo no momento em que emergia historicamente. Ao que parece, tal utilidade evidencia-se em três planos distintos. Primeiro, generalizou-se um estado de espírito farisaico, para lembrarmos de Walter Benjamin, que permite atribuir à incapacidade ou à irresponsabilidade do “negro” os dramas humanos da “população de cor” da cidade, com o que eles atestavam como índices insofismáveis de desigualdade econômica. Segundo, isentou o “branco” de qualquer obrigação, responsabilidade ou solidariedade morais, de alcance social e de natureza coletiva, perante os efeitos sociopáticos da espoliação abolicionista e da deterioração progressiva da situação socioeconômica do negro e do mulato. Terceiro, revitalizou a técnica de focalizar e avaliar as relações entre “negros” e “brancos” através de exterioridades ou aparências dos ajustamentos raciais, forjando uma consciência falsa da realidade racial brasileira. Graças à persistência das “condições que tornaram possíveis e necessárias a sua exploração prática, ela implantou-se de tal maneira que se tornou o verdadeiro elo entre as duas épocas sucessivas na história cultural das relações entre negros e brancos na cidade”.
       Em consequência disso, de acordo com Fernandes (1964), “ela também concorreu para difundir e generalizar a consciência falsa da realidade racial, suscitando todo um elenco de convicções etnocêntricas”: 1˚) a ideia de que “o negro não tem problemas no Brasil”; 2˚) a idéia de que, pela própria índole do Povo brasileiro, “não existem distinções raciais entre nós”; 3˚) a idéia de que as oportunidades de acumulação de riqueza, de prestígio social e de poder foram indistinta e igualmente acessíveis a todos, durante a expansão urbana e industrial da cidade de São Paulo; 4˚) a idéia de que “o preto está satisfeito” com sua condição social e estilo de vida em São Paulo; 5˚) a idéia de que não existe, nunca existiu, nem existirá outro problema de justiça social com referência ao “negro”, excetuando-se o que foi resolvido pela revogação do estatuto servil e pela universalização da cidadania – o que pressupõe que a miséria, a prostituição, a vagabundagem, a desorganização da família etc., seriam efeitos residuais, mas transitórios, a serem tratados pelos meios tradicionais e superados por mudanças qualitativas. As teorias que investigam a natureza e o desenvolvimento cognitivo confirmam esta tese heterodoxa. 

Bibliografia geral consultada.

FERNANDES, Florestan, A Integração do Negro à Sociedade de Classes. Tese de Livre Docência. Departamento de Sociologia. São Paulo: Universidade de São Paulo. Boletim n˚ 301. Sociologia, 1964; KEMP, Tom, La Revolución Industrial en la Europa del Siglo XIX. Barcelona: Libros de Confrontacion, 1976; DINIZ, Edinha, Chiquinha Gonzaga: Uma História de Vida. Rio de Janeiro: Editor Rosa dos Tempos, 1984; NABUCO, Joaquim, O Abolicionismo. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997; VERZONI, Marcelo Oliveira, Os Primórdios do Choro no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Música. Centro de Letras e Artes. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000; MILLAN, Cleuza de Souza, A Memória Social de Chiquinha Gonzaga. Rio de Janeiro: Editora Independente, 2001; CREVELANTI, Marcílio Carla, Chiquinha Gonzaga e o Maxixe. Dissertação de Mestrado. Instituto de Artes. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 2009; DOUGLAS, Mary, Pureza e Perigo. São Paulo: Editora Perspectiva, 2012; VALENTE, Paula Veneziano, Transformações do Choro no Século XXI: Estruturas, Performances e Improvisação. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Música. Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014; CESAR, Rafael do Nascimento, A Composição de uma Pioneira: De Francisca a Chiquinha. Dissertação de Mestrado. Departamento de Antropologia. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2015; CARVALHO, José Murilo, A Formação das Almas - O Imaginário da República no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Companhia as Letras, 2017; GOMES, Rodrigo Cantos Savelli, Chiquinha Gonzaga em Discurso: Narrativas sobre Vida e Obras de uma Artista Brasileira. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2018; MAGALHÃES, Maristela Rocha de Almeida, Chiquinha Gonzaga: De Outsider ao Reconhecimento Perante o Domínio Masculino. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Instituto de Ciências Humanas. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2019; ALVES, Carolina Gonçalves, “Ô Abre Alas que Eu quero Passar”: Rompendo o Silêncio sobre a Negritude de Chiquinha Gonzaga. In: PROA: Revista de Antropologia e Arte. Campinas, vol. 1,  10, pp. 18-36, 2020; entre outros.

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