quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Merenda Escolar – Desperdício & Descaso no Brasil

                                Ubiracy de Souza Braga*

É um desperdício imperdoável passar a vida empanzinado daquilo que não nos sacia”. Sarah Westphal
           


            Os pais e até avós dos alunos das escolas e centros de educação infantil reagiram indignados diante da divulgação de que quase uma (01) tonelada de carne e uma quantidade ainda não mensurada de alimentos (arroz, feijão, trigo) destinados à merenda escolar da Rede Municipal de Ensino de Campo Grande seriam incineradas. Os produtos estão impróprios para o consumo porque a validade venceu em junho de 2015. - “É um absurdo que isto tenha acontecido. É um desperdício de dinheiro justamente com a educação”, declarou a dona Clemência Fernandes, 74 anos, ao buscar a neta que estuda na Escola Desembargador José Carlos Garcia, no Bairro Zé Pereira, em Campo Grande. Nesta escola, segundo dona Clemência, nunca houve problema de merenda. -“Pelo menos aqui as crianças não enfrentam problemas desta natureza. O cardápio e as refeições são bem preparadas”. Quem também achou um absurdo que esteja ocorrendo desperdício de merenda, é a cabeleireira Kelly Benitez, 33 anos. - “Isto é incompetência administrativa. Não tem outro nome”. Kelly tem uma filha no Centro de Educação Infantil Clotilde, no Jardim Imã. - “A merenda no Ceinf é muito boa”. A diretora da unidade garantiu à reportagem do Campo Grande News que a dispensa da unidade está lotada e nunca faltaram itens para compor o cardápio das refeições oferecidas.     
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), popularmente conhecido como “merenda escolar”, é gerenciado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e visa à transferência, em caráter suplementar, de recursos financeiros aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios destinados a suprir, parcialmente, as necessidades nutricionais dos alunos. É considerado um dos maiores programas na área de alimentação escolar no mundo e é o único com atendimento universalizado. O Programa tem sua origem no início da década de 1940, quando o então Instituto de Nutrição defendia a proposta de o Governo Federal oferecer alimentação ao escolar. Entretanto, não foi possível concretizá-la, por indisponibilidade de recursos financeiros. Contudo, na década de 1950, foi elaborado um abrangente Plano Nacional de Alimentação e Nutrição, denominado “Conjuntura Alimentar e o Problema da Nutrição no Brasil”. É nele que, pela primeira vez, se estrutura um programa de merenda escolar em âmbito nacional, sob a responsabilidade pública.

           
Desse plano original, apenas o “Programa de Alimentação Escolar” sobreviveu, contando com o financiamento do Fundo Internacional de Socorro à Infância (Fisi), atualmente UNICEF, que permitiu a distribuição do excedente de leite em pó destinado, inicialmente, à campanha de nutrição materno-infantil. Dados de 2011 apontam que cerca de 1,3 bilhão de tonelada de comida, representando em torno de 1/3 da produção mundial, são perdidas ou desperdiçadas anualmente, significando uma contínua e injustificável sangria nos recursos vitais do planeta e na economia das nações, e sendo um fator de desequilíbrio ecológico e social, uma das causas do aquecimento global e um importante obstáculo à resolução do problema da fome crônica que ainda aflige mais de 800 milhões de pessoas em todo o mundo. Nos países desenvolvidos e em desenvolvimento o desperdício ocorre em sua maioria na fase final da cadeia produtiva, a do consumo. Em geral, o desperdício ocorre em níveis mais elevados nos países onde a industrialização é mais acentuada. Por exemplo, na Europa e Estados Unidos as perdas per capita são estimadas em 95 a 115 kg por ano, enquanto que na África subsaariana e no sudeste asiático elas ficam entre 6 e 11 kg por ano.            
Diversos fatores sociais contribuem para que o alimento seja perdido durante sua produção, beneficiamento ou comercialização. O assunto ainda é relativamente pouco estudado e requer muito mais pesquisa, mas no panorama geral, nos países pouco desenvolvidos as perdas se devem principalmente a limitações de ordem financeira, administrativa, ou técnica, e não entram propriamente na definição de “desperdício”, mas cabem na definição geral “perda alimentar”. Nos demais países principalmente se devem a fatores culturais ou comportamentais, e à deficiente coordenação entre os agentes da cadeia de produção, distribuição e comercialização dos alimentos. As perdas também ocorrem quando há produção acima da demanda. E são influenciadas por fatores culturais, econômicos estruturais e técnicos presentes em todos os países, que incluem:  a) as opções de produção, b) tradições da cultura agropecuária e pesqueira, c) maneiras preferenciais de armazenamento, d) distribuição e comercialização dos produtos, e a lucratividade de cada uma das etapas da cadeia. Um dos fatores culturais que têm influência no problema é o conceito que a população forma a respeito do que é um bom alimento. Muitas vezes alimentos perfeitamente comestíveis são descartados ou rejeitados por razões alheias ao seu valor nutricional, acabando por perder-se.



Este grave problema tem também implicações ecológicas e biológicas, pois a produção de alimentos, sempre em crescimento para atender a uma população mundial que não para de aumentar, requer o uso de sempre mais recursos naturais — por exemplo, derrubando-se novas áreas de floresta para dar lugar a culturas agrícolas e pastagens e exaurindo as reservas de água - e implica necessariamente na morte de uma multidão de animais e plantas por causas diretas e indiretas. Se o alimento é perdido, a biodiversidade foi desnecessariamente “empobrecida”. Os recursos naturais foram usados para nada e os animais e plantas foram sacrificados em vão. A decomposição de comida desperdiçada emite grandes quantidades de metano e gás carbônico, que estão entre os principais gases desencadeadores do aquecimento global, que por si tem vastas consequências negativas. Estima-se que cerca de 3,3 bilhões de toneladas de carbono sejam lançadas na atmosfera anualmente pelas perdas alimentares no mundo.
Paralelamente, a produção, estocagem e comercialização de alimentos tem contemporaneamente feito um uso crescente de produtos químicos altamente tóxicos como pesticidas e fertilizantes e de materiais e embalagens fabricados com plástico e outros materiais não biodegradáveis, ampliando consideravelmente os problemas da poluição ambiental e do manejo do lixo. A FAO calcula que os custos chegam a 750 bilhões de dólares por ano. Observa-se adicionalmente um importantíssimo custo social, já que grande população no mundo, calculada em torno de 840 milhões de pessoas, ainda sofre de fome crônica. Talvez a quantidade de comida perdida pudesse erradicar completamente a fome do mundo. Além disso, como os desperdícios especificamente se situam em sua maioria nos países industrializados, que importam muita comida produzida nos países onde a fome é mais comum, as perdas concorrem para a desigualdade e a injustiça social. Ampliam os problemas já existentes de “segurança alimentar”, saúde pública, desemprego, migração de populações, violência social e urbanização, que podem ser uma causa de desintegração de culturas tradicionais.
A partir de 1976, embora financiado pelo Ministério da Educação e gerenciado pela Campanha Nacional de Alimentação Escolar, o programa era parte do II Programa Nacional de Alimentação e Nutrição (Pronan). Somente em 1979 passou a denominar-se Programa Nacional de Alimentação Escolar. Com a promulgação da Constituição Federal, em 1988, ficou assegurado o direito à alimentação escolar a todos os alunos do ensino fundamental por meio de programa suplementar de alimentação escolar a ser oferecido pelos governos federal, estaduais e municipais. Desde sua criação até 1993, a execução do programa se deu de forma centralizada, ou seja, o órgão gerenciador planejava os cardápios, adquiria os gêneros por processo licitatório, contratava laboratórios especializados para efetuar o controle de qualidade e ainda se responsabilizava pela distribuição dos alimentos em todo o território nacional.
O PNAE é conhecido mundialmente como um caso de sucesso de Programa de Alimentação Escolar Sustentável. Nesse contexto, é importante ressaltar os Acordos Internacionais firmados com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura – FAO e com o Programa Mundial de Alimentos – PMA, por meio da Agência Brasileira de Cooperação do Ministério das Relações Exteriores, com vistas a apoiar o desenvolvimento Programas de Alimentação Escolar Sustentáveis em países da América Latina, Caribe, África e Ásia, sob os princípios da Segurança Alimentar e Nutricional e do Direito Humano à Alimentação Adequada. Em 2009, a sanção da Lei nº 11.947, de 16 de junho, trouxe novos avanços para o PNAE, como a extensão do Programa para toda a rede pública de educação básica, inclusive aos alunos participantes do Programa Mais Educação, e de jovens e adultos, e a garantia de que, no mínimo, 30% dos repasses do FNDE sejam investidos na aquisição de produtos da agricultura familiar. Houve a inclusão do atendimento, em 2013, para os alunos que frequentam o Atendimento Educacional Especializado – AEE, para os da Educação de Jovens e Adultos semipresenciais e aqueles matriculados em escolas de tempo integral.
Em relação aos recursos financeiros, o PNAE transfere per capitas diferenciados para atender as diversidades étnicas e as necessidades nutricionais por faixa etária e condição de vulnerabilidade social. Em 2012, aumentou o valor repassado aos alunos matriculados em creches e pré-escolas, sob a diretriz da política governamental de priorização da educação infantil. Em 17 de junho de 2013, foi publicada a Resolução FNDE nº 26, que fortalece um dos eixos do Programa, a Educação Alimentar e Nutricional (EAN), ao dedicar uma Seção às ações de EAN. Essa medida vai ao encontro das políticas públicas atuais relacionadas à Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), visto a existência do Plano de SAN, do Plano Nacional Combate à Obesidade e do Plano de Ações Estratégicas para o enfretamento das Doenças Crônicas não Transmissíveis (DCNT).


O objetivo da FAO na América Latina e Caribe é montar uma rede de entidades com o propósito de reduzir a perda na produção e na pós-colheita dos alimentos. Arquivo/Agência Brasil.

Destaca-se ainda que, em 2 de abril de 2015, a Resolução CD/FNDE nº 4, considerando o fortalecimento da Agricultura Familiar que tratavam da aquisição de gêneros alimentícios oriundos da agricultura familiar  e do empreendedor familiar rural ou suas organizações. A Resolução publicada em 2015 modificou a forma de aplicação dos critérios para seleção e classificação dos projetos de venda; estabeleceu o que são grupos formais e informais de assentados da reforma agrária, comunidades tradicionais indígenas e quilombolas e critérios para desempate e assim por diante. Vale lembrar que, em 2000, o PNAE atendia cerca de 37,1 milhões de alunos com um investimento de R$ 901,7 milhões. Em 2014, foram atendidos aproximadamente 42 milhões de alunos com um investimento de aproximadamente R$ 3,6 bilhões.
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estuda a criação de uma rede de instituições em torno da cadeia produtiva de alimentos no Brasil para conter as perdas e o desperdício. O país é considerado um dos dez (10) que mais desperdiçam comida em todo o mundo, com cerca de 30% da produção praticamente jogados fora na fase pós-colheita. A redução das perdas será objeto de debates na oficina que a Embrapa Agroindústria de Alimentos promove no próximo dia 30/09/2015, no Rio de Janeiro, em contribuição à 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que ocorrerá em Brasília, em novembro próximo. O objetivo da FAO na América Latina e Caribe é montar uma rede de entidades com organizações não governamentais (ONGs), universidades e institutos de pesquisa com o propósito de reduzir a perda na produção e na pós-colheita dos alimentos. Ao governo caberia providenciar a melhoria de fatores técnicos como infraestrutura para transporte dos alimentos, como existe nos Estados Unidos da América.
Bibliografia geral consultada.

CASTELLS, Manuel, A Sociedade em Rede. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1999; IANNI, Octávio, Teorias da Globalização. 9ª edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2001; BARKER, Gary; RIZZINI, Irene, Repensando o Desenvolvimento Infantil e Juvenil no Contexto de Pobreza Urbana no Brasil. O Social em Questão. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro: Departamento de Serviço Social, n° 7, 2002; STIGLITZ, Joseph Eugene, A Globalização e seus Malefícios. São Paulo: Futura Editora, 2002; MENDES, José Manuel e TAVARES, Alexandre Oliveira, “Risco, Vulnerabilidade Social e Cidadania”. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, (93) 2011, pp. 05-08; Idem, “Vulnerabilidade Social e Cidadania”. Postado online dia 01/10/2012, criado em 09/09/2015. In: http://rccs.revues.org/173; Artigo: “Brasil Desperdiça 40 mil Toneladas de Alimentos Todos os Dias”. In: http://www.redebrasilatual.com.br//2014/05/20; SILVÉRIO, Gabriela de Andrade; OLTROMARI, Karine, Desperdício de Alimentos em Unidades de Alimentação e Nutrição Brasileiras. In: Ambiência - Revista do Setor de Ciências Agrárias Ambientais. Volume 10, n 1, jan./abril de 2014; BELIK, Walter, Entrevista concedida desperdício de alimentos no Brasil. In: http://www.ihu.unisinos.br/11/05/2014; entre outros.
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Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

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