Ubiracy de Souza Braga*
“É um desperdício imperdoável passar a vida empanzinado daquilo que não nos sacia”. Sarah Westphal
Os
pais e até avós dos alunos das escolas e centros de educação infantil reagiram
indignados diante da divulgação de que quase uma (01) tonelada de carne e uma
quantidade ainda não mensurada de alimentos (arroz, feijão, trigo) destinados à
merenda escolar da Rede Municipal de Ensino de Campo Grande seriam incineradas.
Os produtos estão impróprios para o consumo porque a validade venceu em junho
de 2015. - “É um absurdo que isto tenha acontecido. É um desperdício de
dinheiro justamente com a educação”, declarou a dona Clemência Fernandes, 74
anos, ao buscar a neta que estuda na Escola Desembargador José Carlos Garcia,
no Bairro Zé Pereira, em Campo Grande. Nesta escola, segundo dona Clemência,
nunca houve problema de merenda. -“Pelo menos aqui as crianças não enfrentam
problemas desta natureza. O cardápio e as refeições são bem preparadas”. Quem
também achou um absurdo que esteja ocorrendo desperdício de merenda, é a
cabeleireira Kelly Benitez, 33 anos. - “Isto é incompetência administrativa.
Não tem outro nome”. Kelly tem uma filha no Centro de Educação Infantil
Clotilde, no Jardim Imã. - “A merenda no Ceinf é muito boa”. A diretora da
unidade garantiu à reportagem do Campo Grande News que a dispensa da unidade está lotada e nunca faltaram itens
para compor o cardápio das refeições oferecidas.
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE),
popularmente conhecido como “merenda escolar”, é gerenciado pelo Fundo Nacional
de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e visa à transferência, em caráter
suplementar, de recursos financeiros aos estados, ao Distrito Federal e aos
municípios destinados a suprir, parcialmente, as necessidades nutricionais dos
alunos. É considerado um dos maiores programas na área de alimentação escolar
no mundo e é o único com atendimento universalizado. O Programa tem sua origem
no início da década de 1940, quando o então Instituto de Nutrição defendia a
proposta de o Governo Federal oferecer alimentação ao escolar. Entretanto, não
foi possível concretizá-la, por indisponibilidade de recursos financeiros. Contudo,
na década de 1950, foi elaborado um abrangente Plano Nacional de Alimentação e Nutrição, denominado “Conjuntura
Alimentar e o Problema da Nutrição no Brasil”. É nele que, pela primeira vez,
se estrutura um programa de merenda escolar em âmbito nacional, sob a
responsabilidade pública.
Desse plano original, apenas o “Programa de
Alimentação Escolar” sobreviveu, contando com o financiamento do Fundo
Internacional de Socorro à Infância (Fisi), atualmente UNICEF, que permitiu a
distribuição do excedente de leite em pó destinado, inicialmente, à campanha de
nutrição materno-infantil. Dados de 2011 apontam que cerca de 1,3 bilhão de
tonelada de comida, representando em torno de 1/3 da produção mundial, são
perdidas ou desperdiçadas anualmente, significando uma contínua e
injustificável sangria nos recursos vitais do planeta e na economia das nações,
e sendo um fator de desequilíbrio ecológico e social, uma das causas do
aquecimento global e um importante obstáculo à resolução do problema da fome
crônica que ainda aflige mais de 800 milhões de pessoas em todo o mundo. Nos
países desenvolvidos e em desenvolvimento o desperdício ocorre em sua maioria
na fase final da cadeia produtiva, a do consumo. Em geral, o desperdício ocorre
em níveis mais elevados nos países onde a industrialização é mais acentuada.
Por exemplo, na Europa e Estados Unidos as perdas per capita são estimadas em 95 a 115 kg por ano, enquanto que na
África subsaariana e no sudeste asiático elas ficam entre 6 e 11 kg por ano.
Diversos fatores sociais contribuem para que o
alimento seja perdido durante sua produção, beneficiamento ou comercialização.
O assunto ainda é relativamente pouco estudado e requer muito mais pesquisa,
mas no panorama geral, nos países pouco desenvolvidos as perdas se devem
principalmente a limitações de ordem financeira, administrativa, ou técnica, e
não entram propriamente na definição de “desperdício”, mas cabem na definição
geral “perda alimentar”. Nos demais países principalmente se devem a fatores
culturais ou comportamentais, e à deficiente coordenação entre os agentes da
cadeia de produção, distribuição e comercialização dos alimentos. As perdas
também ocorrem quando há produção acima da demanda. E são influenciadas por
fatores culturais, econômicos estruturais e técnicos presentes em todos os
países, que incluem: a) as opções de
produção, b) tradições da cultura agropecuária e pesqueira, c) maneiras
preferenciais de armazenamento, d) distribuição e comercialização dos produtos,
e a lucratividade de cada uma das etapas da cadeia. Um dos fatores culturais
que têm influência no problema é o conceito que a população forma a respeito do
que é um bom alimento. Muitas vezes alimentos perfeitamente comestíveis são
descartados ou rejeitados por razões alheias ao seu valor nutricional, acabando
por perder-se.
Este grave problema tem também implicações ecológicas
e biológicas, pois a produção de alimentos, sempre em crescimento para atender
a uma população mundial que não para de aumentar, requer o uso de sempre mais
recursos naturais — por exemplo, derrubando-se novas áreas de floresta para dar
lugar a culturas agrícolas e pastagens e exaurindo as reservas de água - e
implica necessariamente na morte de uma multidão de animais e plantas por
causas diretas e indiretas. Se o alimento é perdido, a biodiversidade foi
desnecessariamente “empobrecida”. Os recursos naturais foram usados para nada e
os animais e plantas foram sacrificados em vão. A decomposição de comida
desperdiçada emite grandes quantidades de metano e gás carbônico, que estão
entre os principais gases desencadeadores do aquecimento global, que por si tem
vastas consequências negativas. Estima-se que cerca de 3,3 bilhões de toneladas
de carbono sejam lançadas na atmosfera anualmente pelas perdas alimentares no
mundo.
Paralelamente, a produção, estocagem e comercialização
de alimentos tem contemporaneamente feito um uso crescente de produtos químicos
altamente tóxicos como pesticidas e fertilizantes e de materiais e embalagens
fabricados com plástico e outros materiais não biodegradáveis, ampliando
consideravelmente os problemas da poluição ambiental e do manejo do lixo. A FAO
calcula que os custos chegam a 750 bilhões de dólares por ano. Observa-se adicionalmente
um importantíssimo custo social, já que grande população no mundo, calculada em
torno de 840 milhões de pessoas, ainda sofre de fome crônica. Talvez a
quantidade de comida perdida pudesse erradicar completamente a fome do mundo.
Além disso, como os desperdícios especificamente se situam em sua maioria nos
países industrializados, que importam muita comida produzida nos países onde a
fome é mais comum, as perdas concorrem para a desigualdade e a injustiça
social. Ampliam os problemas já existentes de “segurança alimentar”, saúde
pública, desemprego, migração de populações, violência social e urbanização,
que podem ser uma causa de desintegração de culturas tradicionais.
A partir de 1976, embora financiado pelo Ministério da
Educação e gerenciado pela Campanha Nacional de Alimentação Escolar, o programa
era parte do II Programa Nacional de
Alimentação e Nutrição (Pronan). Somente em 1979 passou a denominar-se
Programa Nacional de Alimentação Escolar. Com a promulgação da Constituição
Federal, em 1988, ficou assegurado o direito à alimentação escolar a todos os
alunos do ensino fundamental por meio de programa suplementar de alimentação
escolar a ser oferecido pelos governos federal, estaduais e municipais. Desde
sua criação até 1993, a execução do programa se deu de forma centralizada, ou
seja, o órgão gerenciador planejava os cardápios, adquiria os gêneros por
processo licitatório, contratava laboratórios especializados para efetuar o
controle de qualidade e ainda se responsabilizava pela distribuição dos
alimentos em todo o território nacional.
O PNAE é conhecido mundialmente como um caso de
sucesso de Programa de Alimentação Escolar Sustentável. Nesse contexto, é
importante ressaltar os Acordos Internacionais firmados com a Organização das Nações Unidas para
Alimentação e a Agricultura – FAO e com o Programa Mundial de Alimentos – PMA, por meio da Agência Brasileira
de Cooperação do Ministério das Relações Exteriores, com vistas a apoiar o
desenvolvimento Programas de Alimentação Escolar Sustentáveis em países da
América Latina, Caribe, África e Ásia, sob os princípios da Segurança Alimentar
e Nutricional e do Direito Humano à Alimentação Adequada. Em 2009, a sanção da
Lei nº 11.947, de 16 de junho, trouxe novos avanços para o PNAE, como a
extensão do Programa para toda a rede pública de educação básica, inclusive aos
alunos participantes do Programa Mais Educação, e de jovens e adultos, e a
garantia de que, no mínimo, 30% dos repasses do FNDE sejam investidos na
aquisição de produtos da agricultura familiar. Houve a inclusão do atendimento,
em 2013, para os alunos que frequentam o Atendimento Educacional Especializado
– AEE, para os da Educação de Jovens e Adultos semipresenciais e aqueles
matriculados em escolas de tempo integral.
Em relação aos recursos financeiros, o PNAE transfere
per capitas diferenciados para atender as diversidades étnicas e as
necessidades nutricionais por faixa etária e condição de vulnerabilidade social.
Em 2012, aumentou o valor repassado aos alunos matriculados em creches e
pré-escolas, sob a diretriz da política governamental de priorização da
educação infantil. Em 17 de junho de 2013, foi publicada a Resolução FNDE nº
26, que fortalece um dos eixos do Programa, a Educação Alimentar e Nutricional
(EAN), ao dedicar uma Seção às ações de EAN. Essa medida vai ao encontro das
políticas públicas atuais relacionadas à Segurança Alimentar e Nutricional
(SAN), visto a existência do Plano de SAN, do Plano Nacional Combate à
Obesidade e do Plano de Ações Estratégicas para o enfretamento das Doenças
Crônicas não Transmissíveis (DCNT).
O objetivo da FAO na América Latina e Caribe é montar uma rede de entidades com o propósito de reduzir a perda na produção e na pós-colheita dos alimentos. Arquivo/Agência Brasil.
Destaca-se ainda que, em 2 de abril de 2015, a
Resolução CD/FNDE nº 4, considerando o fortalecimento da Agricultura Familiar
que tratavam da aquisição de gêneros alimentícios oriundos da agricultura
familiar e do empreendedor familiar
rural ou suas organizações. A Resolução publicada em 2015 modificou a forma de
aplicação dos critérios para seleção e classificação dos projetos de venda;
estabeleceu o que são grupos formais e informais de assentados da reforma
agrária, comunidades tradicionais indígenas e quilombolas e critérios para
desempate e assim por diante. Vale lembrar que, em 2000, o PNAE atendia cerca
de 37,1 milhões de alunos com um investimento de R$ 901,7 milhões. Em 2014,
foram atendidos aproximadamente 42 milhões de alunos com um investimento de
aproximadamente R$ 3,6 bilhões.
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a
Agricultura (FAO) estuda a criação de uma rede de instituições em torno da
cadeia produtiva de alimentos no Brasil para conter as perdas e o desperdício.
O país é considerado um dos dez (10) que mais desperdiçam comida em todo o
mundo, com cerca de 30% da produção praticamente jogados fora na fase
pós-colheita. A redução das perdas será objeto de debates na oficina que a
Embrapa Agroindústria de Alimentos promove no próximo dia 30/09/2015, no Rio de
Janeiro, em contribuição à 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional, que ocorrerá em Brasília, em novembro próximo. O objetivo da FAO
na América Latina e Caribe é montar uma rede de entidades com organizações não
governamentais (ONGs), universidades e institutos de pesquisa com o propósito
de reduzir a perda na produção e na pós-colheita dos alimentos. Ao governo
caberia providenciar a melhoria de fatores técnicos como
infraestrutura para transporte dos alimentos, como existe nos Estados Unidos da
América.
Bibliografia geral consultada.
CASTELLS, Manuel, A Sociedade em Rede. Rio de Janeiro: Editora
Paz e Terra, 1999; IANNI, Octávio, Teorias
da Globalização. 9ª edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
2001; BARKER, Gary; RIZZINI, Irene, Repensando
o Desenvolvimento Infantil e Juvenil no Contexto de Pobreza Urbana no Brasil. O
Social em Questão. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro: Departamento de Serviço Social,
n° 7, 2002; STIGLITZ, Joseph Eugene, A
Globalização e seus Malefícios. São Paulo: Futura Editora, 2002; MENDES, José Manuel e TAVARES, Alexandre Oliveira, “Risco, Vulnerabilidade
Social e Cidadania”. In: Revista Crítica
de Ciências Sociais, (93) 2011, pp. 05-08; Idem, “Vulnerabilidade Social e
Cidadania”. Postado online dia 01/10/2012,
criado em 09/09/2015. In: http://rccs.revues.org/173; Artigo: “Brasil Desperdiça 40 mil Toneladas de Alimentos Todos os
Dias”. In: http://www.redebrasilatual.com.br//2014/05/20; SILVÉRIO, Gabriela de Andrade; OLTROMARI, Karine, “Desperdício de Alimentos em Unidades de Alimentação e Nutrição Brasileiras”. In: Ambiência - Revista do Setor de Ciências Agrárias Ambientais. Volume 10, n 1, jan./abril de 2014; BELIK, Walter, Entrevista concedida desperdício de alimentos no Brasil. In: http://www.ihu.unisinos.br/11/05/2014; entre outros.
________________
* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
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