domingo, 27 de setembro de 2015

Mediterrâneo - Cinema, Comédia & Formações Discursivas.

Ubiracy de Souza Braga*

         Los tiempos felices en la humanidad son las páginas vacías de la historia”. Leopold von Ranke


         Nascido em Nápoles, na Itália, Gabriele Salvatores faz parte do seleto grupo de cineastas que têm um Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, como era reconhecida a categoria chamada de Filme Internacional. Gabriele Salvatores nascido em Nápoles, em 30 de julho de 1950 é um diretor e roteirista italiano. Seu filme Mediterrâneo (1991) recebeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1992. É um dos fundadores, junto com Maurizio Totti e Diego Abatantuono da produtora cinematográfica Colorado Film e de diversos projetos associados à empresa, como a editora Colorado Noir, esta última fundada em 2004 junto com Totti e Sandrone Duties. Perguntado sobre seu cineasta favorito, em certa ocasião, ele não citou um dos tantos mestres do cinema italiano pós-Segunda Guerra Mundial, mas admitiu a predileção pelo britânico Stanley Kubrick. Ao longo dos anos, Gabriele diversificou seus pontos de vista, fez dramas sociais, filmes de super-heróis, demonstrou personagens fugindo dos problemas do mundo moderno, etc. Gabriele Salvatores nasceu em 30 de julho de 1950 em Nápoles, mas mudou-se com os pais e a irmã para Milão aos seis anos. Formado no liceu clássico Cesare Beccaria, a sua primeira aproximação ao mundo cinematográfico do entretenimento não passou pelo cinema, mas exatamente quando iniciou a carreira no Teatro dell`Elfo, com Ferdinando Bruni (1972), com o qual dirigiu espetáculos per se definidos como vanguardistas.
            Em junho de 1941, um grupo de soldados italianos, liderado pelo tenente Raffaele Montini, chega a uma pequena ilha grega, no Mar Egeu, onde montam um Posto de Observação.  A pequena vila da ilha parece abandonada, não havendo o menor sinal do inimigo nem de seus habitantes. Logo, o rádio por eles trazido se quebra.  Algumas tentativas são feitas para recuperá-lo, sem sucesso, ficando o grupo sem qualquer contato com o resto do mundo. A população civil local, basicamente composta de idosos, mulheres e crianças, já que os homens mais jovens haviam partido por conta da guerra, sentindo o espírito pacífico dos italianos, deixa seus esconderijos e desce a montanha.  A princípio, os soldados se preocupam por acreditarem na possibilidade de uma emboscada, mas depois relaxam. O líder religioso informa ao tenente Montini que, antes deles chegarem, havia um grupo de alemães, os quais destruíram várias casas e afundaram seus barcos.  Assim, ao avistarem o navio que os trouxera, os moradores da vila se refugiaram nas montanhas, acreditando que os alemães estavam de volta. Uma bela jovem, de nome Vassilissa, procura o tenente Montini, em busca de trabalho.  Na sua ausência, o Sgt. Lorusso se faz passar por ele.  Perguntada sobre suas habilidades profissionais, ela responde que é puta.  O sargento lhe diz que vai ter que consultar o regulamento. Mas, depois de conversar com seus colegas de farda, é elaborada uma programação de atendimento de Vassilissa aos interessados.

O soldado Farina, que nunca havia tido relação sexual com uma mulher, logo se apaixona pela bela jovem e, ameaçando seus colegas com um fuzil, avisa que ninguém mais vai ficar com ela.  Alguns dias depois, o padre da comunidade celebra o casamento dos dois. O tempo passa.  Três anos depois da chegada do grupo à pequena ilha, um monomotor, pilotado pelo tenente Carmelo, sofre pane e o obriga a fazer um pouso de emergência na praia onde o grupo jogava futebol.  Ao verificar que seus colegas italianos não estavam sabendo do andamento da guerra, ele os informa que o líder fascista Benito Mussolini caiu e que a Itália se acha dividida em duas formas de oposições assimétricas.  No Sul, estão os ingleses e os norte-americanos, enquanto no Norte acham-se os alemães e os fascistas.  Depois de reparar o avião, o Ten. Carmelo se despede dizendo que vai falar com seu comandante, na ilha de Creta, para que eles sejam resgatados. Um navio inglês chega à pequena ilha, trazendo um grupo de gregos que lá moram.  Os italianos partem no mesmo, exceção de Farina que, casado, prefere desertar, refugiando-se com Vassilissa nas regiões montanhosas. Anos depois, agora um senhor grisalho, o antigo tenente Montini retorna à ilha.  Lá, reencontra o ex-sargento Lorusso, que não se readaptando à Itália, resolvera voltar pra ilha, bem como, protagonizando a história, Farina & esposa, proprietários do Restaurante Vassilissa.

                                       

Foi de uma dessas obras, em 1983, que nasceu o tema de sua primeira direção cinematográfica, Sonho de Uma Noite de Verão: inspirado em William Shakespeare, o filme é um híbrido caleidoscópico inclusivo em torno de cinema, teatro, música e dança com contos de fadas, cadências. De seu período teatral lembramos, em 1983, Class Enemy de Nigel Williams , drama de 1978 - traduzido e adaptado pelo ator e diretor Elio De Capitani - com protagonistas de nomes desconhecidos na época e que mais tarde se tornaram atores de grande importância (Claudio Bisio , Paolo Rossi , Antonio Catania , além do próprio De Capitani), Comediantes de Trevor Griffiths, em 1985, comédia de 1975 traduzida e adaptada pelo próprio Salvatores junto com a dupla Gino e Michele e na qual também estava Silvio Orlando e que depois o mesmo arguto diretor transporá livremente para o cinema em duas ocasiões distintas, Kamikazen - Ultima Notte a Milano, em 1988 e Call Me Kowalski do próprio Paolo Rossi, de 1987, espetáculo que consagrou o ator de Trieste como estrela histriônica do teatro italiano. Abandonou o teatro em 1989, passando para o mercado de trabalho para o mundo do cinema. 

Os filmes Marrakech Express (1989) e o seguinte Turné, de 1990 foram rodados com seu grupo de amigos atores, incluindo Diego Abatantuono, com quem é dono e dirige a produtora cinematográfica “Colorado”, e com quem se casou com a ex-esposa e Fabrizio Bentivoglio, e entre as atrizes está Laura Morante. Em 1990 recebeu uma indicação ao European Film Awards na categoria “Juventude” por Turné. Em 1990 foi também diretor do único videoclipe rodado pelo cantor e compositor Fabrizio De André, para a música “La Domenica delle Salme”. Em 1991 alcançou reconhecimento internacional com Mediterraneo, filme de enorme sucesso, que lhe rendeu o Oscar de melhor filme estrangeiro. O filme também ganhou outros prêmios, incluindo o David di Donatello de melhor filme, edição e som e um Nastro d`argento de direção. A sua chamada “trilogia de fuga”, composta pelos três filmes acima mencionados, é idealmente continuada em 1992 por Puerto Escondido, filme baseado no romance homônimo de Pino Cacucci, sobre temas próximos dos anteriores, ao qual Abatantuono é acompanhado pelo ator Claudio Bisio. No ano seguinte dirigiu Sud (1993), uma tentativa de denunciar a situação política da Itália dos marginalizados e desempregados, entre os quais se destaca a interpretação de Silvio Orlando.                            

Em primeiro lugar, não devemos esquecer que o mundo das “histórias nacionais” de Leopold von Ranke (1795-1886) é, assim, determinado, visto que sua particularidade refere-se a existenz, para lembramo-nos de Friedrich Hegel, na técnica de interpretação na literatura e na filosofia de um “mundo europeu”, que mal se dilata, mas sem perder o conteúdo essencial, sobre províncias e continentes do ultramar colonizados por povos europeus. Mas não é a Europa inteira o que o ocupa, e sim as fronteiras geográficas dessa Europa latina e germânica, protestante ou católica, que são também as fronteiras do espaço e do tempo histórico a que devotou o melhor de sua atividade intelectual: “somos mais vizinhos de Nova York e de Lima do que de Kiev e Smolensk”. Mas é melhor tentarmos entender sua ideia de “nexo de sentido”, posto que as razões dessa crítica só valessem se quisesse dizer que o mundo histórico cessava, para Ranke, “nos limites da Europa Ocidental com seus apêndices ultramarinos”. Sua ideia de “nexo de sentido”, que poderia justificar-se como um princípio de economia necessário, passa a ser um “mandato de exclusão sem apelo”. Os povos que não tiveram o privilégio de originar-se das grandes invasões dos séculos IV a VII, que não se puseram logo sob a égide da Igreja de Roma, que não tomaram parte nas cruzadas e direta ou indiretamente nos descobrimentos e conquistas ultramarinos, que não se viram envolvidos, dentro do mesmo espírito cristão, mas cristão ocidental, nas guerras de religião do século XVII e nem na Ilustração do século XVIII, “esses povos não têm salvação diante da História”.

Curioso é notar que em defesa do exclusivismo de Ranke poderia alegar-se que essa universalização da cultura ocidental parecia rigorosamente imprevisível à época em que ele viveu, e, no entanto é forçoso observar que sua noção científica da História, ao mesmo tempo em que lhe traçava limites fixos no espaço, também excluíam a dimensão do futuro. Nada há, em sua obra, que se assemelha a certas previsões feitas por homens de seu tempo. E nem há como exprobrá-lo por ter seguido a regra, que Hegel definiu, mas não seguiu, de que não é da competência dos historiadores o arvorar-se em profetas ou dramaturgos. A limitação metodológica de Ranke, neste particular, não está em que para  ele o tempo histórico pode comportar “um ontem”, quando muito “hoje”, cujo conhecimento nos é acessível através de pesquisas ou de experiências. A história se baseia num tempo incompleto, inacabado, que em si mesmo é uma exigência de mudança. O passado jamais se entrega imediatamente a nós, por isso devemos considerar ideológica a pretensão de estabelecer “o que efetivamente aconteceu”. Ou seja, a ideia conspícua de Leopold von Ranke, contida em seu Zur Kritik neurer Geschichsreiber do “como efetivamente aconteceu” (essen Sie tatsächlich, es passierte). Nosso ponto de partida é articulado emtorno do conceito de “tempo-de-agora” (Jetztzeit); é nele que tomamos consciência e que podemos nos relacionar em termos novos com o passado e exercermos a crítica analítica como veremos adiante.
História das mentalidades é modalidade que privilegia os modos “de pensar e de sentir” dos indivíduos de uma mesma época. Segundo Michel Vovelle, em Ideologies et Mentalités (1982), é o “estudo das mediações e da relação dialética entre, de um lado, as condições objetivas da vida dos homens e, de outro, a maneira como eles a narram e mesmo como a vivem”; ou, Le Mort et l’Occident de 1300 à nous Jours, à Paraître fin 1982, ou ainda, segundo Robert Mandrou, no livro Magistrados e Feiticeiros na França do Século XVII - Uma Análise de Psicologia Histórica em que interpreta “uma história centrada nas visões de mundo”. Esta obra apresenta os resultados de uma longa investigação pelos arquivos judiciários e pelos trabalhos consagrados à caça às bruxas na França no século XVII. Através de um itinerário intelectual e afetivo complexo, os Magistrados das cortes supremas (os Parlamentos) em Paris, Dijon, Bordeaux etc. renunciaram com dificuldades, lentamente, a condenação automática à fogueira dos suspeitos de bruxaria; longa tomada de consciência na qual os médicos, teólogos e juízes colaboram através de polêmicas veementes suscitadas em particular por alguns processos que causaram grande escândalo e puseram em causa os confessores de conventos femininos presos do demônio: em Aix-em-Provence, em Louviers. Segundo Roger Chartier, uma “história do sistema de crenças, de valores e de representações próprios a uma época ou grupo”. Segundo Georges Duby, a designação ajustava-se à necessidade de explicar o que de mais fundo “persiste e dá sentido à vida material das sociedades”, ou seja, representam as ideias que formam das suas condições reais de existência e que além disso “comandam de forma imperativa a organização e o destino dos grupos humanos”. 
Haveria uma “mentalidade coletiva”? Lucien Febvre (1953; 1978) perguntava-se se existiriam “modos de sentir e de pensar” que fosse comum a “Cristóvão Colombo e ao mais humilde marinheiro de suas caravelas”. Esta pergunta foi retomada a partir dos anos 1960, e começou a se formar mais claramente como “uma nova técnica de orientação da pesquisa histórica” a partir de autores como Philippe Ariès (1982b), e ainda, George Duby & Robert Mandrou, em Histoire de la civilization française. Moyen Âge - XVIe siècle (1958). Deve-se ainda ter em vista que a História das mentalidades associou-se também ao conceito de “la longue durée” ou “tempo longo”, característico da Escola dos Annales. Tal como o compreendia Fernand Braudel, as mentalidades constituiriam um “padrão de pensamento” ou de “sensibilidade” que mudaria muito lentamente, “vindo a formar uma estrutura de longa duração”. Objetos típicos da História das mentalidades são: “as sensibilidades do Homem diante da morte”, a história dos “grandes medos dos seres humanos nos diversos períodos” (cf. Jean Delumeau), da feitiçaria (cf. Robert Mandrou) e tantas outras que à época em que começa aflorar a História das mentalidades, que “pareciam constituir temáticas exóticas para os historiadores que se dedicavam a temas historiográficos mais tradicionais”. Não temos história do amor, da morte, da piedade, da crueldade, da alegria. A queixa de Lucien Febvre, em 1948, muito repetida desde então, tornou-se quase um manifesto da disciplina que se convencionou chamar a “história das mentalidades”. Uma das lacunas que o fundador da Escola dos Annales deplorava foi preenchida pela História do medo no Ocidente, de Jean Delumeau. Ao tomar como objeto de estudo o medo,  ele parte da ideia de que não apenas os indivíduos mas também as coletividades estão engajadas num diálogo permanente com a menos heroica das paixões humanas.
Revelando-nos os pesadelos mais íntimos da civilização ocidental do século XIV ao XVIII, por exemplo, o mar, os mortos, as trevas, a peste, a fome, a bruxaria, o Apocalipse, Satã e seus agentes (o judeu, a mulher, o muçulmano) -, o grande pensador francês realiza uma obra sem precedentes na historiografia do Ocidente. Alguns autores postulam que a história das mentalidades apresentou como principais precursores dois grandes historiadores ligados à escola dos Annales: Marc Bloch, que publicou em 1922, Os Reis Taumaturgos, uma obra comparativa que examinava “a relação entre a crença no poder curativo dos reis e a autoridade das grandes dinastias francesas e inglesas”, e Lucien Febvre, que publicou O Problema do Ateísmo no Século XVI: a religião de Rabelais, obra na qual já “defendia a tese da História como estudo interdisciplinar”. A chamada História das mentalidades é um ramo da Teoria da História. É considerada uma análise de tipo mais profundo da História, pois visa perscrutar e compreender as grandes alterações nas formas de “pensar e agir do Homem ao longo dos tempos”. Inscreve-se no chamado “tempo longo” (a “longa duração”), de teor essencialmente estrutural e que atua nos mais diversos fatores de uma sociedade.
Por ser do domínio do “tempo longo”, a perspectiva temporal é fundamental para seu estudo. Devido à sua abrangência intrínseca, permite ampliar o conceito de documento, extravasando em muito o mero documento escrito de cariz oficial. Os atos inconscientes são tão ou mais importantes que a formalidade dos decretos e das ordens régias; a Arte, a Literatura, os costumes, os ritos, os mitos e os símbolos (Augé), a religião são manifestações fundamentais para revelar a consciência auto reflexiva que o homem tem de si numa determinada época” (Hegel). Com a história das mentalidades, a elaboração histórica deu um salto qualitativo, quer em termos científicos quer no concernente ao seu ensino. A História Nova, de Marc Bloch foi a grande impulsionadora da história das mentalidades. Outro grande impulsionador desta teoria foi o filósofo e epistemólogo francês Michel Foucault, ligado à influência de Sigmund Freud na esfera de saber da psicologia e psicanálise.
A história das mentalidades é um meio de compreensão dos mecanismos sócio históricos sobre um plano de fundo onde os conceitos elaboram-se a partir dos “estados mentais de grupos coletivos”. Desse modo, as manifestações que estão ligadas ao amar, lazer, morrer e viver num sentido de desvelar os discursos. Para além do óbvio visando uma interação entre o antropológico, a sociologia e a psicanálise. Em que a autoridade, tradição e passado está ligado à investigação multidisciplinar. Apesar de estudar o modo de agir e pensar do indivíduo a História das mentalidades estava ficando “fora de moda” e os historiadores não gostam de serem tratados e rotulados como “historiador do mental” e a partir de meados da década de 1980, na França, esse tipo de análise histórica já estava sendo reformulada, dando lugar a sua principal herdeira, a Nova História Cultural. A história cultural no Brasil, mutatis mutandis, para sermos breves, deu-se através do historiador Sérgio Buarque de Holanda e do antropólogo Gilberto Freyre, a partir de suas respectivas obras “Raízes do Brasil”, publicada em 1936, e “Casa Grande e Senzala”, publicada em 1933. Para compreender a história das mentalidades é preciso remontar aos séculos XIX e XX, onde conceitos estabelecidos pelo historiador Leopold von Ranke (1979a; 1979b) que idealizava uma história tradicional, política voltada à biografia dos reis, foi contestada mais tarde por Marc Bloch e Lucien Febvre que, em busca de uma história-problema e de uma história do cotidiano fundaram a “Revue des Annales”, em torno da qual se estabeleceu a chamada Escola dos Annales. A história das mentalidades teve como destaques principais dois historiadores que com suas obras mostraram o pensar e o agir na História do mental: Bloch editou “Os Reis Taumaturgos”, uma obra comparativa entre crença e autoridades dos Reis e Febvre publicou “O Problema do Ateísmo no Século XVI: a religião de Rabelais” onde defendia a tese da História representar uma forma de estudo interdisciplinar. 
Gabriele Salvatores participando do 52° Festival Internacional de Cinema de Veneza (1995). Delineou-se assim o que se poderia chamar, de acordo com Michel Foucault, uma genealogia, ou melhor, pesquisas “genealógicas múltiplas”, ao mesmo tempo redescoberta exata das lutas e memória bruta dos combatentes. E esta genealogia, como acoplamento do saber erudito e do saber das pessoas, como ocorre com a historiografia varnhageniana, para o caso brasileiro, só foi possível e só se pôde tentar realizá-la à condição de que fosse eliminada a tirania dos discursos englobantes com suas hierarquias e com os privilégios da vanguarda teórica, mas que não trataremos agora. A noção de região, tratada como instrumento da ação política, é inseparável da noção de “regionalismo nordestino”. Este, visto como o discurso que a representa, é um movimento de reivindicação de tratamento diferenciado a um determinado espaço territorial. É uma expressão de luta de poder no interior dos espaços regionais quanto ao direito sobre a representação externa da região nas diversas escalas de poder. Um grande historiador de nosso tempo assinalou, no entanto, a ambiguidade da fórmula do tal “como efetivamente aconteceu”, dizendo que essa ambiguidade é característica de muitas máximas e serve para explicar sua grande repercussão. Porque, continua Marc Bloch, a ideia de que o sábio, neste caso o historiador, deve apagar-se ante os fatos, pode entender-se, por um lado, como um conselho de probidade, “e não se pode duvidar que fosse esse o sentido que lhe deu Ranke”, mas, além disso, é lícito interpretá-la como um convite à passividade. 
E à pergunta sobre se é possível ao historiador ser absolutamente imparcial, responde que a palavra “parcialidade” também tem duplo significado, pois se pode ser “imparcial à maneira do sábio e imparcial à maneira do juiz”. Ambas as maneiras teriam suporte comum, que é a honesta sujeição à verdade. Os dois caminhos assinalados por Bloch não diferem substancialmente dos caminhos descritos e separados por Ranke: o da Filosofia que, no seu entender, é o reino das leis gerais ou abstratas, e o da História, que, partindo da observação do único, deverão, entretanto, explicá-lo, o que só pode fazer recorrendo aos meios que servem para se comunicarem os homens entre si, pois que são geralmente inteligíveis. Ranke foi historiador sem pretensões a filósofo, mas teve mais de uma vez o cuidado de definir “quase filosoficamente o ofício do estudioso do passado”. Entendia, ainda assim, que a História é uma “ciência do único”, separando-se por esse lado da Filosofia que, segundo ele, se ocupa de abstrações e generalizações. 
Por outro lado, pretende que a observação e o “conhecimento do único” representem só o ponto de partida do historiador. Para alçar-se ao conhecimento dos grandes nexos de sentido, faz-se necessário que siga sempre seus “próprios” caminhos, que, afirmou, “não são os caminhos do filósofo”. Nesse passo, porém, seu raciocínio é pouco preciso. O certo é que, embora alguns autores, reagindo mais tarde contra as correntes positivistas na historiografia, tentassem emancipar o conhecimento histórico das generalizações e abstrações, que passariam a ser privatista das ciências nomotéticas, e interpretasse o legado rankiano ao sabor de suas teorias, esse modo de ver já não se pode justificar. Uma notável ilustração dos métodos de Ranke, nesse particular, aparece no desenvolvimento que dá à sua ideia da unidade fundamental (Ranke, 1979a: 65 e ss.; Ranke, 1979b) dos “povos românticos e germânicos na origem de toda história moderna”, que ainda em seus dias lhe parecia guardar essa marca originária. 
É possível que não fosse uma ideia nova ou inteiramente sua, e, com efeito, ela já aparece, em termos muito semelhantes aos que emprega, em uma carta de Guilherme de Humboldt datada de 1799, e que o historiador provavelmente ignorava. Essa ideia, “minha ideia favorita”, escreverá posteriormente, já se define em seu primeiro livro, que lhe abriu as portas do professorado de Berlim, onde trata da história dos povos latinos e germânicos, entre 1494 e 1530. Assim, a “ideia da unidade”, até do parentesco, dos povos românticos e germânicos, prepara-se, segundo ele, no Sul da Europa, como resultado das grandes migrações dos povos nos séculos IV a VIII, para expandir-se ao Norte, com o império carolíngio, e é quando, a bem dizer, se forma o sentimento nacional tanto da Itália, como da França e da Alemanha, ganhando logo a Grã-Bretanha, a Espanha e a Escandinávia. Sua importância singular está em que, sobre essa ideia, descansa para ele, até na época contemporânea, toda a vida europeia, além de seus prolongamentos ultramarinos, como os do continente americano. 
Para ele, protestantes e católicos são galhos de uma só árvore, a da cristandade ocidental, separada do mundo bizantino. Depois das lutas religiosas, a unidade manifesta-se sob a forma de afeições, preceitos, instituições, códigos de compostura, que, tendo raiz comum, são patrimônio que esses povos se formam como uma vasta República. Ipso facto não queremos perder de vista que “não importa que o historiador se dedique ao estudo das diferentes histórias nacionais, quando não perca de vista o pano de fundo que de algum modo as congrega”. Não devemos perder de vista que o mundo das “histórias nacionais” de Leopold von Ranke é, assim, determinado historicamente, visto que sua particularidade refere-se à existenz para lembramo-nos de Hegel, na técnica de interpretação na literatura e na filosofia de um “mundo europeu”, que mal se dilata, mas sem perder o conteúdo essencial, sobre províncias e continentes do ultramar colonizados por povos europeus. Mas não é a Europa inteira o que o ocupa, e sim as fronteiras geográficas dessa Europa latina e germânica, protestante ou católica, que são também as fronteiras do espaço e do tempo histórico a que devotou o melhor de sua atividade intelectual: “somos mais vizinhos de Nova York e de Lima do que de Kiev e Smolensk”. Melhor dizendo, fora da Europa, de sua Europa e, quando muito, fora das terras colonizadas por europeus, só existiam para ele “o caos e o cemitério”. 
Em tais condições hão de ficarem fora de seu horizonte aqueles mundos informes ou álgidos que lhe parecem, efetivamente, “terras sem história”. Daí a referência idiossincrática em Varnhagen, repetimos, quando analogamente refletindo sobre o Brasil afirma: “De tais povos na infância não há história: há só etnografia”. Do engano sugere uma história carregada de interpretação da cultura. O regionalismo é um discurso apoiado numa aliança de forças e grupos sociais que forja uma identidade referida a um espaço; forja uma ideia de história e de práticas comuns; apresenta uma leitura do passado, do presente e projeta um futuro em cima de interesses gerais remetidos a uma circunscrição territorial. Ele legitima um determinado “bloco de poder” e o seu monopólio da representação dos interesses gerais numa determinada região, outorgando autoridade aos seus membros de porta-vozes para exercer essa representação. 
Esse “grupo dominante”, enquanto fração das classes dominantes, através da reivindicação de um tratamento diferenciado por parte das diversas escalas de “poder supralocais”, busca monopolizar a interlocução com essas instâncias e exercer o controle sobre os recursos fundamentais que interferem na reprodução das condições locais de desenvolvimento. A identidade cultural não está na condição de ser “nordestino”, mas sim no modo como esta condição é apreendida e organizada simbolicamente. Percebe-se assim, que determinados enunciados audiovisuais se produziram e permaneceram como representações acerca do Nordeste, como sua essência. É preciso questionar e criticar a própria ideia de identidade, que é concebida como “uma repetição, uma semelhança de superfície”. Porém, apesar desses estereótipos do Nordeste a ser propagados no contexto geral da chamada “indústria cultural” e de massa, a expressão “região Nordeste”, possui significados muito cristalizados que evocam uma série de imagens das características geográficas culturais, sociais e econômicas. Entre as primeiras, podemos citar elementos da paisagem que incluem desde o recorte litorâneo com suas praias e seus remanescentes coqueirais, até a paisagem mais seca do agreste e, sobretudo, a do sertão. Veillons!
Bibliografia Geral Consultada.

BRAUDEL, Fernand, A Longa Duração. In: História e Ciências Sociais2ª edição. Lisboa: Editorial Presença, 1976; RANKE, Leopold von, Pueblos y Estados en la Historia Moderna. México: Fondo de Cultura Económica, 1979: Idem, Leopold von Ranke: História/Organizador [da coletânea] Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Editora Ática, 1979; CASTORIADIS, Cornelius, A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1982; VOVELLE, Michel, Ideologies et Mentalités. Paris: Éditions François Maspero, 1982; Idem, Le Mort et l’Occident de 1300 à nous jours, à paraître fin 1982. Paris: Éditions Gallimard, 1982; BLOCH, Marc, Os Reis Taumaturgos. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1993; DELUMEAU, Jean, História do Medo no Ocidente: 1300-1800, Uma Cidade Sitiada. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1989; SALLMANN, Jean-Michel, “Santi Patroni e Protezione Collettiva”. Santi barocchi: modelli di santità, pratiche devozionali e comportamenti religiosi nel regno di Napoli dal 1540 al 1750. Lecce: Argo Ediciones, 1996; FEBVRE, Lucien, “Une Vie d’Ensemble: Histoire et Psychologie”. In: Combats pour l’Histoire. Paris: Armand Colin, 1953, pp. 207-15; MOTA, Carlos Guilherme (org.), Febvre. São Paulo: Editora Ática, 1978; FURET, François, A Oficina da História. Lisboa: Gradiva, 1991; DOBB, Maurice Herbert, Estudios sobre el Desarrollo del Capitalismo. Ciudad de México: Siglo XXI Editores, 2005; SILVA LIMA, Sheila Conceição, Em Nome do Pai, do Filho e do Poder Joanino: Portugal e a Santa Sé na Primeira Metade do Século XVIII. Tese Doutorado em História Política. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2013; MOREIRA, Vivane Venâncio, Leopold von Ranke e a Questão Oriental: O Caso d`A Revolução Sérvia (1829-1879). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História Social. Departamento de História. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014; GÓMEZ, Bárbara Natalia, El Secreto de la História Universal: Un Misterio para Leopold von Ranke. Tese Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura. Departamento de História. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2015; entre outros.

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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes. São  Paulo: Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).

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