quinta-feira, 14 de maio de 2015

Comentário sobre os 40 Anos da Obra de Vigiar e Punir (1975).

Ubiracy de Souza Braga*
 
O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe”. Michel Foucault

Os 40 anos da publicação de “Vigiar e punir” (1975), onde sustenta a tese segundo a qual “a visibilidade é uma armadilha”, a mais celebre obra de Michel Foucault, adquire cada vez mais conexão de sentido na atualidade: a) devido à microfísica do terrorismo, b) a manipulação genética, c) as novas modalidades de vigilância, d) a dimensão de controle das fronteiras.  No âmbito institucional, endógeno, a arquitetura das prisões, a psiquiatria, o Direito, as políticas do olhar, os dispositivos técnicos ou as representações sociais e de apropriação do corpo. Nascido em uma família tradicional de médicos, frustrou as expectativas de seu pai, cirurgião e professor de anatomia em Poitiers, ao interessar-se por história e filosofia. Para ele o homem é produto das práticas discursivas.
Seu temperamento cuidadoso o fez, talvez, uma pessoa solitária, pragmática e irônica. Apoiado pela mãe, Anna Malapert, mudou-se para Paris em 1945 e antes de ingressar na École Normale. Foi aluno de Jean Hyppolite, que lhe apresentou à obra de Hegel. Em 1948, após uma tentativa de suicídio (cf. Foucault, 2004), teve contato com a psicologia, psiquiatria e a psicanálise.  Em 1950 entrou para o Partido Comunista Francês - PCF, mas “afastou-se devido a divergências doutrinárias”. No ano de 1952 cursou o Instituto de Psychologie e obteve diploma de Psicologia Patológica. No mesmo ano tornou-se assistente na Universidade de Lille. Foucault lecionou psicologia e filosofia em diversas universidades, na Alemanha, na Suécia, na Tunísia, nos Estados Unidos e em outras. Escreveu para diversos jornais na Europa, trabalhando durante um bom tempo como psicólogo clínico em hospitais psiquiátricos e prisões de sistemas tradicionais. Viajou o mundo fazendo conferências.


Em 1955, mudou-se para Suécia, onde conheceu Dumézil. Este contato foi importante para a evolução do pensamento de Foucault. Conviveu com intelectuais importantes como Jean-Paul Sartre, Jean Genet, Canguilhem, Gilles Deleuze, Merlau-Ponty, Henri Ey, Lacan, Binswanger, etc. Aos 28 anos publicou: “Doença Mental e  Psicologia” (1954), mas foi com “História da Loucura” (1961), sua tese de doutorado na Sorbonne, que ele se firmou como filósofo, embora preferisse ser chamado de “arqueólogo”, dedicado à reconstituição do que mais profundo existe numa cultura - “arqueólogo do silêncio imposto ao louco”, da visão médica, e ainda “O Nascimento da Clínica”, (1963), das ciências humanas “As Palavras e as Coisas”, (1966), do saber em geral: “A Arqueologia do Saber” (1969). Esteve no Brasil em 1965 para conferência à convite de Gerard Lebrun, seu aluno na Rue d`Ulm em 1954. Em 1971 ele assumiu a cadeira de Jean Hyppolite na disciplina: “História dos Sistemas de Pensamento”. A aula inaugural teve como título: “A Ordem do discurso” (cf. Foucault, 1973).
               Salvo engano, nenhum sistema de pensamento em tão pouco tempo, obteve repercussão tão ampla e evidente, do ponto de vista da mudança de simbólica, a partir de temas como: a crítica da razão governamental, a analítica do poder, sobre as relações “espaço-tempo” e “poder-saber”, “estética da existência” e “experimento moral”, e mesmo entre o “império do olhar” e a “arte de ver”. É impossível esquecer a tese segundo a qual “a visibilidade é uma armadilha”, numa sociedade que “canceriza” a vista a través do poder disciplinar. O poder ocupa espaço e lugar. Envolve práticas de comportamento autoritário na política, na escola, na universidade, no trabalho, na sexualidade, nos ritos de passagem, sobre a memória e as identidades sociais.  
Vejamos um caso que facilmente se aplica às teses sustentadas por Michel Foucault, no livro: “Vigiar e Punir: O Nascimento das Prisões”, como é o caso do filósofo político marxista italiano Antônio Negri, também conhecido como Toni Negri nascido em Pádua, 1 de agosto de 1933. Tradutor dos escritos de Filosofia do Direito de Hegel, especialista em Descartes, Kant, Espinosa, Leopardi, Marx e Dilthey, tornaram-se conhecido no meio universitário, sobretudo, por seu trabalho sobre Espinosa, mas sua atividade acadêmica sempre foi intimamente ligada à atividade política. Foi líder do grupo guerrilheiro comunista de carácter terrorista: “Brigadas Vermelhas”. Negri ganhou notoriedade internacional nos primeiros anos do século XXI, após o lançamento do livro Império 1 - que se tornou um manifesto do movimento antiglobalização - e de sua sequência, o livro: “Multidão”, ambos escritos em coautoria com seu ex-aluno Michael Hardt.
Em 7 de abril de 1979 foi preso sob várias acusações, dentre as quais, a de ser o ideólogo das “Brigate Rosse” e mandante moral do homicídio de Aldo Moro, líder da Democracia Cristã italiana, ocorrido em 1978. Negri foi preso juntamente com outros membros da “Autonomia Operária”: O. Scalzone, E. Vesce, A. Del Re, L. Ferrari Bravo, F. Piperno e outros. Cumpriu quatro anos e meio em prisão preventiva. Durante o período que passou na prisão, conseguiu provar sua inocência com relação a quase todas as acusações, inclusive as de envolvimento em 17 homicídios e associação com as “Brigadas Vermelhas”,  grupo responsabilizado pelo sequestro e morte de Aldo Moro. Mesmo assim, foi condenado a trinta anos de prisão em um controverso processo de “associação subversiva”, “conspiração contra o Estado” e “insurreição armada”, pena que foi reduzida para 17 anos. A Anistia Internacional denunciou os processos políticos italianos e a repressão à contestação e chamou a atenção para algumas “irregularidades legais sérias” no manejo do caso Negri. O filósofo Michel Foucault posteriormente comentou: - “Ele não está na cadeia simplesmente por ser um intelectual?” (cf. Foucault, 1994: 105). Além de Foucault, outros intelectuais franceses como Gilles Deleuze, Félix Guattari e Jean-Pierre Faye manifestaram apoio a Negri e seus companheiros.


Portanto é a partir dela que, se tomarmos como analogia a reflexão realizada por Michel Foucault, para identificar as condições e possibilidades nas “formações discursivas” entre arqueologia e história das ideias, pode-se agora inverter o procedimento; pode-se descer no sentido da corrente e, uma vez percorrido o domínio das formações discursivas e dos enunciados, uma vez esboçada sua teoria geral, correr para os domínios possíveis de sua aplicação. Recorrer sobre a utilidade dessa análise que ele batizou de “arqueologia” recoloca o problema da escansão do discurso segundo grandes unidades que não eram as das obras, dos autores, dos livros ou dos temas. Metodologicamente importante para o que nos interessa, na medida em que o Autor, com o único fim de estabelecê-las trabalhou com algumas séries de noções: formações discursivas, positividade, arquivo, definindo um domínio (os enunciados, o campo enunciativo, as práticas discursivas), tentando fazer surgir a singularidade de um método que não seria nem formalizado, nem interpretativo, “pois já existem muitos métodos capazes de descrever e analisar a linguagem, para que não seja presunção querer acrescentar-lhes outro”.
Entre “análise arqueológica” e “história das ideias”, os pontos de separação são numerosos para Michel Foucault, mas simplificadamente apresentam quatro distinções: 1ª) A arqueologia busca definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos; mas os próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras. Ela não trata o discurso como documento, mas onde se mantém a parte, a profundidade do essencial; ela se dirige ao discurso em seu volume próprio, na qualidade de monumento. Não busca um “outro discurso” mais oculto. Recusa-se a ser “alegórica”; 2ª) A arqueologia não procura encontrar a transição contínua e insensível que liga, em declive os discursos ao que os precede, envolve ou segue.
O problema dela é, pelo contrário, definir os discursos em sua especificidade; mostrando em que sentido o jogo das regras que utilizam é irredutível a qualquer outro; segui-los ao longo de suas arestas exteriores para melhor salientá-los. Ela não vai, afirma, em progressão lenta, do campo do confuso da opinião à singularidade do sistema ou à estabilidade definitiva da ciência; não é uma “doxologia”, mas uma análise diferencial das modalidades de discurso; 3ª) A arqueologia não é ordenada pela figura soberana da obra; não busca compreender o momento em que esta se destacou no horizonte anônimo. Não quer reencontrar o ponto enigmático em que o individual e o social se invertem um no outro. Ela não é nem psicologia, nem sociologia, nem, num sentido mais geral, “antropologia da criação”. A obra não é para ele um recorte pertinente, mesmo se se tratasse de recolocá-la em seu contexto mais global ou na rede das causalidades que a sustentam.
         Ela define tipos e regras de práticas discursivas que atravessam obras individuais, às vezes as comandam inteiramente e as dominam sem que nada lhes escape; mas às vezes, também, só lhes rege uma parte. A instância do sujeito criador, enquanto razão de ser de uma obra e princípio de sua unidade lhe é estranha. A arqueologia não procura reconstituir o que pôde ser pensado, desejado, visado, experimentado, almejado pelos homens no próprio instante em que proferiam o discurso; ela não se propõe a recolher esse núcleo fugidio onde Autor e obra troca de identidade; onde o pensamento permanece ainda o mais próximo de si, na forma ainda não alterada do mesmo, e onde a linguagem não se desenvolveu ainda na dispersão espacial e sucessiva do discurso. Não tenta repetir o que foi dito, reencontrando-o em sua própria identidade. Não se pretende apagar na modéstia ambígua de uma leitura que deixaria voltar, em sua pureza, a luz longínqua, precária, quase extinta da origem. Não é nada além e nada diferente de uma reescrita; isto é, na forma mantida da exterioridade, uma transformação regulada do que já foi escrito. Não é o retorno ao próprio segredo da origem; é a descrição sistemática de um discurso-objeto. 

Bibliografia geral consultada
ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon, Michel Foucault e a Teoria do Poder. In: Tempo Social. Vol. 7, nºs 1-2, pp. 105-110, 1995; FOUCAULT, Michel, Naissance de la Clinique - Une Archéologie du Regard Médical. Paris: Presses Universitaires de France, 1963;  Idem, História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002; Idem, História da Sexualidade. Volume I: A Vontade de Saber. São Paulo: Editora Graal, 2012; Idem, Histoire de la Sexualité. Volume II: L`Usage des Plaisirs. Paris: Éditions Gallimard, 1984; Idem, Histoire de la Sexualité. Volume III: Le Souci de soi. Paris: Éditions Gallimard, 1984; Idem, Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão42ª edição. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 2014; DELEUZE, Gilles, “Lettera Aperta ai Giudici di Negri”. In: La Repubblica, 10 de maio de 1979; Idem, “L’éthique du souci de soi comme pratique de la liberte”. In: DEFERT, Daniel; EWALD, François (org.), Dits et écrits. Paris: Éditions Gallimard, Vol. IV, 1994, pp. 708-729;  ABRAHAM, Tomás, El Último Foucault. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2003; pp. 263-406; Idem, “É Inútil Revoltar-se?”. In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.), Michel Foucault. Ética, Sexualidade, Política. Coleção: Ditos e Escritos (V). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, pp. 77-81; FERREIRA, Adelino Alcides Abrunhosa, Cuidado de Si e Metanoia em Michel Foucault. Tese de Doutoramento em Filosofia Moral e Política. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2015; entre outros.  
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará.

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