Ubiracy de Souza Braga*
“Não há nenhum pensamento importante que a burrice não saiba usar”. Robert Musil
Robert von Musil nasceu na Áustria em 6 de novembro de
1880. Com a anexação da Áustria pela Alemanha nazista, em 1938, Musil mudou-se
para a Suíça - inicialmente Zurique, depois Genebra, cidade onde morreu em 15
de abril de 1942. Estudou engenharia e filosofia, obtendo em 1908 o doutorado.
Foi um escritor austríaco, um dos mais importantes romancistas modernos. Ao
lado de Franz Kafka, Marcel Proust e James Joyce forma o grupo dos grandes
prosadores do século XX. Da sua obra destaca-se o monumental: “Der Mann ohne
Eigenschaftens” (1952), em português: “O Homem sem Qualidade” (1998). Trata-se
deum “anti-romance”, ou um “não romance”, que é acima de tudo uma grande
reflexão sobre a época de Musil. Sua estreia como romancista ocorreu em 1906
com o romance etnobiográfico: “Die Verwirrungen
des Zöglings Törless” (1906), (tradução de “O Jovem Törless”, baseado na
vida colégio militar.
Esta obra constitui uma impressionante previsão, com quase trinta anos
de antecedência, do sadismo nazista e de seus motivos psicológicos, segundo
Eric Fromm no livro: “The Anatomy of Human Destructiveness” (1973).
Morreu pobre - “quase esquecido e dependendo da ajuda
de amigos” - em Genebra, na Suíça, em plena II Guerra Mundial (1940-1945). Aos
dez anos Robert Musil ingressou para a Escola Militar em Eisenstadt, destinado
à carreira de oficial. Estudou durante mais de cinco anos em instituições do
exército até chegar à Academia Militar de Viena, em 1897. Um ano depois, Musil
decidiu largar a carreira de oficial e passou a estudar Engenharia em Brünn,
obtendo o diploma da graduação em 1901. Depois de uma temporada em Stuttgart,
cursou Filosofia e Psicologia experimental na Universidade de Berlim,
doutorando-se em 1908, com tese sobre o pensamento de Ernst Mach (1838-1916),
físico e filósofo austríaco. Os estudos de Ernest Mach sobre o fenômeno da
descontinuidade e da dissociação, assim como suas teses a respeito do “eu
condenado” (“unrettbares Ich”), seriam decisivos no processo de formação de
diversos escritores vienenses, entre eles Arthur Schnitzler e o próprio Musil.
No plano da crítica metafísica, a falta de qualidades, inserida na tradição da
filosofia moderna, isto é, do empirismo e do neopositivismo, assim como na
teoria do conhecimento de Ernst Mach, é voltada contra o essencialismo da
ontologia substancialista visando sua destruição.
De 1914 a 1918, participou ativamente da I
grande Guerra na condição de oficial de Infantaria do exército austríaco. Ao
final dos combates chegou a capitão, condecorado com a principal ordem de
guerra do moribundo império (Ritterkreuz des Franz-Josephs-Ordens). Só a partir
de 1923, e já morando em Berlim, é que Musil passaria a viver exclusivamente de
sua condição de escritor. A ascensão do nazismo, em 1933, obrigou-o a se mudar
para Viena e, mais tarde - depois de se sentir numa ratoeira, conforme ele
mesmo chegou a escrever em seu diário -, para Genebra, aonde veio a falecer em
15 de abril de 1942. A publicação da primeira obra de Musil, “O jovem Törless”
(“Die Verwirrungen des Zöglings Törless”, 1906) - só foi levado a cabo através
do incentivo do berlinense Alfred Kerr. O sucesso posterior, e também a
aprovação da crítica, foi imediato. No romance, Musil detém-se - com admirável
agudeza psicológica - na consciência de um estudante de internato, às voltas
com situações que anteveem de maneira genial e visionária o sadismo e a
opressão nazistas.
O sadismo surge quando a afeição é substituída pela
crueldade, neurose encarada como luta entre a autopreservação e a libido (cf.
Pontalis, 1970), onde o ego venceu, dando vazão à voz da libido expressa na
tensão da sexualidade. Para Wilhelm Reich, o orgasmo é, primeiramente, a
expressão de um abandono de si, sem inibição, em direção ao parceiro. A libido
do corpo inteiro flui através dos genitais. O orgasmo pode não ser considerado
completamente satisfatório se for sentido apenas nos genitais; movimentos
convulsivos de toda a musculatura e uma leve perda de consciência são atributos
normais e indicação de que o orgasmo como um todo teve participação. Além
disso, o incesto precisa ser explícito? Não poderia haver o êxtase de um elo
místico entre eles, mesmo de forma toda e plenamente espiritual? Pelo que entendemos acredita-se contrariamente que: “mas não, era
espiritual e físico; o fogo que irrompera como centelha inicial continuava
ardendo debaixo das cinzas. Talvez se devesse dizer: a alma de Ágata procurava
outra maneira de arder livremente”.
Em verdade, “O homem sem
qualidades” é um fragmento gigantesco, de modo que se pode falar de uma falta
de qualidades formais. O primeiro volume do romance saiu em 1931; tudo indica
que Musil, depois de sua volta de Berlim, onde havia conhecido seu primeiro
editor Ernst Rowohlt, trabalhou, desde 1921, como escritor livre na sua
obra-prima, exercendo, concomitantemente, as atividades de crítico de teatro e
ensaísta. Dificuldades financeiras motivaram a fundação de uma Sociedade Musil,
possibilitando-lhe uma estadia em Berlim brevemente entre os anos 1931 a 1933 e a conclusão da
primeira parte do segundo volume. A dissolução da Sociedade-Musil pelos
nazistas fez com que o autor voltasse a Viena e que se fundasse a Sociedade
Musil Vienense. Afirma-se que a continuação do volume II, de as obra máxima enviada à Editora em
1938, tenha sido confiscada pelo governo alemão; de qualquer maneira, ela acabou
na lista dos “escritos nocivos e indesejáveis”. O início dessa parte confiscada
tinha como subtítulo “Rumo ao Império Milenar. Os criminosos”, sem que houvesse
um segundo sentido político. Vale lembrar que Robert Musil, nascido em 1880, faleceu no dia 15 de abril
de 1942 no exílio suíço durante o trabalho criativo no seu “opus Magnum”.
Este
romance-ensaio mostra a decadência dos valores vigentes até o início do século
XX. Em sua narrativa a ação de O homem sem qualidades transcorre na Áustria
imperial, dissimulada sob o nome de Kakânia. O romance constitui um vigoroso
painel da existência burguesa no início do século XX e antecipa de certa forma,
as crises que a Europa viveria apenas na segunda metade daquele mesmo século. A
obra é - em suma - “o retrato ficcional apurado de um mundo em decadência”.
Elaborado com fortes doses de sátira e humor, O homem sem qualidades é uma bola
de neve de ações paralelas, que rola pela montanha do século abaixo, abarcando
tempo e espaço, para ao fim engendrar um romance inteiriço, ainda que multiabrangente,
pluritemática e panorâmico. Ulrich – “o homem sem qualidades” - faz três
grandes tentativas de se tornar um homem importante: a) na condição de oficial,
b) no papel de engenheiro, conforme a carreira do próprio Robert Musil e,
finalmente, c) como matemático, exatamente as três profissões dominantes – e
mais características - do século XX. Afirma Musil:
“se quisermos passar sem problemas por portas abertas, é bom não esquecer que elas têm ombreiras sólidas; este princípio, segundo o qual o velho professor sempre tinha vivido, mais não é do que uma exigência do sentido de realidade. Ora, se existe um sentido de realidade – e ninguém duvidará de que ele tem direitos à existência -, então também tem de haver qualquer coisa a que possamos chamar o sentido de possibilidade. Aquele que o possui, não diz, por exemplo: isto ou aquilo aconteceu, vai acontecer, tem de acontecer aqui, mas inventará; isto ou aquilo poderia, deveria ter acontecido aqui (...). Esses homens do possível vivem, como se costuma dizer, numa trama mais subtil, numa teia de névoa, fantasia, sonhos e conjuntivos; se uma criança mostra tendências destas, acaba-se firmemente com elas, e disse-lhes que tais pessoas são visionários, sonhadores, fracos, gente que tudo julga saber melhor e em tudo põe defeito. Quando se quer elogiar estes loucos, chamasse-lhes também idealistas, mas é claro que com isso só se alude à sua natureza, débil, incapaz de compreender a realidade, ou que a evita por melancolia, uma natureza na qual a falta do sentido de realidade é um verdadeiro defeito”.
Os três ofícios são essencialmente masculinos e
revelam o semblante de uma época regida pelo militarismo, pela técnica e pelo
cálculo que, juntos, acabaram desmascarando o imenso potencial autodestrutivo
da humanidade. O relato acerca da busca “desencantada” de Ulrich lembra a velha
busca – ainda sagrada – do Santo Graal. A compreensão da realidade
característica da obra e do pensamento de Musil é rematadamente satírica. A
índole “ensaística” do autor arranca máscaras e sua ficção trabalha na
confluência dos gêneros. Musil é um escritor “contemplativo”, de “postura
clássica”, situado à janela do mundo e atento a seus movimentos. Tanto que, em
várias situações de suas obras, seus personagens aparecem à janela. Ao utilizar
vários elementos do ensaio, e inclusive ensaios inteiros no corpo da ficção,
além de fazer uso livre do discurso pretensamente científico - ainda carregado
de poesia – na compleição do romance, Musil dá vida à hibridez de sua narrativa.
A frieza de interpretação da linguagem, as formalidades da postura do narrador
são apenas superficiais. Se à primeira vista o olhar do narrador é marcado pelo
intelectualismo – frio e impessoal como no âmbito do positivismo –, logo se
descobre que isso é apenas um meio “apolíneo” contra o perigo dionisíaco do
mundo, para lembramos de Nietzsche, e que a indiferença gelada da
superfície apenas mascara a paixão ardente do interior, como é expresso
brilhantemente na sociologia de Max Weber.
Todos os personagens de O homem sem qualidades apenas
são importantes na medida em que se relacionam com Ulrich, na medida em que
são, inclusive, superfícies nas quais ele mesmo se espelha. Todos eles não
deixam de configurar, de certo modo, possibilidades e aptidões do próprio
Ulrich. Mesmo o assassino de prostitutas Moosbrugger, o símbolo central do
descalabro em que se encontra o mundo, é um espelho no qual Ulrich se vê
refletido, já que os delírios do homicida não deixam de ser variações extremas
das experiências de Ulrich em relação àquela que chama de “outra condição” (“anderer
Zustand”), de sua busca incansável da liberdade do disparate e da vivência
original, paradisíaca. Na segunda parte do romance, aliás, Ulrich passa a
vivenciar cada vez mais situações de enlevo quase sobrenatural, em que já não
logra mais distinguir os limites espaciais e temporais do mundo que o envolve.
Mais tarde Ulrich inclusive tenta a “outra condição” junto com Agathe, sua
irmã, a “duplicação assombreada de si mesmo na natureza oposta”. O amor
mítico-incestuoso entre os dois constitui uma das mais belas e dolorosas
histórias de amor da literatura universal.
Adotando uma atitude fundamentalmente irônica diante
da sociedade, e decidida a lutar contra a estultice do século - contra “a
imensa raça das cabeças medíocres e estúpidas” -, Musil muitas vezes foi
compreendido como utopista, ou até místico, por alguns críticos, decididos a
“dinamitar” o vigor de sua obra. O autor que foi tão corrosivo ao representar o
mundo em sua realidade distorcida e deformada na figura mítica de uma Kakânia
caquética é transformado assim num sujeito extravagante e pouco afeito à
realidade. Um leão sem garras nem dentes! Já em 1972, Helmut Arntzen - crítico
da obra de Musil - dizia que “os críticos pareciam fazer gosto em apresentar o
autor na condição de animal exótico, místico e de movimentos graciosos”. Dessa
forma, o escritor combativo e heroico – conforme Musil se compreendia – era
transfigurado num metafísico dócil, no “Homme de Lettres” que sempre
renegou, num autor distanciado, provido de alguns requintes na linguagem e de outros tantos talentos psicológicos na análise da
alma humana.
A
postura contemplativa de Musil foi entendida como uma “utopia do
ensaísmo” pregada por Ulrich - seu personagem - como uma visão utópica do
mundo. Na verdade, Musil fez apenas lutar pela recuperação da atividade de
mensurar melhor, quantitativa e qualitativamente, os sentimentos e o “volume
espiritual” das relações humanas; sem a ingenuidade do romantismo, mas sem a
secura do realismo bruto. De quebra, deu nova fisionomia ao sujeito, nova
potência ao “eu”, tornando-o estética e radicalmente consciente, ainda que o
fizesse perambular no âmbito daquilo que outro crítico - Wolfgang Lange -
chamou de “loucura calculada” ou “suspensão calculada da razão”. A intuição
poética de Musil, enriquecida por seu aguçado espírito científico, proporcionou
ao autor a capacidade de traçar um vasto panorama ficcional de sua terra e da
Europa do século XX. Postado “à janela do mundo”, Musil examina, para lembramos
da hermenêutica filosófica de Martin Heidegger, em última instância, o valor da
inteligência objetiva do homem diante das chamadas “casualidades mundanas”.
Bibliografia geral consultada.
MUSIL, Robert, O Homem Sem
Qualidades. São Paulo: Editora Nova
Fronteira, 1989; Idem, L`Homme sans
qualités. Tome II. Paris: Éditions Du Seuil, Coll. Points, n° 4, 2011
(1re Éditions 1954), 1300 páginas; SCHORSKE, Carl Emil, Viena fin-de-siècle -
Política e Cultura. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1988; KAFKA,
Franz, Carta ao Pai. Rio de Janeiro: Editora
Companhia das Letras, 1997; Idem, O
Processo. São Paulo: Editora 34, 2002; LEMAIRE, Gérard-Georges, “Iniciação
à Dor do Amor”. In: Kafka. Porto
Alegre: L & PM Editor, 2006, pp. 88 e ss.; BLOOM, Harold, Gênio - Os 100 Autores mais Criativos da História da Literatura.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2003; WEBER, Max, Ensaios
de Sociologia. Organizado por Hans Gerth & Charles Wright Mills. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1982; Idem, Economia
y Sociedad. Esbozo de sociología comprensiva. México: Fondo de Cultura
Económica, 1992; HANKE, Michael, “A Qualidade de O Homem sem Qualidades de Robert Musil”. In: Alceu, vol. 4, n° 8, pp. 128-140, jan./jun., 2004; PINTO, Ana Maria de Souza Moraes, A Construção do Romance Moderno de Adolescência em Raul Pompeia e em Robert: em busca de uma leitura didática. Tese de Doutorado. Faculdade de Ciências e Letras. Araraquara: Universidade Estadual paulista, 2010; CASTRO, Érica Gonçalves de, “Sobre o Ensaismo de Robert Musil”. In: Pandaemonium. São Paulo, n 17, julho/2011; pp. 103-117; GALVÃO, Pedro Alegre Pina, A Ética Negativa: Ensaio sobre o Homem sem Qualidades. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de janeiro, 2015; entre outros.
_______________
* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Nenhum comentário:
Postar um comentário