segunda-feira, 25 de maio de 2015

Jean-Luc Godard - Técnica, Cinema e Religação Religiosa.

                                                                                                            Ubiracy de Souza Braga*

Fotografia é verdade. Cinema é verdade vinte quatro vezes por segundo”. Jean-Luc Godard
 


               Jean-Luc Godard nascido em Paris, em 3 de dezembro de 1930 é um cineasta franco-suíço reconhecido por um cinema vanguardista e polêmico. Tomou como temas e assumiu como forma, de maneira ágil, original e quase sempre provocadora, os dilemas e perplexidades do século XX. Entre elas o desprezo, objeto de nossa reflexão estética e política. Além disso, é também um dos principais nomes da “Nouvelle Vague”. Godard foi um militante anarquista de centrismo. A partir de 1952 colaborou na revista “Cahiers du Cinéma” e, depois de vários curtas-metragens, fez em 1959 seu primeiro longa-metragem, “À bout de souffle”, em que adotou inovações narrativas. Filmou com a “câmera na mão”, rompendo uma regra até então inviolável. Filme dos primeiros da “Nouvelle Vague” e movimento que se propunha renovar a cinematografia francesa. Revalorizava à direção, reabilitando o filme dito de autor. Jean-Luc Godard, antes de cineasta, era crítico da renomada “Cahiers du Cinéma”. A “Nouvelle vague” representou um movimento artístico do cinema francês que se insere no movimento contestatário próprio dos anos sessenta.
           No entanto, a expressão foi lançada por Françoise Giroud, em 1958, na revista L’Express ao fazer referência a novos cineastas franceses. Sem grande apoio financeiro, seus primeiros filmes conotados com esta imagem e expressão eram caracterizados pela juventude dos seus autores, unidos por uma ideia e por uma vontade comum de transgredir “as regras normalmente e moralmente aceitas para o cinema comercial”. Os cineastas mais relevantes desse movimento são: Jean-Luc Godard, François Truffaut, Alain Resnais, Jacques Rivette, Claude Chabrol, Eric Rohmer e Agnès Varda, sendo que grande parte trabalhava com crítica de cinema na revista Cahiers du cinéma. São muitos os autores que a partir desse momento são rotulados com a “Nouvelle Vague”. Apesar de muitos, depois, terem seguido caminhos acadêmicos, como Roger Vadim que rapidamente passou de “autor de cinema” para diretor de filmes mais comerciais, ao revés das normas estabelecidas pelo estilo cinematográfico. Do mesmo é acusado Claude Chabrol, autor de obras importantes tais como: “Um Vinho Difícil”; “Entre Primos”, para ficarmos nestes exemplos. Qual a novidade da transposição do mito de Maria para o cinema nas lentes de Jean-Luc Godard? Parece que a resposta vem a partir da seguinte reflexão filosófica: - Como explicar esta normalização pela indiferença? Não, decerto, pelo aspecto datado do filme. Bem pelo contrário: ver ou rever: “Eu Vos Saúdo, Maria é deparar com um fulgurante exercício de cinema que aposta na abordagem sistemática do factor humano, na travessia dos seus enigmas materiais e da sua sedução espiritual. O que (não) está a acontecer decorre antes do triunfo de uma cultura do efémero e do gratuito em que, desgraçadamente, se perdeu a disponibilidade para pensar a relação [estabelecida no social] dos seres humanos com o sagrado” (cf. Lopes, 2007).  
      O diretor de cinema Jean-Luc Godard, cada vez menos conhecido pelos consumidores brasileiros, é um acontecimento literário e musical na França. Nas livrarias, foi lançada a transcrição dos textos e diálogos de “Eloge de l`Amour”, sem Paris. Nas discotecas, chegou o CD que reúne as trilhas do compositor Antoine Duhamel para os filmes: “Pierrot Le Fou” (1965) e “Weekend” (1967). As trilhas são o que melhor produziu Duhamel, descontada sua música para “Domicílio Conjugal” (1970), de François Truffaut. O compositor foi testemunha privilegiada do desvio que Godard fez, entre “Pierrot” e “Weekend”, de um cinema lírico, de conotação anarco-individualista, ao filme-ensaio de militância política. São coisas distintas para quem abraça a questão da indiferença e do desprezo na modernidade tal como o italiano Antônio Gramsci fizera na década de 1930. As composições expressam tal movimento. A dramaticidade da trilha de “Pierrot” dá lugar em “Weekend” a uma construção grave e tensa, que atinge a versão de Duhamel da Internacional Comunista, o hino do operariado marxista, composto por Eugene Poittier, na época da Comuna de Paris de 1871.    
          Jean-Luc Godard e Anna Karina se casam em 1961, durante as filmagens de “Une Femme est Une Femme”, uma comédia musical que Colin MacCabe (2004) classifica como “o mais alegre dos filmes de Godard”, ou, talvez, seu único filme alegre de fato. Depois do sucesso de “Acossado”, “O Pequeno Soldado” foi censurado e “Uma Mulher é Uma Mulher” foi um fracasso comercial. Então veio “Vivre sa Vie”, de 1962, a tragédia de uma prostituta. Se o sinal de “Uma Mulher é Uma Mulher” é alegria e nascimento, o de “Viver a Vida”, é tristeza e morte. E ao que parece foi o destino de Anna Karina, a gravidez que havia chegado durante o filme anterior acabou num aborto espontâneo que a deixou infértil. Triste destino de uma mulher filha de pai ausente e que nunca foi amada pela mãe. Anna Karina participará ainda de “Band à Part” (1964), “Alphaville” (1965), “Pierrot le Fou” (1965) “Made in USA” (1966). Seis anos depois do encontro de amor da carente Hanne Karin Bayer com um Godard ciumento e obcecado pelo cinema o casamento acaba. Esta fase da obra de Godard passou à história como “os anos Karina”. 
                 Metodologicamente, o primeiro plano após o título ser exibido, demonstra justamente uma personagem que ainda não conhecemos, praticando uma ação que ainda iremos ver no futuro. A execução deste plano é o que interessa naquele momento, vindo acompanhada de uma narração em “off”, relacionando os créditos do filme. São passadas, deste modo, todas as informações técnicas relevantes: a) para que o público saiba quem realizou, b) o que será visto, c) quem são os responsáveis pelas imagens que ainda virão. No final do plano, d) a câmera que filmava a personagem volta seu olhar para a outra câmera, que filmava esta ação, a que funciona como olhar do público. Neste ponto somos nós os observados. Não mais os pressupostos a observar. A quebra determina que o filme, se trata, acima de tudo, de ser um filme. Esta a grande originalidade do “fazer cinema” de Jean-Luc Godard.  
 Este estilo influenciou toda a cinematografia mundial ocidental. Mesmo nos Estados Unidos, os realizadores da chamada Nova Hollywood, como tornou-se representada na expressão de Robert Altman, Francis Ford Coppola, Brian de Palma, Martin Scorsese, George Lucas que renderam homenagem à vaga que começou a frutificar com o Bonnie and Clyde de Arthur Penn, prolongando-se esta influência do final dos anos 1960 até aos anos 1970. Muitos dos cineastas, que iniciaram este novo estilo, reuniam-se em cineclubes para discutir as obras norte-americanas. Assim teriam base para a forma antagônica e complexa que iriam aplicar em seus trabalhos. Os cineastas da “Nouvelle Vague” eram conhecidos como os “novos turcos”. Geraram também a ruptura com o cinema totalmente de estúdio, que era o que imperava na França da década de 1940. Incorporaram estilos e posturas da “Pop Art” ao teatro épico, textos de Balzac, Manet e Marx. Havia entre seus membros cinematográficos e artísticos, um questionamento novo, um erotismo pungente e até um romantismo tragicômico.

                 Neste aspecto, vale lembrar a representação de Marie (Myriem Roussel) que é estudante que joga basquete e trabalha no posto de gasolina do pai, enquanto Joseph (Thierry Rode) trabalha como taxista. Ao saber da gravidez de Maria, ele a acusa de traição. Gabriel (Philippe Lacoste) tenta convencê-lo a aceitar os planos divinos. Paralelamente, um professor de ciências que estuda a origem da vida se envolve com uma aluna, com quem mantem intensas discussões filosóficas. Duas histórias paralelas são organizadas no filme para mostrar a difícil convivência entre “corpo e espírito”: A primeira é a de Maria (Myriem Roussel) uma menina estudante, que trabalha no posto de gasolina do seu pai, e de José (Thierry Rode) é um jovem que trabalha de taxista. Ao saber da gravidez de sua namorada, José a acusa de traição e quer se separar. Mas o anjo Gabriel tenta convencer o rapaz a aceitar a gravidez e enfrentar os planos divinos junto com Maria. A segunda história é de um professor de ciências que estuda a origem da vida e que tem um caso com uma aluna. Através de duas histórias paralelas e distintas, o diretor nos oferece uma versão para a concepção da Virgem.
                Há uma diversidade significativa nas crenças e práticas devocionais marianas entre as grandes tradições cristãs que o Papa Francisco ainda não contemporizou. A Igreja Católica tem uma série de dogmas marianos, como a Imaculada Conceição de Maria e Assunção de Maria. A devoção cristã a Maria demonstra claros sinais no início do século II e antecede o surgimento de um sistema específico litúrgico mariano no século V, após o Primeiro Concílio de Éfeso em 431. O próprio conselho foi realizado em uma igreja que havia sido dedicada a Maria cerca de cem anos antes. No Egito, a veneração a Maria tinha começado no século III e o termo Theotokos foi usado por Orígenes, o pai da Igreja de Alexandria. A mais antiga oração mariana que se conhece, ou seja, o “sub tuum praesidium” é do início do 2° século e seu texto foi redescoberto em 1917 em um papiro no Egito. Após o Édito de Milão em 313, imagens artísticas de Maria começaram a aparecer em maior número em grandes igrejas estavam sendo dedicadas a ela: Basílica de Santa Maria Maior, em Roma. Durante a Idade Média lendas surgiram sobre Maria, seus pais e avós. A devoção a Maria tem variado entre as tradições cristãs: enquanto os protestantes dão pouca atenção aos hinos e orações marianas, os ortodoxos veneram a mãe de Jesus e a consideram “mais ilustre do que os Querubins e mais gloriosa que os Serafins”.       
              No cinema de Jean-Luc Godard, a captação da imagem é significada como algo de cunho sublime, como se essa ação possibilitasse mesmo a vida eterna de um momento. Essa eternidade imagética é ainda mais importante que a “eternidade ideológica”. Ipso facto a constante mudança de perspectiva e expectativa diante de um filme (ou do cinema) como um todo é necessária para que a sobrevivência da arte seja real (cf. Correia, 2010). O personagem do executivo, interpretado por Jack Palance, pode ser a representação da frieza do dinheiro (Marx) diante da latência artística do verdadeiro ser criador, representado por Fritz Lang e pela defesa da integridade da obra de Homero. Porém, mesmo que a mensagem final ainda corrobore com uma ideia superior utópica ou ideológica para lembramos de Mannheim, em termos de plenitude da idealização, Godard deixa claro eventualmente saber que a existência do cinema só é possível por conta dos diversos fatores funcionais capazes de gerar a beleza. Em determinado momento, perto do fim do filme, a personagem da tradutora diz que “quando se faz filmes, os sonhos não são suficientes”. Faz-se necessário deixar de habitar o mundo de Homero para que a realidade seja aplicada e assim Ítaca é impossível, ainda que imaginada.

Ficha técnica:  
Gênero: Drama. 
Direção: Jean-Luc Godard. 
Roteiro: Jean-Luc Godard. 
Elenco: Johan Leysen, Juliette Binoche, Malachi Jara Kohan, Manon Anderson, Myriem Roussel, Philippe Lacoste, Thierry Rode. 
Fotografia: Jacques Frimann, Jean-Bernard Menoud. 
Duração: 105 minutos 
Ano: 1985. País: França / Reino Unido / Suíça.  
Bibliografia geral consultada.

CLAGHORN, Charles Eugene, Biographical Dictionary of American Music: Estados Unidos: Parker Publishing Company, 1973; QUILLIOT, Roland, “La Fascination Moderne de l`impersonnel”. In: Penser le Sujet Aujourd`hui. E. Guibert-Sledziewski, Jean-Louis Vieillard-Baron (Orgs.) Paris: Centre Culturel Cérisy-la sale, 1988, pp. 201-307; MACHADO, Tigo Mata, Godard Polifônico: Genealogias do Cinema Moderno. Dissertação de Mestrado em Multimeios. Instituto de Artes. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2001;  MAcCABE, Colin, Godard. A Portrait of the Artist at 70. London: Ed. Bloomsbury Publishing, 2004; SCHOPENHAUER, Arthur, Sobre a Visão e as Cores. São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2005; CARRIÈRE, Jean-Claude, A Linguagem Secreta do Cinema. 1ª edição. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2006; DELEUZE, Gilles, A Imagem-tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 2007; COUTINHO, Mario Alves, Escrever com a Câmera. Cinema e Literatura na Obra de Jean-Luc Godard. Faculdade de Letras. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2007; Idem, Escrever com a Câmera: A Literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard. São Paulo: Editora Crisálida, 2010; MARIA, João Paulo Miranda, A Influência do Grupo Dziga Vertov no Cinema de Jean-Luc Godard. Dissertação de Mestrado. Instituto de Artes. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2010; MARIE, Michel, A Nouvelle Vague e Godard. Trad. Eloisa Ribeiro e Juliana Araújo. Campinas: Papirus Editora, 2011;  METZ, Christian, A Significação no Cinema. São Paulo: Editora Perspectiva, 2012; MARTIN, Marcel, A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: Editora Brasiliense, 2013; RIBEIRO, Rodrigo Rizzaro, O Cinema de Godard, a Indústria Cultural e a Crítica da Subjetividade Capitalista. Dissertação de Mestrado. Programa de Mestrado em Comunicação. São paulo; Faculdade Cásper Líbero, 2015; ALMEIDA, Gabriela Machado Ramos de, Ensaio, Montagem e Arqueologia Crítica das Imagens: Um Olhar à Série História (s) do Cinema de Jean-Luc Godard. Tese Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2015;  entre outros.

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