A ideia de dominar a sociedade por meio de algum tipo de consenso não é nova. O perturbador problema por meio do confronto decorrente da apropriação capitalista da mais-valia perseguia a economia política clássica praticamente desde o início, e sua última grande figura, Ricardo, não tentou ocultar as inconciliáveis contradições envolvidas. Em 1799 Ricardo teve o primeiro contato com A Riqueza das Nações, de Adam Smith, tendo se impressionado profundamente com o livro. Sua primeira participação no debate público deu-se dez anos depois, em 1809, tratando de questões de economia monetária. O debate era sobre a livre conversibilidade da moeda inglesa, a possibilidade de converter-se qualquer libra emitida pelo governo britânico em ouro, no momento em que se desejasse. Esta conversibilidade, o pilar do que conhecemos como padrão-ouro, estava suspensa desde 1797 em função da desvalorização das notas em relação à cotação do ouro. Ou seja, um processo de inflação, de aumento dos preços das mercadorias em relação à unidade monetária, fizera com que o governo suspendesse a garantia no pagamento com ouro de suas próprias notas. Ricardo colocou-se desde o primeiro momento como defensor da volta da conversibilidade, argumentando que o deslizamento do valor da moeda provocava quebra de confiança nos contratos e favorecia os “devedores ociosos e pródigos em detrimento do credor industrioso e frugal”.
Mas foi sob as circunstâncias de sua interpretação das causas da inflação que Ricardo trouxe uma contribuição que permaneceu desde então presente no debate econômico global. Para Malthus, importante economista da época e que desenvolveria intenso debate com Ricardo em outras questões, divergindo quase sempre, embora ambos desfrutassem de uma grande amizade, a causa da inflação estava na elevação dos preços dos cereais, devida à ocorrência de guerras que prejudicavam o abastecimento. Ricardo mudou o rumo da discussão ao apontar que a causa do aumento dos preços residia no excesso de emissões de notas pelo Tesouro inglês, que deveria, para restabelecer a paridade, recolher o excesso de papel-moeda na mesma proporção da elevação de preços havida. Formulava uma das primeiras versões da Teoria Quantitativa da Moeda - segundo a qual o nível geral de preços guarda estrita proporcionalidade com a quantidade de bens e serviços transacionada na economia e com a quantidade de moeda em circulação, dados os hábitos de pagamentos da comunidade. Esta teoria tem-se mantido para vertentes da teoria econômica até os dias de hoje e, embora polêmica por seus efeitos, serve de base para as doutrinas ortodoxas de combate à inflação.
Outro importante debate foi marcado pela participação de Ricardo e nasceu daí a redação dos Princípios de Economia Política e Tributação. A discussão era sobre as “corn laws”, leis inglesas que sobretaxavam os cereais importados abaixo de determinado nível de preços. O objetivo destas leis era proteger os produtores domésticos de cereais da concorrência externa, fazendo, no entanto, com que os preços de importantes produtos da subsistência dos trabalhadores ingleses ficassem mais caros. A polêmica antepunha os industriais e populações urbanas, de um lado, aos produtores agrícolas e proprietários de terras, de outro, e Ricardo, ferrenho defensor dos interesses industriais, passou a atacar as “corn laws”. Em seu texto de 1815 intitulado: Um Ensaio Sobre a Influência do Baixo Preço do Trigo Sobre os Lucros do Capital, Mostrando a Inconveniência das Restrições à Importação, Ricardo demonstrava que a proteção aos produtores nacionais de cerais menos eficientes fazia aumentar a proporção da renda da terra e dos salários que deveriam ser maiores em relação aos preços dos demais bens para acomodar os preços maiores dos bens da cesta básica em relação aos lucros. Esta transferência de renda dos setores dinâmicos para os menos eficientes fazia diminuir a intensidade da acumulação e do crescimento da economia. A superioridade da argumentação lógica de Ricardo, ainda que não tenha convencido seus opositores, pois os grandes debates de economia dificilmente produzem consensos, reforçou a notoriedade do autor e o colocou em contato estreito com importantes economistas da época, tais como James Mill e Malthus, que o incentivaram decisivamente a escrever uma obra que reunisse todo o seu pensamento econômico.
Esta obra, uma reelaboração do Ensaio sobre as “corn laws”, transformou-se nos Princípios, a primeira grande sistematização teórica em economia após A Riqueza das Nações, de Adam Smith. Já no prefácio de Princípios, Ricardo aponta qual era o problema central da economia política: “determinar as leis que regem a distribuição do produto total da terra entre as três classes, o proprietário da terra, o dono do capital necessário para seu cultivo e os trabalhadores, que entram com o trabalho para o cultivo da terra”. Notamos já neste ponto que o problema central de Ricardo divergia do de Adam Smith na Riqueza das Nações. Para este, a questão central estava em investigar as causas do crescimento das nações, que era a fonte de onde provinham os estímulos à acumulação de capital. Para Ricardo, a acumulação era um problema relativamente simples, já que era determinada pela manutenção das taxas de lucros em determinados patamares, garantindo a reinversão. O problema central era da distribuição do produto total entre as três categorias. E os lucros eram vistos como resíduos, formados após a dedução dos custos de produção (aí incluídos os salários) e da renda da terra. Como se dava a distribuição? O esquema de Ricardo utilizava-se da produção agrícola porque existiam aí, segundo ele, características especiais que levavam a determinar a distribuição nos outros setores.
Os
salários eram fixados pelo cálculo nível mínimo necessário para garantir a subsistência
dos trabalhadores. Ricardo adotava a teoria de Malthus segundo a qual o salário
apontava para a subsistência, porque se se elevasse, induziria ao aparecimento
de um número maior de trabalhadores (pelo aumento do número de filhos dos
operários), que faria, através da concorrência, o nível dos salários baixar
novamente até a subsistência. Do contrário, um nível abaixo da subsistência
faria os salários retornarem ao patamar natural, pela escassez de trabalhadores
que seria causada. E quanto à formação da renda da terra? Para Ricardo, a renda
da terra devia-se à escassez de terras e à diferenciação das produtividades
entre elas. Em uma situação ideal, em que todas as terras cultivadas obtivessem
a mesma produtividade, não haveria, de acordo com o autor, a formação de uma
renda diferenciada na terra. Os lucros seriam simplesmente o resíduo do produto
após a dedução dos custos (para simplificar, consideremos como custos somente a
parcela dos salários). Ocorre que, em uma situação real, a pressão populacional
exige a ocupação de terras menos férteis para a produção crescente de
alimentos. Suponhamos que todas as terras anteriormente ocupadas tivessem a
mesma fertilidade e que a pressão populacional exigisse o cultivo de uma nova
porção de terras com qualidade inferior.
A
produção nesta terra exibirá um produto líquido menor (produto total menos os
salários pagos) e, portanto, determinará uma taxa de lucro inferior. Como o
sistema opera sob condições de livre concorrência, esta nova taxa de juros
impor-se-á ao resto do sistema. Nas terras de qualidade superior, aparecerá
agora um resíduo que será a renda da terra. Com a diminuição do produto líquido,
a renda diferenciada da terra nada mais será do que um pagamento efetuado aos
proprietários do recurso escasso, impondo uma redução da mesma magnitude sobre
os lucros e diminuindo a taxa de acumulação do sistema e, portanto, a taxa de
investimento, já que, segundo o esquema de Ricardo, são os capitalistas que
investem. Ficava então determinado para Ricardo o esquema de distribuição e de
determinação da taxa de lucros e do potencial de acumulação. Num esquema de
livre concorrência, a distribuição entre retorno do capital e pagamentos aos
proprietários de terras se dava de acordo com a ocupação das terras.
Prosseguindo-se ao limite a ocupação das terras menos férteis, chegar-se-ia à
situação em que o produto líquido extraído da terra de menor fertilidade seria
suficiente apenas para cobrir a parcela de custos, o pagamento da subsistência
dos trabalhadores, no esquema simplificado; em todas as terras de maior
fertilidade, seriam geradas rendas diferenciadas de magnitudes crescentes
apropriadas pelos proprietários de terras, como dedução do produto líquido.
A
taxa de lucro estaria então reduzida a um mínimo e o sistema entraria em
estagnação, gerando apenas o suficiente para repor o desgaste do capital no
processo produtivo - este era o chamado estado estacionário que Ricardo via
como produto inevitável da expansão do sistema. É claro que poderiam ocorrer
fatos que adiassem momentaneamente a chegada do estado estacionário. Era o caso
das inovações tecnológicas na agricultura fazendo aumentar a produtividade em
todas as terras e barateando a parcela destinada à reprodução da classe trabalhadora.
Era o caso também do comércio internacional, que poderia evitar o efeito da
ocupação das terras menos férteis com a compra pelo país de produtos com maior
produtividade no exterior, evitando-se assim a rebaixa geral na taxa de lucros.
Daí o porquê de Ricardo ter defendido com tanto rigor a extinção das “corn laws”
na Inglaterra. Ricardo era um aplicado defensor do liberalismo no comércio
internacional. Como vimos acima, para ele, as transações entre os países eram
um mecanismo poderoso para infundir ânimo aos sistemas econômicos. Em sua
visão, as trocas internacionais seriam vantajosas mesmo em uma situação em que
um determinado país tivesse maior produtividade que o outro na produção de
todas as mercadorias. Ele criou o famoso exemplo do comércio de tecidos e
vinhos entre a Inglaterra e Portugal. A teoria das Vantagens Comparativas de
Ricardo foi a base para a construção de toda uma vertente de teorias de
comércio internacional que dominou por muito tempo o debate econômico. O esquema lógico ricardiano fornecia o substrato para um
sistema de comércio mundial ancorado no padrão-ouro e no livre-cambismo.
Se o sistema do padrão-ouro recebeu abalo definitivo após a 1ª grande guerra (1914-18), a teoria das vantagens comparativas ainda tinha muita força entre os economistas da maioria dos países na entrada dos anos 50, quando se iniciava a etapa da rápida industrialização nos países subdesenvolvidos. E foi com ela que tiveram de dialogar com os defensores da industrialização latino-americana, quando se tratava de demonstrar que seus países necessitavam industrializar-se - ainda que daí resultasse uma produção menos eficiente que a das indústrias congêneres dos países mais avançados. Para demonstrar o desacerto das proposições retiradas do esquema ricardiano de vantagens comparativas, os economistas latino-americanos diziam que o universo ricardiano não podia funcionar perfeitamente nas condições que se apresentavam nas trocas entre os países centrais e a periferia, porque os pressupostos do livre-cambismo não ocorriam de maneira perfeita - nem os ganhos de produtividade ocorridos nos países centrais eram repassados aos preços dos produtos (a organização dos trabalhadores e o monopólio das novas tecnologias faziam reter estes lucros sob a forma de salários maiores, lucros extraordinários ou de repasses ao Estado de Bem-Estar), nem na periferia os ganhos de produtividade podiam ser retidos em função da desorganização do mercado de trabalho, pela heterogeneidade entre os setores econômicos.
Ainda assim, veja-se que era tão hegemônico o esquema ricardiano, que suas críticas mais contundentes eram formuladas a partir de dentro da teoria, como “casos especiais” para os quais o universo ricardiano deixava de operar como esperado do pensamento elitista. Na sua análise sobre o poder político critica a tripartição aristotélica das formas de governo: monarquia, oligarquia e democracia e sustenta só haver uma forma de governo exercida por uma única classe política, a oligarquia. Considera que, em cada sociedade, existem apenas duas classes: os governantes, que são as elites que detêm o poder, e os governados, isto é, o resto da sociedade. É autor de ensaios como: Teorica dei Governi e Governo Parlamentare (1884), Questioni Costituzionali (1885), Elementi di Scienza Politica (1896), Appunti di Diritto Costituzionale (1906), Saggi di Storia delle Dottrine Politiche (1927), e neste sentido, a governabilidade da elite política no poder é organizada de tal modo que mantém num processo de longo prazo, “a própria posição, tutelando seus próprios interesses, para isso utilizando até mesmo os meios públicos à sua disposição”. Por este motivo, acredita que a democracia, o parlamentarismo, o socialismo sejam somente utopias ou teorias políticas construídas para “legitimar e manter um poder que sempre está em mãos de poucos homens”. Enfim, o elitismo é uma categoria social de interpretação que sustenta que o poder : a) só se reproduz por vias democráticas quando a oligarquia permite o ingresso dos membros de qualquer classe social; b) existe uma reprodução do poder pela via aristocrática, mas a substituição ocorre sempre no interior da elite. Enfim, c) essa troca dependerá também da situação do Estado. Numa condição de guerra, por exemplo, o ingresso na classe política será facilitado para os generais, comandantes, etc.
Gaetano Mosca foi senador durante o período de governo liberal e, sendo o cargo vitalício, também durante o fascismo, ideologia com a qual não concordava absolutamente, o que o fez refletir “sobre o valor daquele parlamentarismo tão criticado nas suas primeiras obras”. Ocupou-se exclusivamente das chamadas “elites políticas”, embora não utilizasse o termo “elite”, mas, “classe política”. A recusa do termo “elite” se justifica na medida em que o seu significado pode conduzir à ideia de que aqueles que estão no poder sejam “in partibus infidelium”, ou, “nelle terre dei non credenti: os elementos melhores da sociedade”. Tais minorias governantes são formadas por indivíduos que “se distinguem da massa dos governados por certas qualidades que lhes dão certa superioridade material, intelectual ou mesmo moral. Em outras palavras, esses indivíduos devem ter algum requisito, verdadeiro ou aparente, fortemente valorizado na sociedade em que vivem” - ou então devem ser os herdeiros daqueles dotados dessa característica. Em Mosca, existem dois casos recorrentes da vida política, os quais são somente fenômenos aparentes: existe um só homem no comando. A elite se deixa destituir pela massa movida pelo descontentamento. A autocracia se baseia na classe política, e governo não pode ir contra a classe política: princípio da organização. Por mais que a “massa” possa acreditar que pode destituir uma elite, surgirá uma restrita classe, pois sem classe política não se governa.
Bibliografia geral consultada:
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