domingo, 31 de maio de 2015

Lélia Gonzalez – Feminismo Negro & Subversão da Identidade.

Ubiracy de Souza Braga*

    “Lélia exerceu um papel fundamental na criação e ampliação do movimento negro contemporâneo”. Luiza Barros 

    

Lélia Gonzalez nasceu “de Almeida”, em Belo Horizonte, estado de Minas Gerais, em 1º de fevereiro de 1935.  Tinha 59 anos quando faleceu, em 10 de julho de 1994, no bairro de Santa Teresa (foto), na cidade do Rio de Janeiro. Quando Lélia era criança, sua família instalou-se no Rio de Janeiro, na favela do Pinto, no bairro do Leblon, ao lado do Clube de Regatas do Flamengo, onde jogava (e depois foi técnico) seu irmão, Jaime de Almeida (nascido em 1920), por quem nutria enorme admiração e nos passos de quem seguiu torcendo pelo Flamengo e gostando muito de futebol.  Logo depois, a família mudou-se para o subúrbio, para uma casa em Ricardo de Albuquerque onde correm os trilhos da Estação Ferroviária Central do Brasil. Pela localização da residência, se percebe que Lélia de Almeida viajou muito pelas margens no trem suburbano da Central do Brasil, junto com o “povão” (como dizia), principalmente quando estudou no Colégio Estadual Orsina da Fonseca, ao lado do terminal ferroviário da Central do Brasil, no centro da cidade e no Imperial Colégio Pedro II na Av. Marechal Floriano, no centro da cidade do Rio de Janeiro, também próximo a extinta Rede Ferroviária Federal Central do Brasil, hoje, Rede Ferroviária Federal S. A .  
 O Colégio Pedro II representa uma tradicional instituição de ensino público federal, localizada no estado do Rio de Janeiro, no Brasil. Faz parte da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, vinculada a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação (Brasil). É o terceiro mais antigo colégio em atividade no país, depois do Ginásio Pernambucano e do Atheneu Norte-rio-grandense. A escola foi criada em homenagem ao seu patrono, o imperador do Brasil, D. Pedro II. Fundado durante a regência do Marquês de Olinda, Pedro de Araújo Lima, integrava um projeto civilizatório mais amplo do Império do Brasil, do qual faziam parte a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Arquivo Público do Império, seus contemporâneos. No plano da educação, autores entendem que o colégio pretendia formar uma elite ao destacar a transformação do Seminário de São Joaquim em Colégio de Pedro II baseada na ideia da Reforma da Constituição em 1834.
 de construir um modelo a ser seguido, já que as províncias não estavam dando conta de, por si mesmas, estabelecer seu sistema de ensino local. Outro grupo de autores, como a historiadora e docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Circe Bittencourt, têm estabelecido visões que dialogam com ambas as perspectivas. A formação histórica e sociológica do Colégio explica bastante do plano civilizatório Imperial: uma educação que priorizava uma boa formação, mas que abrangia uma parte pequena da sociedade, que era suficiente ao projeto do Império, na medida que preenchesse os quadros básicos do sistema burocrático e ideológico às lideranças do país, com um currículo que servia a estes interesses, não estando tão preocupada com a formação de uma massa ampla de operários minimamente capacitados, como ocorreria em momentos posteriores no Brasil e já ocorria em alguns lugares da Europa.    
         Filha de um ferroviário negro e de uma empregada doméstica indígena, Lélia Gonzalez nasceu em Belo Horizonte, estado de Minas Gerais, em 1º de fevereiro de 1935. Autora de artigos, ensaios e livros sobre a temática racial, a antropóloga e militante do movimento negro nos anos 1970, Lélia foi também um expoente no combate ao preconceito social e racial contra a mulher. Sua obra acadêmica e seu trabalho como militante contribuíram para impulsionar não apenas o debate sobre a problemática racial no Brasil, mas também os seus desdobramentos a partir, basicamente, de dois temas correlatos: “a ideologia do branqueamento” e seus efeitos e o da “dupla exposição da mulher negra, discriminada pelo racismo e pelo sexismo”. Lélia fez parte do grupo de fundadores do “Movimento Negro Unificado” - MNU, principal canal de ressurgimento e rememoração da luta pela igualdade racial, nos anos 1970. Sua “vontade de potência” se realiza na tríade: a) na luta contra o racismo e a discriminação racial, b) como também uma militante da causa feminina, c) particularmente da mulher negra. Sua importância para o movimento negro tem sido comparada à de Ângela Davis, ícone do movimento norte-americano.
          Angela Davis nasceu no estado do Alabama, considerado um dos mais racistas do sul dos Estados Unidos e desde cedo conviveu com humilhações de cunho racial em sua cidade. Leitora voraz quando criança, aos 14 anos participou de um intercâmbio colegial que oferecia bolsas de estudo para estudantes negros sulistas em escolas integradas do norte do país, o que a levou a estudar no Greenwich Village, em Nova Iorque, onde travou conhecimento com o ensino do comunismo e socialismo teórico de tradição marxista, sendo recrutada para uma organização comunista de jovens estudantes. Na década de 1960, Angela tornou-se militante do partido e participante ativa dos movimentos negros e feministas que sacudiam a sociedade norte-americana, primeiro como afiliada da SNCC de Stokely Carmichael e depois de movimentos e organizações políticas como o Black Power e os Panteras Negras. Angela lecionou durante 17 anos no Departamento de História da Consciência na prestigiada Universidade da Califórnia-Santa Cruz. Recebeu o título de professora Emérita da Universidade da Califórnia e se aposentou do trabalho acadêmico de ensino e pesquisa em 2008. Após sua aposentadoria continuou sua rotina de palestras e cursos em diversas universidades e centros culturais por todo o mundo. Em 2019 passou a integrar o National Women`s Hall of Fame dos Estados Unidos da América. 
            

            Vale lembrar que Ângela Yvonne Davis, nascida em Birmingham, 26 de janeiro de 1944 foi professora e filósofa socialista estado-unidense que alcançou notoriedade mundial na década de 1970 como integrante do Partido Comunista dos Estados Unidos. Através do grupo “Panteras Negras”, por sua militância pelos direitos das mulheres e contra a discriminação social e racial nos Estados Unidos. E, particularmente, por ser personagem de um dos mais polêmicos e famosos julgamentos criminais da recente história norte-americana. Ângela nasceu no estado do Alabama, um dos mais racistas do sul dos Estados Unidos e desde cedo conviveu com humilhações de cunho racial em sua cidade. Leitora voraz quando criança, aos 14 anos participou de um intercâmbio colegial que oferecia bolsas de estudo para estudantes negros sulistas em escolas integradas do norte do país. Sendo selecionada com bolsa de estudos que a levou a estudar no Greenwich Village, em Nova Iorque, onde travou conhecimento com o comunismo e o socialismo teórico, sendo recrutada para uma organização comunista de jovens estudantes. Na década de 1960, Ângela tornou-se militante do partido e participante ativa dos movimentos negros e feministas que sacudiam a sociedade norte-americana, primeiro, como filiada da SNCC de Stokely Carmichael e depois de movimentos e organizações políticas como o Black Power e Panteras Negras, mas que não trataremos agora.
         Gus Hall foi organizador político americano que era secretário-geral do Partido Comunista dos Estados Unidos da América (1959–2000) e quatro vezes candidato à presidência dos Estados Unidos (1972,1976,1980,1984). Os pais de Hall eram membros dos militantes Trabalhadores Industriais do Mundo e, em 1927, ele foi recrutado por seu pai para ingressar no CPUSA. De 1931 a 1933, ele estudou no Instituto VI Lenin, depois rebatizado de Instituto Marx-Engels-Lenin) em Moscou, e depois de retornar aos Estados Unidos, ele se envolveu em atividades de organização sindical, ocasionalmente sendo preso. Ele se tornou um membro oficial do partido em tempo integral em 1937. Após servir na marinha durante a 2ª Guerra Mundial, ingressou no conselho executivo nacional do CPUSA. Em 1949, ele foi um dos 11 líderes partidários condenados por conspirar para derrubar o governo dos Estados Unidos pela força e foi condenado a cinco anos de prisão. Livre sob fiança durante uma apelação, Hall e três outros fugiram para o México quando o recurso foi rejeitado em 1951. Eles foram recapturados, entretanto, e a sentença de Hall foi estendida; ele foi encarcerado até 1957. Eleito para a posição de liderança do CPUSA em 1959, Hall concorreu à presidência dos Estados Unidos como candidato do partido em quatro anteriores e obteve seu melhor resultado em 1976, quando obteve quase 60.000 votos. Ele viagens anuais a Moscou até a queda do regime comunista e foi premiado com a maior medalha civil da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, uma Ordem de Lênin. Embora a adesão do CPUSA à sua fé no comunismo de estilo soviético o mantivesse separado da chamada Nova Equerda que emergia no cenário político mundial e seu número de membros diminuísse constantemente, Hall permaneceu secretário-geral do partido até sua morte.
O feminismo negro começa a ganhar visibilidade mundial (Barreto, 2005; Damasco, 2009) a partir da segunda “onda do feminismo”, entre 1960 e 1980, por conta da fundação da National Black Feminist, nos Estados Unidos, em 1973. Surge no final do conflito armado segundo os vietnamitas, intitulado: “Guerra Americana”,  ocorrido no Sudeste Asiático entre 1955 e 30 de abril de 1975. Notadamente, porque feministas negras passaram a pesquisar e escrever sobre o tema, criando uma literatura própria intitulada “feminista negra” universal. Porém, historicamente, mulheres negras já desafiavam o sujeito mulher determinado pelo feminismo num mundo masculino ainda ressentido pelas formas de opressão e dominação em mulheres. Duas questões pontuais me fazem refletir sobre a cisão das mulheres negras com o movimento feminista: a) Por deterem o domínio racial e contarem com maior número de lideranças consolidadas, as feministas em geral resistem às questões das mulheres negras, em particular; b) Supondo que passam pelos mesmos problemas e desejam  quase as mesmas coisas, o feminismo não atenta para as especificidades de cada grupo feminino e acaba atuando sob omissão. Muitas vezes deliberada sobre as necessidades das mulheres negras, sem que seja feita uma análise histórica e crítica do racismo brasileiro, levando em conta os aspectos culturais regional, nacional e global.    
Maria José Motta de Oliveira, nome de batismo da artista, nascida em Campos dos Goytacazes (RJ), em 27 de junho de 1944, mãe de cinco filhas e de um filho - adotados - e avó de quatro netos, tornou-se conhecida nacionalmente a partir de meados da década de 1970, quando conquistou brasileiros e estrangeiros, com “Xica da Silva”, personagem vivido por ela no filme homônimo de Cacá Diegues, que se transformou em seu talismã. A cantora e atriz Zezé Motta, com quase 50 anos de carreira, convive com o status de estrela no universo das artes no país. Militante do movimento negro, ela ainda vê barreiras a serem vencidas no exercício da profissão. - “Já avançamos, mas ainda temos muita luta pela frente. Precisamos de mais autores, produtores e diretores negros atuando. Eles existem e não são aproveitados. Felizmente, percebo hoje uma preocupação na distribuição dos papéis, em não deixar o negro fora das produções”. Campos dos Goytacazes nasceu com o tamanho de toda região Norte e Noroeste Fluminense, exceto São João da Barra. O município, historicamente, fazia divisa com Nova Friburgo, Cantagalo, Cabo Frio e com o estado de Minas Gerais, mas, com a emancipação da cidade de Itaperuna, perdeu metade de seu território. A partir da década de 1980, Campos perdeu cinco de seus antigos distritos, que, atualmente, formam os municípios de Talva e Cardoso Moreira.

As condições sociais e políticas das mulheres negras no Brasil contraria a tendência mundial baseada em dados estatísticos de que as mulheres vivem mais que os homens. A expectativa de vida para as afrodescentes é de 66 anos, está alguns meses abaixo da média nacional que é de 66,8 anos. A precária situação da saúde sexual e reprodutiva das mulheres negras está diretamente relacionada à desigualdade social de acesso ao serviço de saúde. Em razão da predisposição biológica para algumas doenças, como hipertensão e diabetes causando com mais frequência a morte materna entre as mulheres negras. As doenças étnicas mais frequentes nas mulheres afrodescendentes são descritas da seguinte forma: miomas uterinos, Hipertensão Arterial, Diabetes Mellitus Tipo II, Câncer no colo do útero além do traço falciforme, inclusive HIV-AIDS, o que dispensa-nos de comentários clínicos etc.  Atriz Zezé Motta (foto) criou centro para cadastrar atores negros no mercado de trabalho no Brasil.
A luta histórica das feministas negras representa uma batalha no campo das ideias, mas, sobretudo enredada em uma práxis contínua para nivelar seu lugar de análise ao lugar das atividades práticas de mulheres brancas no âmbito da sociedade. Este aspecto ideológico levanta: a) a importante reflexão sobre a representação feminina na mídia e/ou indústria cultural, b) seu espaço de participação social no mercado de trabalho brasileiro, além do eixo desenvolvimentista Rio-São Paulo; c) o lugar de “primazia” como assédio moral e vítima da violência sexual, d) o protagonismo da maternidade, entre outros temas conjunturais, inclusive de formação no âmbito das universidades e escolas técnicas. Há tanto um conjunto de práticas e saberes sociais por que as mulheres brancas precisam lutar. É bastante preocupante o fato de que as mulheres negras nem sequer conquistaram igualdade social e política. Sem perder de vista comparativamente com outros indivíduos do seu próprio grupamento étnico e de classes sociais, inclusivamente à particularidade da questão social de gênero no Brasil.

A atualidade do perspectivismo de Simone de Beauvoir tem sido admitida por Daniele Reis (2005). A cor é fator relevante quando analisamos os casos de agressão e assassinato por parte de companheiros e ex-companheiras. As negras são mais de 60% das vítimas de “feminicídio”, exatamente porque não contam com assistência adequada e estão mais vulneráveis aos abusos das próprias autoridades. Já no aspecto da sexualidade, das mulheres brancas é esperado o comportamento moderado e sensualidade com limitações, porém, as mulheres chamadas de “mulatas” são amplamente “exotificadas” e tratadas como objetos disponíveis para a exploração. O argumento de quem enxerga as mulheres negras para investidas sexuais é de que elas são mais provocantes, que seus corpos suportam atos mais intensos ou até mesmo que não podem negar os estilos de assédio moral e sexual.
A cultura do estupro é vigente desde o período histórico de colonização do Brasil, quando mulheres negras foram estupradas por homens brancos e usadas em políticas oficiais de miscigenação, com o fim de branquear a população. A mentalidade daquela época se mantém forte na contemporaneidade e é por isso que são tão naturalizados aspectos culturais como a escolha anual da “Globeleza”, nome dado à cobertura do carnaval feita pela Rede Globo. É também o nome dado à mulata que samba nas vinhetas da emissora, pelo qual consagrou a carreira da dançarina Valéria Valenssa, que durante 14 anos foi a Mulata Globeleza, dançando apenas com o corpo completamente pintado nas vinhetas da emissora designadas para o carnaval carioca. Realizou shows de dança no exterior, com apresentações em países como Portugal e Áustria, entre outros. Erika Moura, assumiu o posto no ano de 2015. A posição de mulata que expõe seu corpo é tão relacionada exclusivamente à mulher negra, que nem sequer se estende o concurso sexista para mulheres de outras etnias ou raças. Enquanto as mulheres brancas são vítimas de violência sexual, é preciso, comparativamente, salientar as formas distintas: as brancas são violentadas exclusivamente por seu gênero, as negras sob a trágica forma de dupla penetração: sexual e vítimas do preconceito racial.
Um bom exemplo histórico refere-se à chamada Marcha das Vadias, um movimento social que surgiu a partir de um protesto realizado no dia 3 de abril de 2011 em Toronto, no Canadá, e desde então se internacionalizou, sendo realizado em diversas partes do mundo, no âmbito do hemisfério ocidental e que atualmente tem sido realizada em quase todos os estados brasileiros. Há diversos grupos do “Feminismo Negro” que não participam dos protestos. Mas criticam o uso de palavras expressas como “vadia” e “puta”, afirmando que as mesmas não podem ser “ressignificadas” pelas negras, para usarmos o voguismo antropológico, pois o estigma que carregam é muito forte e o mais urgente é romper representações hipersexualizadas. Partindo desse pressuposto, o melhor seria lutar para ser reconhecida no plano de atividades como uma intelectual, capaz de conquistas diversas e ocupação em papéis ilimitados. Não obstante, esse posicionamento não é unânime; diversas mulheres negras participam das marchas e ocupam posições políticas adentre as equipes de organização em torno das lutas sociais.

   Ainda que as relações em torno do gênero seja usado como sinônimo de sexo, nas ciências sociais e na psicologia tradicionalmente, refere-se às diferenças sociais, reconhecidas nas ciências biológicas como papel de gênero. Historicamente, o feminismo posicionou os papéis de gênero como construídos socialmente, independente de qualquer base ideal típica biológica. Pessoas cuja identidade de gênero difere do gênero designado de acordo com os genitais são normalmente identificadas como “transexuais” ou “transgêneras”. Muitas sociedades possuem apenas dois papéis de gênero - masculino ou feminino - e estes correspondem ao sexo biológico. Entretanto, algumas sociedades explicitamente incorporam pessoas que adotam o papel de gênero oposto ao sexo biológico, como por exemplo, em algumas sociedades indígenas norte-americanas, mas que não ocorrem apenas nelas. Enfim, outras sociedades incluem papéis bem desenvolvidos que são explicitamente considerados distintos dos arquétipos masculinos e femininos tradicionalmente. Na linguagem da sociologia de gênero há a inclusão de um “terceiro-gênero”, um tanto distinto do sexo biológico, tendo em vista as condições e possibilidades, nesta direção, abranger algumas vezes a base para os papéis de gênero incluem a intersexualidade ou incorpora eunucos.
       A sociologia contemporânea refere-se aos papéis de gênero masculino e feminino como masculinidades e Feminilidades, respectivamente no plural ao invés do singular, enfatizando a diversidade tanto dentro das culturas como entre as mesmas. A revista People elegeu a atriz negra Lupita Nyong’o, atriz mexicana e queniana como a mulher mais linda do mundo. Mas o público não recebeu bem a notícia e os comentários de que ela não “poderia” ser a mulher mais linda do mundo. A maior revelação da indústria cinematográfica nos últimos anos é Lupita Nyong’o, atriz criada no Quênia, com pós-graduação na Yale School of Drama, que surpreendeu o público com seu desempenho em “12 Anos de Escravidão”. Seu papel como Patsey, a escrava que resiste a atos indizíveis de brutalidade, não só lhe rendeu o Oscar como um BAFTA (British Academy of Film and Television Arts) de coadjuvante. Lupita agora foi eleita a mulher mais bonita do mundo pela revista People em sua edição especial, que sai todo ano. É a primeira negra a ostentar esse título. Já tinha sido escolhido o rosto da marca de cosméticos Lancôme. - “Ao vir para os EUA, foi a primeira vez em que tive de me considerar negra e aprender o que significava a minha raça”. As pessoas são naturalmente atraídas por seu espírito e sua beleza impressionante. Sua naturalidade é uma lufada de ar fresco em um mundo repleto de celebridades intragáveis. Nyong’o venceu mil concorrentes que fizeram testes para interpretar Patsey. Temos assim, a designação sociológica “subversão da identidade”.              
 A cor, analogamente como a noite, last but not least, reenvia-nos, assim, sempre para uma espécie de “feminilidade substancial”. Mais uma vez, tradição romântica ou alquímica e análise sociológica convergem para evidenciar uma estrutura arquetípica, e encontra-se com a imemorial visão da tradição religiosa.  No clássico estudo do antropólogo francês Gilbert Durand, Les Structures Anthropologiques de L`Imaginaire (1992) o autor rememora o eufemismo que as cores noturnas constituem em relação às trevas parece que a melodia o constitui em relação ao ruído. Do mesmo modo que a cor é uma espécie de noite dissolvida e a tinta uma substância em solução, pode-se dizer comparativamente que a melodia, que a suavidade musical tão cara aos românticos é a duplicação eufemizante de duração existencial. A música melodiosa desempenha o mesmo papel enstático que ocorre durante a noite. A ocasião é semelhante àquela já descrita no Jataka 314, em que nesta história o Mestre, enquanto morava em Jetavana, contou a respeito de um rei de Kosala.
             Desta vez, contudo, quando o rei disse: - “Senhor, o que estes sons significam para mim?” o Mestre respondeu: - “Grande rei, não tenha medo: nenhum perigo te ameaça devido a estes sons: tais terríveis sons indistintos não foram escutados por você apenas: reis antigos também escutaram sons semelhantes e pretendia seguir o conselho de brahmins e oferecer em sacrifício quatro animais de cada espécie, mas após escutar o quê os sábios tinham a dizer, eles libertaram os animais reunidos para o sacrifício e proclamaram pelo tambor o fim de toda execução e morte”. E com o pedido do rei, ele contou um conto antigo. E o mínimo que podemos fazer é citar, depois de Béguin, a tradução desta bela passagem das Phantasien uber die Kunst, de Ludwig Tieck, berlinense que fez parte do movimento do romantismo do final do século XVIII e início do século XX. A música opera o milagre de tocar em nós o núcleo mais secreto, o ponto de enraizamento de todas as recordações e de fazer dele por um instante o centro do mundo feérico, comparável a sementes enfeitiçadas, os sons ganham raízes em nós com uma rapidez mágica. E num abrir e fechar de olhos, sentimos o murmúrio de um bosque semeado de flores maravilhosas. Bibliografia geral consultada.   

GONZALEZ, Lélia, “O Papel da Mulher na Sociedade Brasileira”. In: Spring Symposium The Political Economy of the Black World. Los Angeles: Center for Afro-American Studies, 1979; Idem, “A Categoria Político-Cultural de Amefricanidade”. In: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: n° 92/93 janeiro- junho, 1988; DEL PRIORE, Mary (Org.), História das Mulheres no Brasil. 2 edição. São Paulo: Editora Contexto,1997; OLIVEIRA, Rosália Lemos de, Feminismo Negro em Construção: A Organização do Movimento de Mulheres Negras no Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado. Departamento de Psicologia. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997; BARRETO, Raquel de Andrade, Enegrecendo o Feminismo ou Feminizando a Raça: Narrativas de Libertação em Ângela Davis e Lélia González. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura. Departamento de História. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2005; VIANA, Elizabeth do Espírito Santo, Relações Raciais, Gênero e Movimentos Sociais: O Pensamento de Lélia Gonzalez (1970-1990). Dissertação de Mestrado em História Comparada. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006; HIRATA, Helena (Org.), Dicionário Critico do Feminismo. 1ª edição. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, 2009; DAMASCO, Mariana Santos, Feminismo Negro: Raça, Identidade e Saúde Reprodutiva no Brasil (1975-1996). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós- Graduação em História das Ciências e da Saúde. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz, 2009; PEREIRA, Amilcar Araújo, O Mundo Negro: A Constituição do Movimento Negro Contemporâneo no Brasil (1970-1995). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2010; CARDOSO, Cláudia Pons, Outras Falas: Feminismos na Perspectiva de Mulheres Negras Brasileiras. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2012; CARDOSO, Edson Lopes, Memória do Movimento Negro - Um Testemunho sobre a Formação do Homem Ativista contra o Racismo. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014; MIGUEL, Luis Felipe e BIROLI, Flávia, Feminismo e Política: Uma Introdução.  1ª edição.  São Paulo: Boitempo Editorial, 2014; RIBEIRO, Maria Florencia Guarche, A Revolução em Rojava: Jin, Jiyan, Azadi (Mulheres, Vida, Liberdade). Monografia de Conclusão de Curso de Bacharelado em Relações Internacionais. Santana do Livramento: Universidade Federal do Pampa, 2015;  entre outros.
 _______________
Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).   

sábado, 30 de maio de 2015

Vida de Michel Foucault – Nem Ironia, Nem Absurdíssimo.

Ubiracy de Souza Braga* 

             As luzes que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas”. Michel Foucault

O Cardeal de São Paulo, Dom Odilo Scherer, e os bispos de sua Arquidiocese, anunciaram recentemente que não autorizam a criação, prevista há quatro anos (2011), da Cátedra “Michel Foucault e a filosofia do presente” na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Por ocasião do 7° Colóquio Internacional Michel Foucault, que reuniu na PUC-SP dezenas de especialistas na obra do pensador e centenas de interessados, foi assinada uma carta de apoio a essa iniciativa. A lista dos signatários incluía de forma extraordinária desde membros do Collège International de Philosophie (Paris) aos membros da Universidad San Martin na Argentina, da Universidad de los Andes na Venezuela e da Universidad de Valparaiso no Chile. A iniciativa também obteve repercussão através da solidariedade do Consulado Geral da França em São Paulo. Primeira universidade do mundo, fora da França, a abrigar uma coletânea de áudios do filósofo Michel Foucault, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pode ter de devolver o material. O Conselho Superior da Fundação São Paulo, mantenedora da universidade, recusou a criação de uma Cátedra do pensador. Os professores responsáveis pelo projeto foram informados sobre a decisão na semana passada. Em reunião, o Conselho Universitário (Consun) informou que vai encaminhar um pedido de reconsideração ao Conselho Superior, órgão deliberativo máximo formado pela reitora Ana Cintra, bispos da Arquidiocese de São Paulo e o cardeal dom Odilo Scherer. A cátedra é uma instância acadêmica destinada a fomentar o debate em torno de algum pensador, ou teórico, e para a preservação e atualização de seu trabalho.

Em 24 de novembro de 2007, foi elevado ao cardinalato pelo Papa Bento XVI, no Consistório de 2007, na Basílica de São Pedro, recebendo o título de Cardeal-presbítero de Santo André no Quirinal, sendo um dos mais jovens membros do Colégio Cardinalício. Em 9 de maio de 2009, foi nomeado membro do Conselho de Cardeais para o Estudo dos Problemas Organizativos e Econômicos da Santa Sé, até 24 de fevereiro de 2014, quando o Papa Francisco emitiu a constituição apostólica em forma de motu proprio Fidelis dispensator et prudens. Foi eleito como membro delegado pela CNBB para participar como Padre Sinodal da 13ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos realizado no Vaticano de 7 a 28 de outubro de 2012. Em novembro de 2012, como Grão-Chanceler da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), nomeou a terceira colocada na lista tríplice Anna Cintra. Embora o cargo de grão-chanceler lhe garanta o direito de optar por qualquer um dos três nomes, a escolha causou o descontentamento de alguns professores e alunos que esperavam a nomeação do primeiro nome da lista, como sói acontecer. O fato que também agravou foi o tempo para a nomeação, pois esperou por quase dois meses para nomear as vésperas do recesso acadêmico (férias) o que não teria sido bem visto pela comunidade acadêmica. Em 15 de fevereiro de 2013, o Vaticano confirmou a escolha do cardeal e oficializou Anna Cintra no cargo de reitora.

         
                       
            Michel Foucault é reconhecido internacionalmente por descrever uma analítica do poder em relação às instituições sociais, entre elas a Igreja Católica. Do latim cathedra que, por sua vez, tem origem num vocábulo grego que significa “assento” ou “cadeira”, a cátedra é a disciplina ou a cadeira, metaforicamente, que ensina um catedrático - professor que tenha preenchido determinados requisitos para partilhar conhecimentos e que tenha alcançado o posto mais alto na docência. O termo também é usado para fazer referência à função e ao exercício do catedrático. Essa Cátedra, que leva o nome de Michel Foucault, não é dedicada à leitura de seus escritos – que hoje já é parte da cultura clássica. Ela está voltada, sob o impulso não exclusivo de seus trabalhos, como o diz seu título, para uma livre análise, informação e debate sobre questões de filosofia e de vida civil contemporânea. A recusa de tal Cátedra, aberta à complexidade e diversidade de estudos e pesquisas na atualidade, contradiz a deontologia universitária assim como seu fundamento filosófico. A Universidade seria sua primeira vítima. Assim teríamos ironicamente, no caso da Pontifícia Universidade Católica – PUC-SP, a 2ª morte de Michel Foucault. O filósofo deixou inscrito uma das mais belas profecias sobre o “cuidado de si”. Uma ética política sobre a história da sexualidade, incluída a morte. O filósofo Michel Foucault deixou inscrita uma das mais belas profecias sobre o “cuidado de si”. Uma ética política sobre a história da sexualidade, incluída a morte. Este aspecto, não por acaso, passa a ser um elemento novo decorrente da analítica do poder proposta através da análise discursiva. 
             A problemática da governamentalidade fora retomada no “resumo dos cursos do College de France” (1970-1984): “gostaria de me insinuar sub-repticiamente no discurso que devo pronunciar hoje, e nos que deverei pronunciar aqui, talvez durante dez anos”. Veio a falecer em 25 de junho de 1984, “quando seu estado de saúde não mais lhe permitia prepará-los”. Salvo engano, nenhum sistema de pensamento obteve repercussão tão ampla e evidente, do ponto de vista da mudança de simbólica, a partir de temas como: a crítica da razão governamental, a analítica do poder, sobre as relações “espaço-tempo” e “poder-saber”, “estética da existência” e “experimento moral”, e mesmo entre o “império do olhar” e a “arte de ver”. É impossível esquecer a tese foucaultiana segundo a qual “a visibilidade é uma armadilha” que “canceriza” a vista através do poder disciplinar.           
O estudo dedicado ao “cuidado de si” teve como referência Alcibíades, retratado pelo pintor Pedro Américo em 1865. Nele, as questões dizem respeito ao “cuidado de si” com a política, com a pedagogia e com o conhecimento de si. Sócrates recomendava a Alcibíades que aproveitasse a sua juventude para ocupar-se de si mesmo, pois, “com 50 anos, seria tarde demais”. Mas isso, numa relação que diz respeito talvez ao enamoramento, na acepção de Francesco Alberoni e que não pode “ocupar-se de si” sem a ajuda do outro. O exercício da morte, como evocado na Antiguidade por Sêneca, consiste em viver a duração da vida como se fosse tão curta quanto um dia e viver cada dia como se a vida inteira coubesse nele; todas as manhãs, deve-se estar na infância da vida, mas deve-se viver toda a duração do dia como se a noite fosse o momento da morte. Na hora de dormir, afirma na Carta 12, com um sorriso: “eu vivi”. Mas há uma advertência, importantíssima na existência humana: “é preciso tempo para isso”. E é um dos grandes problemas dessa cultura de si, fixar, no decorrer do dia ou da vida, a parte que convém consagrar-lhe. Recorre-se a muitas fórmulas diversas. Podem-se reservar, à noite ou de manhã, alguns momentos de recolhimento para o exame daquilo que se fez para a memorização de certos princípios úteis, para o exame do dia transcorrido; o exame matinal e vesperal dos pitagóricos se encontra, sem dúvida com conteúdos diferentes, nos estoicos; Sêneca, Epicteto, Marco Aurélio, fazem referência a esses momentos revigorados na plenitude da vida que se deve consagrar a voltar-se para si mesmo.  Pedro Américo: Sócrates afastando Alcebíades do vício, 1865.
Pode-se também interromper de tempos em tempos as próprias atividades ordinárias e fazer um desses retiros que Musonius, dentre outros, recomendava vivamente: eles permitem ficar face a face consigo mesmo, recolher o próprio passado, colocar diante de si o conjunto da vida transcorrida, familiarizar-se, através da leitura, com os preceitos e os exemplos nos quais se quer inspirar e encontrar, graças a uma vida examinada, os princípios essenciais de uma conduta racional. É possível ainda, no meio ou no fim da própria carreira, livrar-se de suas diversas atividades e, aproveitando esse declínio da idade onde os desejos ficam aparentemente apaziguados, consagrar-se inteiramente, como Sêneca, no trabalho filosófico ou, como Spurrima, na calma de uma existência agradável, “à posse de si próprio” no espaço e tempo sociais habituais. Esse tempo não é vazio: ele é povoado por exercícios, por tarefas práticas, atividades diversas que são ocupadas pelas reflexões de nosso dia a dia. Ocupar-se de si não é uma sinecura. Existem os cuidados com o corpo, os regimes de saúde, os exercícios físicos sem excesso, a satisfação, tão medida quanto possível, as necessidades.
Existem as meditações, as leituras, as anotações que se toma sobre livros ou conversações ouvidas, e que mais tarde serão relidas, a rememoração das verdades que já se sabe, mas de que convém apropriar-se ainda melhor. Marco Aurélio fornece, assim, um exemplo de “anacorese em si próprio”: trata-se de um longo trabalho de reativação dos princípios gerais e de argumentos racionais que persuadem a não deixar-se irritar com os outros nem com os acidentes, nem tampouco com as coisas. Tem-se aí um dos pontos mais importantes dessa atividade consagrada a si mesmo. Ela não constitui simplesmente um mero exercício da solidão; mas sim uma verdadeira prática sociológica. E isso, em vários e amplos sentidos. Mas toda essa aplicação a si não possuía como único suporte social a existência das escolas, do ensino e dos profissionais da direção da alma; ela encontrava, facilmente, seu apoio em todo o feixe de relações habituais de parentesco, de amizade ou de obrigação.
      Quando, no exercício do cuidado de si, faz-se apelo a outro, o qual se advinha que possui aptidão para dirigir e para aconselhar, faz-se uso de um direito; e é um dever que se realiza quando se proporciona ajuda a outro ou quando se recebe com gratidão as lições que ele pode dar na duração da vida. Acontece também do jogo entre os cuidados de si e a ajuda do outro inserir-se em relações sociais preexistentes às quais ele dá uma nova coloração e um sentido de calor expresso em intensidade maior. O cuidado de si – ou os cuidados que se tem com o cuidado que os outros devem ter consigo mesmos – aparece então como uma intensificação mais do que necessária das relações sociais. É sobretudo neste sentido que Sêneca dedica um consolo à sua mãe. Justamente no momento em que ele próprio está no exílio, para ajudá-la a suportar essa infelicidade atual e, talvez, mais tarde, infortúnios maiores sobre a solidão. O “cuidado de si” aparece, portanto, intrinsecamente ligado a uma espécie de “serviço da alma” que comporta a possibilidade de um jogo de trocas com o outro e de um sistema de obrigações recíprocas. Neste aspecto Michel Foucault abriu caminho para o eterno. Dom Odilo: hostilidade por parte de manifestantes. Foto: “Por uma PUC Católica” (2015). 

Portanto é a partir dela que, se tomarmos como analogia a reflexão realizada por Michel Foucault para identificar as condições e possibilidades nas “formações discursivas” entre arqueologia e história das ideias, pode-se agora inverter o procedimento. Pode-se descer no sentido da corrente e, uma vez percorrido o domínio das formações discursivas e dos enunciados, uma vez esboçada sua teoria geral, correr para os domínios possíveis de sua aplicação. Recorrer sobre a utilidade dessa análise que ele batizou de “arqueologia” recoloca o problema da escansão do discurso segundo grandes unidades que não eram as das obras, dos autores, dos livros ou dos temas. Sua singularidade refere-se ao fato social de que em sua épistème “já existem muitos métodos capazes de descrever e analisar a linguagem, para que não seja presunção querer acrescentar-lhes outro”. Ele já havia mantido “sob suspeita”, expressão que Michel Foucault utiliza repetidas vezes hic et nunc, unidades de discurso como no que se refere ao livro ou a obra porque desconfiava que não fosse tão imediatas e evidentes quanto pareciam ser no âmbito da pesquisa hermenêutica e propriamente  filosófica.

Portanto, será razoável opor-lhes unidades estabelecidas à custa de tal esforço, depois de tantas hesitações e segundo princípios tão obscuros que foram necessárias centenas de páginas para elucidá-los? E o que todos esses instrumentos acabam por delimitar, esses famosos “discursos” cuja identidade eles demarcam, coincide com as figuras chamadas “psiquiatria” ou “economia política” ou “história natural” de que ele tinha empiricamente partido, e que serviu de pretexto para remanejar esse estranho arsenal. Forçosamente, ele precisa agora medir a eficácia descritiva das noções que tentou definir. Precisa saber se a máquina funciona e o que ela pode produzir. O que pode, então, oferecer essa “arqueologia”, que outras descrições não seriam capazes de dar? Qual é a recompensa de tão árdua empresa, indagava o bravo filósofo. Hoje, em vista dos acontecimentos inusitados a di-visão entre ironia e absurdismo. Poder-se-á dizer em sua complementariedade que a originalidade da filosofia de Michel Foucault reside justamente na forma como desfaz a oposição entre história e analítica, entre argumentação descritiva e argumentação propositiva, porque justamente o seu desígnio é fazer uma genealogia. Ou seja, um estudo da proveniência que identifica o lugar em que se deu um conflito e uma ruptura que ainda exerce efeitos sociais específicos no nosso presente.
Se adotarmos a segunda alternativa, então poderíamos sustentar que, a par da ética da virtude, das regras e do utilitarismo, Foucault teria reafirmado uma proposta ética que se encontrava esquecida, embora estivesse presente em autores estudados na atualidade como Søren Kierkegaard, Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger, e que se encontrava também presente, embora de uma forma difusa e irrefletida, em inúmeras práticas, como as terapias, as artes e a militância política enquanto práticas. O argumento mais forte a favor de uma leitura programática do cuidado de si refere-se à dificuldade com que, desde o século XIX, as sociedades ocidentais se deparam no desejo de reconstituir uma ética e estética do eu. Com efeito, as noções que no passado atestavam essas práticas, apesar de nos serem familiares, perderam o sentido e tornaram-se por isso, esvaziadas de sentido e negativas. É o caso das expressões “retornar a si” e “liberar-se”. Ora, apesar dessas expressões serem ambíguas, regressamos sem cessar ao tema da soberania do eu ou precisamente de uma ética do eu, que chamou atenção da sociedade  norte-americana, em particular San Francisco.
Enfim, em filosofia, metodologicamente “Absurdo” se refere ao conflito entre a tendência humana de buscar significado inerente à vida. Ou a inabilidade humana para encontrar algum significado. Nesse contexto “absurdo” não significa, “logicamente impossível”, mas sim “humanamente impossível”. O universo e a mente humana não causam separadamente o Absurdo. Mas é o Absurdo que surge pela natureza contraditória de ambos existindo simultaneamente. Esta filosofia está relacionada ao existencialismo de Jean-Paul Sartre  e ao niilismo de Friedrich Nietzsche, ainda que não deva ser confundido com estes. “Absurdismo”, portanto, como conceito tem suas raízes no século XIX com o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard. Já como sistema de crença nasceu do movimento existencialista quando o filósofo e escritor francês Albert Camus rompe essa linha filosófica e publica seu manuscrito “O mito de Sísifo”. As consequências da 2ª guerra mundial proporcionaram um ambiente social propício para as visões “absurdistas”, especialmente na devastada França de Michel Foucault, como as obras de Emil Cioran, para ficarmos neste exemplo.
O absurdo no ensaio: “Le Mythe de Sisyphe” é considerado um ponto de partida. Trata-se de uma sensibilidade, não de uma filosofia do absurdo. Albert Camus diz isso em parte do prólogo: – “aqui se encontrará unicamente a descrição, o estado puro de uma doença do espírito. Nenhuma metafísica, nenhuma crença foi misturada a isso por enquanto”. Sem lugar a dúvidas, “O mito de Sísifo” é a obra capital do absurdo. Assim como fez Jean-Paul Sartre, ao publicar em 1943 o ensaio “O ser e o nada”, onde tenta exibir a tese da novela “A Náusea” (1938), Camus publica o ensaio em que tenta resolver os problemas propostos em sua narração d`“O Estranho”, ambos de 1942 (cf. Camus, 1945). Um dos aspectos relacionados por estudiosos a este ensaio de Camus refere-se ao tema conspícuo do suicídio. Vale lembrar que foi analisado magistralmente por Émile Durkheim (1897), mas também para Camus, especialmente em sua primeira parte: “Um raciocínio absurdo”.
A resposta que  Albert Camus tenta mediar diante deste profundo problema, refere-se a um trabalho de pensamento sobre o sentimento do absurdo, sua gênese, e portanto, seu conteúdo de sentido. Desenvolve o conceito do tempo, como inimigo, para entender a ilogicidade do mundo. Se fosse acadêmico entenderia as formas pelas quais os burocratas da cultura gozam postergando as descobertas que povoam o tempo de meditação sobre com desperdício tolo  da negação. Nele temos o resgate do espectro da morte, não mais ersatz que ronda as revoluções ocidentais dos anos 1848, mas inevitavelmente como uma certeza do absurdismo. De acordo com a sua análise o “absurdismo”, tem como representação por toda a história de vida dos humanos o fato em torno do qual tentamos encontrar sentido para nossas próprias vidas. Isto é correto, mas tradicionalmente, essa busca resulta em uma das duas conclusões: ou que a vida não tem sentido, ou que a vida contém nela um propósito definido por uma força maior – uma crença em Deus, ou a aderência a alguma religião ou outro conceito abstrato. Camus percebe que preencher a lacuna com alguma crença ou sentido inventado é um mero “ato de ilusão”; isto é, evitar ou contornar ao invés de reconhecer e abraçar o Absurdo.
Lembra-nos Camus, que “a ilusão é uma falha fundamental na religião”, no existencialismo em geral, no  existencialismo ateísta, que entretanto, não inclui “ilusão” e em várias outras escolas do pensamento filosófico. Se o indivíduo escapa ao Absurdo, então ele não poderá confrontá-lo. Mesmo com uma força espiritual para dar significado, outra questão surge: Qual o propósito de Deus? Ora, Søren Kierkegaard acreditava que não há propósito em sua filosofia de um Deus compreensível aos humanos. Fazendo da crença em Deus “um absurdo por si mesma”, um fim em si mesmo. Camus, enfim, sugere que acreditar em Deus é “negar um dos termos da contradição”, entre a humanidade e o universo, portanto, não absurdo, mas é o que ele chama de “suicídio filosófico”. Albert Camus, como analogamente também Kierkegaard, ainda assim, sugere que enquanto o absurdo não leva à crença em Deus, também não leva à Sua negação. É neste  sentido  exato que o jornalista político Camus adverte-nos, portanto, com razão:  – “Eu não disse exclui Deus, o que equivale à Sua afirmação”.
        A liberdade não pode ser alcançada além do que a absurdidade da existência permite; entretanto, o mais perto de que alguém pode chegar de ser absolutamente livre é pela aceitação do Absurdo. Camus introduziu a ideia da “aceitação sem resignação” como um meio de lidar com o reconhecimento do absurdo, questionando se um homem pode ou não “viver sem apelo”, enquanto definindo uma “revolta consciente” contra a evasão da absurdidade do mundo. Em um mundo destituído de significado superior ou justiça após a morte, o ser humano se torna tão absolutamente livre quanto é humanamente possível. É através dessa liberdade expressa em seu conteúdo de sentido que o homem pode atuar, através do apelo a alguma força sobrenatural, ou, como um herói do absurdo, através da revolta contra tal esperança. Não por acaso em determinada conjuntura política Michel Foucault chega admitir: - “É inútil revoltar-se”! A rejeição da esperança, no “absurdismo”, demonstra a recusa de acreditar em qualquer coisa além do que essa vida absurda pode prover.  
Doravante, a recusa do herói do absurdo à esperança se torna sua habilidade de viver o presente com paixão. A esperança, tanto em Michel Foucault como Albert Camus enfatiza, não tem, entretanto nada a ver com desespero, significando que os dois termos não é, e, portanto, não têm ou representam o significado linguístico de significados  antônimos. O indivíduo pode viver rejeitando completamente a esperança, e, de fato, só pode fazê-lo sem esperança. A esperança é vista pelo “absurdista” como outro método fraudulento de evadir o Absurdo, e não tendo esperança, o indivíduo estará motivado a viver cada momento ao máximo. O “absurdista” não é guiado por moralidade alguma, mas ao invés disso, pela sua própria integridade soberana. O “absurdista” é, de fato, amoral, porém não necessariamente imoral. Moralidade implica um firme senso definitivo de certo e errado. Enquanto que a integridade implica honestidade consigo mesmo e, consistência nas motivações subjacentes das ações e decisões do indivíduo. Michel Foucault alcançou em vida o senso definitivo de verdade. A moralidade íntegra, sem culpa, motivada pelas decisões que a soberania individual carrega. A consciência plena em seu ersatz individual e coletivo. 

Bibliografia geral consultada.
PAIM, Antônio, Liberdade Acadêmica e Opção Totalitária – Um Debate Memorável. Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1979; FOUCAULT, Michel, Arqueologia do Saber. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 1971; Idem, El Orden del Discurso. Barcelona: Ediciones Tusquets, 1973; Idem, Hermeneutica del Sujeto. Madrid: Ediciones de la Piqueta, 1987; RODRIGUES, Mavi, Michel Foucault sem Espelhos: Um Pensador Proto Pós-Moderno. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. Escola de Serviço Social. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006; BACH, Augusto, Michel Foucault e a História Arqueológica. Tese de Doutorado em Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2006; RIBEIRO, Carlos Eduardo, Foucault: Uma Arqueologia Política dos Saberes. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Departamento de Filosofia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009; BENEVIDES, Pablo Severiano, O Dispositivo da Verdade: Uma Análise a partir do Pensamento de Michel Foucault. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2013; FERREIRA, Adelino Alcides Abrunhosa, Cuidado de Si e Metanoia em Michel Foucault. Tese de Doutoramento em Filosofia Moral e Política. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2015;  MOURA BERGAMO, Thelma Maria de, Michel Foucault e os Mestres do Dizer Verdadeiro. Tese Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Faculdade de Educação. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2015; entre outros.
______________
 
* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Michael Oakeshott – Juizo & Conservadorismo Lúcido do Século XX.

                                                                                      Ubiracy de Souza Braga   

Il a exercé une influence notable dans la montée du thatchérisme au Royaume-Uni”. Guy Sorman
                                    
             
Michael Joseph Oakeshott é reconhecido socialmente como o escritor e filósofo mais desconcertante e original significativamente desde o pragmatismo de Ludwig Wittgenstein. Os sábios eram pensadores de fora do ambiente filosófico acadêmico cuja obra Wittgenstein lera ainda bem moço, como Karl Kraus, o “feroz crítico” da cultura e da linguagem do final do Império Habsburgo que lhe causou forte impressão, por sua insistência na integridade pessoal. A obra de Kraus inseria-se no contexto da chamada “crise da linguagem”, quando a preocupação geral era a autenticidade da expressão simbólica na arte e na vida pública. Outra expressão dessa crise foi a crítica da linguagem de Mauthner, autor que perseguiu uma meta kantiana, a derrota da especulação metafísica, substituindo a “crítica da razão” por uma “crítica da linguagem”, sendo sua obra mais tributária de David Hume e de Ernest Mach. Seu método era psicologista e historicista: a crítica da linguagem faz parte da psicologia social. O conteúdo de sentido da crítica era empirista – a linguagem fundamenta-se nas sensações. Seu resultado foi cético – a razão idêntica à linguagem. Mas esta última não serve para penetrar no âmago da realidade. Wittgenstein, acertadamente, opõe sua própria “crítica [lógica] da linguagem” à de Fritz Mauthner, quem primeiro identificou a filosofia com a crítica da linguagem. Oakeshott é um filósofo britânico, falecido em 1990, e que durante as décadas de 1950 e 1960 exerceu a cátedra de Ciência Política na prestigiosa London School of Economics (LSE), tendo sido o sucessor inglês de Harold Laski (1893-1950). Autor de trabalhos que versam sobre os mais diversos aspectos do conhecimento, e em particular o conservadorismo, é geralmente “enquadrado” como um dos mais proeminentes pensadores conservadores do século XX. Em sua vida acadêmica, publicou relativamente pouco. 
Além de alguns artigos e pequenos ensaios, constam essencialmente quatro livros: “Experience and its modes” (1933), “On human conduct” (1975), “On History” (1983) e “Rationalism in politics and other essas” (1962), sem dúvida a principal obra de divulgação de seu pensamento, conjunturalmente não poderia ser taxada de outra forma, como de caráter pessimista, tradicionalista, burkeano, uma ideologia política que defende a manutenção das instituições tradicionais no contexto da cultura, da política e da civilização refletindo o pensamento conservador. O conservadorismo é uma influente corrente de pensamento político burguês contemporâneo surgida na Inglaterra, no final do século XVIII, através da atividade política do conservador Whig Edmund Burke, como uma reação à Revolução Francesa, cujas utopias sociais resultaram imediatamente em instabilidade política e crise social na França. O pensamento conservador expandiu-se pelo mundo principalmente após o período do Terror jacobino, que, durante o auge da Revolução, causou a morte de 35 mil a 40 mil pessoas. O termo conservador denota a adesão a princípios e valores atemporais, que devem ser conservados a despeito de toda mudança histórica, quando mais não seja porque somente neles e por eles a história adquire uma forma inteligível (cf. Henkel; Lembcke, 2013). Por exemplo, a noção de uma ordem divina do cosmos ou a de uma natureza humana universal e permanente.  
O conservadorismo é um freio às ambições prometeicas do movimento revolucionário e, mais genericamente, sem exceção dos governantes. O conservadorismo britânico deriva largamente de Edmund Burke e principalmente da sua obra “Reflexões sobre a Revolução na França” (1790), onde este defende que as constituições não devem ser o produto da razão abstrata (como as francesas), mas sim de uma lenta evolução histórica (como a constituição inglesa), considerando a sociedade como sendo não apenas um contrato entre os vivos, “mas entre os vivos, os mortos e os que estão por nascer”. Contra a Liberdade proclamada pela Revolução como um absoluto, Burke faz a defesa das liberdades, das prerrogativas particulares e tradicionais dos diversos grupos sociais e locais, que se equilibravam mutuamente na ordem pré-revolucionária. Ao contrário de Burke, outros parlamentares whigs, como Charles James Fox, tomaram o partido da Revolução Francesa, acabando as ideias das Reflexões por serem mais aceites entre os Tories. Durante o século XIX, o conservadorismo britânico, inspirado por pensadores conspícuos como Samuel Coleridge, Thomas Carlyle, Henry Maine, etc. desenvolve-se como o partido político de representação da aristocracia tradicional, em volta de temas como a desconfiança em face da democracia, a defesa da Câmara dos Lordes e uma certa nostalgia pela Inglaterra pré-industrial.
                    

            Um juízo de valor representa um juízo sobre a correção ou incorreção de algo, ou da utilidade de algo, baseado num ponto de vista pessoal ou subjetivo. Como generalização, um juízo de valor pode referir-se a um julgamento baseado num conjunto particular de valores ou num sistema de valores determinado. Um significado conexo de juízo de valor é o juízo de um recurso de avaliação baseado nas informações limitadas disponíveis, uma avaliação efetuada porque uma decisão deve ser tomada independentemente de estar em função da utilidade, da estética, da moral, ou de qualquer outro critério valorativo. A expressão juízo de valor pode ser usada num sentido positivo; significando que um julgamento deve ser feito levando em conta um sistema de valores, ou, num sentido depreciativo, significando um julgamento realizado de um ponto de vista pessoal, em vez da proposição de um pensamento racional, objetivo. Neste sentido positivo, a recomendação socialmente ao se fazer um juízo de valor, é que se considere cuidadosamente para evitar arbitrariedades e impetuosidade, e buscar consonância com as convicções mais profundas que se tenha sobre a realidade. Em seu sentido depreciativo, a expressão juízo de valor implica uma conclusão que é isolada, parcial e não objetiva — contrastando com julgamentos baseados em deliberação, equilíbrio e racionalidade.

Um juízo de valor também pode referir-se a uma tentativa de julgamento baseada numa avaliação estudada das informações disponíveis, tomadas como sendo incompletas e em evolução; por exemplo, um juízo de valor sobre lançar ou não um ataque militar ou como proceder numa emergência médica. Neste caso, a qualidade do julgamento sofre porque a informação disponível é incompleta como resultado da urgência, em vez de ser resultante de limitações culturais ou pessoais. Mais comumente, a expressão juízo de valor refere-se a uma opinião individual. De fato, a opinião de um indivíduo é formada até certo ponto por seu sistema de crenças e a cultura à qual ele pertença. Assim, uma extensão natural da expressão juízo de valor é incluir declarações que parecem ser de mão única em um determinado sistema de valores, mas que podem ser vistas de forma diferente em outro. Conceitualmente, esta extensão da definição relaciona-se tanto ao axioma antropológico de “relativismo cultural”, isto é, que o sentido cultural deriva do contexto quanto à expressão “relativismo moral”, isto é, que as proposições de moral e ética não são verdades universais, mas brotam do contexto cultural.

No sentido pejorativo, um juízo de valor formado dentro de um sistema social de valores específico pode ser “paroquial” e estar sujeito a questionamentos junto a audiências mais amplas. Entretanto, um julgamento pessoal é uma expressão descrevendo uma decisão tomada entre alternativas que não são claramente certas ou erradas, e que assim deve ser tomada numa base pessoal. Valor neutro é um adjetivo conexo que sugere independência de um sistema de valores. Por exemplo, a classificação de um objeto depende do contexto: ele é uma ferramenta ou uma arma, um artefato ou um antecedente? O objeto em si pode ser considerado aparentemente de valor neutro, não sendo nem bom nem mau, nem útil nem inútil, nem significativo nem trivial, até que seja colocado em algum contexto inscrito nos níveis de análise social, tanto quanto econômico ou político. Para uma discussão sobre o valor “neutro” da tecnologia, estranhamente, um item também pode ter um valor que pode ser neutro na medida em que sua utilidade se uso social, ou importância são evidentes, independentemente do contexto social; por exemplo, oxigênio.

Alguns autores argumentam hic et nunc que a objetividade verdadeira do conhecimento é impossível, e que mesmo as mais rigorosas análises racionais se fundamentam no conjunto dos valores aceitos no curso da análise. Consequentemente, todas as conclusões são necessariamente juízos de valor e logo, talvez suspeitas. De fato, por todas as conclusões numa única categoria nada faz para distinguir entre elas e é, portanto, um descritor inútil exceto como um dispositivo retórico pensado para desacreditar uma posição através dum apelo a autoridade. Como exemplo de um ponto de vista mais sutil, "verdades" científicas são consideradas objetivas, mas são mantidas empiricamente, com a compreensão de que evidências mais cuidadosas e/ou experiências mais amplas possam mudar os fatos. Além disso, uma opinião científica, no sentido de uma conclusão baseada num sistema de valores, é um juízo de valor baseado em avaliação rigorosa e amplo consenso. Com este exemplo em mente, caracterizar uma opinião como um juízo de valor é vago sem a descrição do contexto que a cerca. Todavia, como notado no primeiro segmento deste artigo, no uso comum, a expressão juízo de valor possui um significado mais simples, com o contexto simplesmente implicado, não especificado.

No entanto, sob a liderança de Benjamin Disraeli moderniza-se, adotando os princípios democráticos e passando a ter como escopo político a defesa do Império como grande bandeira, contra a desconfiança dos liberais perante a expansão colonial. Disraeli, que concedeu o direito de voto aos operários urbanos, tentou dar um carácter social ao conservadorismo e torná-lo numa aliança entre a aristocracia e as chamadas classes populares. Nas primeiras décadas do século XX, os conservadores têm como referência esses princípios - defesa da unidade do Império, oposição à autonomia irlandesa que levou muitos liberais unionistas, como Joseph Chamberlain, a se juntarem ao Partido Conservador, uma politica comercial protecionista favorecendo o comércio com as colônias, etc., a que se junta uma posição antissocialista, à medida que o Partido Trabalhista e o movimento sindical vão ganhando força no âmbito da política global.
Para os conservadores, as melhores instituições sociais e politicas não são aquelas que são inventadas pela razão humana, como fora defendido pelo chamado racionalismo político, mas sim as que resultam de um lento processo de crescimento e evolução ao longo do tempo, empiricamente como a não escrita constituição inglesa face às Constituições promulgadas pelos revolucionários franceses. Não acreditando na ideia de “bondade natural do Homem”, os conservadores consideram que são os constrangimentos introduzidos pelos hábitos e tradições que permitem o funcionamento das sociedades, pelo que qualquer regime duradouro e estável só poderá funcionar se assente nas tradições sociais. Assim, para os conservadores não faz sentido elaborar projetos universais do ponto de vista de uma sociedade ideal - não só tal sociedade será inatingível devido ao que acreditem ser a imperfeição intrínseca da natureza humana. Mas, devido a diferentes povos terem diferentes histórias, sociais, políticas e de costumes referendando suas tradições, o modelo social mais adequado a um povo não será o mais apropriado a outro - criticando de seu ponto de vista político conservador os revolucionários franceses.
Após sua morte, em 1990, surge no cenário acadêmico norte-americano e britânico uma série de importantes trabalhos acadêmicos buscando resgatar o pensamento de Michael Oakeshott. Um fato considerável é a organização e publicação de inúmeros manuscritos, ensaios e anotações de aulas proferidas na London School of Economics and Political Science, ou simplesmente London School of Economics - LSE. Nesse sentido, o presente trabalho tem como objeto a análise de uma dessas obras póstumas, o livro: “The Politics of Faith and The Politics of Scepticism”. Elaborado após a 2ª guerra mundial e completada provavelmente em 1952, a obra delineia uma diferenciação entre dois modos ou estilos da atividade de governar: a política de fé e a política de ceticismo.  Neste sentido, apolítica não conhece nada acerca de necessidades genuínas. Não há nada no mundo da política que não provenha da atividade humana, embora haja muita coisa que não seja consequência do desígnio humano. Por isso, ao estudar as atividades políticas do governo, Oakeshott considera que as ações sociais concretizadas tornam-se distintas em análise comparada, tendo em vista que não é porque a intenção é diferente, mas porque elas pertencem a outro contexto no qual tem-se estas atividades.

No pensamento deste autor existem sempre dois ingredientes fundamentais no conhecimento que são o informar e o julgar, portanto, o legado que os professores ensinam é sempre composto por uma síntese destes dois fatores. Informação e julgamento são dois modos de comunicação e não constituem partes separadas pertencentes a processos diferentes. De acordo com Oakeshott, estes dois ingredientes do processo de compreensão e apropriação do conhecimento “emergem da dialética ensinar e aprender”. Há faculdades que dependem da informação e faculdades que dependem do julgamento. A informação é impessoal, baseada em fatos e pode ser encontrada em manuais e dicionários e enciclopédias; constitui-se como “peça informativa” ou como “conjunto de fatos”. Poderíamos resumir dizendo que a informação é o “o quê” e o julgamento ou juízo é o “como ou o porquê”. A principal diferença entre o julgamento e a informação adquirida reside neste fato: “o juízo é uma informação de outro tipo e nunca pode ser itemizada”. Assim, todo o ensino e, consequentemente, toda a aprendizagem têm estas duas componentes essenciais, a componente da informação designada como instrução e a componente do juízo designada como partilha.
Na busca por compreender esse contexto político é que surge o livro: The Politics of Faith and the Politics of Scepticism (1996). O argumento principal da obra é que os governos europeus, desde o século XV, convivem com diferentes modos ou estilos de política, os quais ele denominou (I) “políticas de fé” (“politics of Faith”) e (II) “políticas de ceticismo” (“politics of scepticism”). Tais formas são expressões que resultam de dois polos extremos nos quais é empreendida a atividade de governar. Enquanto extremos, são construções ideais. Dificilmente encontradas em sua forma pura, aproximando-se da idealidade típica do constructo weberiano, constituem-se mais em tendências do que em “teorias” ou doutrinas propriamente ditas. A política de fé é o modo de representação de um estilo de governar caracterizado pela incessante busca pela perfeição da humanidade. Conforme Oakeshott há um grande otimismo cósmico que, derivado não da observação, mas da inferência da perfeição do seu criador, atribui uma indiscutível perfeição do universo. Essa ideia de “perfeição” (ou “salvação”) consiste na busca de uma visão compreensiva de bem seja religiosa, econômica, filosófica, moral, etc. a ser alcançada pela vivência no mundo social e político. 
Porém não como uma tipologia do caráter humano, mas no sentido que empregou historicamente o florentino Maquiavel, como uma condição mundana das circunstâncias humanas. De modo mais simples, “perfeição” é mudança para melhor, pode significar tanto o caminho específico a ser aprimorado quanto a direção geral pela qual deve a atividade humana deve ser guiada, assim pouco importando o caminho. Foi porque Maquiavel percebeu que qualquer conselho positivo para lidar com problemas políticos era suscetível de ser contrariado por uma alusão pessimista à fortuna, que ele resolveu dedicar a esse tema o penúltimo capítulo de “Il Principe”, livro escrito por Nicolau Maquiavel em 10 de dezembro de 1513, cuja 1ª edição foi publicada postumamente, em 1532. Ele próprio aceitou que a “Fortuna” era o árbitro de metade das ações dos homens, mas sublinhou que isso não deveria levar ao derrotismo. Em duas memoráveis imagens, comparou a fortuna a um rio cujas águas caudalosas podem ser inofensivamente desviadas por diques e canais de drenagem precavidos, e a uma mulher que, sendo mulher, pode ser domada pelo ardor e a violência: “sou de parecer de que é melhor ser ousado do que prudente, pois a fortuna (oportunidade) é mulher e, para conservá-la submissa, é necessário (…) contrariá-la. Vê-se, que prefere, não raramente, deixar-se vender pelos ousados do que pelos que agem friamente. Por isso é sempre amiga dos jovens, visto terem eles menos respeito e mais ferocidade e subjugarem-na com mais audácia” (cf. Maquiavel, 2004).
O agente responsável para assegurar a perfeição é o Estado.  Se utópico ou se visa a aprimorar a sociedade em apenas em um determinado rumo, tal estilo sustenta que somente o poder humano pode atingi-lo; destarte, não apenas busca, mas supervaloriza este poder, deixando a cargo do governo uma competência quase ilimitada para conduzir a sociedade. Consequentemente, o estilo requer uma dupla confiança: a convicção de que o poder necessário é disponível ou pode ser gerado e uma convicção que, mesmo que não se saiba exatamente o que constitui a perfeição, ao menos se sabe o caminho a ser percorrido. Parece claro que o papel do Estado, não é neutro e assume uma visão substantiva, em vista da reprodução da esfera política da atividade humana. Assim, torna-se o instrumento para alcançar a verdade, concebida a partir de uma visão particular do conservador, exige dos cidadãos não apenas a obediência ou a submissão, mas principalmente entusiasmo e engajamento para a concretização desta finalidade. - “Os inimigos do regime serão identificados não como meros dissidentes a serem inibidos, mas como descrentes a serem convertidos. Mera obediência não é suficiente; deve ser acompanhada pelo fervor. Na verdade, se o sujeito não é entusiasta com o governo, não há nenhum objeto legítimo de devoção; se ele é devotado à “perfeição”, ele deve ser devotado ao governo”. Daí a analogia do conceito descrito na obra: “On Human Conduct”, a política de fé encara ideologicamente a sociedade contemporânea como uma associação empreendedora (“enterprise association”).
Neste modo de associação, os agentes estão interligados a partir de um propósito comum substantivo, reconhecido como uma condição exequível pelos homens. Esse engajamento tem por escopo direcionar a conduta humana a partir de ações que estejam meticulosamente relacionadas para administrar e maximizar o propósito desejado. As eventuais regras emitidas são meramente instrumentais e, por si só, não definem e nem identificam a associação. Destaca algumas conclusões para a política de fé. Em primeiro lugar, ela não é uma invenção que surgiu nos últimos séculos contra um período de negligência ou indiferença governamental. Tampouco foi um fruto da revolução industrial ou da democracia liberal. Deve ser compreendida num contexto histórico de legitimação e idealização do governo como operador racional da atividade humana.
Em segundo lugar, não é identificada com nenhum movimento, partido ou causa no mundo moderno. Há representantes desse estilo de política em todo campo, todo partido, cada momento e entre advogados de toda causa. Em terceiro lugar, a política de fé não é, e nunca foi, o único estilo de política que surgiu na história moderna. Essa impressão é causada especialmente pelo sucesso deste estilo especialmente a partir do século XVII. Finalmente, a política de fé é subentendida como política da imortalidade. Dá atenção excessiva ao futuro e se esquece do passado. Ao conduzir a conduta humana para um determinado fim, transmite a idéia de que a própria história possui um sentido. Em seu livro de memórias: “Neoconservatism: The Autobiography of an Idea”, Irving Kristol afirma que decidiu não publicar o ensaio: “On Being Conservative” na revista The Public Interest justamente pelo caráter irremediavelmente secular do texto, o que estaria em desacordo com o elemento religioso presente na sociedade norte-americana.
Enfim, no seu ensaio: “Rationalism in Politics” (1991) o autor volta ao assunto dizendo-nos que há dois tipos de conhecimento: o conhecimento técnico e o conhecimento prático. O conhecimento técnico pode ser formulado através de regras e aprendido nos livros (informação). O conhecimento prático só pode ser aprendido com um mestre porque não pode ser formulado em regras e constitui-se, muitas vezes, como matéria de opinião (julgamento). O conhecimento prático só pode ser adquirido através da mestria porque é impreciso. Um dos problemas centrais da modernidade consiste no fato de “haver uma soberania da razão, uma soberania da técnica, porque o racionalismo e os racionalistas aspiram à certeza, apesar de esta aspiração não ser mais do que uma ilusão”. Tendem a rejeitar a imprecisão e tudo deve passar-se como está descrito nos livros. A mestria passa a ser olhada com desconfiança devido à sua imprecisão. O racionalista argumenta Oakeshott, “always stands”, quer dizer, é sempre a favor de alguma coisa ou contra alguma coisa. As circunstâncias sociais do mundo moderno fazem do racionalista um ser eminentemente contencioso: - “Ele é o inimigo da autoridade, do preconceito, do simplesmente tradicional, costumeiro ou habitual”.
Mas como toda a atividade humana tende a ser reduzida a problemas de ordem sociológica, concluiríamos admitindo duas ideias que nos parecem fundamentais para haver um compromisso educativo na interpretação oakeshottiana. Há também uma tentativa de promoção da cultura científica de modo a que os seres humanos se identifiquem a si próprios na sua relação com as coisas e o seu império sobre as coisas. Mas a pedra angular é a ideia de “integração social” que radica no preconceito de que “tudo é social e de que tudo deve ter uma função social”, portanto, a educação seria algo de social. Homogeneizando as diferenças e não tornando através das semelhanças algo de distinto, meritório etc. Esta primazia do “social” torna a educação como um investimento social relacionado com o bem-estar de uma sociedade e as Universidades, segundo Oakeshott transformaram-se “numa indústria de serviços cuja finalidade é a de contribuir para o bem-estar da nação”. Os governos calculam a produtividade das universidades através de análises de custos e benefícios. As últimas décadas mostram-nos que os governos querem transformá-las em “instrumentos de socialização” e submetê-las a propósitos extrínsecos ligados a considerações sociais. Pensam que sabem, mas não sabem o que eles fazem!
Bibliografia geral consultada.                                                                                              
SCHUMPETER, Joseph, Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1961; BACHRACH, Peter, Crítica de la Teoria Elitista de la Democracia. Buenos Aires: Ediciones Amorrotu, 1973; PAREKH, Bhikhu, “The Political Philosophy of Michael Oakeshott”. In: British Journal of Political Science, volume 9, n° 4, pp. 481-506, out. 1979; SORMAN, Guy, La Révolution Conservatrice Américaine. Paris: Editions Fayard, 1983; Idem, L`Amérique dans les Têtes, Fascinations et Aversions. Paris: Editeur Hachette Littérature, 1986; OAKESHOTT, Michael, On Human Conduct. Oxford: Oxford University Press, 1975; Idem, The Voice of Liberal Learning. Indianapolis: Liberty Fundation, 1989; Idem, Rationalism in Politics and other essays. 2ª ed. Indianapolis: Liberty Fundation, 1991; Idem, The Politics of Faith and the Politics of Scepticism. New Haven: Yale University Press, 1996; Maquiavel, Nicolau, O Príncipe. 3ª edição. Trad. Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Martins Fontes, 2004; MARCHIORI NETO, Daniel Lena, Os Fundamentos da Civilidade no Pensamento Conservador de Michael Oakeshott. Programa de Pós-Graduação em Direito. Tese de Doutorado. Centro de Ciências Jurídicas. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2012; MARCHIORI NETO, Daniel Lena, Os Fundamentos da Civilidade no Pensamento Conservador de Michael Oakeshott. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduaçao em Direito. Centro de Ciências Jurídicas. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2012; HENKEL, Michael; LEMBCKE, Oliver (eds.), Praxis und Politik - Michael Oakeshott im Dialog. Tübingen (Mohr Siebeck), 2013; RIBEIRO, Gustavo Cezar, Modos de Soberania e a Questão Contemporânea do Poder. Rio de Janeiro: IESP/UERJ; Université de Paris 1; 2014; CARDOSO, Felipe Gava, Notas sobre o Conservadorismo Político de Michael Oakeshott (1901-1990). In: Teoria & Pesquisa. Revista de Ciência Política. Vol. 24, n° 1, pp. 12-28, jan./jun. 2015; entre outros.  
______________

* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).