quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A Recepção das Ideias Políticas de Marx na América Latina.

                                Ubiracy de Souza Braga*

A história do marxismo na América Latina não pode ser considerada um universo à parte”. Michael Löwy



América, Rufino Tamayo.

A América Latina está localizada na totalidade no hemisfério ocidental, cujas linhas imaginárias que atravessam são: o Trópico de Câncer, pelo qual é cortado o centro do México; o Equador, linha imaginária passada no Brasil, Colômbia, Equador e pelo qual perpassa o norte do Peru e o Trópico de Capricórnio, pelo qual são atravessados o Brasil, o Paraguai, a Argentina e o Chile. A América Latina é um complexo cultural das Américas a qual é distribuída irregularmente pelos hemisférios norte e sul, porque a maioria de suas terras é estendida ao sul da Linha do Equador. Na América Latina são comportadas diversas culturas, porque estão misturadas línguas, etnias e costumes. Há predomínio do espanhol como língua dos países da América Latina, com a invasão e conquista das ilhas do Caribe em 1492, se estendeu rapidamente através da América com os colonos procedentes principalmente de Andaluzia e Extremadura, mas também de outras partes da Espanha, que se estabeleceram ali nos séculos XVI e XVII constituindo-se ao redor de 200.000 pessoas nesses primeiros séculos. Hoje é falado por mais de 370 milhões de latino-americanos, mas também o português, francês e, em certas regiões ao norte do continente, inglês e neerlandês.
Há também muitas e várias de línguas nativas, merecendo destaque o quíchua, legado dos Incas e idioma que se fala no Peru, Equador, Bolívia e Argentina. Línguas românicas oficiais na América Latina: português em laranja; espanhol em verde e francês em azul. A etnia dos habitantes da América Latina tem grande variação de país a país. Apesar da intensidade de mestiços, existem algumas nações em que a maior parte dos  habitantes é branca como a Argentina e Uruguai, outras, ungidas no âmbito do processo civilizatório, onde quase todos os habitantes são de origem negra, como ocorre no Haiti, República Dominicana, Granada, Bahamas e Barbados e outras, onde está fortemente presente na origem continental o  índio: Peru, Bolívia, México, Equador e Paraguai. Existem países mestiços de verdade: Colômbia e Venezuela e demais como o Brasil, no qual são existentes regiões de população com pequeno predomínio de brancos e demais onde é apresentada maior parte de negros, mestiços, mulatos ou índios.


            Tawantinsuyu foi um Estado criado pela civilização Inca, resultado de uma sucessão de civilizações andinas e que se tornou o maior império da América pré-colombiana. A administração política e o centro de forças armadas do império ficavam localizados em Cusco, em quíchua, “Umbigo do Mundo”, no atual Peru. O império surgiu nas terras altas peruanas em algum momento do século XIII. De 1438 até 1533, os incas utilizaram vários métodos, da conquista militar à assimilação pacífica, para incorporar uma grande porção do oeste da América do Sul, centrado na Cordilheira dos Andes, incluindo grande parte do atual Equador e Peru, sul e oeste da Bolívia, noroeste da Argentina, norte do Chile e sul da Colômbia. O nome quíchua do império  Tawantinsuyu, pode ser traduzido como as quatro regiões ou as quatro regiões unidas.                                                   
Antes da reforma ortográfica era escrita em espanhol como Tahuantinsuyo. “Tawantin” é um grupo de quatro partes – “tawa” significa “quatro”, com o sufixo -ntin que nomeia um grupo; “Suyu” significa região ou província. O império foi dividido em quatro “Suyus”, cujos cantos faziam fronteira com a capital, Cusco (“Qosqo”). Darcy Ribeiro considera esse padrão de organização social, que denomina de “império teocrático do regadio”, semelhante aos formados há mais ou menos dois mil anos na região Mesopotâmia ou às civilizações que se desenvolveram na Índia e China mil anos depois e às civilizações Maias e Astecas na Mesoamérica. Esse tipo de formação imperial caracteriza-se pela tecnologia de irrigação (regadio), desenvolvendo sistemas de engenharia hidráulica, agricultura irrigada com exceção talvez dos Maias que apenas possuíam o domínio do transporte das águas, metalurgia do cobre e bronze, técnicas de construção, notação numérica (“quipos”), escrita ideográfica, no caso dos Astecas e técnicas de comunicação. De governo centralizado, a organização social do império Inca é frequentemente comparada àquela idealizada por governos socialistas.


Imigrantes da comunidade boliviana celebram os 190 anos de independência de seu país em uma festa na praça do Memorial da América Latina
                       
Vale lembrar-se do ponto de vista técnico-metodológico, que a recepção das ideias de Marx à América do Sul, tal como a chegada delas à América do Norte, dependeu amplamente, do deslocamento dos imigrantes, que vinham da Europa, atravessavam o Atlântico, para “fazer a América”. Para atender à demanda de mão- de-obra na agricultura em substituição ao modo escravista de produção, e também para promover a diversificação das atividades artesanais e manufatureiras, os governos de diversos países sul-americanos, entre os quais os da Argentina e do Brasil, tomaram medidas destinadas a atrair os imigrantes; e na segunda metade do século passado tais imigrantes acorreram em muitas centenas de milhares. Em sua maioria, não eram socialistas, uns poucos, porém, simpatizavam com seus ideais, aprovavam suas doutrinas. Outros já tinham adquirido experiência em lutas políticas e sociais travadas em seus países de origem e vinham justamente porque suportavam mal a repressão institucionalizada nas sociedades em que tinham vivido. Poucos, entretanto, terão sido aqueles que teriam ouvido falar do Manifesto Comunista de Marx e Engels.
         A teoria do modo de produção asiático (“asiatisches Produktionsweise”) como modo de produção característico das milenares formas de constituição e manutenção da sociedade, bem como primeira forma originária e mais geral de sociedade pós-comunidade primitiva, foi fundamental para a concepção histórica e analítica de Marx, como aparecia também em contraposição mais evidente em relação ao desenvolvimento da história greco-romana ocidental. Suas mais importantes formações econômico-sociais, como a China e a Índia, não se teriam alterado substancialmente mesmo com as grandes invasões de povos bárbaros em passado mais remoto, como os mongóis, os árabes e os hunos. Estes povos, apesar de superiores belicamente a chineses e hindus,  eram culturalmente inferiores a essas grandes civilizações orientais de culturas milenares. O que transforma estas analogias em relação dinâmica de afinidade eletiva é uma conjuntura histórica determinada, uma constelação peculiar de eventos que se dá a partir do final dos anos 1950. Por um lado trata-se de uma conjuntura mundial: a crise e renovação teológica do catolicismo europeu no pós-guerra, a eleição de João XXIII em 1958 e sua convocação de um novo Concílio, visando o aggiornamento da doutrina e das práticas da Igreja.
            Paralelamente, se desenvolve uma crise do marxismo institucional, com o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) teve lugar entre 14 e 26 de fevereiro de 1956. Na ocasião, o secretário do Partido, Nikita Khrushchov, com seu célebre discurso secreto, denunciou as violências, as deportações, os expurgos e as limitações à liberdade impostas pelo regime de Stalin, seu predecessor. Durante a sessão a portas fechadas, no último dia do congresso, Kruschev criticou asperamente a política stalinista, denunciando o culto de personalidade e uma série de crimes cometidos por ele e seus colaboradores. Stalin não procurava persuadir com explicações mas impunha suas ideias e exigia uma submissão absoluta, qualquer um que discordasse era demitido de qualquer função diretiva, e em seguida liquidado moralmente e fisicamente, a denúncia do stalinismo. Estes eventos vão criar condições para um relacionamento mais aberto entre cristianismo e marxismo na Europa não irão, com algumas exceções, sobretudo na França, mais além de um diálogo entre dois blocos políticos e culturalmente opostos. É na América Latina que se produzirão as mediações complexas e, ipso facto permitindo um processo muito mais radical de convergência para a ação, e portanto, no poder político ou na organização estrutural de uma sociedade que ocorre em um período relativamente curto no espaço de tempo.

         A conjuntura latino-americana que tem seu ponto de partida neste momento histórico se caracteriza por dois aspectos fundamentais: a) um desenvolvimento acelerado do capitalismo, uma urbanização intensa e uma industrialização rápida (sob a égide do capital norte-americano), que aprofundam as contradições sociais, tanto na cidade como no campo; b) a revolução cubana (1959-60), primeira vitória popular contra o imperialismo na América Latina e primeira revolução socialista no continente-dirigida por forças sociais marxistas de um novo tipo, independentes do comunismo tradicional claramente de inspiração autoritária stalinista. A combinação destes dois processos - um estrutural, econômico-social, e o outro, político e ideológico - terá por resultado o início de uma nova etapa de interpretação teórica na história da América Latina, uma etapa de lutas sociais, movimentos populares, e insurreições, que conhece um novo salto qualitativo com a revolução sandinista e que continua até hoje. Uma etapa que se caracteriza também por uma maior influência e uma renovação do pensamento marxista latino-americano - em particular e não exclusivamente nos meios universitários. É nesta conjuntura que vai se desenvolver, na América Latina, uma relação de afinidade eletiva, em setores da Igreja e de sua base social, entre cristianismo e marxismo.
       Portanto, como categoria definidora dos traços fundamentais tanto destas sociedades orientais antigas, como também na pré-história da própria sociedade greco-romana clássica, o chamado modo de produção asiático, que tem início em 2500 a. C., caracteriza os primeiros Estados surgidos na Ásia Oriental, Índia, China e Egito. Por se tratar da forma mais geral de evolução da sociedade sem classes para a sociedade de classes, esse modo de produção estabeleceu-se em regiões muito diversas, asiáticas e não asiáticas: na China, na Índia e no Egito, mas também na África Negra e nas áreas indígenas da América, entre os Maias, os Astecas e os Incas. A agricultura, base da economia desses Estados, era praticada por comunidades de camponeses vinculados à terra, que não podiam abandonar seu local de trabalho e viviam submetidos a um regime de trabalho compulsório ainda existente. Historicamente, esses camponeses ou aldeões tinham acesso à coletividade das terras de sua comunidade, ou seja, pelo fato de pertencerem a tal comunidade, eles tinham o direito e o dever de cultivar as terras desta.   A Teologia da Libertação - isto é, o conjunto representativo de escritos publicados a partir de 1971, por Gustavo Gutierrez, Hugo Assmann, Pablo Richard, Leonardo e Clodovis Boff, Enrique Dussel, Frei Betto e outros - recolhe esta intuição e a coloca no centro de sua reinterpretação do Evangelho, de sua nova hermenêutica do Antigo Testamento e da mensagem de Cristo, de sua reformulação do magistério da Igreja. Uma reformulação na qual entram aspectos essenciais do marxismo, integrados de forma orgânica e coerente no discurso religioso - em comparação com os documentos da esquerda cristã dos anos 1960. O marxismo apareceu aos olhos dos teólogos da libertação como a única teoria capaz de oferecer uma análise precisa e sistemática das causas da pobreza, e uma proposição precisa e radical do método para sua abolição.        
Obra "Mão", de Oscar Niemeyer, faz parte do acervo do Memorial da América Latina, em São Paulo.

A velha tradição anticapitalista da Igreja, lembra-nos Michael Löwy, entra assim em relação de afinidade eletiva com a análise marxista da exploração capitalista e com a crítica dos marxistas latino-americanos (teoria da dependência) ao capitalismo dependente como fundamento estrutural do “subdesenvolvimento”, da miséria e do autoritarismo militar. A solidariedade com o pobre é o ponto de partida deste processo social de elaboração teológica. A grande diferença, a novidade decisiva, o salto qualitativo em relação à concepção católica tradicional do pobre, é que este já não é considerado como “vítima passiva, objeto de caridade e assistência, mas sim como sujeito de sua própria libertação”. Graças a esta ruptura - fruto da experiência prática dos cristãos comprometidos no curso das conjunturas históricas dos anos 1960 e 1970, que tem como primícias a problemática de a interpelação da Teologia da Libertação vai convergir com o princípio político fundamental do marxismo: a emancipação dos trabalhadores será a obra dos próprios trabalhadores.
Enfim, a opção prioritária pelos pobres, aprovada pela Conferência dos Bispos Latino-Americanos de Puebla (1979) é, na realidade, uma fórmula de compromisso, interpretada num sentido tradicional e assistencialista pelas correntes mais moderadas ou conservadoras da Igreja católica, e num sentido radical pelos teólogos da libertação e as correntes mais avançadas do clero: como um engajamento na organização e na luta dos pobres e despossuídos por sua própria libertação. A luta de classes - não só como método de análise da realidade, mas também como guia para a ação - se torna assim um elemento central (implícito ou explícito) na nova teologia. Como escreveu Gustavo Gutierrez: “negar o fato da luta de classes é, na realidade, tomar partido em favor dos setores dominantes. A neutralidade neste assunto é impossível” (cf. Galeano, 1971; Mariátegui, 1974; Löwy, 1980; 1989). De qualquer forma, para o método marxista, o essencial é o que se passa na realidade. Enquanto processo de convergência por afinidade eletiva, esta relação se refere também a certos valores (comunitários), a certas opções ético-políticas (a solidariedade com os pobres), a utopias do futuro (uma sociedade sem exploração nem opressão). E na medida em que a teologia da libertação é a expressão de uma práxis social, de um movimento social e de uma experiência ativa, seu encontro com o marxismo se dá no terreno do compromisso prático com as lutas populares de libertação.

Bibliografia geral consultada.

ARICÓ, José, “Mariátegui y los Orígenes del Marxismo Latino-americano”. In: Cuadernos de Pasado y Presente 60. México: Siglo XXI Editores, 1978; ZEA, Leopoldo, “Visión de Marx sobre América Latina”. In: Nueva Sociedad, n° 55, pp. 59-66, 1983; LÖWY, Michael, Le Marxisme en Amérique Latine de 1909 à nos Jours: Antolologié. Paris: Éditions Maspero, 1980; Idem, “Marxismo e Cristianismo na América Latina”. In: Lua Nova, n° 19. São Paulo, novembro de 1989; KONDER, Leandro, A Derrota da Dialética: A Recepção das Ideias de Marx no Brasil até o começo dos anos 30. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: Editor Campus, 1988; BOSI, Alfredo, “A Vanguarda Enraizada: O Marxismo Vivo de Mariátegui”. In: Estudos Avançados. São Paulo, n° 8, vol. 4, 1990;  PEREIRA, Diana Araújo, A Palavra Poética: Magia e Revolução na Cartografia  Latino-americana. Tese de Doutorado. Programa  de Pós-Graduação da Faculdade de Letras. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007; ÁVILA-SANTAMARÍA, Ramiro, El Neoconstitucionalismo Transformador: El Estado y el Derecho en la Constitución de 2008. Quito: Editor Abya-Yala, 2011; WOLKMER, Antônio Carlos; FAGUNDES, Lucas Machado, “Tendências Contemporâneas do Constitucionalismo Latino-americano: Estado Plurinacional e Pluralismo jurídico”. In: Pensar. Fortaleza, vol. 16, nº 2, pp. 371-408, jul./dez. 2011;  LEONEL JÚNIOR, Gladstone, “Do Sujeito Revolucionário Europeu ao Ator Coletivo da Hiperpotentia Latino-americana: Para a Construção de uma Nova Hegemonia Político-jurídica na América Latina”. In: Congresso ALAS, 29. Santiago, 2013. Anais... Crisis y Emergencias Sociales en America Latina. Santiago: ALAS, 2013; CUNHA FILHO, Clayton Mendonça, A Construção do Horizonte Plurinacional: Liberalismo, Indianismo e Nacional-popular na Formação do Estado Boliviano. Tese de Doutorado em Ciência Política. Instituto de Estudos Sociais e Políticos. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2015; entre outros.
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará (UECE).   

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