terça-feira, 17 de novembro de 2015

Amarildo – Pedreiro-Símbolo & Práticas de Extermínio Contemporâneo.

Giuliane de Alencar & Ubiracy de Souza Braga
               
Os poetas vêm, uma vez mais, confirmar a psicanálise das lendas”. Gilbert Durand

                                                                 
Segundo dados oficiais do Censo de 2010, coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem 763 favelas na cidade. Cerca de dois nonos ou 22% da população da cidade do Rio de Janeiro mora em favelas, sendo a capital fluminense o município com o maior número de moradores favelados do Brasil, 1.393.314 habitantes. Em sua região metropolitana, 1.702.073 de pessoas moram em “assentamentos subnormais”, a definição do governo para classificar as favelas, o que corresponde a 14,4% da população da metrópole. As favelas cariocas possuem aspectos que as diferenciam das do resto do Brasil, com as de São Paulo. No Rio de Janeiro, esse tipo de assentamento urbano é mais populoso, predominando favelas com mais de mil domicílios, além do surgimento dos “complexos de favelas”, que são aglomerados de vários assentamentos subnormais próximos por se conurbar, um problema não raro no restante do país. Outra característica das favelas cariocas é a sua proximidade de áreas nobres e centrais, no processo civilizatório o que cria um forte contraste social.
O desaparecimento de pessoas, em grande parte relacionada ao tráfico humano, foi um assunto que preocupou autoridades em 2012, com mobilizações principalmente na esfera estadual e municipal. Quem informa a quem? Amarildo virou um símbolo de desaparecimentos não esclarecidos pela polícia militar do Rio de Janeiro. A campanha “Onde está o Amarildo?” iniciada nas redes sociais e em especial pela rede social Facebook, com o apoio de movimentos sociais como o “Rio de Paz”, as “Mães de Maio” e da “Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência”, aparentemente não têm obtido resultados. Foram organizados atos públicos por moradores da Rocinha, contando com a participação da sociedade civil. A repercussão política e ideológica aumentou e artistas e “rap” como o carioca MV Bill, e os bahianos Wagner Moura e o laureado Caetano Veloso manifestaram-se publicamente, assim como a Comissão da Verdade fluminense. O desaparecimento também alcançou a divisão internacional do crime, comparativamente, envolvendo a atuação prática da Anistia Internacional ao jornal britânico Financial Times. O então governador Sergio Cabral do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) do Rio de Janeiro, prometeu mobilizar todo o governo para encontrá-lo, presumivelmente tendo como o apoio social o programa nacional de proteção à testemunha. Nada!    

      
            Considerada oficialmente a 1ª favela do Rio de Janeiro, o Morro da Providência, que fica atrás da estação ferroviária Central do Brasil, foi batizado no final do século 19 como “Morro da Favela”, daí também a origem do nome (substantivo) que se espalhou depois por outras ditas “comunidades carentes”, na falta de melhor expressão, do Rio de Janeiro e do Brasil. Os primeiros moradores do Morro da Favela eram ex-combatentes da Guerra de Canudos, confronto entre o exército brasileiro e os integrantes de um movimento popular de fundo sociorreligioso liderado por Antônio Conselheiro, que durou de 1896 a 1897, então na comunidade de Canudos, no interior do estado da Bahia, no nordeste do Brasil e se fixaram no local por volta de 1897. Cerca de 10 mil soldados foram para o Rio com a promessa do Governo de ganhar casas na então capital  federal. Como os entraves políticos e burocráticos atrasaram a construção dos alojamentos, os ex-combatentes passaram a ocupar provisoriamente as encostas do morro – e por lá acabaram ficando. Ipso facto, tanto a origem do nome Favela quanto Providência remete à Guerra de Canudos, travada entre as tropas republicanas e seguidores de Antônio Conselheiro no sertão baiano. Favela era o nome do morro que ficava nas proximidades de Canudos e serviu de base e acampamento para os soldados republicanos. Faveleiro é também o nome de um arbusto típico do sertão nordestino.
O então jornalista e escritor Euclides da Cunha (1866-1909) descreveu assim o morro da Favela no seu livro Os Sertões, sobre a Guerra de Canudos: - “O monte da Favela, ao sul, empolava-se mais alto, tendo no sopé, fronteiro à praça, alguns pés de quixabeiras, agrupados em horto selvagem. À meia encosta via-se solitária, em ruínas, a antiga casa da fazenda (…). O arraial, adiante e embaixo, erigia-se no mesmo solo perturbado. Mas vistos daquele ponto, de permeio a distância suavisando-lhes as encostas e aplainando-os… davam-lhe a ilusão de uma planície ondulante e grande” (cf. Cunha, 1929). A pesquisadora Sônia Zylberberg, autora de “Morro da Providência: Memórias da Favella”, no entanto, não acredita nessa hipótese. O solo do morro carioca é diferente do encontrado no sertão baiano. Já a antropóloga Alba Zaluar lembra que “na virada do século já existiam barracos parecidos com os da Favela em outros morros do Rio de Janeiro”. O nome Favela comorta um sentido e significado que “continua a ser usado desde sempre e até hoje por moradores antigos”. A primeira Associação de Moradores foi fundada nos anos 1960. Adota em seus estatutos o nome oficial de Associação Pró-Melhoramento do Morro da Favela. Não há nada igual em toda a história da civilização ocidental.
          Morador desde que nasceu na favela na Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro, Amarildo Dias de Souza nascido em 1965/1966 é um ajudante de pedreiro brasileiro. Ficou reconhecido internacionalmente pelo crime estatal  de seu desaparecimento, desde o dia 14 de julho de 2013, após ter sido detido por policiais militares e conduzido da porta de sua casa, na Favela da Rocinha, em direção à sede da Unidade de Polícia Pacificadora do bairro. Portanto, é um caso posterior à Lei nº 12.527/2011 que regulamenta o direito constitucional de obter informações públicas. Essa norma entrou em vigor em 16 de maio de 2012 e criou mecanismos que possibilitam a qualquer pessoa, física ou jurídica, sem necessidade de apresentar motivo, o recebimento de informações públicas dos órgãos e entidades. A Lei vale para os três Poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, inclusive aos Tribunais de Conta e Ministério Público. Entidades privadas sem fins lucrativos também são obrigadas a dar publicidade a informações referentes ao recebimento e à destinação dos recursos públicos por elas recebidos. No Governo Federal, a Lei de Acesso à Informação foi regulamentada pelo Decreto nº 7.724/2012. Seu desaparecimento tornou-se símbolo de casos de desaparecimento que envolve abuso de autoridade pública e violência policial. Os principais suspeitos no desaparecimento de Amarildo são da própria corporação policial do Rio de Janeiro.   
É neste sentido que antropologicamente falando, é interessante confrontar este processo de dupla negação eufemizante com o processo freudiano da “Verneinung”, termo que J. Hyppolite traduz por “dénégation”. Processo que consiste no fato de que a negação da linguagem traduz uma afirmação do sentimento íntimo: “Apresentar o que se é no modo de não o ser”. Esta função de denegação é muito próxima da “Aufhebung” que fundamenta a dialética hegeliana. Acrescentaremos que a dupla negação manifesta um progresso na aceitação do recalcado. A denegação não passa de um tímido esboço da negação dupla. A denegação é o meio-termo psicológico entre a total negação do regime antitético e a dupla negação do regime antífrase. Hyppolite observou muito bem que a “negação da negação” era o aperfeiçoamento “intelectual”, representativo da negação. A antífrase já não se contenta com uma censura que apenas filtre a expressão e recalque o afeto, exige agora um acordo pleno entre o significante e o significado.
A Rocinha é uma favela histórica, localizada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Destaca-se por ser a favela mais importante do país, contando com cerca de 70 mil habitantes. A região passou a ser considerado um bairro e foram delimitados pela Lei nº 1995 de 18 de junho de 1993, com alterações nos limites dos bairros da Gávea; Vidigal e São Conrado. A favela se localiza entre os bairros nobres da Gávea e São Conrado; dois bairros com o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial urbana mais alta da cidade. A proximidade entre as residências da classe média alta desses dois bairros e os pobres trabalhadores da Rocinha marca um profundo antagonismo urbano na paisagem da região, que é frequentemente citado “como símbolo da desigualdade econômica e social do Brasil”. Seu IDH – Índice de Desenvolvimento Humano, no ano 2000, era de 0,732, o 120º entre 126 regiões analisadas na cidade do Rio de Janeiro.
Os motivos que levam o ser humano a desaparecer são diversos e variam conforme a faixa etária. O número de casos de desaparecimento de pessoas no país é muito maior do que estimam o governo e entidades civis organizadas. Um levantamento inédito feito pelo jornal O Globo, em 19 estados, para identificar o problema revelou números alarmantes: em 2011, uma  (1) pessoa desaparece no Brasil em média a cada 11 minutos. Foram 141 por dia e ao todo com 51.703 mil casos registrados em delegacias de polícia. Para as estimativas oficiais eles seriam cerca de 40 mil por ano. Uma ideia em torno de como o assunto tem sido tratado pelo governo nessa área ocorrida em 2002, com a criação de um site para divulgar fotos e dados de desaparecidos. A página não é atualizada há pelo menos dois anos, e neste período identificava cerca de 560 casos. O caso do pedreiro Amarildo de Souza desaparecido há um mês após ser abordado por policiais da UPP da Rocinha passou a fazer parte de uma triste rotina no estado. Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) indicam que há, em média, 15 casos por dia de desaparecimentos. Na capital, a média é de seis registros por dia. O assunto foi tema de uma audiência pública ontem na Alerj. Entre 2007 e 2013, a soma dos registros chegou a 34,7 mil no Estado, aproximadamente 41% (14.328) deles na capital.
Na esfera estadual o descaso não é diferente. Oito estados não apresentaram ao jornal O Globo dados estatísticos sobre esse tipo de ocorrência, revelando uma situação de grande descontrole no tratamento social da informação. Foram eles: Ceará, Alagoas, Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe, Paraíba e Rondônia. Isso significa que o número de desaparecidos no país é ainda maior do que os 51.703 - isso sem falar dos casos que não foram ou não puderam ser registrados. Estatísticas confiáveis sobre o índice de casos solucionados não existem. Estima-se que cerca de 80% das pessoas acabam retornando para casa, seja de formas voluntárias ou encontradas. A falta de investigações e de ações integradas dentro dos estados e em âmbito nacional é apontada por entidades ligadas à causa como o principal entrave para a solução dos casos mais complicados. Não é raro uma criança que teve seu desaparecimento registrado pela família na delegacia ficar meses num abrigo público e a polícia desconhecer o seu paradeiro por não haver troca de informações entre o governo. 

O desaparecimento de Amarildo causou grande indignação no Rio de Janeiro ainda quente desde os levantes protagonizados pela juventude nas jornadas de junho de 2015. O trágico sumiço do Amarildo marcou um ponto de inflexão para as UPPs. Após o dia 14 de julho, as unidades da polícia começaram a ser amplamente questionadas, por serem as responsáveis de “recuperar o orgulho carioca” ou do ganho de cidadania para as favelas, mas passaram a representar a repressão sistemática e cotidiana nos morros e comunidades desde sua implantação aumentou em 50% o número de desaparecimentos na cidade agora “pacificada”. O caso envolveu tentativas de acobertar a responsabilidade da polícia. Desde as primeiras versões que buscavam associar o pedreiro ao tráfico, à suposta “falha” dos GPS das viaturas, ao pagamento da polícia a moradores para darem falsos testemunhos. 

Neste período passado dois anos, o jornal O Globo traz a notícia que duas testemunhas do caso também foram desaparecidas. Justamente as testemunhas que haviam sido compradas para dar falsa versão dos fatos sociais e políticos depois denunciariam que a polícia tinha as compradas, “misteriosamente” também sumiram. O Ministério Público vai abrir investigação para saber o que o Batalhão de Operações Especiais estava fazendo na Rocinha na noite em que o ajudante de pedreiro Amarildo de Souza desapareceu, em 14 de julho de 2013, após ter acesso e analisar novas imagens de uma câmera de segurança instalada nas proximidades da comunidade. Dez homens da corporação serão investigados. As informações foram exibidas com exclusividade pelo Jornal Nacional. As imagens foram gravadas na noite de 14 de julho de 2013, quase cinco horas depois de o pedreiro Amarildo ter sido levado para a sede da UPP. A câmera fica num ponto estratégico da rua que é o único acesso para que carros cheguem à sede. As imagens demonstram que relógio marca 23h59, quando chega um comboio com quatro (04) caminhonetes do Batalhão de Operações Especiais (BOPE). Naquela noite, o Bope esteve na favela da Rocinha. O comandante da UPP, Major Edson Santos – que já fez parte da tropa de elite da polícia – pediu reforço porque havia risco de invasão de traficantes. Com a descoberta dessas novas imagens, os promotores concluíram que não foi isso que aconteceu. 

Bibliografia geral consultada.

ARNS, Dom Paulo Evaristo, “Prefácio”. In:  Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a partir de 1964. Comissão responsável Maria do Amparo Almeida Araújo... et al. Apresentação de Miguel Arraes de Alencar. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1995; DURAND, Gilbert, “Os Símbolos da Inversão”. In: As Estruturas Antropológicas do Imaginário: introdução à arquetipologia geral. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1997; pp. 198-206; ANDRADE, Luciana da Silva, Espaço Público e Favelas: Uma Análise da Dimensão Pública dos Espaços Coletivos não Edificados na Rocinha. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Geografia. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002; NEUMANN, Marcelo Moreira, O Desaparecimento de Crianças e Adolescentes. Tese de Doutorado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010; FERREIRA, Leticia Carvalho de Mesquita, Uma Etnografia para Muitas Ausências. O Desaparecimento de Pessoas como Ocorrência Policial e Problema Social. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Museu Nacional. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011; RESENDE, Leandro Fernandes de Barros, Novas Agendas Jornalísticas: Uma Investigação sobre o Caso Amarildo. Trabalho de Conclusão de Curso. Graduação em Comunicação. Habilitação em Jornalismo. Rio de Janeiro: Escola de Comunicação. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014; FERREIRA, Letícia Carvalho de Mesquita, “Arquivos de Silêncio e Anonimato: Classificação de Cadáveres e Gestão da Morte Indigente no Brasil”. In: Antônio Carlos de Souza Lima. (Org.), Tutela: Formação de Estado e Tradições de Gestão no Brasil. 1ª edição. Rio de Janeiro: Editor E-Papers, 2014; pp. 343-366; ILOWENKRON, Laura; FERREIRA, Letícia Carvalho de Mesquita, “Anthropological Perspectives on Documents. Ethnographic Dialogues on the Trail of Police `Papers`”. In: Vibrant (Florianópolis), vol. 11, pp. 76-112, 2014; CARVALHO, Pedro Neves Gonçalves Franco de, Acreditar no Mundo: Um Estudo sobre Cultura, Educação e Processos de Subjetivação. Dissertação de Mestrado. Instituto de Biociências. Rio Claro: Universidade Estadual Paulista, 2015; entre outros.

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