quarta-feira, 15 de julho de 2015

A Magnífica Estupidez do Silêncio.


Ubiracy de Souza Braga*

O silêncio é um amigo que nuca trai”. Confúcio

A etimologia da palavra “silêncio” nos remete ao Latim, “silentium”, que provém de “silere”, ou seja, “calarse”, não dizer (palavra). Para a Filosofia, porém, silêncio não pode ser confundido com simples ausência de determinado som. É possível afirmar que na cultura da história humana nosso presente corre o risco de aparecer um dia como que assinalado pela provação mais dramática e mais laboriosa possível. A descoberta e o aprendizado do sentido dos atos mais “simples” da existência: ver, escutar, falar, ler. Não é à psicologia que devemos estes conceitos perturbadores, mas a homens como Marx, Nietzsche, Foucault e Freud. Depois de Freud é que começamos a suspeitar do “quer-dizer” o escutar. E, portanto o falar (e o calar) e o que quer-dizer do falar e do escutar revela, sob a inocência do falar e do escutar, a profundidade de uma fala inteiramente diversa, a fala do inconsciente. Em Foucault, vigiar e punir.
Para estes, desde Marx, deveríamos começar a suspeitar do que, pelo menos em teoria, ler e, portanto escrever “quer dizer”. Isto porque podemos justamente apreender nele, não somente no que ele diz, mas no que faz a própria passagem de uma primeira ideia e prática de leitura a uma nova prática de leitura e a uma teoria da história capaz de nos fornecer uma nova teoria do ler. E melhor, “deixar que se diga” implica que se renunciou ao projeto de deter, em qualquer nível que seja, o que o texto-cidade “quer dizer” ou “queria dizer”. Ou, melhor, enquanto a Representação acredita falar-sobre, essa fala sempre é situável no desenvolvimento daquilo “que se fala”. Ou ainda, que é que se dizia, portanto, no que era dito. Ou ainda na possibilidade do dito. No que é que aquilo que era dito era fatalmente maldito, pelo fato de que ele era expresso? A vida é uma peça de teatro, já dizia William Shakespeare, mas a questão é saber se existe grande dignidade em saber o momento em que se deve abandonar o palco.
 


            Se fosse feito um ranking com as fotografias mais conhecidas da história, é certo que esta primeira estaria entre elas. Intitulada: “Lunch atop a Skyscraper” foi tirada por Charles Ebbets em 29 de Setembro de 1932 quando realizava uma reportagem para denunciar as precárias medidas de segurança no trabalho dos operários da construção civil daqueles primeiros arranha-céus. A imagem é da construção do edifício Rockefeller Center no andar 69 dos 70 totais. A foto, entre outras, foi publicada em Outubro de 1932 em um suplemento dominical do New York Herald Tribune. Ebbets percorreu vários edifícios em obras e ainda que algumas das fotos sejam poses feitas, fica claro o quão arriscado era aquele trabalho. Apesar de que o intuito das fotografias era que o mundo conhecesse em que condições se trabalhavam naquelas mastodônticas e pioneiras construções, o paradoxal é que Ebbets, para tirar as fotos, também teve que interagir e se sujeitar às mesmas condições de periculosidade dos trabalhadores.
            Vejamos o belo e inusitado exemplo moral: a capital federal. Tradicionalmente, Brasília divide-se entre a vocação artística e a obsessão pelo silêncio. Em uma entrevista de 1989, o cantor e compositor Renato Russo explicava o contexto no qual compôs “Veraneio Vascaína”, canção de sua primeira banda, “Aborto Elétrico”. A referência às viaturas da ditadura, “todas pintadas de branco, preto, cinza e vermelho”, era uma resposta aos shows interrompidos e às agressões gratuitas da polícia militar na capital federal no início dos anos 1980. A repressão lembrava Russo, era particularmente dura na Colina, quadra residencial da Universidade de Brasília, onde moravam diversos professores e seus filhos roqueiros, “gente de esquerda que não podia falar”.

 
Nem por isso a chamada “Turma da Colina” deixava de fazer seu barulho. Se alguém erguesse um decibelímetro, aparelho que mede o volume das emissões sonoras, em um show das bandas de rock da época, possivelmente o dispositivo pifaria. Hoje, a engenhoca parece cumprir o papel dos censores de antes. Aprovada em 2008, a Lei do Silêncio tem sido responsável por uma sensível diminuição da oferta de música ao vivo em casas de show, bares e restaurantes do Plano Piloto, região central da capital. Um dos espaços mais atingidos é, por sinal, frequentado por “gente de esquerda”. Em 30 de abril, O Balaio Café, que combina shows de bandas com eventos dedicados aos movimentos negro, feminista e LGBT, foi interditado pela terceira vez por registrar uma pressão sonora de 61,8 decibéis, pouco acima do limite legal etc. Na prática, a lei é incapaz de ser cumprida. A lei se presta ao pior: trata a música como um ruído qualquer.
É impossível viver sem ruído nas cidades, o que analogamente produziria o que se chama síndrome de abstinência compreendida como “conjunto de modificações orgânicas que se dão em razão da suspensão brusca do consumo de droga geradora de dependência física e psíquica, como o álcool, a heroína, o ópio, a morfina, etc,”, caracterizando-se em geral por alucinações e crises convulsivas. A síndrome de abstinência apresenta sintomas como disforia, insônia, ansiedade, irritabilidade, náusea, agitação, taquicardia e hipertensão. É muito importante, para seu correto tratamento, a identificação inicial do tipo de droga usada porque as complicações diferem de acordo com a substância. A crise de abstinência do álcool tem início a partir de 72horas de interrupção e pode causar clinicamente o que se chama “delirium tremens” e convulsões, sendo mais severa em pacientes com episódios prévios. Apresenta sintomas específicos como distúrbios táteis e visuais e convulsões. No caso da síndrome de abstinência de opioides, o início do quadro clínico depende da meia vida da droga.
A emissão irregular de ruídos e sons passou a ser um dos principais problemas dos centros urbanos, em especial os ruídos originados de veículos por seus equipamentos – motor, surdina, buzinas, alarme, similares - ou aparelhagem de som, tanto comercialmente, como no lazer. Vários estudos demonstram que a emissão de ruídos provoca malefícios à saúde humana, causando distúrbios físicos e mentais. Ainda mais: a própria emissão irregular de ruídos, ou sons ocasiona perturbação à segurança viária, ao sossego público e ofende o meio ambiente, afetando o interesse individual e coletivo e difuso de um trânsito considerado violento e inseguro e da qualidade de vida. Os sons muito intensos são desagradáveis ao ouvido humano. Sons com intensidades acima de 130 decibéis provocam uma sensação dolorosa e sons acima de 160 decibéis podem romper o tímpano e causar surdez. De acordo com a frequência, um som pode ser classificado em agudo ou grave. Essa qualidade é chamada altura do som.   

 
Em condomínios, o barulho é um dos campeões de reclamação. Há diversos tipos: barulho de festa, de bagunça de criança nas áreas comuns em horários proibidos, dentro dos apartamentos durante o dia todo, ou aquele barulho que vem de fora do condomínio, de bares, casas noturnas, ou até do prédio ao lado.  Às vezes, nem tudo são sonhos em um condomínio. Apesar de não constituir o principal problema, barulho demais sempre vira pesadelo. E a prevenção começa pela regulamentação própria através de um bom regimento interno e da própria convenção do condomínio. É assim que os moradores estabelecem regras, obrigações e deveres para permitir que eles possam colocar a cabeça no travesseiro e gozar de um bom descanso oferecendo a mesma opção aos vizinhos de maneira sadia e democrática, pois há sempre o pêndulo decisório do síndico para coibir abusos com notificações de advertências e multas. 
O culto social da indiferença de classe representa o hábito de estupidez de uma sociedade que perdeu o sentido de comunidade. O consumo é o leitmotiv do progresso que faz da cidade um lugar passageiro. Onde tudo pode ser destruído e reconstruído a qualquer momento, onde as histórias são substituídas por outras sem perspectiva de futuro. A forma do urbano, sua razão suprema, a saber, a simultaneidade e o encontro aparente não podem desaparecer. A cidade é fora de dúvida a maior vitrine, onde os episódios cotidianos da existência material são vividos e observados na indiferença da reprodução do capital. A ocupação divertida do urbano, por uma população sonhadora movida pelo acaso de viver o imprevisível, é descartada pela cidade contemporânea. A cidade é o palco da reprodução do capital cultural dominante, onde tudo se descobre ou se reinventa, e se apaga na mesma velocidade. Tudo é vivido na condição de espetáculo como se a vida urbana fosse um conjunto de cenas de teatro. A favela é fruto da falta de observação de que o operário existe na construção civil irradiada pela visão arguta de Chico Buarque. Ele é um ator social, construtor social e sua realidade não é virtual.
Não habitamos simplesmente, mas construir significa originariamente habitar. E a antiga palavra construir (“bauen”) diz que o homem é à medida que habita. Mais que isso, significa ao mesmo tempo: proteger e cultivar, a saber, cultivar o campo, cultivar a vinha. Construir significa cuidar do crescimento que, por si mesmo, dá tempo aos seus frutos. No sentido de proteger e cultivar, construir não é o mesmo que produzir. NB: em oposição ao cultivo, construir diz edificar. Ambos os modos de construir – construir como cultivar, em latim, “colere”, cultura, e construir como edificar construções, “aedificare” – estão contidos no sentido próprio de “bauen”. No sentido de habitar, ou construir, permanece, para a experiência cotidiana do homem. Aquilo que desde sempre é, como a linguagem diz de forma tão exclusiva e bela, “habitual”. Isto esclarece porque acontece um construir por detrás dos múltiplos modos de habitar, por detrás das atividades de cultivo e edificação. O sentido próprio de construir, a saber, habitar, cai no esquecimento. Em que medida construir pertence ao habitar? Quando construir e pensar são indispensáveis para habitá-lo. Ambos são, no entanto, insuficientes para habitá-lo se cada um se mantiver isolado, distantes, cuidando do que é seu ao invés de escutar um ao outro. Ipso facto construir e pensar pertence ao habitar. Permanecem em seus limites humanos, solidarizando-se. Sabem, quando aprendemos a pensar, que tanto um como outro provém da obra de uma longa experiência e de um exercício incessante de pensar.

Bibliografia geral consultada:

BACHELARD, Gaston, Le Pluralisme Cohérent de la Chimié Moderne. Paris: Librarie Vrin, 1932; ARGAN, Giulio Carlo, Progetto e Destino. Milão: Edizione Saggiatore, 1965; BARTHES, Roland, Elementi di Semiologia. Turim: Einaudi Editore, 1966; ECO, Umberto, Appunti per una Semiologia delle Communicazioni Visivi. Milão: Bompiani Editore, 1967; FOUCAULT, Michel, Arqueologia do Saber. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 1971; Idem, Nietzsche, Marx e Freud. Theatrum Philosoficum. 4ª edição. São Paulo: Editora Princípio, 1987; Idem, Vigiar e Punir. Nascimento da prisão. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 1987; SANTAELLA, Lucia, A Assinatura das Coisas - Pierce e a literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992; MCLUHAN, Marshall, Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. São Paulo: Editora Cultrix, 1999; KONDER, Leandro, A Questão da Ideologia. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2002; MARCONDES FILHO, Ciro, Perca Tempo: É no lento que a vida acontece. São Paulo: Editora Paulus, 2005; ANDERSON, Benedict, Comunidades Imaginadas: Reflexões sobre a Origem e a Difusão do Nacionalismo. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2008; SILVA, Sergio Gomes da, A Gramática do Silêncio: Um Estudo sobre a Comunicação e a não Comunicação na Psicanálise. Tese de Doutorado. Departamento de Psicologia. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2014; entre outros.
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ) e Doutor em Ciências da Comunicação junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

 

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