Ubiracy de Souza
Braga*
“O silêncio é um amigo que nuca trai”. Confúcio
“O silêncio é um amigo que nuca trai”. Confúcio
A
etimologia da palavra “silêncio” nos remete ao Latim, “silentium”, que provém
de “silere”, ou seja, “calarse”, não dizer (palavra). Para a Filosofia, porém,
silêncio não pode ser confundido com simples ausência de determinado som. É
possível afirmar que na cultura da história humana nosso presente corre o risco
de aparecer um dia como que assinalado pela provação mais dramática e mais
laboriosa possível. A descoberta e o aprendizado do sentido dos atos mais “simples”
da existência: ver, escutar, falar, ler. Não é à psicologia que devemos estes
conceitos perturbadores, mas a homens como Marx, Nietzsche, Foucault e Freud.
Depois de Freud é que começamos a suspeitar do “quer-dizer” o escutar. E,
portanto o falar (e o calar) e o que quer-dizer do falar e do escutar revela,
sob a inocência do falar e do escutar, a profundidade de uma fala inteiramente
diversa, a fala do inconsciente. Em Foucault, vigiar e punir.
Para
estes, desde Marx, deveríamos começar a suspeitar do que, pelo menos em teoria,
ler e, portanto escrever “quer dizer”. Isto porque podemos justamente apreender
nele, não somente no que ele diz, mas no que faz a própria passagem de uma
primeira ideia e prática
de leitura a uma nova prática de leitura e a uma teoria da história capaz de
nos fornecer uma nova teoria do ler. E melhor, “deixar que se diga” implica que
se renunciou ao projeto de deter, em qualquer nível que seja, o que o texto-cidade
“quer dizer” ou “queria dizer”. Ou, melhor, enquanto a Representação acredita
falar-sobre, essa fala sempre é situável no desenvolvimento daquilo “que se
fala”. Ou ainda, que é que se dizia, portanto, no que era dito. Ou ainda na
possibilidade do dito. No que é que aquilo que era dito era fatalmente maldito,
pelo fato de que ele era expresso? A vida é uma peça de teatro, já dizia
William Shakespeare, mas a questão é saber se existe grande dignidade em saber
o momento em que se deve abandonar o palco.
Se fosse feito um ranking com as
fotografias mais conhecidas da história, é certo que esta primeira estaria
entre elas. Intitulada: “Lunch atop a Skyscraper” foi tirada por Charles Ebbets
em 29 de Setembro de 1932 quando realizava uma reportagem para denunciar as
precárias medidas de segurança no trabalho dos operários da construção civil
daqueles primeiros arranha-céus. A imagem é da construção do edifício
Rockefeller Center no andar 69 dos 70 totais. A foto, entre outras, foi
publicada em Outubro de 1932 em um suplemento dominical do New York Herald
Tribune. Ebbets percorreu vários edifícios em obras e ainda que algumas das
fotos sejam poses feitas, fica claro o quão arriscado era aquele trabalho. Apesar
de que o intuito das fotografias era que o mundo conhecesse em que condições se
trabalhavam naquelas mastodônticas e pioneiras construções, o paradoxal é que
Ebbets, para tirar as fotos, também teve que interagir e se sujeitar às mesmas
condições de periculosidade dos trabalhadores.
Vejamos o belo e inusitado exemplo
moral: a capital federal. Tradicionalmente, Brasília divide-se entre a vocação
artística e a obsessão pelo silêncio. Em uma entrevista de 1989, o cantor e
compositor Renato Russo explicava o contexto no qual compôs “Veraneio Vascaína”,
canção de sua primeira banda, “Aborto Elétrico”. A referência às viaturas da
ditadura, “todas pintadas de branco, preto, cinza e vermelho”, era uma resposta
aos shows interrompidos e às agressões gratuitas da polícia militar na capital
federal no início dos anos 1980. A repressão lembrava Russo, era
particularmente dura na Colina, quadra residencial da Universidade de Brasília,
onde moravam diversos professores e seus filhos roqueiros, “gente de esquerda
que não podia falar”.
Nem
por isso a chamada “Turma da Colina” deixava de fazer seu barulho. Se alguém
erguesse um decibelímetro, aparelho que mede o volume das emissões sonoras, em
um show das bandas de rock da época, possivelmente o dispositivo pifaria. Hoje,
a engenhoca parece cumprir o papel dos censores de antes. Aprovada em 2008, a
Lei do Silêncio tem sido responsável por uma sensível diminuição da oferta de
música ao vivo em casas de show, bares e restaurantes do Plano Piloto, região
central da capital. Um dos espaços mais atingidos é, por sinal, frequentado por
“gente de esquerda”. Em 30 de abril, O Balaio Café, que combina shows de bandas
com eventos dedicados aos movimentos negro, feminista e LGBT, foi interditado
pela terceira vez por registrar uma pressão sonora de 61,8 decibéis, pouco
acima do limite legal etc. Na prática, a lei é incapaz de ser cumprida. A lei
se presta ao pior: trata a música como um ruído qualquer.
É
impossível viver sem ruído nas cidades, o que analogamente produziria o que se
chama síndrome de abstinência compreendida como “conjunto de modificações
orgânicas que se dão em razão da suspensão brusca do consumo de droga geradora
de dependência física e psíquica, como o álcool, a heroína, o ópio, a morfina,
etc,”, caracterizando-se em geral por alucinações e crises convulsivas. A
síndrome de abstinência apresenta sintomas como disforia, insônia, ansiedade,
irritabilidade, náusea, agitação, taquicardia e hipertensão. É muito
importante, para seu correto tratamento, a identificação inicial do tipo de
droga usada porque as complicações diferem de acordo com a substância. A crise
de abstinência do álcool tem início a partir de 72horas de interrupção e pode
causar clinicamente o que se chama “delirium tremens” e convulsões, sendo mais
severa em pacientes com episódios prévios. Apresenta sintomas específicos como
distúrbios táteis e visuais e convulsões. No caso da síndrome de abstinência de
opioides, o início do quadro clínico depende da meia vida da droga.
A
emissão irregular de ruídos e sons passou a ser um dos principais problemas dos
centros urbanos, em especial os ruídos originados de veículos por seus
equipamentos – motor, surdina, buzinas, alarme, similares - ou aparelhagem de
som, tanto comercialmente, como no lazer. Vários estudos demonstram que a
emissão de ruídos provoca malefícios à saúde humana, causando distúrbios
físicos e mentais. Ainda mais: a própria emissão irregular de ruídos, ou sons
ocasiona perturbação à segurança viária, ao sossego público e ofende o meio
ambiente, afetando o interesse individual e coletivo e difuso de um trânsito considerado
violento e inseguro e da qualidade de vida. Os sons muito intensos são
desagradáveis ao ouvido humano. Sons com intensidades acima de 130 decibéis
provocam uma sensação dolorosa e sons acima de 160 decibéis podem romper o
tímpano e causar surdez. De acordo com a frequência, um som pode ser
classificado em agudo ou grave. Essa qualidade é chamada altura do som.
Em
condomínios, o barulho é um dos campeões de reclamação. Há diversos tipos:
barulho de festa, de bagunça de criança nas áreas comuns em horários proibidos,
dentro dos apartamentos durante o dia todo, ou aquele barulho que vem de fora
do condomínio, de bares, casas noturnas, ou até do prédio ao lado. Às vezes, nem tudo são sonhos em um
condomínio. Apesar de não constituir o principal problema, barulho demais
sempre vira pesadelo. E a prevenção começa pela regulamentação própria através
de um bom regimento interno e da própria convenção do condomínio. É assim que
os moradores estabelecem regras, obrigações e deveres para permitir que eles
possam colocar a cabeça no travesseiro e gozar de um bom descanso oferecendo a
mesma opção aos vizinhos de maneira sadia e democrática, pois há sempre o
pêndulo decisório do síndico para coibir abusos com notificações de advertências
e multas.
O
culto social da indiferença de classe representa o hábito de estupidez de uma
sociedade que perdeu o sentido de comunidade. O consumo é o leitmotiv do progresso que faz da cidade
um lugar passageiro. Onde tudo pode ser destruído e reconstruído a qualquer
momento, onde as histórias são substituídas por outras sem perspectiva de
futuro. A forma do urbano, sua razão suprema, a saber, a simultaneidade e o encontro
aparente não podem desaparecer. A cidade é fora de dúvida a maior vitrine, onde
os episódios cotidianos da existência material são vividos e observados na
indiferença da reprodução do capital. A ocupação divertida do urbano, por uma
população sonhadora movida pelo acaso de viver o imprevisível, é descartada
pela cidade contemporânea. A cidade é o palco da reprodução do capital cultural
dominante, onde tudo se descobre ou se reinventa, e se apaga na mesma
velocidade. Tudo é vivido na condição de espetáculo como se a vida urbana fosse
um conjunto de cenas de teatro. A favela é fruto da falta de observação de que
o operário existe na construção civil irradiada pela visão arguta de Chico
Buarque. Ele é um ator social, construtor social e sua realidade não é virtual.
Não
habitamos simplesmente, mas construir significa originariamente habitar. E a
antiga palavra construir (“bauen”) diz que o homem é à medida que habita. Mais
que isso, significa ao mesmo tempo: proteger e cultivar, a saber, cultivar o
campo, cultivar a vinha. Construir significa cuidar do crescimento que, por si
mesmo, dá tempo aos seus frutos. No sentido de proteger e cultivar, construir
não é o mesmo que produzir. NB: em oposição ao cultivo, construir diz edificar.
Ambos os modos de construir – construir como cultivar, em latim, “colere”,
cultura, e construir como edificar construções, “aedificare” – estão contidos
no sentido próprio de “bauen”. No sentido de habitar, ou construir, permanece,
para a experiência cotidiana do homem. Aquilo que desde sempre é, como a
linguagem diz de forma tão exclusiva e bela, “habitual”. Isto esclarece porque
acontece um construir por detrás dos múltiplos modos de habitar, por detrás das
atividades de cultivo e edificação. O sentido próprio de construir, a saber,
habitar, cai no esquecimento. Em que medida construir pertence ao habitar?
Quando construir e pensar são indispensáveis para
habitá-lo. Ambos são, no entanto, insuficientes para habitá-lo se cada um se
mantiver isolado, distantes, cuidando do que é seu ao invés de escutar um ao
outro. Ipso facto construir e pensar
pertence ao habitar. Permanecem em seus limites humanos, solidarizando-se.
Sabem, quando aprendemos a pensar, que tanto um como outro provém da obra de
uma longa experiência e de um exercício incessante de pensar.
Bibliografia
geral consultada:
BACHELARD,
Gaston, Le Pluralisme Cohérent de la
Chimié Moderne. Paris: Librarie Vrin, 1932; ARGAN, Giulio Carlo, Progetto e Destino. Milão: Edizione Saggiatore,
1965; BARTHES, Roland, Elementi di
Semiologia. Turim: Einaudi Editore, 1966; ECO, Umberto, Appunti per una Semiologia delle Communicazioni Visivi. Milão:
Bompiani Editore, 1967; FOUCAULT, Michel, Arqueologia
do Saber. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 1971; Idem, Nietzsche, Marx e Freud. Theatrum Philosoficum. 4ª edição. São
Paulo: Editora Princípio, 1987; Idem, Vigiar
e Punir. Nascimento da prisão. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 1987; SANTAELLA,
Lucia, A Assinatura das Coisas - Pierce e a
literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992; MCLUHAN, Marshall, Os Meios de Comunicação como Extensões do
Homem. São Paulo: Editora Cultrix, 1999; KONDER,
Leandro, A Questão da Ideologia. São
Paulo: Editora Companhia das Letras, 2002; MARCONDES FILHO, Ciro, Perca Tempo: É no lento que a vida acontece. São Paulo: Editora
Paulus, 2005; ANDERSON, Benedict, Comunidades Imaginadas: Reflexões sobre a Origem e a Difusão do Nacionalismo. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2008; SILVA, Sergio Gomes da, A Gramática do Silêncio: Um Estudo sobre a Comunicação e a não Comunicação na Psicanálise. Tese de Doutorado. Departamento de Psicologia. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2014; entre outros.
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ) e Doutor em Ciências da Comunicação junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
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