quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Steven Spielberg – História Política & Memória da Ponte dos Espiões.

                                Ubiracy de Souza Braga*


        “Apenas uma geração de leitores vai dar origem a uma geração de escritores”. Steven Spielberg
 
Angela Merkel visitou a ponte Glienicker, onde Steven Spielberg grava o filme: “St. James Place”.

            A Ponte Glienicke (“Glienicker Brücke”) em Berlim cruza o Rio Havel conectando as cidades de Potsdam e Berlim. Sua construção foi concluída em 1907. A União Soviética e os Estados Unidos utilizaram essa ponte em três oportunidades para realizar “trocas de espiões” capturados durante a chamada Guerra Fria, e a ponte foi denominada ideologicamente como “Ponte dos Espiões” pela imprensa. A primeira troca entre as nações ocorreu no dia 10 de fevereiro de 1962. Os Estados Unidos da América liberaram o espião russo Coronel Rudolf Ivanovich Abel nas negociações de troca do piloto Francis Gary Powers capturado pela URSS em 1960. Annette Von Broecker reivindica que uma determinada intuição lhe proporcionou o posto de única testemunha ocular dessa troca. Ela era filha do advogado Heinrich von Broecker e sua esposa Hedwig Maria. Ela se formou no colegial no verão de 1912. Ela então estudou em Freiburg e, no semestre de verão de 1917, em economia de Heidelberg. Sua dissertação de 50 páginas, tratou do tópico “indivíduo e comunidade do individualismo religioso, sociológica e economicamente, de três tipos básicos”.  Em seguida, foi treinada como enfermeira e subsequente trabalho de saúde pública, que ainda era um “campo do policiamento médico”, como ela escreveu em uma de suas publicações.
A segunda troca ocorreu no dia 12 de junho de 1985, mas de uma forma apressada de 23 agentes norte-americanos presos na Europa Oriental pelo agente polonês Marian Zacharski e outros três agentes soviéticos presos no Ocidente. A última troca - last but not least - também é a mais conhecida do grande público. Em 11 de fevereiro de 1986 o defensor dos direitos civis e prisioneiro político Anatoly Sharansky e mais três agentes orientais foram negociados e trocados por Karl Koecher e quatro outros agentes ocidentais. A ponte Glienicke como local de encontro para troca de prisioneiros também aparece na ficcionalização real, originalmente no filme de Harry Palmer de 1966, “Funeral em Berlim”, estrelado por Michael Caine, baseado em obra de mesmo nome.  A missão do espião Harry Palmer é contrabandear um agente russo dentro de um caixão de volta à Inglaterra. Entretanto, Harry descobre que o russo pode não ser tudo o que ele parece ser.

A Ponte dos Espiões (“Bridge of Spies”) é um thriller norte-americano dirigido por Steven Spielberg e escrito por Matt Charman, Ethan Coen e Joel Coen. Alguns dos atores principais que formam o elenco são Tom Hanks, Mark Rylance, Amy Ryan e Alan Alda. Este filme tem como escopo o incidente U-2 de 1960 e é baseado no romance homônimo do livro de Giles Whittell. O advogado James B. Donovan (Tom Hanks) é empurrado para o centro da chamada Guerra Frio, quando é dada a missão de negociar a libertação de Francis Gary Powers, um piloto cujo avião foi abatido na União Soviética. O filme foi rodado sob o título provisório de “St. James Place”. O cineasta Steven Spielberg narra em seu filme a história política de um advogado norte-americano, interpretado magistralmente por Tom Hanks, que consegue negociar o resgate de dois prisioneiros do bloco do leste europeu no fim dos anos 1950. Fã dos destinos excepcionais, o diretor de filmes como: “A lista de Schindler” (1993), “Prenda-me se for capaz” (2002) e “Munique” (2005), entre outros, leva aos cinemas desta vez uma história espetacular sobre o período da Guerra Fria: (“Bridge of Spies”). 

          Em um momento de tensão entre Estados Unidos e Rússia sobre o enfoque da guerra na Síria, em 1957, o advogado James Donovan foi escolhido por seu escritório para defender o indefensável no Ocidente: um espião soviético detido em território norte-americano, Rudolf Abel. Guerra Fria, sociologicamente é a designação atribuída ao período histórico de disputas estratégicas e conflitos indiretos entre os Estados Unidos e a União Soviética, compreendendo o período entre o final da 2ª guerra mundial (1945) e a extinção da União Soviética (1991), um conflito de ordem política, militar, tecnológica, econômica, social e ideológica entre as duas nações e suas zonas de influência. É chamada “fria” porque não houve guerra direta entre as duas superpotências, dada à inviabilidade da vitória em uma batalha nuclear. A corrida armamentista de um grande arsenal de armas nucleares foi o objetivo central durante a primeira metade da Guerra Fria. Estabilizou-se na década de 1960 até à década de 1970, sendo reativado nos anos 1980 com o projeto do presidente dos Estados Unidos de Ronald Reagan chamado de “Guerra nas Estrelas”. O primeiro filme foi lançado apenas com o título Star Wars em 25 de maio de 1977, e tornou-se um fenômeno mundial inesperado de cultura popular, sendo responsável pelo início da era dos blockbusters, que  representa superproduções cinematográficas que fazem sucesso nas bilheterias e viram franquias com brinquedos, jogos, livros, etc. 
         Foi seguido por duas sequências, The Empire Strikes Back e Return of the Jedi, lançadas com intervalos de três anos, formando a trilogia original. Uma parte da historiografia argumenta que foi uma disputa dos países que apoiavam as liberdades civis, como a liberdade de opinião e de expressão e de voto, representada pelos Estados Unidos e outros países ocidentais e do outro lado a doutrina comunista. Outra parte defende que esta foi uma disputa entre o capitalismo, que patrocinou regimes ditatoriais na América Latina, representado pelos Estados Unidos da América (USA), e a transição para o socialismo expansionista ou socialismo de Estado, onde fora suprimida a propriedade privada, defendido pela União Soviética (URSS) e China. Entretanto, esta caracterização só pode ser considerada válida com uma série de restrições e apenas para o período do imediato pós-Segunda Guerra Mundial, até a década de 1950. Nos anos 1960, o “bloco político-militar socialista” se dividiu e durante as décadas de 1970 e 1980, a China comunista se aliou aos norte-americanos na disputa contra os russos. Disputas regionais envolveram Estados imperialistas, contra diversas potências locais, regionais e, sobretudo, de dimensão nacionalistas.        
No longa-metragem em 1957, depois de uma intrincada caçada, o FBI aprisiona o estoico Rudolf Abel (Mark Rylance), um espião russo que se disfarça de artista em Nova York. Ele estaria transmitindo segredos de Estado relativos à energia nuclear. Para defendê-lo, a promotoria pública indica o íntegro James B. Donovan (Hanks), que naquele momento era sócio de uma firma de advocacia especializada em seguros. A família e os amigos de Donovan não querem que ele aceite um caso tão impopular. Mas ele não só aceita o desafio, como defende Abel com probidade intelectual e consegue livrar o espião da pena de morte certa, que era a vontade ideologizada no âmbito da esfera da opinião pública. Donovan a principio é hostilizado. Mas como advogado pragmático sabe que o risco que ele assumiu era calculado. Tem um bom argumento: é melhor manter Abel vivo e seguro, já que ele poderia ser útil em alguma ocasião, como uma futura troca de prisioneiros. E isso exatamente o que acontece poucos anos depois.
Em meio à edificação do Muro de Berlim, Donovan, em condições nada favoráveis, encontra vários membros do governo da União Soviética e da Alemanha. O jogo de negociação é longo e tortuoso. Os russos e alemães estão sempre desconfiados e os agente da CIA mais atrapalham do que ajudam Donovan. Ponte dos Espiões na verdade aparece com uma mercadoria de supermercado: dois filmes em um. No começo, é um filme de tribunal, típico dos julgamentos norte-americanos demonstrando como foi a captura e o julgamento de Abel nos Estados Unidos. Depois, com ação na Europa, onde o longa-metragem se transforma em uma produção teórica de espionagem clássica. Apesar de cenas de violência bruta da política demonstrarem cidadãos alemães da Alemanha Oriental sendo fuzilados tentando passar para o lado ocidental do Muro de Berlim, como se a questão se resolvesse como oposição, Ponte dos Espiões não é abertamente violento, mas não deixa de ser perturbador.         
Os escritos de Georg Simmel sobre vitalismo ou filosofia de vida, quase no final de sua vida, dimensionam não tanto a tragédia da cultura (cf. Simmel, 1988), mas a ambivalência do sujeito frente à cultura: o conflito da cultura. Entende Simmel que, ainda que as formas culturais na sociedade mercantil tornem difícil ao homem exprimir criatividade, o mesmo não consegue viver sem elas. A comodidade, as formas de simbolização e informação, as novas normas legais, a liberação da sexualidade, dentre outras, são manifestações de vidas de uma espécie de outro lado da modernidade. Não obstante, essa percepção sensível de um maior avanço da cultura subjetiva não foi suficiente para alterar o “nó duro” de sua análise. A imaginação se desenvolve em torno da crítica da dimensão de massa dos bens culturais, os quais deixam os homens deprimidos por não poder assimilá-los todos no mesmo momento em que não podem excluí-los, pela fragmentação da existência em razão da separação crescente das esferas da vida e a erosão da cultura pessoal em correspondência com o avanço dos multivariados objetos os quais ganham e exigem conotação cultural.
O longa-metragem representa uma etnografia de como funcionavam os bastidores do jogo político na constituição da guerra fria entre os Estados Unidos e os países comunistas. Quando seus dirigentes não conseguiam compreender a reprodução ideológica do ódio disseminado pela guerra  através do olhar vis-à-vis. Tom Hanks está bem como quase sempre, neste caso vivendo o inoxidável Donovan. Mas quem rouba a cena é o ator britânico Rylance como o enigmático Abel, que pode ou não saber demais, o que nos remete as principais formas de “sociação” (“Vergesellschaftung”) estudadas pelo filósofo Georg Simmel. Influenciado pela filosofia kantiana que distinguia a forma do conteúdo dos objetos de estudo do conhecimento humano, tal distinção pretendia tornar possível o entendimento da vida social com o processo de “sociação”, termo que cunhou como objeto de pensamento analítico e interpretativo para o estudo da sociologia, representando o invariante através da análise das formas em que os indivíduos em suas ações se agregavam e não os indivíduos em si.  

Os processos qualitativos, no entanto, que assumiam tais formas também deveriam ser estudados pela sociologia geral, subproduto da sociologia formal, como a concebia o filósofo Georg Simmel. Estudando o conflito, o autor não conferia aos grupos unidades hipostasiadas, supervalorizadas com relação ao indivíduo, como ocorre comumente no jornalismo de guerra. Antes via neste o fundamento dos grupos, daí que as “formas”, para Simmel, constituem-se em um processo de interação entre tais indivíduos, seja por aproximação, seja pelo distanciamento, competição, subordinação, e assim por diante no âmbito do conflito. Melhor dizendo, a investigação entre o número de indivíduos no seio das formas de vida coletiva. O modo como o aspecto quantitativo afeta o tipo de relação social existente. Simmel analisa uma relação exclusiva entre duas pessoas e, por fim, entre três, produz diferentes tipos de interação entre as pessoas. Se as relações de poder não são unilaterais é preciso explicar como as formas de comando e obediência estão relacionadas, como a obediência do grupo a um indivíduo, a dominação do grupo ou a dominação de regras impessoais.
Tal como na arte, a ideologia pode se expressar na ética de maneiras muito distintas. Pode, por exemplo, representar as  manifestar de vida individual e coletiva na disposição subjetiva, como indicamos pistas na concepção de Georg Simmel, implícita ou explícita, no sentido de abandonar o envolvimento com a comunidade. E mesmo decorrente no sentido de cancelar qualquer compromisso com ela. Como a comunidade representa socialmente a matriz dos valores, basta lembrarmos que “ethos”, comparativamente, em grego, e “mores” em latim, significam costumes; normas de conduta estabelecidas pela comunidade, onde os indivíduos que negam o vínculo que os liga à comunidade são, de fato, pessoas que renegam por assim dizer a ética. É neste sentido que este tipo de distorção se liga a formas extremas de egoísmo, que ultrapassam amplamente o chamado “egoísmo saudável”, ligado à autopreservação e à afirmação pessoal de si mesmo. Os indivíduos cuja vida interior se enriquece em diálogo constante dialeticamente com os outros, não se resignam a ser apenas aquilo que já se tornaram, e querem ser mais do que estão sendo pelo fato de poder pensar juntos. Cultivam, então, um lado deles que os impele na direção de uma busca de universalização e sentido da vida. 
Bibliografia geral consultada.

BLOOM, Harold, O Cânone Ocidental: Os Livros e a Escola do Tempo. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1995; SAID, Edward Wadie, Cultura e Imperialismo. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1995; POWASKI, Ronald, La Guerra Fría: Estados Unidos, Union Soviética, 1917-1991. Barcelona: Editorial Crítica, 2000; KONDER, Leandro, As Artes da Palavra: Elementos para uma Poética Marxista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005; VALIM, Alexandre Busko, Imagens Vigiadas: Uma História Social do Cinema no Alvorecer da Guerra Fria, 1945-1954. Tese de Doutorado. Departamento de História. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2006; MERLEAU-PONTY, Maurice, Fenomenologia da Percepção. 3ª edição. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2006; MEYRER, Marlise Regina, Representações do Desenvolvimento nas Fotorreportagens da Revista O Cruzeiro (1955-1957). Tese de Doutorado em História. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2007; ANDERSON, Benedict, Comunidades Imaginadas. Reflexões sobre a Origem e a Difusão do Nacionalismo. São Paulo; Editora Companhia das Letras, 2008; 
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

3 comentários:

  1. Bela postagem. Como é bom as vezes encontrar material desta qualidade para se esclarecer um pouco.

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  2. Boa história, ótima recomendação! Ponte dos Espiões marca o retorno de Steven Spielberg à boa forma e ao modo mais gostoso de se fazer cinema: com criatividade e amor pela arte. Como sempre, Hanks traz sutilezas em sua atuação. O personagem nos cativa, provoca empatia imediata graças a naturalidade do talento do ator para trazer Donovan à vida. Mark Rylance (do óptimo Novo Filme Dunkirk ) faz um Rudolf Abel que não se permite em momento algum sair da personagem ambígua que lhe é proposta, ocasionando uma performance magistral, à prova de qualquer aforismo sentimental que pudesse atrapalhá- lo em seu trabalho, sem deixar de lado um comportamento espirituoso e muito carismático. O trabalho de cores, em que predominam o cinza e o grafite, salienta a dubiedade do caráter geral do mundo. Ponte dos Espiões levanta uma questão muito importante: a necessidade de se fazer a coisa certa, mesmo sabendo que isso vai contra interesses políticos ou de algum grupo dominante. A história aqui contada é baseada em fatos reais, mas remete também ao caso recente do ex-administrador de sistemas da CIA que denunciou o esquema de espionagem do governo americano em 2013 e foi tratado como um traidor, mesmo que tenha tido a atitude correta. É uma crítica clara à hipocrisia norte-americana, que trabalha sempre com dois pesos e duas medidas em se tratando de assuntos como esse.

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    1. Renata Laffite,
      Seus comentários foram preciosíssimos, o que me fez atualizar a pouco a análise teórica e histórica do filme. Mas, para evitar que o artigo se tornasse longo, preferi incluir autores que trataram o tema e que podem ajudar na análise, exceto Edward Snowden, ex-agente da NSA, tratado por mim noutra oportunidade.

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