quarta-feira, 7 de outubro de 2015

A Rússia, Extermínio & Cartas do Cárcere de Nadezdha.

   Ubiracy de Souza Braga*
  
Vladimir Putin, tsar of the new Russia”. Nadezhda Tolokonnikova   

                       
                Em primeiro lugar, a palavra “carta” origina-se do Latim: “charta”, “chartae”, ou, “cartae”, cujo significado é “folha de papiro preparada para receber a escrita”. Em 5 de agosto de 1940, o país independente da Letônia foi forçado pelo regime soviético a se incorporar à República Socialista Federativa Soviética Russa, depois de ter sido invadido e ocupado pelo Exército Vermelho naquele ano. A Estônia e a Lituânia sofreram um destino político semelhante. Milhares de letões foram presos por terem opiniões antissoviéticas, participarem de movimentos sociais de resistência política, por serem fazendeiros, pertencerem a partidos políticos, ou se recusarem a participar de uma fazenda coletiva. Muitos foram deportados para a região da insólita Sibéria.   
Homens e mulheres que se encontravam nas prisões, campos de concentração ou assentamentos na Sibéria escreveram cartas aos amigos e parentes em casca de bétula, que era muitas vezes o único material disponível nos locais de deportação. Este foi especialmente o caso durante na 2ª guerra mundial, quando o papel era muito escasso socialmente. Somente 19 dessas cartas, com datas entre 1941 e 1956, sobrevivem como preservação da memória individual e coletiva em museus da Letônia. Estas cartas revelam a história da Letônia e da era soviética e os efeitos específicos da repressão em massa na vida das pessoas. Esta carta foi escrita em maio de 1949 por Gaida Eglite (1927-2008), uma deportada da região de Tomsk, à sua ex-vizinha, Laura Rozenštrauha. 
            

            Em segundo lugar, é atribuído ao líder sul-africano Nelson Rolihlahla Mandela a frase de que para conhecer uma sociedade, “é necessário conhecer suas prisões”. O conhecimento do Gulag soviético necessita que olhemos mais de perto do status social do preso. Sabemos que nos regimes nazista e imperialista que domina a África e Ásia, o prisioneiro não é um cidadão, com direitos civis que irá passar por um processo social educativo, pelo contrário. O preso é o “inimigo número 1”, um sujeito a ser eliminado, a chamada “raça inferior” que envenena o mundo europeu com sua impureza e precisa ser exterminado. Os primeiros “campos de concentração” da história política moderna foram criados na África pelo imperialismo europeu. A função era bem clara: terror e extermínio. O século XX expandiu os campos de concentração “e seu nome virou sinônimo de uma prisão brutalizante em condições extremamente degradadas”. Contudo, não podemos perder de vista que o campo tem uma função específica dentro dos aparelhos repressivos de Estado: a função de propagar o terror, psicológico e físico e o extermínio de certa cultura e/ou raça, nacionalidade, grupo político ou religioso.
            Enquanto as revoluções sociais englobam eventos que vão desde as revoluções relativamente pacíficas às contrarrevoluções que puseram fim aos regimes comunistas à violenta revolução islâmica no Afeganistão, que excluem golpes de Estado, guerra civil, revoltas e rebeliões que não fazem nenhum esforço para transformar as instituições ou a justificação da autoridade, como Józef Piłsudski no golpe de 28 de maio de 1926 ou a Guerra Civil Americana, bem como a transição pacífica para a democracia através de arranjos institucionais, tais como plebiscitos e eleições livres, como na Espanha após a morte de Francisco Franco Bahamonde, chefe de Estado e ditador espanhol, conhecido como “Generalíssimo”, ou simplesmente Franco, quando integrou o golpe de Estado na Espanha em julho de 1936 contra o governo democrático da 2ª República, que desembocou na Guerra Civil Espanhola que se estendeu nos anos de 1936 a 1939.   

      
            No caso russo o “culto à personalidade” é uma estratégia de propaganda política baseada na exaltação das virtudes - reais e/ou supostas - do governante, bem como da divulgação positiva de sua figura humana. Cultos de personalidade são frequentemente encontrados em ditaduras militares. Mas também existem em democracias ocidentais. Historicamente o termo culto à personalidade foi utilizado pela primeira vez por Nikita Khrushchov no “Discurso secreto” para denunciar Josef Stalin. Khrushchov citou uma carta do filósofo Marx, que critica o “culto do indivíduo”. Um culto da personalidade é semelhante à apoteose, exceto que ele é criado especificamente para os líderes políticos. Incluem cartazes gigantescos com a imagem do líder, constante bajulação o que inclui os meios de comunicação e muitas vezes perseguição aos dissidentes do mesmo.
No prefácio de 1938 à sua obra “O ano I da Revolução Russa”, o revolucionário russo-belga Victor Serge sintetiza o que, na altura desse ano, representava o resultado das perseguições políticas de Joseph Stalin. Dentre os homens cujos nomes serão encontrados nas páginas seguintes deste livro, apenas um sobrevive, Leon Trotsky, perseguido há dez anos e refugiado no México. Vladimir Lenin, Dzerjinski e Tchitcherin morreram antes, evitando assim a prostração. Zinoviev, Kamenev, Rykov e Bukharin foram fuzilados. Entre os líderes combatentes da insurreição de 1917, o herói de Moscou, Muralov, foi fuzilado; Antonov-Ovseenko, que dirigiu o assalto ao Palácio de Inverno, desapareceu na prisão; Krylenko, Dybenko, Chliapnikov, Gliebov-Avilov, todos os membros do primeiro Conselho dos Comissários do Povo, tiveram a mesma sorte, assim como Smilga, que dirigia a frota do Báltico, e Riazanov; Sokolnikov e Bubnov, do Bureau político da insurreição foram presos; Karakhan, negociador em Brest-Litovsk, foi fuzilado; dois primeiros dirigentes da Ucrânia soviética, um Piatakov, foi fuzilado, e o outro, Racovski, velho alquebrado, na prisão; os heróis das batalhas de Sviajsk e do Volga, Ivan Smirnov, Rosengoltz e Tukhatchevski foram fuzilados.
Raskolnikov, posto fora da lei, desapareceu; dos combatentes dos Urais, Mratchkovsky foi fuzilado, Bieloborodov desapareceu na prisão; Sapronov e Viladimir Smirnov, combatentes de Moscou, desapareceram na prisão; o mesmo aconteceu com Preobrajenski, o teórico do comunismo de guerra; Sosnovski, porta-voz do Partido Bolchevique no primeiro Executivo Central dos sovietes da ditadura, foi fuzilado; Enukidze, primeiro secretário desse Executivo, foi fuzilado. A companheira de Lenin, Nadejda Krupskaia, terminou seus dias não se sabe em qual cativeiro! Dentre os homens da revolução alemã, Yoffe suicidou-se, Karl Radek preso; Krestinski, que continuou atuando na Alemanha, foi fuzilado. Da oposição socialista-revolucionária de 1918, Maria Spiridonova, Trutovski, Kamkov, Karelin, sobreviveram, porém na prisão já há 18 anos. Blumkin, que aderiu ao Partido Comunista, foi fuzilado. Entre os homens que, no Ano II, asseguraram a vitória da revolução social, pequeno número ainda viveu: Kork, Iakir, Uborevitch, Primakov, Muklevitch, chefes militares dos primeiros exércitos vermelhos, foram fuzilados; fuzilados os defensores das cidades de Petrogrado, Evdokimov e Okudjava, Eliava; fuzilado Fayçulla Khodjaev, que teve papel de grande importância na “sovietização” da Ásia Central; desaparecido na prisão, o presidente do Conselho dos Comissários dos Sovietes da Hungria, Bela-Kun (cf. Serge, 1938).
A criminalização da dissidência política era regra tanto na ex-URSS quanto no ex-império russo czarista que também criminalizava heresias religiosas. Além de presos políticos, havia presos condenados moralmente por vadiagem, furto, roubo, agressão, homicídio e estupro. Finalmente, a ex-URSS passou por guerras internas e externas, assim como o Império Russo, então uma parte desses presidiários eram prisioneiros de guerra. Antes da Revolução, o Gulag chamava-se Katorga, do grego “katergon”, galé, um sistema prisional da Rússia Imperial. Os prisioneiros eram mandados a remotos campos desabitados da Sibéria e forçados ao trabalho escravo. Este sistema começou no século XVII, foi apropriado pelos exércitos bolcheviques depois da Revolução Russa e transformados no “gulag”. Miseravelmente se aplicava exatamente a mesma forma hedionda: pena privativa de liberdade, pena de trabalhos forçados e a pena de morte. Os bolcheviques intensificaram a autocrática-imperial russa em uma escala de dezenas de vezes maiores, condições muito piores, onde até o canibalismo antropofágico existiu.


Este sistema funcionou praticamente de 25 de abril de 1930 até 1960. Foram aprisionadas milhões de pessoas, muitas delas vítimas das perseguições políticas de Joseph Stalin, as consideradas “pessoas infames”, para a malversada “Pátria Mãe”, a revolucionária União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, e que deveriam passar por “trabalhos forçados educacionais” e merecerem viver ideologicamente na chamada Pátria Mãe. O “Gulag” tornou-se um símbolo da repressão da ditadura de Stalin. Na verdade, as condições de trabalho nos campos de concentração eram bastante penosas e incluíam: fome, frio, trabalho intensivo de características próprias da escravatura e servidão, por exemplo, horário de trabalho excessivo e guardiãs desvalidas na mana. Floresceram durante o regime chamado pelos historiadores de “stalinista da URSS”, estendendo-se a Sibéria e a Ucrânia, e destinavam-se, na verdade, a silenciar e torturar opositores ao regime, incluindo entre eles anarquistas, trotskistas e outros marxistas. 
Em 1857, talvez com a ingênua ilusão de que seria capaz de inflectir a política externa britânica, Marx dedicou-se a escrever em inglês uma estranha obra antieslava, “História da Diplomacia Secreta no Século XVIII” (cf. Engels, 1980), onde as disputas entre potências europeias ficaram reduzidas a ridículas manobras de bastidores. Este livro deixou os discípulos do filósofo a tais pontos perplexos quando de sua memorialista Eleonor Marx, o reeditou em 1899, tomou a iniciativa de cortar algumas passagens esdrúxulas. Daí em diante os marxistas esforçaram-se por não divulgar a obra e Stalin censurou-a definitivamente. Os traços característicos da obra ficaram ainda mais salientes num ensaio escrito por Engels em 1890, “A Política Externa do Czarismo Russo”. Apesar de o ensaio ter se beneficiado de numerosas edições, inclusive em russo, Stalin em 1934 censurou a sua publicação. Seu argumento é que o arguto Engels descurara a análise das contradições entre imperialismos e da rivalidade pela obtenção de espaços coloniais, insistindo nas ameaças de guerra suscitadas pela política russa.
Deste modo, continuou Stalin, um confronto militar entre a Alemanha burguesa e a Rússia czarista podia ser apresentado não como um “conflito imperialista”, mas como uma guerra de libertação nacional por parte da Alemanha. Em 1865, depois de ter lido que os russos seriam de origem mongol, Marx escreveu numa carta para Engels: - “Eles não são eslavos, em suma, não pertencem à raça indo-germânica, são intrusos que é necessário repelir para além do Dniepre!”. O mestre da análise social descambara na mitologia racial, chegando a conclusões inesperadas, numa carta endereçada a Wilhelm Liebknecht em fevereiro de 1878, onde não viu por detrás dos sérvios senão a sinistra mão da Rússia e enalteceu o opressor otomano afirmando que “o camponês turco, e, portanto a massa do povo turco”, era, “sem dúvida, o representante mais ativo e mais moral do campesinato da Europa”. Ao mesmo tempo contraditoriamente escrevia no livro: Das Kapital (1867), com dialética rigorosa as clivagens de classe, Marx propunha uma estratégia para o proletariado “inspirada em fobias e simpatias nacionais”.
Nenhum país recentemente passou por uma transformação tão profunda e radical como a Rússia de hoje. Abandonou um regime político-econômico que perdurou por mais de 70 anos, o do “socialismo de Estado”. Lançou-se em reformas que visavam alterar sua própria essência política, como a “perestroika” e a “glasnost”. Foi uma imensa operação de reversão econômica de um modelo estatizante, baseado na propriedade coletiva dos meios de produção e no planejamento econômico centralizado, para um sistema oposto, o do capitalismo laissez-faire. Adotaram como modelo, o estado liberal ocidental, onde o intervencionismo reduz-se a um mínimo e as propriedades estatais foram entregues ao controle e administração privados. As reformas na Rússia ganharam amplo apoio, político e financeiro, dos principais países capitalistas ocidentais em função delas visarem à absorção ao sistema capitalista mundial.  Assim, foi estendido à Rússia e ao governo do presidente Boris Yeltsin generosos empréstimos que permitiram que ele sobrevivesse politicamente às naturais turbulências do processo. Indica o compasso da crise asiática e a generalização dos seus efeitos sociais e políticos onde a Rússia marcha para uma depressão econômica. Tendo uma das maiores reservas energéticas do mundo desde petróleo, gás, minerais e demais produtos com os quais pagam suas dívidas, suas importações, comparativamente, qualquer abalo que ela sofra faz com que as economias dos países ditos ricos, incluindo a plutocracia norte-americana também se afetem e sintam-se ameaçadas.


Enfim, o poema “O anjo agachado” (cf. Ricardo Domeneck, Berlim, 9.8.2012), foi dedicado às revolucionárias Nadezhda Tolokonnikova, Yekaterina Samutsevich &Maria Alyokhina: - “Adiante no túnel é um trem./ Rasputin, Stálin, de certo Nicolau II a Putin./Quiçá piore tudo um putsch./Que importa se pode seguir lendo Tchecov./A isso nós chamamos Sobre uma desgraça, outra./Eterno retorno e catástrofe,/já não há espaço entre teto/e monturo para aquele Anjo Novo. Ele, torcicolo, manco/há muitos séculos. Exemplo: os russos./ Estes enxergam no escuro,/ pois só o escuro os olha./ Ao fim das células-cone,/a luz democracia pós-Muro./Se uma rebelião-Pussy contra os machos-alfa vier, que ela nos traga à “Origem do Mundo”./Mas os falos que falam nos mantêm mudos./ “Que globo, meu Deus!”, disse eu, feito um rato, e voltei a roer as unhas”.
Em carta de 2 de janeiro de 2013, Slavoj Žižek refere-se assim à Nadezdha Tolokonnikova - Querida Nadezdha: Espero que você tenha conseguido organizar sua vida na prisão através de pequenos rituais que tornam essa experiência tolerável, e que você tenha tido tempo de ler. Segue o que penso acerca da situação que você está passando. John Jay Chapman, um ensaísta político norte-americano, escreveu sobre radicais em 1900: - “Eles estão dizendo sempre a mesma coisa. Eles não mudam; todas as outras pessoas mudam. Eles são acusados dos crimes mais incompatíveis, de egoísmo e sede de poder, indiferença ao destino de sua causa, fanatismo, trivialidade, falta de humor e de irreverência. Mas eles têm algo a dizer, é o poder prático dos radicais persistentes. Aparentemente, ninguém os segue, mas todos acreditam neles”. Não é uma boa descrição do efeito das performances do Pussy Riot? Apesar de todas as acusações, vocês tem algo a dizer. Pode parecer que as pessoas não as seguem, mas secretamente, elas acreditam em vocês, elas sabem que vocês estão dizendo a verdade, ou ainda mais, que vocês estão defendendo a verdade.

Bibliografia geral consultada.

SERGE, Victor, O ano I da Revolução Russa. Paris, Setembro de 1938; GRAMSCI, Antônio, Lettere dal Carcere. Torino: Editore Einaudi, 1947; EHRHARD, Macelle, A Literatura Russa. São Paulo: Coleção Saber Atual, 1956; HELLER, Agnes, Sociologia della vita quotidiana. Roma: Editore Riuniti, 1975; SOLZHENITYN, Aleksandr, The Gulag Archipelago. Londres: Harper & Row, 1976; BERGSON, Henri, Cartas, conferências e outros escritos. São Paulo: Abril Cultural, 1979; WALICKI, Andrezej, A History of Russian Thought. Stanford: Stanford University Press, 1979; ENGELS, Friedrich, El Problema de los Pueblos ´Sin Historia`. La Questión de las Nacionalidades en la Revolución de 1848-1849 a la Luz de la Neue Rheinische Zeitung. México: Pasado y Presente, 1980; BOBBIO, Norberto, Ni con Marx ni contra Marx. 1ª edición. Espanha: Fondo de Cultura, 1999; KAFKA, Franz, Carta ao Pai. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1997; LÉVY, Bernard-Henri, O Século de Sartre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2001; AGABEN, Giorgio, Estado de exceção. Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2002; DERRIDA, Jacques, Papel-máquina. São Paulo: Estação liberdade, 2004; POE, Edgar Allan, A Carta Roubada. 1ª edição. Porto Alegre: L & PM Pocket, 2005; ANISSIMOV, Myriam, Vassili Grossman: Un écrivain de combat. Paris: Éditions du Seuil,‎ 2012; ELTCHANINOFF, Michel, “Nadejda Tolokonnikova/Slavoj Žižek. Lettres de Prison: Pussy Riot, Marx et le Capitalisme Tardif”. In: Philosophie magazine, (074): 11/2013; pp. 28-36; LUCCHESI, Flávia, Mulheres em Revolução pelas Ruas Incendiárias do Planeta. In: Ecopolítica, 19: set./dez., 2017; entre outros.
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* Sociólogo (UFF), cientista político (UFRJ), doutor em ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará (UECE).  

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