Ubiracy de Souza Braga
“Página infeliz da nossa história. Passagem desbotada na
memória. Das nossas novas gerações”. Chico Buarque
Se ainda nos importa saber, quem
somos em termos de individualização das referências, para isso Sócrates
recorria a duas idéias, uma contida na frase do Apolo délfico, “conhece-te a ti
mesmo” (“gnōthi sauton”), outra relatada por Platão e repetidas vezes por
Aristóteles: - “É melhor estar em desacordo com o mundo inteiro do que, sendo
um, estar em desacordo comigo mesmo”. Esta frase é a chave da convicção socrática
de que a virtude pode ser ensinada e apreendida, ipso facto tem como fundamento em sua progênie, a aporética em cuja
afirmação: “hē rhētorikē estin antistrophos tē dialektikē” [isto é, a arte
política do discurso] é o correlato da arte da dialética [a arte do discurso
filosófico]. Na modernidade ocidental foi posta em foco pela descoberta em que
a dialética hegeliana representa a passagem da Consciência
(“Bewusstsein”) para Autoconsciência (“Selbsbewusstsein”), passagem que é
realizada pelo desejo na interpretação freudiana (“Begierde”) que é irradiado na e através consciência do
homem.
Em primeiro lugar, numa aproximação
conceitual e metodológica não devemos perder de vista que a Phänomenologie des Geistes, de Hegel
(1807) representa a elaboração inicial de um julgamento filosófico a respeito
da história, e isto é importante na medida em que a noção de consciência
(“Bewusstsein”), formulada assim, sugere ser tema central de nossa pesquisa. O espírito,
não pode conhecer-se diretamente. É preciso que negue previamente, que saia de
si e se torne “estranho a si mesmo”, exteriorizando-se e produzindo
sucessivamente todas as formas do real – quadros do pensamento, natureza,
história; e depois que reverta à origem, alcançando assim o conhecimento
verdadeiro, a filosofia do espírito absoluto. Afastando-se de si,
exteriorizando-se, para voltar depois a si mesma, a Ideia triunfa do que a
limitava, afirmando-se na negação das suas negações sucessivas. A Fenomenologia demonstra como
a consciência se eleva desde as formas elementares da sensação
até à formação processual da ciência, identificada por Hegel, aliás, com a racionalidade da religião –
tal como o valor absoluto da religião cristã se integra na verdade do saber na
esteira da vida.
Somente Hegel, insistimos neste
aspecto, definiu o princípio da realidade como uma Ideia lógica, fazendo, portanto, do ser das coisas um ser puramente
lógico e chegando assim a um panlogismo consequente que apresenta ainda, um
elemento dinâmico-irracional, existente no método dialético. Nisto se distingue
o panlogismo hegeliano do neokantismo, que eliminou este elemento e instituiu
assim um puro panlogismo. O idealismo apresenta-se, para sermos breves, em duas
formas principais: como idealismo subjetivo ou psicológico e como idealismo
objetivo e lógico. Mas estas diversidades no plano analítico movimentam-se no
âmbito de uma concepção fundamental. Esta é justamente a tese idealista de que
o objeto do conhecimento não é “menos que nada”, mas algo ideal, para
concordarmos com Slavoj Žižek (2013). A ideia de um objeto independente da
consciência é contraditória, pois, no
momento em que pensamos num objeto, como no amor, um exemplo universal faz dele
um conteúdo de nossa consciência: se afirmamos simultaneamente que o objeto
existe fora da nossa consciência, contradizemo-nos com isso a nós próprios; não há objetos reais extra-conscientes, tendo em vista que a realidade
acha-se contida na consciência.
Em
segundo lugar, vale lembrar que a nação é um produto cultural, político e
social que surge na Europa a partir do fim do século XVIII e que se constitui
efetivamente em uma “comunidade política imaginada”. Nesse processo de
construção histórica, a relação entre o velho e o novo, o passado e o presente,
a tradição e a modernidade é uma constante e se reveste de importância
fundamental, pois, a nação é uma comunidade de sentimento que normalmente tende
a produzir um Estado próprio, é preciso invocar antigas tradições (reais ou
inventadas) como fundamento “natural” da identidade nacional que está sendo
criada. Isso tende a obscurecer o caráter histórico e relativamente recente dos
estados nacionais. Assim como Estado-nação procura delimitar e zelar por suas
fronteiras geopolíticas, ele também se empenha em demarcar suas fronteiras
culturais, estabelecendo o que faz e o que não faz parte da nação. Através
desse processo se constrói uma identidade nacional que procura dar uma imagem à
comunidade abrangida por ela. Nesse sentido o processo de consolidação dos
Estados-nações é extremamente recente. Mesmo em sociedades que atualmente
parecem ser bem integradas. Mas há casos em que uma sociedade é
representada como se fosse dividido em duas grandes regiões antagônicas o que é
recorrente para o Brasil.
Três casos têm exemplaridade teórica, histórica e ideológica na representação política brasileira. As ideologias são determinadas pela época em dois sentidos. Primeiro, enquanto a orientação conflituosa das várias formas de consciência social prática permanecer a característica mais proeminente dessas formas de consciência, na medida em que as sociedades forem divididas em classes. Em outras palavras, a consciência social prática de tais sociedades não podem deixar de ser ideológica - isto é, idêntica à ideologia - em virtude do caráter insuperavelmente antagônico de suas estruturas sociais. Segundo, na medida em que o caráter específico do conflito social fundamental, que deixa sua marca indelével nas ideologias conflitantes em diferentes períodos históricos, surge do caráter historicamente mutável - e não em curto prazo - das práticas produtivas e distributivas da sociedade e da necessidade correspondente de se questionar radicalmente a continuidade da imposição das relações socioeconômicas e políticas que, anteriormente viáveis, tornam-se cada vez menos eficazes no curso do desenvolvimento histórico. Os limites de questionamento são determinados, colocando em primeiro plano as novas formas de desafio ideológico em íntima ligação com o surgimento de meios mais avançados de satisfação das exigências fundamentais sociais. O lugar mais seguro para ser religioso, com liberdade de crença é justamente em sociedades democráticas, laicas e livres.
As análises teóricas do legado de Sérgio
Buarque de Holanda (1902-1982), desencadeadas no centenário de seu nascimento,
tiveram o dom de resgatar um capítulo esquecido em sua obra que dedicou a
carreira acadêmica a compreender a alma nacional. Em Raízes
do Brasil (1936), a análise histórica parte do critério da ausência: à
nossa cultura faltou uma ética do trabalho, o estado racional se ausentou ante
o predomínio do patriarcalismo e do paternalismo. E, em virtude disso, vicejou
o caráter cordial do brasileiro – que privilegia as relações pessoais e busca a
intimidade no convívio social, conceito cunhado por Sergio Buarque e confundido
com benevolência. Essa exploração humana dos trópicos não se processou, em
verdade, por um empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade
construtora e enérgica: fez antes com desleixo e certo abandono. Dir-se-ia
mesmo que se fez apesar de seus autores. E o reconhecimento desse fato não
constitui, para Sérgio Buarque, menoscabo à grandeza do esforço português. Isto
porque existe uma ética do trabalho,
como existe uma ética da aventura.
O indivíduo trabalhador só atribuirá valor moral positivo às
ações que sente ânimo de praticar e, inversamente, terá por imorais e
detestáveis as qualidades próprias do aventureiro – audácia, imprevidência,
irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem – tudo, enfim, quanto se
relacione com a concepção espaçosa do mundo, característica desse tipo. Por
outro lado, as energias e esforços que se dirigem a uma recompensa imediata são
enaltecidos pelos aventureiros; as energias que visam à estabilidade, à paz, à
segurança pessoal e os esforços sem perspectiva de rápido proveito material
passam, ao contrário, por viciosos e desprezíveis para eles. Nada lhes parece
mais estúpido e mesquinho do que o ideal do trabalhador.
Essa exploração humana dos trópicos não se
processou, em verdade, por um empreendimento metódico e racional, não emanou de
uma vontade construtora e enérgica: fez antes com desleixo e certo abandono.
Dir-se-ia mesmo que se fez apesar de seus autores. E o reconhecimento desse
fato não constitui, para Sérgio Buarque, menoscabo à grandeza do esforço
português. Isto porque existe uma ética
do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do tipo
trabalhador só atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de
praticar e, inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias
do aventureiro – audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade,
vagabundagem – tudo, enfim, quanto se relacione com a concepção espaçosa do
mundo, característica desse tipo. As energias e esforços que se
dirigem a uma recompensa imediata são enaltecidos pelos aventureiros; as
energias que visam à estabilidade, à paz, à segurança e os esforços sem
perspectiva de rápido proveito material passam, ao contrário, por viciosos e
desprezíveis para eles. Nada lhes parece mais estúpido e mesquinho do que o
ideal do trabalhador.
A família patriarcal fornece, assim, o grande
modelo por onde se hão de calcar, na vida política, as relações entre
governantes e governados, entre monarcas e súditos. Uma lei moral inflexível,
superior a todos os cálculos e vontades dos homens, pode regular a boa harmonia
do corpo social, e, portanto deve ser rigorosamente respeitada e cumprida. Esse
rígido paternalismo é tudo quanto se poderia esperar de mais oposto, não já as
ideias da França revolucionária. Mas tradicionalistas e iconoclastas que se
movem, em realidade, na mesma órbita de ideias. Estes, não menos do que
aqueles, mostram-se fiéis preservadores do legado colonial, e as diferenças que
os separam entre si são unicamente de forma e superfície. O caráter puramente
exterior, epidérmico, de numerosas agitações sociais e políticas ocorridas entre nós durante os
anos que antecederam e sucederam à Independência, demonstra o quanto era difícil
ultrapassarem-se os limites que à nossa vida política tinham traçado certas
condições específicas geradas pela colonização.
É neste sentido que devemos comparativamente diferenciar, entretanto, três posições ideológicas fundamentalmente distintas, com sérias consequências para os tipos de conhecimento compatíveis com cada uma delas. A primeira apoia a ordem estabelecida com uma atitude acrítica, adotando e exaltando a forma vigente do sistema dominante, por mais que seja problemático e repleto de contradições, tendo como o horizonte absoluto da própria vida social. A segunda, exemplificada pelo pensador de perspectiva radical como J.-J. Rousseau, revela acertadamente as irracionalidades da forma específica de uma anacrônica sociedade de classes que ela rejeita a partir de um ponto de vista. Mas sua crítica é viciada pelas próprias contradições de sua própria posição social, igualmente determinada pela classe social, ainda que seja historicamente evoluída. E a terceira, contrapondo-se às duas posições sociais anteriores, questiona a viabilidade histórica da própria sociedade de classe, propondo, como objetivo central de sua intervenção prática consciente, a superação de todas as formas de antagonismo de classe. Apenas o terceiro tipo social de ideologia pode tentar superar as restrições associadas com a produção do conhecimento prático dentro do horizonte da consciência social dividida, sob as condições da sociedade dividida em classes sociais.
É neste sentido que devemos comparativamente diferenciar, entretanto, três posições ideológicas fundamentalmente distintas, com sérias consequências para os tipos de conhecimento compatíveis com cada uma delas. A primeira apoia a ordem estabelecida com uma atitude acrítica, adotando e exaltando a forma vigente do sistema dominante, por mais que seja problemático e repleto de contradições, tendo como o horizonte absoluto da própria vida social. A segunda, exemplificada pelo pensador de perspectiva radical como J.-J. Rousseau, revela acertadamente as irracionalidades da forma específica de uma anacrônica sociedade de classes que ela rejeita a partir de um ponto de vista. Mas sua crítica é viciada pelas próprias contradições de sua própria posição social, igualmente determinada pela classe social, ainda que seja historicamente evoluída. E a terceira, contrapondo-se às duas posições sociais anteriores, questiona a viabilidade histórica da própria sociedade de classe, propondo, como objetivo central de sua intervenção prática consciente, a superação de todas as formas de antagonismo de classe. Apenas o terceiro tipo social de ideologia pode tentar superar as restrições associadas com a produção do conhecimento prático dentro do horizonte da consciência social dividida, sob as condições da sociedade dividida em classes sociais.
Ipso facto é que o herói de Memórias
não deve ser entendido como uma figura pícara, como na experiência literária
espanhola: ele é malandro. A determinação de suas características faz mais que
mostrar especificamente quem é Leonardo Filho, mas o insere em uma tradição.
Uma tradição brasileira que segue desde a Colônia, manifestada pela figura de
Pedro Malasartes, e percorre a história literária brasileira até o modernismo
no século XX, com Macunaíma e Serafim Ponte-Grande, por exemplo - a
malandragem. O malandro é o aventureiro astucioso, gosta do “jogo em si”, está
sempre no limite da política entre o lícito e o ilícito e será a figura chave
para a compreensão do ensaio de Antonio Candido. Isso porque o malandro é
figura do imaginário individual (o sonho) e coletivo (os mitos, os ritos, os
símbolos) que existe efetivamente tanto no campo da ficção literária quanto no campo
da realidade propriamente dita.
As
Memórias, como aponta Antonio
Candido, são únicas no panorama de nossa ficção oitocentista porque não
expressam a visão de nossa classe dominante. O autor das Memórias suprime os
escravos e as classes dirigentes, sobrando-lhe um setor intermediário e anômico da sociedade, cujas
características, entretanto, serão decisivas para a medida das relações ideológicas
entre as classes sociais. Tratava-se de caracterizar os homens livres na ordem
escravocrata e sua lei. Estes homens viviam num espaço social intermediário e
anômico, em que não integravam a ordem, mas também não podiam dela prescindir.
É aí que reside a contradição dialética de Antonio Candido tenha sido o de
perceber que as Memórias operam através da lógica da dialética entre ordem e
desordem. Ordem e desordem seria a própria forma de expressão do romance, a
“lei de sua intriga”, seria o princípio que organizaria a realidade e a ficção.
A figura do malandro é a mais adequada a este tipo de organização de mundo em
que forças da ordem, como a polícia, por exemplo, concorrem com as forças da
desordem. Ele é o tipo que transita entre os dois mundos. Está sempre atuando
no limiar, no cinzento, entre o que se pode e o que não se deve fazer. A
alternativa decantada entre lícito/ilícito é perfeitamente relativizada pelo
malandro. O malandro encarna a esperteza popular, sabedoria genérica da
sobrevivência em um mundo repleto de obstáculos e iniquidades.
Não por acaso quando se insere caricaturalmente o romance de Chico Buarque, Leite Derramado (2010). Um homem muito velho está num leito de
hospital. Membro de uma tradicional família brasileira, ele desfia, num
monólogo dirigido à filha, às enfermeiras e a quem quiser ouvir, a história
social de sua linhagem desde os ancestrais portugueses, passando por um barão
do Império, um senador das oligarquias até o descendente visto como um “garotão”,
um tipo social da cidade do Rio de Janeiro. Uma saga familiar caracterizada
pela decadência social e econômica, tendo como pano de fundo a história do
Brasil dos últimos dois séculos. A weltanschauung
que o autor nos oferece da sociedade brasileira é extremamente pessimista:
compadrios, preconceitos de classe e de raça, machismo, oportunismo, corrupção,
destruição da natureza, delinquência. A saga familiar especificamente da
decadência (cf. Pimentel, 2013) é um gênero consagrado no romance ocidental moderno.
A
representação da imagem do “leite derramado” (cf. Dusilek, 2011), além da leitura
sociológica de queda de uma casta, racista casta, mas cujos descendentes vão se
misturando até a negritude do tataraneto, é retirada textualmente do episódio
no qual Eulálio vê sua esposa Matilde, às escondidas, “despejando leite de seu
peito na pia do banheiro”. Eulálio não cansa de recontar sua história, como
quando conheceu sua esposa na missa de sétimo dia de seu pai. Sabendo-se
repetitivo, justifica-se da seguinte forma: - “Se com a idade a gente dá para
repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço da alma, é por
esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se
assim tirasse cópias dela, para a hipótese de a história se extraviar”. Mesmo
“sem o menor desejo consciente” de falsificar o passado, com tantas construções
e reconstruções muitas vezes confusas, o resultado é, de fato, “um quadro
total, novo”. Note-se ainda a fala sobre a solidão dos velhos, relevando a
importante questão da memória de velhos que não têm com quem conversar, e que
por isso “há tantos velhos embatucados por aí”. Eulálio, a despeito de poder
estar “falando às paredes”, fala sem parar, conta sua história a todos que
encontra. Talvez como uma forma dialética através da repetição da memória de
evitar a solidão, age como se todos estivessem interessados em seu colóquio,
embora perceba que isso é ilusão, e que na realidade sente-se como tantos
velhos, “numa espécie de país estrangeiro”.
Após
a sucessão presidencial de 1894 e um governo de transição dos militares para os
civis, executado pelo governo Prudente de Morais (1894-1896), a oligarquia
rural brasileira conseguiu consolidar definitivamente seu poder político no
Estado brasileiro com o governo de Campos Salles (1896-1902). Em seu mandato,
foi solucionado o litígio sobre a delimitação da fronteira entre o Brasil e a
França. Tal litígio era sobre a demarcação da fronteira entre e estado do Amapá
e a Guiana Francesa, que havia invadido o território brasileiro, anexando cerca
de 260 mil km² do estado. Depois de quase dois séculos de disputas, o litígio
foi vencido pelo Brasil em 1900, através do acordo que ficou conhecido como Questão do Amapá, determinando que a
fronteira entre os dois territórios fosse o rio Oiapoque e retornando ao Brasil
a área que havia sido tomada. Foi durante o governo Campos Salles que os
mecanismos de poder político das oligarquias rurais foram criados. Para isso
foram instituídos três mecanismos de poder: a política do café com leite, a
política dos governadores e a Comissão Verificadora dos Poderes. Foi durante o
governo Campos Salles que os mecanismos de poder político das oligarquias
rurais foram criados.
Em troca, o presidente manteria a autonomia dos estados, sem interferir nas disputas políticas internas de cada um deles. Para que isso se tornasse possível, foi criada a “Comissão Verificadora de Poderes”, instância responsável pela diplomação dos candidatos eleitos nos estados para os cargos de deputados e senadores. Na prática, funcionava como “uma barreira para os opositores dos oligarcas regionais aliados à política do café com leite”. Caso esses opositores vencessem as eleições estaduais, a Comissão impediria sua diplomação e posse, afirmando haver fraude eleitoral determinando o toma lá da cá na da politicagem brasileira. Com essa “degola” de opositores, termo usado naquela conjuntura de corte autoritário, senadores e deputados coniventes com a política hegemônica e dominante eram eleitos, mantendo a estabilidade política do regime. Com essa forma de governar, as oligarquias brasileiras mantinham as estruturas políticas necessárias para manter o desenvolvimento social e o fortalecimento de suas práticas econômicas. Delação premiada refere-se sociologicamente à expressão coloquial na reprodução do discurso político para a chamada “colaboração premiada” na legislação brasileira, constituindo-se “um benefício legal concedido a um réu em uma ação penal que aceite colaborar na investigação criminal ou entregar seus companheiros”.
Essa prática de favor dialeticamente
é prevista em diversas leis brasileiras que, para aquele que contribuir efetiva
e voluntariamente com a investigação ou processo, o juiz poderá “conceder perdão judicial, reduzir a pena de prisão em
até dois terços (2/3) ou substituir por pena restritiva de direitos”. Assim, para que um réu se torne um delator e
gozar dos benefícios que a lei lhe oferece, o primeiro passo é manifestar
oficialmente o interesse em fazer o acordo. Depois,
na presença de advogados e procuradores, o réu revela o que tem para delatar.
Se avançar, as partes assinam um termo de “confidencialidade” para evitar
vazamentos. Só depois que a delação for homologada pela Justiça é que as
informações poderão ser usadas nas investigações. Junto com os depoimentos, o
delator tem que apresentar provas e documentos. Em troca, recebe uma pena mais
leve. Especialistas no assunto defendem que a decisão de tornar-se um delator
precisa ser voluntária do investigado. Na legislação, a
“colaboração” deve resultar esses aspectos: identificação de
outros autores do crime ou membros da organização criminosa; revelação da
estrutura hierárquica da organização criminosa; prevenção de infrações penais
decorrentes da atividade criminosa; recuperação parcial ou total dos produtos
das infrações; localização de vítima com integridade física preservada.
Historicamente a Inglaterra foi um dos primeiros países a adotar a delação premiada, uma vez que existem registros de sua utilização no ano de 1775. Com o tempo, as leis do país foram aperfeiçoadas e atualmente o promotor pode ofertar a imunidade de acusação em todos os tipos de infração penal em troca de informações úteis. A lei de delação premiada nos Estados Unidos data de 1977 e é amplamente utilizada. O instrumento da justiça penal negociada, que lá é chamado de “plea bargain”, é utilizado em 95% dos processos do país e pode ser adotado em qualquer crime, independentemente de sua natureza, incluindo os mais graves, e os colaboradores se transformam em testemunhas que podem receber como benefício redução de pena, regime diferenciado na cadeia e preservação do patrimônio. A Itália adotou a delação premiada há muitos anos e foi justamente utilizando o instituto que obteve grandes resultados no combate à máfia italiana. Os que colaboram com a justiça no país podem ter a sua pena diminuída de um terço a dois terços. No ano de 2015, a lei foi expandida e passou a abranger também os casos de corrupção. No Japão, o sistema de delação premiada passou a vigorar presentemente em 2017 e permite até mesmo a retirada das acusações ou a anulação do indiciamento do suspeito que colaborar com a investigação e apresentar evidências que levem à prisão de outras pessoas, desde que o Acordo seja realizado na presença de um advogado.
Bibliografia geral consultada.
HEGEL, Friedrich, Fenomenologia dello Spirito. Florença: La Nuova Itália, 1973; MORSE, Richard McGee, O Espelho de Próspero. Cultura e Idéias nas Américas. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1988; RAEDERS, George, O Inimigo Cordial do Brasil (O Conde de Gobineau no Brasil: com documentos inéditos). Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988; GINZBURG, Carlo, Miti, Emblemi, Spie - Morfologia e Storia. Torino: Einaudi Editore, 1992; BUARQUE, Chico, Leche Derramada. Tradução espanhola de Ana Rita da Costa García. Barcelona: Ediciones Salamandra, 2010; DUSILEK, Adriana, “As Camadas da Memória de Leite Derramado”. In: Miscelânea – Revista de Pós-Graduação em Letras – Universidade Estadual Paulista, Campus Assis, vol. 9, jan./jun. 2011; PIMENTEL, Vanuccio Medeiros, A Primazia dos Clãs: A Família na Política Nordestina. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciência Política. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de Ciência Política. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2013; ŽIŽEK, Slavoj, Menos que Nada: Hegel e a Sombra do Materialismo Dialético. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013; AVELINO, Pedro Buck, Fidelidade, Álibi ou Traição: Ressignificação e Perspectivas sobre o Comportamento Decisório do STF. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional. Faculdade de Direito. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015; FREITAS, Vladimir Passos de, “A delação premiada entrou definitivamente no processo penal brasileiro”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016/04/03/; SILVA, Fábio Machado da, Colaboração Premiada: Possibilidade e Limites Discursivos. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Justiça Administrativa. Faculdade de Direito. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2017; ESPICH, Sandra, A Delação Premiada quando do Cárcere Prematuro: Uma Negociação entre Díspares e Manifesta Coação Estatal. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Direito. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2017; BOUZA, Thiago Brugger da, Da Teoria à Prática: Prisões Cautelare, Liberdades provisórias e Delação Premiada: O Caso Paulo Roberto Costa. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Direito. Brasília: Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, 2017; entre outros.
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