Ubiracy de Souza Braga
“Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, o contrário da polidez”. Sergio Buarque de Holanda
Do ponto de vista histórico e
pontual o conceito de “carreira” deriva da palavra latina “carraria” e passou
por diversas transformações no decorrer de sua aplicabilidade teórica e
historicamente determinada. Por volta de 1530, no período renascentista,
simplificadamente, “carreira” identificava um caminho, ou o “curso do sol
através dos céus”. Nas disputas de Justa, em 1590, a palavra “carreira” estava
inserida no seguinte contexto: o cavalo que, durante o combate, passava uma
“carreira” em seu oponente. A partir de 1803, o significado contemporâneo da
palavra “carreira” passou a se relacionar ao mundo perigoso dos negócios,
quando o termo foi associado à ideia de “caminho na vida profissional”. Nos
dias atuais, comumente entende-se “carreira” como a soma de “todos os cargos”
ou “posições” ocupadas por uma pessoa durante sua vida profissional. Este
entendimento contraria a raiz etimológica do termo e impede que o conceito real da palavra seja plenamente
assimilado no mercado, inclusive por alguns profissionais de renome em nível
globalizado. Neste sentido, não está associado a restrições temporais, mas sim
espaciais. Não revela um histórico profissional, propriamente dito, mas um
caminho particular rumo a um objetivo institucional condicionado pelo cargo.
No
sentido pontual é um termo disciplinar que designa um determinado campo do
conhecimento. Como campos específicos de
saber, as disciplinas se referem aos mais diversos âmbitos de produção de
conhecimento técnico e científico. Tem como representação a produção social
através de instâncias ou níveis de análises sobre a realidade social, a
constituição de uma linguagem aparentemente comum entre os seus praticantes, a
definição e constante redefinição de seus objetos de estudo, uma singularidade
que as diferencia de outros saberes, uma complexidade interna que termina por
gerar novas modalidades no interior da disciplina. Enfim, a rede de conexão
humana de conhecimentos que constitui determinado campo de saber, com a formação
progressiva da chamada comunidade
científica compartilhada pelos diversos praticantes do campo disciplinar.
Há de fato um processo de trabalho de pesquisa & desenvolvimernto, com a fundação e manutenção de revistas
científicas especializadas, a ocorrência constante de congressos frequentados
pelos praticantes do campo disciplinar, a criação de instituições científicas
que representam os profissionais do campo de saber vinculando seu nome, seu
cargo no âmbito do processo de trabalho e de pesquisa nas instituições e assim
por diante.
Neste
aspecto, vale lembrar que Thomas Kuhn ocupou-se principalmente do estudo da
história da ciência, no qual demonstra um contraste entre duas concepções da
ciência: por um lado entendida como uma atividade completamente racional e controlada,
e por outro, a ciência enquanto uma atividade concreta que se dá ao longo do
tempo e que em cada época histórica apresenta peculiaridades e características
próprias. Decorre daí que e noção de “paradigma” resulta fundamental na
perspectiva historicista e não é mais que uma macroteoria, um marco ou
perspectiva que se aceita de forma geral por toda a chamada “comunidade
científica” que compartilham um mesmo paradigma e realizam a mesma atividade
científica e a partir do qual se realiza a atividade científica, cujo objetivo
é esclarecer as possíveis falhas do paradigma ou extrair todas as suas
consequências. No ensaio: “Estrutura das Revoluções Científicas” (1962), o
termo paradigma causou interpretações
errôneas a uma série de estudiosos. Thomas Kuhn esclareceria posteriormente que
o termo pode ser utilizado num sentido geral e num sentido restrito. O primeiro
diz respeito à noção de matriz disciplinar, significando “o conjunto de
compromissos de pesquisa de uma comunidade científica”.
O
segundo sentido de conceptual denota os paradigmas exemplares, decerto
positivistas, e, portanto, tecnicistas que têm constituído a base da formação
científica, uma vez que o pesquisador passa a dominar o conteúdo cognitivo da
ciência através da experimentação no âmbito dos exemplos compartilhados. Um
pós-doutorado, nunca é demais repetir, consiste em uma atividade especializada
ou estágio de pesquisa em
universidade, realizado após a conclusão do doutorado. Quem termina um
doutorado e quer continuar se aprimorando como pesquisador tem a opção de fazer
um pós-doutorado. Ao contrário da pós-graduação (Mestrado e Doutorado), o estágio de pós-doutorado não visa
obtenção de um título. Em outras palavras, não existe o título pós-doutor. O pesquisador pós-doutorando
não tem vínculo trabalhista com a instituição que o recepciona e pode ou não
ter bolsa de estudos que o financiará. É comum haver um professor supervisor na
instituição, que será responsável por “fiscalizar” a realização dos objetivos
da pesquisa. O objetivo maior é o aprofundamento da pesquisa em dada área do
conhecimento, mas pode haver também a possibilidade de o pós-doutorando ter
atividades paralelas, tais como oferecer cursos, aulas e palestras, assim como
participar em júris ou bancas de avaliação, como no caso de avaliações de
mestrados e doutorados.
A
mais antiga universidade de língua inglesa, Oxford, foi fundada em 1090 e
cresceu de vez em 1167 após o Rei Henrique II da Inglaterra proibir seus
estudantes de irem a Paris. A própria instituição gosta de dizer que é mais
antiga que o Império Azteca, Genghis Khan e a Catedral de Notre-Dame de Paris. A
instituição foi palco de diversos acontecimentos históricos, muitos de cunho
religioso. No século 14, um de seus professores fez campanha por uma Bíblia em
inglês, em direta oposição ao papado. Em 1530, o Rei Henrique VIII forçou a
universidade a aceitar seu divórcio de Catarina de Aragão. No mesmo século, membros
do clero anglicanos considerados hereges foram queimados na fogueira em pleno campus universitário.
E em 1860, em um dos debates mais famosos da ciência "versus" a noção embrionária de ideologia, o acadêmico Thomas Huxley
enfrentou o Bispo Wilberforce para defender a teoria da evolução. Oxford segue
sendo uma das universidades mais renomadas do mundo – é a 1ª melhor da Europa e
2ª melhor do mundo, de acordo com a Times
Higher Education –, e hoje conta com 38 faculdades e cerca de 22.300
alunos.
Pode-se
entender carreira como uma série de
estágios que variam conforme forças de trabalho exercido sobre o indivíduo.
Tem-se a relação entre a organização e o profissional, como fator de
conciliação das expectativas entre ambas a partes. A carreira é um dos termos
das ciências sociais que não é ambígua e está relacionada a uma gama ampla de
definições. Pode significar, ao mesmo tempo, emprego assalariado ou atividade
não remunerada, profissão, vocação, ocupação, estágio, posição em uma
organização, trajetória de um indivíduo que trabalha, uma fonte de informação
para as empresas alocarem recursos humanos, ou até “um roteiro pessoal para a
realização dos próprios desejos”. Carreira inclui os estudos ou a preparação
acadêmica e integram as capacidades laborais, as novas aprendizagens, as
mudanças pessoais sobre a própria imagem, as metas e os valores, assim como a
resposta para as novas oportunidades e mudanças tanto sociais como políticas. A
carreira é um caminho de maturação, de crescimento em conhecimentos,
habilidades e responsabilidades sobre a própria vida.
A
base do conceito de carreira é expressa no curriculum
Lattes, elaborado nos padrões da “plataforma” gerida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cietífico e Tecnológico - CNPq, tendo como
resultado a experiência individual cumulativa na integração de bases de dados
de currículos, de grupos de pesquisa e de instituições em um único sistema de
informação, “tornando-se um padrão nacional no registro do percurso acadêmico
de estudantes e pesquisadores do Brasil”. Atualmente é adotado pela maioria das
instituições de fomento, universidades e institutos de pesquisa do país. A
“riqueza” do controle de informações, a abrangência e confiabilidade são
elementos indispensáveis aos pleitos de financiamentos na área de ciência e
tecnologia. O curriculum Lattes é
mais abrangente que o curriculum vitae,
sendo esta a principal diferença entre os dois. É mais longo, pois
deve mencionar detalhadamente tudo o que está relacionado com a carreira do
profissional.
É
neste sentido que a carreira profissional está indissociavelmente ligada
ao positivismo, corrente filosófica que
Auguste Comte fundou com o objetivo de reorganizar o conhecimento humano, seu
caráter e que tem grande influência no Brasil e de resto no mundo ocidental. O
positivismo é, enquanto sistema, simultaneamente, uma doutrina filosófica,
sociológica e política. Surgiu como desenvolvimento do iluminismo. Das crises
sociais e moral do fim da Idade Média e do nascimento da sociedade industrial -
processos que tiveram como marco a revolução clássica francesa. Em linhas
gerais, ele propõe à existência humana valores sociais completamente humanos,
afastando radicalmente a teologia e a metafísica. O positivismo comtiano associa
uma interpretação positiva das ciências; uma classificação do conhecimento a
uma ética humana radical. Defende a ideia de que o conhecimento científico é a única forma de conhecimento verdadeiro.
Com os positivistas somente pode-se afirmar que uma teoria é correta se ela foi comprovada empiricamente através de
métodos científicos válidos. O progresso da humanidade depende exclusivamente
dos avanços científicos.
Uma
organização observa Marilena Chauí
(2003), difere de uma instituição por
definir-se por uma prática social determinada de acordo com sua
instrumentalidade: está referida ao conjunto de meios (administrativos)
particulares para obtenção de um objetivo particular. Não está referida a ações
articuladas às ideias de reconhecimento externo e interno, de legitimidade
interna e externa, mas a operações definidas como estratégias balizadas pelas
ideias de eficácia e de sucesso no emprego de determinados meios para alcançar
o objetivo particular que a define. Por ser uma administração, é regida pelas
ideias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito. Não lhe compete
discutir ou questionar sua própria existência, sua função, seu lugar no
interior da luta de classes, pois, que para a instituição universitária é crucial, é, para a organização, um dado de fato. Ela sabe (ou
julga saber) por que, para que e onde existe.
Do
ponto de vista do trabalho a gestão de carreira envolve duas partes principais:
a da organização e a concepção do indivíduo. Diferentemente de décadas
passadas, quando as organizações definiam as carreiras de seus empregados, na
modernidade o papel do indivíduo na gestão da carreira se torna relevante e
assume um papel progressivamente mais atípico. Os empregados assumem, na
atualidade, o papel de planejar sua própria carreira, sendo estimulados a
acumular conhecimentos científicos e administrar suas carreiras para garantir
mobilidade no mercado de trabalho. No início
indivíduos buscam desafios, salários atrativos e responsabilidades, após
amadurecerem, passam a se interessar por trabalhos que demandem: autonomia e
independência, segurança e estabilidade, competência técnica e funcional,
competência gerencial, criatividade intelectual, serviço e dedicação a uma
causa, desafio político, estilo de vida. A
instituição social aspira à universalidade. A organização sabe que sua eficácia e seu sucesso dependem de sua particularidade. Isso significa que a
instituição tem a sociedade como seu princípio e sua referência normativa e
valorativa, enquanto a organização tem apenas a si mesma como referência, num
processo de competição com outras que fixaram os mesmos objetivos particulares.
Em outras palavras, a instituição se percebe inserida na divisão social e política
e pretende definir uma universalidade (imaginária ou desejável) que lhe permita
responder às contradições, impostas pela divisão. Ao contrário, a organização
busca gerir seu espaço e tempo particulares aceitando como dado bruto sua
inserção num dos polos da divisão social, e seu alvo não é responder às
contradições, e sim vencer a competição com seus supostos iguais. A questão
nevrálgica refere-se à pergunta: Como foi possível passar da ideia da
universidade como instituição à definição como organização prestadora de
serviços? Em primeiro lugar através da passagem da produção de massa e da
economia de mercado para as sociedades de conhecimento baseadas na informação e
comunicação. Na esfera de ação política é regulação da existência coletiva,
poder decisório, luta entre interesses contraditórios, disputa por posições de
mundo, confrontos mil entre forças sociais, violência em última análise. Só que
a produção dos processos políticos, baseados em instituições sociais como
esfera de poder, em segundo lugar, se diferencia radicalmente da produção
econômica porque usam eventualmente suportes materiais, como armas, livros,
processos, papéis onde se inscrevem as ordens, os atos de gestão, as sentenças
ou as leis, mas não é uma produção material (econômica) no sentido marxista do
termo.
Chapéu anti-cola na Tailândia. |
Porque
consiste em decisões imperativas, decisões que podem mudar o plano de vida
individual (os sonhos) e no sentido coletivo (os mitos, os ritos, os símbolos).
É também diferente da produção simbólica porque se exercita sobre o interesse
dos agentes sociais, quando não sobre os próprios tabus do corpo. Corresponde a
atos de vontade que regulam atividades coletivas; disciplina práticas sociais.
Não produzem mensagens, discursos; produzem isto sim: obediências, obrigações,
submissões, direitos, deveres, controles. Poder, para sermos breves, é uma
relação social de mando e obediência. As decisões tomadas politicamente se
impõem a todos num dado território ou numa dada unidade social. Convertem-se em
atividades coercitivas (esfera da segurança), administrativas (esfera da
administração), jurídico-judiciárias (esfera da justiça) e legislativas (esfera
da deliberação). Simplificadamente, processo político diz respeito à pergunta:
Quem pode o quê sobre quem? Eis a questão política, do
confronto entre forças sociais, da sujeição de vontades a outras vontades.
Em
diversas instituições de ensino superior, a tese é um documento essencial para
a obtenção de alguns títulos acadêmicos, como o de doutor e livre-docente, e
tem como objetivo revelar a capacidade de seu autor em desenvolver um trabalho
que acrescente novo conhecimento à área de estudo que foi alvo de suas
investigações, constituindo uma contribuição àquela especialidade. Assim sendo,
o fator que caracteriza a tese de outros documentos é a originalidade. A
Livre-Docência é o estágio mais elevado da carreira universitária e pode ser
atingido apenas por concurso público de provas e títulos por competência,
independente da disponibilidade de vagas na carreira funcional. Livre-Docência
é um título concedido no Brasil por uma IES - Instituição de Ensino Superior, mediante concurso público aberto,
desde setembro de 1976, exclusivamente para portadores do título de doutor, e
que atesta uma qualidade docente e de pesquisa. O concurso de livre-docência é
aberto por Edital e o candidato inscrito deverá, além de submeter-se a uma
prova escrita e a uma prova didática, desenvolver também uma tese monográfica
ou cumulativa, ainda pouco usual, sobre
um tema acadêmico e defendê-la perante uma banca examinadora. Dependendo da
área, como por exemplo, a música, uma prova prática pode também ser exigida no
concurso. A categoria livre-docência é regulada pela Lei nº. 5.802/72 e nº.
6.096/74 e pelo Decreto 76.119/75 e pelo Parecer 826/78 do extinto Conselho Federal de Educação. Diferente
da livre-docência é o título de “Notório Saber”, que é concedido com base no
parágrafo único do art. 66 da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação nacional.
Anteriormente,
a Livre-Docência era aberta a qualquer professor da IES, mas desde 11 de
setembro de 1976 só podem candidatar-se professores já portadores do título de
doutor. Na Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) e Universidade Estadual Paulista (UNESP), a Livre-Docência é
requisito para a candidatura ao cargo de professor Titular e o Livre-Docente
recebe o título de Professor-Associado, quando já pertence ao quadro docente da
universidade, mas o título pode ser obtido também por doutores externos à
universidade. Nas universidades federais, a Livre-Docência praticamente
desapareceu, dado que o doutor já é professor-adjunto e pode, havendo vaga,
prestar concurso para professor Titular. Aparentemente, a Livre-Docência perdeu
seu sentido nas universidades federais e estaduais. Honrosas exceções são a
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) que, a exemplo das suas congêneres
paulistas, mantém os concursos de Livre-Docência e a Universidade Estadual do
Ceará (UECE) que provê o concurso público de provas e títulos através da
Resolução n° 788/2011 – CONSU, de 21 de fevereiro de 2011.
Na
Universidade Estadual do Ceará é o Reitor
que no uso de suas atribuições legais e estatutárias, tendo em vista o que
consta do Processo SPU Nº 10129261-9 e da deliberação unânime dos membros do
Conselho Universitário - CONSU, em sua reunião de 21 de fevereiro de 2011,
Resolve: Art. 1º - Estabelecer os procedimentos para a Habilitação à Livre
Docência, que levam ao Título de Professor Livre Docente, observados o que
dispõe a presente Resolução. Parágrafo Único - O título de Professor Livre
Docente é de natureza meritória, pontuando para ascensão funcional por
progressão, visto que o mesmo resulta de processo seletivo interno, não gerando
direito a gratificação de incentivo ou promoção por titulação, não gerando
direito a gratificação de incentivo ou promoção por titulação. Art. 2° - Para
inscrição no processo seletivo, o interessado deverá: I - ser professor classe
Titular, Associado ou Adjunto; II - ter concluído curso de Doutorado no Brasil,
em programa recomendado pela CAPES ou no exterior; III - ter concluído
Doutorado há no mínimo 5 anos; IV - comprovar exercício de Magistério Superior
por pelo menos 10 (dez) anos; V - apresentar produção científica, técnica ou
cultural reconhecida como de “alta relevância”; VI - Cumprir as normas
estabelecidas na Resolução e na chamada interna de regulamentação do processo
seletivo.
Parágrafo Único - Em caso de curso de Doutorado realizado no
exterior, será exigido comprovante de revalidação nacional do diploma. Art. 3º
- Poderão inscrever-se os professores doutores da UECE que desejem agregar
valor ao curriculum vitae ou se submeter,
a Concurso de Professor Classe Titular. Na
Universidade Estadual do Ceará a carreira universitária curiosamente ocorre no
entorno da pesquisa de “pós-doutoramento”, que de maneira autoritária e
irresponsável elimina as condições e possibilidades de escolha livre e
democrática do professor-pesquisador concorrer ao cargo de professor Livre-Docente
e professor Titular. Na verdade os concursos públicos de provas e títulos para professor
Livre-Docente e Titular, decorrem do que o antropólogo Peter Fry (1982) denominou,
“para inglês ver”. Isto porque vem sendo pragmaticamente impingida a ideia de valor (inclusive econômico) à pesquisa
de “pós-doutoramento” em detrimento da pesquisa de Tese de Livre-Docência
conjugada á Tese de Titular na carreira docente. Isto é importante devido à dimensão
ideológica que forja um sentido negativo
e enciclopédico no processo de
formação como se houvesse oposição assimétrica para aqueles que preferem o “survey”
chamado pós-doutoramento e aqueles que pretendem a dimensão reveladora da
pesquisa histórico-sociológica constitutiva dos processos comunicativos.
As
análises teóricas sobre o legado de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982),
desencadeadas no centenário de seu nascimento, tiveram o dom de resgatar um
capítulo esquecido em sua obra que dedicou a carreira acadêmica a compreender a
alma nacional. Trata-se de uma dissertação de mestrado, defendida por Sérgio
Buarque em 1958 na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo,
intitulada: “Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos
Descobrimentos”. O ensaio adormecia no acervo do historiador, confiado à
Unicamp depois de sua morte. Edgar de Decca ficou surpreso e intrigado com o
que encontrou. - “Há uma impressionante linha de continuidade entre essa
dissertação e o clássico: Raízes do
Brasil, publicado em 1936”. Alguma coisa foi alterada na percepção de
Sérgio Buarque. Perde força no trabalho de mestrado aquilo que se transformou
no traço mais marcante da obra Raízes do
Brasil, que é um ensaio histórico sobre o que faltou e o que foi negado na
constituição da nossa identidade. Em Raízes,
a análise parte do critério da ausência: à nossa cultura faltou uma
ética do trabalho, o estado racional se ausentou ante o predomínio do
patriarcalismo e do paternalismo. E vicejou o caráter
cordial do brasileiro – que privilegia as relações pessoais e busca a
intimidade no convívio social, conceito cunhado por Sergio Buarque e confundido
com benevolência.
Essa
exploração humana dos trópicos não se processou, em verdade, por um
empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade construtora e
enérgica: fez antes com desleixo e certo abandono. Dir-se-ia mesmo que se fez
apesar de seus autores. E o reconhecimento desse fato não constitui, para
Sérgio Buarque, menoscabo à grandeza do esforço português. Isto porque existe
uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do
tipo trabalhador só atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de
praticar e, inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias
do aventureiro – audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade,
vagabundagem – tudo, enfim, quanto se relacione com a concepção espaçosa do
mundo, característica desse tipo. Por outro lado, as energias e esforços que se
dirigem a uma recompensa imediata são enaltecidos pelos aventureiros; as
energias que visam à estabilidade, à paz, à segurança pessoal e os esforços sem
perspectiva de rápido proveito material passam, ao contrário, por viciosos e
desprezíveis para eles. Nada lhes parece mais estúpido e mesquinho do que o
ideal do trabalhador.
O
que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa
ousadia, não riqueza que custa trabalho. Não foi, por conseguinte, uma
civilização tipicamente agrícola o que instauraram os portugueses no Brasil com
a lavoura açucareira. Não o foi, em primeiro lugar, porque a tanto não conduzia
o o gênio aventureiro que os trouxe á América; em seguida, por causa da
escassez da população do reino, que permitisse emigração em larga escala de
trabalhadores rurais, e finalmente pela circunstância de a atividade agrícola
não ocupar então, em Portugal, posição de primeira grandeza. Poucos indivíduos
sabiam dedicar-se a vida inteira a um só mister sem se deixaram atrair por
outro negócio aparentemente lucrativo. E ainda mais raros seriam os casos em
que um mesmo ofício perdurava na mesma família por mais de uma geração, como
acontecia normalmente em terras onde a estratificação social alcançara maior
grau de estabilidade. Da tradição portuguesa, pouca coisa se conservou entre
nós que não tivesse sido modificada ou relaxada pelas condições adversas do
meio.
A
família patriarcal fornece, assim, o grande modelo por onde se hão de calcar,
na vida política, as relações entre governantes e governados, entre monarcas e
súditos. Uma lei moral inflexível, superior a todos os cálculos e vontades dos
homens, pode regular a boa harmonia do corpo social, e, portanto deve ser
rigorosamente respeitada e cumprida. Esse rígido paternalismo é tudo quanto se
poderia esperar de mais oposto, não já as ideias da França revolucionária. Mas
tradicionalistas e iconoclastas que se movem, em realidade, na mesma órbita de
ideias. Estes, não menos do que aqueles, mostram-se fiéis preservadores do
legado colonial, e as diferenças que os separam entre si são unicamente de
forma e superfície. O caráter puramente exterior, epidérmico, de numerosas
agitações ocorridas entre nós durante os anos que antecederam e sucederam à
Independência, mostra o quanto era difícil ultrapassarem-se os limites que à
nossa vida política tinham traçado certas condições específicas geradas pela
colonização. No
Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família
patriarcal, o desenvolvimento da urbanização – que resulta unicamente no
crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação,
atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influências das cidades – ia
acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos até hoje.
Já
se disse, numa expressão feliz, afirma Sérgio Buarque, “que a contribuição brasileira
para a civilização será a de cordialidade – daremos ao mundo o homem cordial. A
lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por
estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do
caráter brasileiro, na medida, ao menos, que permanece ativa e fecunda a
influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e
patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas
maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um lado
emotivo extremamente rico e transbordante. Nenhum povo está mais distante dessa
noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio
social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na
aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir
precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são
espontâneas no “homem cordial”: é a
forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso a polidez é, de
algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior,
epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de
resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas
sua sensibilidade e suas emoções.
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Pós-Graduação em Ciência Política, 2013; ANTUNES, Ricardo, The Meanings of Work. Essay on the Affirmation and Negation of Work. Leiden; Boston: Brill/HM Book Editor, 2013; SOUZA, Fabricio Toledo de, A Crise do Refúgio e o Refugiado com Crise. Tese de Doutorado. Programa de Pòs-Graduação em Direito. Departamento de Direito. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2016; BELTRÃO, Filipe Barros, O Som na Obra de Lars von Trier: Um Estudo sobre a Criação Sonora. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2016; KUSSUDA, Sérgio
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de Ex-Alunos e Professores. Tese de Doutorado. Faculdade de Ciências.
Bauru: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 2017; entre outros.
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