terça-feira, 17 de outubro de 2017

Robert Merton - As Estruturas de Oportunidades

                                                                                                     Ubiracy de Souza Braga

 “Most institutions demand unqualified faith; but the institution of science makes skepticism a virtue”. Robert Merton

                                                           
            Filho de imigrantes de origem judaica supostamente emigrada da Ucrânia no ano de 1904, antes dos múltiplos ataques antissemitas no país, apesar da infância humilde vivida no sul da Filadélfia, Meyer R. Schkolnick considerava que lhe fora oferecido um amplo leque de possibilidades. Dentre elas estava a escola local de ensino médio na qual estudou bem como a biblioteca Canergie, localizada nas proximidades da casa de seus pais, da qual foi assíduo frequentador. Para além de sua paixão pela leitura, Merton descobriu cedo uma segunda paixão, a mágica, que o levou a alterar seu nome, primeiro para Robert Merlin aos catorze anos, e depois para Robert King Merton aos dezenove. Concluiu seus estudos na South Philadelphia High School e recebeu uma bolsa de estudos para a universidade pública Temple University, na Filadélfia, onde se tornou um aluno de destaque, passando a ser tutorado pelo sociólogo George E. Simpson. Foi fundada originalmente em 1884 pelo Dr. Russell Conwell. Atualmente possui mais de 38 mil alunos entre estudantes de graduação e pós-graduação além de doutorandos. Com mais de 300 programas acadêmicos distribuídos entre sete campus no estado da Pensilvânia (EUA) e nos campus internacionais de Roma, Tóquio, Singapura e Londres onde está presente. É considerada uma das melhores universidades daquele estado e em conjunto nos Estados Unidos da América.



Nesse contexto, Merton passa a se interessar pela tradição sociológica europeia e a participar como auxiliar em seu projeto de pesquisa intitulado: “The Negro in the Philadelphia Press”, sendo posteriormente por este apresentado a Pitirim Sorokin, fundador do recém-criado Departamento de Sociologia da Universidade de Harvard. Encorajado por Sorokin, Merton se candidata para uma bolsa de estudos em Harvard, onde consegue uma vaga logo após o término de seu curso em Temple University para trabalhar como aluno Assistente deste. Durante sua estada em Harvard, como sabemos, apesar de tutorado por seu mentor Sorokin, Merton começa a se interessar pelo trabalho acadêmico de Talcott Parsons, um jovem, ainda desconhecido professor do novo Departamento de Sociologia. Foi a partir de seu pensamento que Robert Merton teve o primeiro contato com ideia que influenciou posteriormente sua obra: “The Structure of Social Action” (1937). À semelhança de Sorokin, Parsons era um estudioso da escola europeia da sociologia. Mas buscava inferir estes ensinamentos ao invés de resumi-los, utilizando-os para sua constituição de um novo conhecimento.
Merton trata das ações individuais a partir da perspectiva das pressões estruturais onde o indivíduo teria alternativas condicionadas pelo sistema, as quais suas escolhas se restringiriam.  Tais alternativas sofrem impacto da estrutura de poder, prestígio e influência, e a elas seria inerente o conflito e a ambivalência devido à mudança estrutural. Tais padrões apresentariam constantemente níveis de incidência de comportamento desviante. A estrutura social para Merton é composta dos valores e normas, papéis e instituições, e finalmente conjuntos desses papéis, ou status. Ganhou o mérito de estabelecer os fundamentos de uma teoria geral da anomia, que foi posteriormente revisto e transformado pelo autor em sua obra clássica Teoria e Estruturas Sociais. Por um lado, os valores descrevem os objetivos vislumbrados como legítimos para a ação pela sociedade, e por outro, as normas representam os caminhos pré-determinados e esperados por esta para a consecução destes fins de forma legítima. Enquanto nível de representações os papéis são uma fusão das normas e valores, estipulando um comportamento específico esperado dos indivíduos. Em relação à instituição, sua definição a considera como um conjunto de ideais e valores que orienta o comportamento de uma determinada entidade: a ciência. Os fatores descritos atuam sobre as expectativas que os atores sociais têm uns sobre os outros. A estrutura de oportunidades, sob a perspectiva comparada dessa análise, restringe sistematicamente as ações e oportunidades de vida profissional dos indivíduos.


           
           Metodologicamente a teoria sociológica mertoniana se caracteriza então pela observação de regularidades empíricas na relação entre duas ou mais variáveis, da qual derivam afirmações generalizadas que são estruturadas de forma sistemática. Em contraposição, a influência da pesquisa empírica sobre a teoria, para além da crença popular tout court de que se restringiria ao teste e verificação de hipóteses, demonstra em quatro funções principais que contribuem para modelar seu desenvolvimento; melhor dizendo, ela inicia, reformula, redireciona e esclarece a concepção de teoria. Após a conclusão de sua dissertação, Merton permanece em Harvard se tornando professor Associado do Departamento de Sociologia. Matinha uma visão humanista sobre a função social da ciência, sendo claramente influenciado pela teoria social de Max Weber, um giant que soube compreender o socialismo, por exemplo, dentre uma plêiade de amigos do seleto grupo de intelectuais que frequentavam sua casa, sem ser um socialista ou anarquista engajado.
            Deste ponto de vista soube analisar criticamente o capitalismo, percebendo o problema da ética protestante e o espírito do capitalismo. Contudo, do ponto de vista heterodoxo aproximou-se dos anarquistas, tendo vivido a experiência singular, de Ascona, envolvendo-se com as irmãs Richtoffen, antecipando algumas teses de Freud, sem ser anarquista, tal como Simone de Beauvoir. Herdou com estes, a sabedoria de ser acadêmico na universidade, político nos gabinetes e mundano nos salões. Com Weber o motivo que levou ao reconhecimento em graus diferentes de contribuições de mesma importância, ou até mesmo menor reconhecimento de contribuições de relevância maior. A existência de grandes premiações, como o prêmio Nobel, estabelece para Merton uma fronteira qualitativa absoluta, entre aqueles considerados protagonistas do progresso científico e a chamada “arraia miúda”. Tal fronteira cria a expectativa de que os vencedores de tal premiação sempre trariam contribuições grandiosas enquanto os demais estariam sempre obrigados a se reafirmar. A valorização social das contribuições de cientistas reputados em seus campos de conhecimentos.
           Ipso facto seria desproporcionalmente elevada enquanto a valorização dos “ilustres desconhecidos” tenderia a ser desproporcionalmente diminuta comparativamente. Foi a essa observação, no âmbito dessa lógica que Merton nomeou o “Efeito Mateus”, devido ao reconhecido trecho do evangelho homônimo: - “porque a todo o que tem dar-se-lhe-á, e terá em abundância; mas ao que não tem, até aquilo que tem ser-lhe-á tirado”. O efeito Mateus é usado comumente na sociologia da ciência, numa alusão ao evangelho, para enfatizar vantagens e prestígio que adquirem certos pesquisadores no meio acadêmico, sempre em favor de quem possui. - “A todo aquele que acredita mais fé lhe será dada em abundância; e daquele que não crê lhe será tirado”. Merton quis demonstrar como ocorre o aparecimento de estratificação social no sistema científico, seja ela através de reconhecimento in statu nascendi de conteúdo de sentido honorífico, de premiação através de recursos financeiros, todos de comunicação social da ciência. Por ser uma estratificação social, evidentemente marginaliza a massa de cientistas que mesmo produtivos não recebem as benesses em detrimento do outro, também produtivo, que pertença a uma universidade dita de prestígio.
Esse efeito social específico teria consequências disfuncionais sobre o papel do cientista na sociedade, tanto individualmente, a partir de diversas contribuições não reconhecidas, ou que tiveram sua importância menosprezada, quanto para a crença na justiça de tal sistema. Apesar disso, para Merton, existiriam concomitantemente funções positivas no sistema de comunicação social científico. Isto porque a atenção diferenciada conferida aos trabalhos de cientistas renomados possibilita a ampla difusão de novas descobertas, que poderiam ser ignoradas em circunstâncias normais. Mas também através do “efeito Mateus”, é conferido crédito a novas descobertas ao invés de haver uma recusa inicial pelo abalo que representam para o conhecimento existente. O efeito Mateus pode ser vislumbrado como disfuncional da perspectiva dos sistemas, e simultaneamente funcional para o sistema de comunicação da ciência. Com o processo político de globalização a disfunção ocupacional representa uma incapacidade temporária ou crônica de desempenhar papéis, ocupações e relacionamentos esperados para realizar suas atividades sociais na vida cotidiana. Mutatis mutandis, no governo do sociólogo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) ele reinventou a categoria frankfurtiana da substituibilidade abrindo vagas de professores nas universidades.                              
Com o reconhecimento, o cientista ganha confiança (cf. Luhmann, 2005) aprofundada em seu próprio julgamento. A confiança é também a característica comum dos cientistas aparentemente renomados. Outros fatores psicológicos importantes são a paciência e a força de vontade em perseverar na dura atividade de reconhecimento que decorre da pesquisa científica. Apesar de atentos às possíveis dicas oriundas de pesquisas diversas em sua área de interesse, eles são auto-orientados e capazes de, por sua grande convicção, procurar métodos alternativos de pesquisa com a constatação de lacunas no método adotado. O fator psicológico cumpre papel fundamental, portanto, para a criação da presunção que perpetua o efeito Mateus dentro da comunidade científica. Os cientistas relativamente importantes tendem a controlar a sua produção acadêmica, a abster-se de publicar tudo o que produzem, a menos que estes textos alcancem seus próprios padrões de qualidade. A presunção de qualidade ou de importância de reconhecimento social que se dá aos trabalhos de “men of science” lembra-nos que não são os únicos que contribuem para o reconhecimento científico.


As instituições renomadas cujas produções são amplamente reconhecidas, tendem a concentrar maiores recursos de toda a forma - humanos ou materiais - do que aquelas que ainda não têm proeminência na produção científica. Por outro lado, as universidades sabidamente proeminentes em sua tradição acadêmica e consequentemente concentradora de recursos desigualmente distribuídos (materiais e humanos), não concentrariam toda a produção acadêmica de ponta como laureados com o prêmio Nobel. Para Merton, ocorre que o sistema, embora exponencial, atinge um limite. Os alunos não desejam manter-se sob a sombra de seus próceres renomados, uma barreira de transposição social, elitista, difícil, pela operação do efeito Mateus em sua forma mais simples. Os professores podem sentir-se ameaçados com a manutenção de jovens excessivamente talentosos em seus grupos de pesquisa ou em grupos  adversários, sob o medo de serem substituídos prematuramente. Apartado do sistema interno de dispersão de “capital humano” há também um sistema externo de competição por fontes cognitivas em confronto dentre as universidades. Em seu tempo a ética profissional dos engenheiros, muito parecida com a dos cientistas ou juízes criminais, descola de sua esfera de preocupação as consequências sociais e psicológicas de seus atos concorrentes profissionais.
Assim, ficam livres para exercer a função de projeção esquecendo-se de seus desdobramentos sociais. Em sua análise empírica o trabalho de engenharia torna-se antiético, dada a pulverização da responsabilidade. Merton procurava descrever, definir e fundamentar a tese de que aspectos da ética protestante puritana, pois aplicada primordialmente sobre a Inglaterra do século XVII, com incursões sobre a ética pietista alemã, equivalente moral na Europa continental, não só propiciaram, mas integraram o corpo normativo da ciência, e para tal faz-se necessária à análise do “ethos” puritano, tal qual o ethos científico, é um complexo de regras mais ou menos explícitas que convergem numa prática dessa classe corporativa. São pontos da ética protestante que tangenciam o desenvolvimento da pesquisa científica conforme observada no método empírico e racional. Na Europa Continental, o movimento puritano inglês encontrou um equivalente cultural no movimento pietista. O último movimento contribuiu para a crença na ciência racional, empírica e utilitarista na Alemanha e ainda em outros países europeus, em instituições como Köninsberg, Halle, Heidelberg e Altdorf.
A lista de cargos e posições, titulações de doutor honoris causa e prêmios conferidos a Merton é impressionante. Apenas para citar algumas das mais relevantes, Merton foi presidente da Associação Americana de Sociologia (1956-1957), da Associação de Pesquisa em Sociologia (1968), e da Sociedade para Estudos Sociais da Ciência (1975-1976). A ele foram conferidos mais de 20 títulos doutor honoris causa, entre eles de renomadas universidades como Oxford, Yale, Chicago, Harvard, Columbia, Leiden, entre outras. Merton foi membro da fundação Guggenheim (1962-1963), e do Centro para Estudos Avançados em Ciências do Comportamento. Conquistou o prêmio Talcott Parsons de Ciências Sociais, o “American Academy of Arts and Sciences”, bem como o “MacArthur Prize Fellow Award” (1983-88). Merton às vezes fora chamado “Sr. Sociologia”, e Jonathan R. Cole, ex-aluno e diretor da Universidade de Columbia, disse certa vez: - “Se houvesse Prêmio Nobel de Sociologia, não há dúvida alguma de que ele o teria ganho”. Não por acaso, notadamente o reconhecimento de seu filho, Robert Carhart Merton, ganhou o Prêmio Nobel de Economia, em 1997.

Bibliografia geral consultada:


DUVIGNAUD, Jean, L`Anomie: Heresie et Subversión. Paris: Éditions Anthropos, 1973; MERTON, Robert King, “The Unanticipated Consequences of Purposive Social Action”. In: American Sociological Review (1), 1936; Idem, “Social Structure and Anomie”. In: American Sociological Review (3), 672-682, 1938; Idem, “Discussion: The Position of Sociological Theory”. In: American Sociological Review (13), 164-168, 1948; Idem, Teoría y Estrutura Sociales. México: Fondo de Cultura Económica, 1964; Idem, Ciência, Tecnologia y Sociedad en la Inglaterra del Siglo XVII. Madrid: Alianza Editorial, 1984; MARRA, Realino, “Merton e la Teoria dell’Anomia”. In: Dei Delitti e delle Pene. Volume 2, 1987, pp. 207-21; GIDDENS, Anthony, “Funcionalismo, après la lutte”. In: GIDDENS, Anthony, Em Defesa da Sociologia: Ensaios, Interpretações e Tréplicas. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 2001; LUHMANN, Niklas, Confianza. Barcelona: Ediciones Anthropos, 2005; WALDMANN, Peter, El Estado Anómico: Derecho, Seguridad Pública y Vida Cotidiana en América Latina. Madrid: Editorial Iberoamericana, 2006; BATISTA, Marcos Antonio Rehder, As Consequências Previstas e não Antecipadas da Ação na Análise Funcional dos Grupos de Robert K. Merton. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas, 2010; Artigo: “O Efeito Mateus, Talentos e a Injustiça”. In: https://institutoparacleto.org/2015/01/14/; entre outros. 

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