terça-feira, 24 de outubro de 2017

Millôr Fernandes - Arte & Multireferencialidade na Comunicação Social.

                                                                                                   Ubiracy de Souza Braga
 
                       Se Deus havia criado o sexo, Freud criou a sacanagem”. Millôr Fernandes
 
                             
Millôr Fernandes foi um cartunista, humorista, dramaturgo, escritor e tradutor brasileiro. Com passagem marcante pelos veículos impressos de comunicação social mais representativo do Brasil, tais como: O Cruzeiro, O Pasquim, revista Veja e Jornal do Brasil, entre vários outros, Millôr era considerado uma das principais figuras da imprensa brasileira no século XX. Multifacetado, obteve sucesso de crítica e de público em muitos gêneros em que se imiscuiu como nas atividades de trabalhos de ilustração, tradução e dramaturgia, sendo várias vezes premiado. Além das realizações nas áreas literária e artística, ficou conhecido também por ter sido um dos idealizadores do frescobol, no Posto 9, na praia de Ipanema, Rio de Janeiro (1958). Com a saúde fragilizada após um acidente vascular cerebral no começo de 2011, faleceu em março de 2012, aos 88 anos. Filho do engenheiro espanhol Francisco Fernandes e de Maria Viola Fernandes, Millôr Fernandes nasceu no bairro do Méier, subúrbio do extinto Estado da Guanabara (RJ) em 16 de agosto de 1923, mas só foi registrado - como Milton Viola Fernandes - no ano seguinte, em 27 de maio de 1924.
De Milton se tornou Millôr graças à caligrafia duvidosa na certidão de nascimento, cujo traço não completou o “t” e deixou o “n” incompleto. De 1931 a 1935 estudou na Escola Ennes de Souza. A forte influência, e o estímulo de seu tio Antônio Viola, o levaram a submeter um desenho ao periódico carioca O Jornal que, aceito e publicado, lhe rende um pagamento de 10 mil réis. Aos doze anos perde a mãe, passando a morar com o tio materno Francisco, sua esposa Maria e quatro filhos no subúrbio de Terra Nova, próximo ao bairro Méier. Dois anos depois, em 1938, passa a trabalhar para o médico Luiz Gonzaga da Cruz Magalhães Pinto, entregando seu remédio para os rins “Urokava” em farmácias. Pouco depois é empregado pela revista O Cruzeiro, assumindo as funções de contínuo, “repaginador” e factótum. Assinando sob o pseudônimo “Notlim”, ganha um concurso de contos na revista A Cigarra. Passa a arquivista da publicação, com o cancelamento de quatro páginas de publicidade, é convidado a ocupar o cargo. Cria então a seção “Poste Escrito”, que assina como “Vão Gogo”. Millôr Fernandes em verdade queria se referir “ao significado da corrupção no Brasil” que ocorre com frequência no Congresso Nacional, no governo, no Judiciário (juízes que vendem sentenças), no quadro de árbitros do futebol, entre despachantes e funcionários do Departamento de Trânsito, nos meandros dos desfiles de escolas de samba, na venda de ingressos para o futebol e desfile de carnaval etc. Em geral, é o famoso “jeitinho”, analisado por Roberto Schwarz, como nestes dias por Alfredo Bosi (2007), “da mão molhada com o objeto $$ misterioso, que o guarda recebe pra não multar um carro”.      


                               
Em mais de meio século de atuação permanente na imprensa (cf. O Pasquim, 1969-1991; 1972-1973; 2007; 2009) no teatro, na literatura e nas artes plásticas tornou-se uma das maiores personalidades de seu tempo. Combativo (“hay gobierno, soy contra”) como poucos, praticou o ideal de independência intelectual e de raciocínio, tendo sido perseguido pelas ditaduras que assolaram o país neste século. Escreveu, traduziu e adaptou mais de uma centena de peças de teatro: Shakespeare, Pirandello, Molière, Racine, Brecht, Tchekov, Gorki, Fassbinder e muitos outros. Entre elas destacam-se os clássicos: “Liberdade, liberdade” (com Flávio Rangel), “É..., Homem do Princípio ao Fim”, “Flávia, Cabeça, Tronco e Membros”, “Um Elefante no Caos”, “Os Órfãos de Jânio”. Escreveu ainda: “30 Anos de Mim Mesmo”, “O Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr”, “Todo o Homem é Minha Caça”, “Tempo e Contratempo”, “Poesias”, “Millôr Definitivo - A Bíblia do Caos”, entre dezenas de livros editados. O Pasquim foi um semanário editado entre 26 de junho de 1969 e 11 de novembro de 1991, reconhecido por seu papel exemplar de oposição ao regime político-militar.
De uma tiragem inicial de 20 mil exemplares, que a princípio parecia exagerada, o semanário (que sempre se definia como um hebdomadário) atingiu a marca de mais de 200 mil em seu auge, em meados dos anos 1970, se tornando um dos maiores fenômenos do mercado editorial brasileiro. A princípio uma publicação do tipo comportamental que falava sobre sexo, drogas, feminismo e divórcio, entre outros, O Pasquim foi se tornando mais politizado à medida que aumentava a repressão da ditadura militar, principalmente após a promulgação do repressivo ato AI-5. O Pasquim passou então a ser porta-voz da indignação social brasileira. O projeto nasceu no fim de 1968, “um ano que nuca acabou” após uma reunião entre o cartunista Jaguar e os jornalistas Tarso de Castro e Sérgio Cabral; o trio buscava uma opção para substituir o tabloide humorístico A Carapuça, editado pelo recém-falecido escritor Sérgio Porto. O nome, que significa “jornal difamador, folheto injurioso”, foi sugestão de Jaguar: “Terão de inventar outros nomes para nos xingar”, disse ele, já prevendo as críticas de que seriam alvo. Com o tempo figuras de destaque na imprensa, como Ziraldo, Millôr, Prósperi, Claudius e Fortuna, se juntaram e a primeira edição finalmente saiu em 26 de junho de 1969.
Entre os múltiplos talentos de Millôr, que o filósofo da multireferencialidade Edgar Morin (1994) prefere a expressão “policompetente”, também estava o de roteirista. Foram mais de dez roteiros criados para a 7ª Arte, individualmente, representados por: “Modelo 19” (1952), mais conhecido como “O Amanhã Será Melhor”; “Amor para Três” (1960), “Ladrão em Noite de Chuva” (1960); “Esse Rio que Eu Amo” (1962), “Crônica da Cidade Amada” (1965), “O Menino e o Vento” (1967) e “Últimos Diálogos” (1995), ou em parceria, como “O Judeu” (1995), com Geraldo Carneiro e Gilvan Pereira, e “Mátria” (1998), com Carneiro e Tom Job Azulay. Em “Terra Estrangeira” (1995), dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas, participou com diálogos adicionais. O sucesso de sua coluna em A Cigarra faz com que ela passasse a ser “fixa”, e Millôr assume a direção do periódico, cargo que ocuparia por três anos. Ainda sob o pseudônimo “Vão Gogo”, começa a escrever uma coluna crítica no Diário da Noite, um jornal que circulou em São Paulo entre 7 de janeiro de 1925 e 1980. Fundado por Plínio Barreto, Rubens do Amaral e Leo Vaz, poucos meses após seu lançamento o jornal foi comprado pelos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, que buscava penetrar no crescente e concentrado mercado paulistano.

Passa a dirigir também as revistas O Guri, com histórias em quadrinhos, e Detetive, que publicava contos policiais para lembrarmo-nos do psicanalista e escritor Garcia-Roza (1984). Em 1941 volta a colaborar com a revista O Cruzeiro, continuando a assinar como “Vão Gogo” na coluna “Pif-Paf”, o fazendo por 18 anos. Nos anos seguintes, já integrados à intelectualidade carioca, convive com Péricles, criador de “O Amigo da Onça”, Nelson Rodrigues, David Nasser, Jean Manson, Alfredo Machado, Fernando Chateaubriand, Emil Farhat e Accioly Netto, entre outros. Em 1948 viaja como correspondente da revista O Cruzeiro, durante três meses em Hollywood, Califórnia, temporada ao lado do cônsul Vinícius de Moraes, do pesquisador César Lattes, criador do Frankenstein Lattes e Carmen Miranda. Lattes descende de judeus italianos imigrantes em Curitiba. Fez os seus primeiros estudos naquela cidade e em São Paulo, vindo a graduar-se na Universidade de São Paulo, formando-se em 1943, em matemática e física.
A partir de 1950, Millôr Fernandes faz colaboração diária no jornal Diário da Noite, Rio de Janeiro. A partir daí passou a conciliar as profissões de escritor, tradutor (autodidata) e autor de teatro. Já em 1956 divide a primeira colocação na Exposição Internacional do Museu da Caricatura de Buenos Aires (AR) com o desenhista norte-americano Saul Steinberg. Em 1957, ganha uma exposição individual de suas obras no MAM - Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Dispensa o pseudônimo “Vão Gogo” em 1962, passando a assinar apenas como “Millôr” em seus textos n`O Cruzeiro. Deixa a revista no ano seguinte, por conta da polêmica causada com a publicação de A Verdadeira História do Paraíso, considerada ofensiva pela conservadora Igreja Católica. O Cruzeiro foi a principal revista ilustrada do século XX. Fundada por Carlos Malheiro Dias, começou a ser publicada em 10 de novembro de 1928 pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand. Em 1941, O Cruzeiro também passou a ser o nome do Editor do grupo: Diários Associados. Foi importante na introdução de novos meios  gráficos e visuais na imprensa brasileira, citando entre suas inovações o fotojornalismo e a inauguração das duplas “repórter-fotógrafo”, a mais famosa sendo formada por David Nasser e Jean Manzon que, nos anos 1940 e 1950, fizeram reportagens de grande repercussão. Entre seus diversos assuntos, a revista O Cruzeiro narrava fatos sobre a vida dos astros de Hollywood, cinema, esportes e saúde. Contava com seções de charges, política, culinária e moda.
        Cobrindo o suicídio de Getúlio Vargas, “o pai dos pobres”, em agosto de 1954, que retardou a história política brasileira, nos próximos 30 anos, quando a revista atingiu a tiragem recorde de 720.000 exemplares. Até então, a marca havia alcançado em torno dos 80.000. Daí em diante, o número se manteve. Em depoimento Millôr Fernandes afirma: A “Verdadeira História do Paraíso”, foi escrita aos poucos, ao acaso, frases soltas, conceitos ocasionais que me ocorriam enquanto fazia, semanalmente, através dos anos, na revista O Cruzeiro, a seção humorística O Pif-Paf (´Cada número é exemplar. Cada exemplar é um número`). Um dia, no fim da década de 1950, não me lembro de exatamente quando, num programa de televisão que eu apresentava pessoalmente em Belo Horizonte, estimulado por meu fraterno amigo Frederico Chateaubriand, contei, ilustrando com desenhos, a história completa pela primeira vez. Não sei se houve algum protesto, há sempre, mas a TFP não se desmoronou, o país continuou a avançar nos seus precários trilhos (bitola estreita), e o sol prosseguiu nascendo e morrendo a espaços aproximados de 12 horas. Nela Millôr reconta a fábula do pecado original que escandalizou a moral brasileira quando lançado originalmente em encartes na revista: O Cruzeiro (1963). Na ocasião, “a pressão pública motivou a demissão de Millôr do então maior fenômeno editorial brasileiro”. Com ilustrações de um dos principais mestres nacionais, recuperadas a partir dos originais que estavam guardados no arquivo de Millôr Fernandes por mais de 40 anos, o livro é uma sátira bem-humorada a um dos principais tabus entre os seres humanos.
Posteriormente a história foi apresentada, também na TV Tupi do Rio de Janeiro, e num espetáculo teatral, Piftac-Zigpong, antes de ser vendida como matéria especial com contra recibo e pagamento adiantado, pois afirma, eu conhecia bem a administração da empresa, para a revista O Cruzeiro, em maio de 1963. A revista creio que por motivos de programação, só publicou a história seis meses depois, em outubro, ocasião em que eu viajava pela Europa. Uma noite, estando numa festa em Lisboa, me lembro de que havia, na festa, uma ilustre companhia, desde a senhora Princesa da Fátima à não menos senhora condessa de Paris, pois eu, Proust e Ibrahim Sued estamos sempre nessas, o cantor Juca Chaves se aproximou de mim com aquele ar satânico de quem vai anunciar a repetição do terremoto de 1755 e perguntou: “Você viu o que O Cruzeiro escreveu contra você?”                       
Vale lembrar que a história da TV Tupi carioca ganhou no ano de 2011 um livro da Coleção Aplauso (Imprensa Oficial de SP), intitulado: TV Tupi do Rio de Janeiro, uma viagem afetiva, escrito por Luís Sergio Lima e Silva. A emissora foi fundada pouco tempo depois da primeira emissora de televisão brasileira, a TV Tupi São Paulo, em 20 de janeiro de 1951, e era sintonizada através do canal 6 do Rio de Janeiro, o monopólio como única emissora do Rio de Janeiro foi quebrado em 1955 com a inauguração da TV Rio, canal 13, e operou ali até o dia 18 de julho de 1980, quando a TV Tupi São Paulo, a Tupi Rio e mais 5 emissoras próprias da Rede Tupi tiveram suas concessões cassadas, nunca é demais repetir ilegalmente pelo governo federal. Nele, vinte pioneiros são entrevistados, nomes consagrados da história da televisão, como Almeida Castro, Mauricio Sherman, Fernanda Montenegro, Sérgio Britto, Neyde Aparecida, João Loredo, Maria da Glória, José Bonifácio de Oliveira (Boni), Dóris Monteiro, Aracy Cardoso, Maria Pompeu, Osmar Frazão, Ricardo Kathar, Adonis Karan, Flavio Cavalcanti Jr, Bibi Ferreira, Lídia Mattos e Neila Tavares, entre os principais artistas, escritores etc.                                                  
    Nos anos 1960 escreveu sua primeira peça teatral: “Flavia, cabeça, tronco e membros”. Este é um dos trabalhos prediletos de Millôr Fernandes, dono de uma extensa obra teatral, tanto como autor quanto como tradutor e adaptador. Com um extraordinário movimento de ideias e personagens, Flávia conduz a uma reflexão sobre o poder, tema que havia inquietado Millôr Fernandes ao longo de sua vida. Em Flávia, Cabeça, Tronco e Membros temos “um dos primeiros projetos de uma mulher liberada”. Isto em 1963, ano em que Millôr escreveu esta peça e quando certamente o assunto era tratado com muita discrição. Pois a personagem Flávia, com seu fascínio e sua liberdade, leva a peça a momentos inesquecíveis por meio dos absurdos das proposições e a caricatura das situações criadas por Millôr Fernandes. Flávia... “fala sobre poder, força e a permanente capacidade de mistificação inerente ao ser humano”. Nesta época foi censurado pelo aparentemente “mais liberal” de todos os presidentes da República: Juscelino Kubitschek de Oliveira, médico, militar e político brasileiro. Conhecido como JK, foi prefeito de Belo Horizonte (1940-1945), governador de Minas Gerais (1951-1955), e presidente do Brasil entre 1956 e 1961. Seu programa de TV, “Lições de um Ignorante”, foi proibido após uma crítica à primeira dama do país: “Dona Sarah Kubitschek chegou ontem ao Brasil depois de cinco meses de viagem à Europa e foi condecorada com a Ordem do Mérito do Trabalho”. Em 1961 trabalhou sete dias no jornal Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, que mais tarde pertenceu a seu irmão Hélio Fernandes. Foi demitido por ter escrito um artigo sobre a questão da corrupção na imprensa. Os editores, respectivamente, o poeta Mário Faustino (1930-1962) e o jornalista Paulo Francis (1930-1997) pediram também demissão em solidariedade.  
Vale lembrar que JK foi o primeiro presidente do Brasil a nascer no século XX e o primeiro presidente do Brasil, e politicamente, “eleito pelo voto direto nascido após a Proclamação da República”. Foi o último político mineiro eleito para a presidência da República pelo voto direto, antes de Dilma Rousseff (PT) que governou até o golpe de Estado de 17 de abril de 2016. Casado com Sarah Kubitschek, com quem teve as filhas Márcia Kubitschek e Maria Estela Kubitschek, foi o responsável pela construção de uma nova capital federal, Brasília, executando, assim, um antigo projeto, já previsto em três constituições brasileiras, da mudança da capital federal do Brasil para promover “o desenvolvimento do interior do Brasil e a integração do país”. Durante todo o seu mandato como presidente da República, (1956-1961), o Brasil viveu um período de notável desenvolvimento econômico e relativa estabilidade política. Com um estilo de governo inovador na política brasileira, Juscelino Kubitschek “construiu em torno de si uma aura de simpatia e confiança entre os brasileiros” (cf. Cardoso, 1978).
Nesta direção Millôr Fernandes colabora com coluna diária no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 1962. - “Esta é a Verdadeira História do Paraíso”, doze páginas em cores, são publicadas na revista O Cruzeiro, em 1963, provocando a ira da própria revista e de leitores católicos. Millôr deixa O Cruzeiro. A partir de 1964, e até 1974, colabora semanalmente no jornal Diário Popular, de Portugal. Conhecido em Portugal, sobretudo, pelas suas máximas, a página mereceria um comentário especial do ditador Oliveira Salazar: “Este gajo tem piada. Pena que escreva tão mal o português”. De 1967 em diante tem marcado sua presença em jornais e revistas nacionais como o Correio da Manhã, Revista Diners, Veja, O Pasquim, revista IstoÉ, Jornal do Brasil, O Dia, Folha de São Paulo, entre outros. Nos anos seguintes Millôr Fernandes apresentaria o “Jornal da Vanguarda” na tevê Record, ao lado de Stanislaw Ponte Preta. Um ano depois, passou a ser, ao lado de Ziraldo, Jaguar e Fausto Wolff, um dos nomes que fizeram a fama do jornal O Pasquim, bastião do combate à ditadura. Em 1964, passa a colaborar com o jornal português Diário Popular e obtém o segundo prêmio do Salão Canadense de Humor. Em 1968, começa a trabalhar na revista Veja, sob a direção de Mino Carta, e em 1969, torna-se um dos fundadores do jornal O Pasquim, objeto de nossa reflexão e da memória social. Nos anos seguintes escreveu peças de teatro, textos de humor e poesia, além de voltar a expor no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Traduziu do inglês e do francês, várias obras, principalmente peças de teatro, entre estas, clássicos de Sófocles, Shakespeare, Molière, Brecht e Tennessee Williams. Depois de colaborar com os principais jornais brasileiros, retornou à Veja em setembro de 2004, deixando a revista em 2009, “devido a um desentendimento acerca da digitalização de seus antigos textos, publicados sem sua autorização no acervo on-line da publicação”. A  “imprensa nanica”, são jornais que se converteram, numa das maiores trincheiras contra a ditadura militar. Millôr é autor de mais de 50 livros, publicados a partir de 1946.Além de um grupo fixo de jornalistas, a publicação contava com a colaboração de nomes como Henfil, Paulo Francis, Ivan Lessa, Carlos Leonam e Sérgio Augusto, e também dos colaboradores eventuais Ruy Castro e Fausto Wolff. Como símbolo do jornal foi criado o ratinho Sig (de Sigmund Freud), desenhado por Jaguar, baseado na anedota da época que dizia que: “se Deus havia criado o sexo, Freud criou a sacanagem”. Nos anos seguintes, tornou-se o principal tradutor de Shakespeare no Brasil. Destacou-se pela crônica em revistas e por uma vasta produção teatral.
         Entre suas obras no teatro se destacam: Um elefante no caos ou Jornal do Brasil ou, sobretudo, Por que me ufano do meu país (1962), Pigmaleoa (1965) e Os órfãos de Jânio (1979). Escreveu também em prosa, onde se destacam: Todo homem é minha caça (1981), Humor nos tempos do Collor (com Luiz Fernando Veríssimo e Jô Soares, no ano que ele ascende ao poder: 1992). No fim da década de 1960, em função de uma entrevista polêmica com Leila Diniz, foi “instaurada a censura prévia aos meios de comunicação no país, por um decreto que ficou conhecido pelo nome da atriz”. Com suas atitudes corajosas e liberais, Leila rompeu preconceitos, quebrou tabus, avançando os limites da moral vigente. O casamento com Domingos de Oliveira durou 3 anos e depois se casaria com o diretor Ruy Guerra, com quem teria uma filha, Janaína. Em 1971, grávida de mais de seis meses, ela ia de biquíni a Ipanema uma prática hoje natural, mas que na época muitos tomaram como uma afronta à tradição, à família e à maternidade. O maior “rebu”, entretanto, aconteceu em novembro de 1969, quando chegou às bancas uma edição de O Pasquim trazendo uma reveladora entrevista com L. Diniz: “Nunca uma mulher brasileira tinha falado de sexo de forma tão aberta na imprensa”. A maior parte do que ela falou não saiu publicado naquela edição do Pasquim, e poderia?
Mas o pouco que saiu no jornal foi suficiente para mobilizar o governo militar golpista a criar uma severa lei de censura prévia à imprensa, o Decreto nº 1.077, apelidado Decreto Leila Diniz. Aquela polêmica entrevista de Leila, se por um lado consagrou o mito da atriz, por outro também lhe trouxe muitos aborrecimentos e portas na cara. A TV Globo, por exemplo, onde ela atuara no início da carreira, “negou-lhe trabalho e num momento em que a emissora despontava como líder de audiência”. Não tem “papel de puta” na próxima novela, justificou um diretor da casa. (cf. Castro: 1999: 38). O cerco repressivo foi se intensificando sobre a atriz e numa certa tarde de domingo a Polícia Federal foi buscá-la com uma ordem de prisão à saída da TV Tupi, onde ela se virava como jurada de Flávio Cavalcanti. Providencialmente, Leila saiu escondida no banco de trás do carro do apresentador, que a abrigou durante alguns dias em sua casa em Petrópolis. Depois de muita negociação ficou decidido que a atriz iria depor na Polícia Federal e assinar um documento em que se comprometia a não dizer mais palavrões. A atriz participou de 14 filmes (que quase não são exibidos), 12 telenovelas e muitas peças teatrais. Ganhou na Austrália o prêmio de melhor atriz com o filme “Mãos Vazias”.
Em novembro de 1970 a redação inteira do O Pasquim foi presa depois que o jornal publicou uma sátira do célebre quadro de Dom Pedro às margens do Ipiranga, (de autoria de Pedro Américo). Os militares esperavam que o semanário saísse de circulação e seus leitores perdessem o interesse, mas durante todo o período em que a equipe esteve encarcerada - até fevereiro de 1971 - O Pasquim foi mantido sob a editoria de Millôr Fernandes (que escapara à prisão), com colaborações de Chico Buarque, Antônio Callado, Rubem Fonseca, Odete Lara, Glauber Rocha e diversos intelectuais cariocas. As prisões continuariam nos anos seguintes, e na década de 1980 bancas que vendiam jornais alternativos, como o impávido O Pasquim passou a ser “alvo de atentados a bomba”. Aproximadamente metade dos pontos de venda decidiu não mais repassar a publicação, temendo ameaças. Era o início do trágico fim para o Pasquim pelo uso da força política. 
O exemplar mais vendido do jornal foi justamente esse no qual foi publicada a entrevista da atriz fluminense. E foi também depois dessa publicação que foi instaurada a censura prévia à imprensa, mais conhecida como “Decreto Leila Diniz”. Perseguida pela polícia política, Leila se esconde no sítio do colega de trabalho Flávio Cavalcanti, tornando-se em seguida jurada do programa do apresentador, no momento em que é acusada de ter ajudado militantes de esquerda. “Alegando razões morais, a TV Globo do Rio de Janeiro não renova o contrato de atriz. De acordo com Janete Clair, não haveria papel de prostituta nas próximas telenovelas da emissora”. Meses depois, Leila reabilita o teatro de revista, e começa a curta e bem sucedida carreira de vedete. Estrelando a peça tropicalista Tem banana na banda, “improvisando a partir dos textos escritos por Millôr Fernandes, Luiz Carlos Maciel, José Wilker e Oduvaldo Viana Filho”. Recebe de Virgínia Lane o título de Rainha das Vedetes. No carnaval de 1971, é eleita “Rainha da Banda de Ipanema” por Albino Pinheiro e seus companheiros. Morreu num acidente aéreo, vôo JAL471, da Japan Airlines, no dia 14 de junho de 1972, aos 27 anos, no auge da fama, quando voltava de uma viagem à Austrália. A atriz Marieta Severo e Chico Buarque de Holanda, seus amigos afetivamente, “cuidaram da filha de Leila Diniz e Ruy Guerra, até o pai ter condições de assumir a filha, Janaína Diniz Guerra”.
O jornal ainda sobreviveria à abertura política de 1985, mesmo com o surgimento de inúmeros jornais de oposição e de novos conceitos de humor (Hubert, Reinaldo e Cláudio Paiva, egressos de O Pasquim, fundaram O Planeta Diário). Graças aos esforços de Jaguar, o único fundador a permanecer em O Pasquim, o semanário continuaria ativo até a década de 1990. No carnaval carioca de 1990 a equipe de O Pasquim foi homenageada pelo  Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos de Santa Cruz, com o samba-enredo: “Os Heróis da Resistência” (1989) por Zé Carlos, Carlos Henri, Carlinhos de Pilares, Doda, Mocinho e Luis Sérgio. Foi o samba no carnaval (1990), cantado por Carlinhos de Pilares. - Oh! Divina luz que nos conduz/Com bom humor e irreverência/Hoje ninguém vai nos “gripar”/Somos os heróis da resistência/Vamos ´pasquinar`, recordar/Sorrir sem censura/Botar a boca no mundo, buscar bem fundo/Sem a tal da ditadura/Soltavam as bruxas, o pau comia/De golpe em golpe, quanta covardia!/Venha com a gente, povão/Abra o seu coração/Para o Pasquim, o “pequenino imortal”/Simbolizado pelo sacana ratinho/Mesmo bombardeado, virou paixão nacional/Aí, na palidez da folha/Imprimimos personagens geniais/Lindas mulheres espelhando nossas páginas/Ipanema foi o centro cultural/Hoje, essa história é carnaval/Gip, gip, nheco, nheco/Por favor não apague a luz!/Goze desta liberdade/Nos braços da Santa Cruz”. A última edição, de O Pasquim de número 1 072, foi publicada em 11 de novembro de 1991. Um “primeiro ensaio” para a volta da publicação deu-se através de um periódico intitulado Bundas, lançado em 1999, que durou pouco tempo.
O nome Bundas era uma paródia à revista Caras, e seu lema era: “Quem mostra a bunda em Caras não mostra a cara em Bundas” e “Bundas, a revista que não tem vergonha de mostrar a cara”. Em 2002 Ziraldo e seu irmão Zélio Alves Pinto lançaram uma nova edição de O Pasquim, renomeado O Pasquim 21. Esta versão também teve vida curta, apesar de contar com alguns de seus antigos colaboradores, e deixou de ser publicada em meados de 2004. Ironicamente, o jornal original acabou ganhando um documentário produzido com recursos do governo. O Pasquim - A Subversão do Humor foi lançado em junho de 2004, e exibido pela TV Câmara. Em abril de 2006 a Editora Desiderata lançou O Pasquim - Antologia - 1969 - 1971, “uma compilação feita por Jaguar e Sérgio Augusto de matérias e entrevistas das 150 primeiras edições do semanário”. O livro foi um sucesso, , desta vez cobrindo o material do período entre 1972 e 1973, bem como um terceiro em 2009, cobrindo os anos de 1973 e 1974. A vida de Millôr se confunde com a história do jornalismo. A dialética deu-se principalmente com a criação do singular  tabloide O Pasquim (1969), junto a Ziraldo e Sérgio Cabral. O cartunista e escritor Paulo Caruso define Millôr Fernandes “como um ídolo”. Segundo ele, o artista marcou a história da imprensa brasileira com seu inconformismo e pela liberdade que tinha de pensar e agir. - “Tanto na área de artes gráficas, quanto artes plásticas, quanto literatura, tradução de textos de teatro e criação como dramaturgo”. O escritor Luís Fernando Verissimo lamentou a morte do amigo Millôr Fernandes. Segundo ele, “era uma das grandes cabeças do país. Ele foi um grande intelectual, livre pensador, é um grande exemplo para o Brasil”, afirmou. - “Ele soube pensar o Brasil, tinha posições sempre claras, sempre corajosas. Eu acho que, pelo fato de ser rotulado como humorista, talvez muita gente não tenha prestado atenção a esse outro lado dele”. 

Bibliografia geral consultada.

CASTELLS, Manuel, Problemas de Investigación en Sociologia Urbana. México: Siglo XXI Editores, 1972; CARDOSO, Miriam Limoeiro, Ideologia do Desenvolvimento. Brasil. JK-JQ. Tese de Doutorado em Sociologia. São Paulo: Universidade de São Paulo. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978; ROUANET, Paulo Sergio, A Razão Cativa, as Ilusões da Consciência: de Platão a Freud. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985; RUBIM, Christina de Rezende, Antropólogos Brasileiros e a Antrpologia no Brasil: A Era da Pós-Graduação. Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1996; CASTRO, Ruy, Ela é Carioca: Uma Enciclopédia de Ipanema. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1999; MENDOZA, Edgar Salvador Gutierrez, Sociologia da Antropologia Urbana no Brasil. A Década de 70. Tese de Doutorado. Departamento de Antropologia. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2000; FERNANDES, Millôr, Flávia: Cabeça, Tronco e Membros. Porto Alegre: L&PM Editores, 2001; COLEONE, Eduardo, Millôr Fernandes: Análise do Estilo de um Escritor sem Estilo Através de suas Fabulosas Fábulas. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. Universidade Estadual Paulista, 2007; BOSI, Alfredo, Machado de Assis: O Enigma do Olhar. 4ª edição. São Paulo: VMF/Editora Martins Fontes, 2007; BUZALAF, Márcia Neme, A Censura no Pasquim (1969-1975): As Vozes Não-Silenciadas de uma Geração. Tese de Doutorado. Faculdade de Ciências e Letras de Assis. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 2009; VIEIRA, Átila, Bezerra Fernandes, Guerrilha de Pincéis: Humor Gráfico no Jornal O Pasquim como Resistência Política e Cultural à Ditadura Militar (1969 - 1970). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social. Instituto de Cultura e Arte. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2010; ESPILOTRO, Tiago Pedro Ferro, A Moral da História: A Produção Humorística de Millôr Fernandes na Revista Veja (1968-1982). Dissertação de Mestrado em História Social. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2015; entre outros.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário