Giuliane
de Alencar
Resumo
A
mobilidade urbana no município de Fortaleza é um problema que se estende para
além da questão da segurança no trânsito, refletindo inclusive na
racionalização do espaço público. No presente ensaio abordar-se-á o imbróglio
em torno da utilização das faixas preferenciais para ônibus e ciclo-faixas adotadas
recentemente pela política municipal, na gestão do prefeito Roberto Cláudio, que
procura adequar-se às exigências da Política Nacional de Mobilidade Urbana –
PNMU. Também serão abordadas de maneira complementar ao assunto as respostas
dos destinatários às mudanças ocorridas nesta estrutura urbana. O principal
problema, portanto, limitar-se-á a tentativa de compreender as ações e
interações dos sujeitos perante o novo cenário no qual eles passaram a deparar-se
em seu cotidiano.
Palavras-chave:
Faixas Exclusivas, Mobilidade Urbana, Segurança, Fortaleza.
Introdução
Os problemas da mobilidade e da
segurança nos trajetos urbanos em Fortaleza não são recentes. O crescimento da
cidade gerou tanto um resultado demográfico maior quanto o surgimento da região
metropolitana. Esta mudança foi gerada a partir de ações em cadeia que levaram
a uma maior preocupação, ao longo do tempo, com as políticas públicas voltadas
para o planejamento urbano. O serviço de transportes coletivos[1] em
Fortaleza, por sua vez, começou a funcionar em 1880, cinco anos após
contratação do assentamento dos trilhos, com bondes movidos por tração animal.
O bonde elétrico só passou a ser
utilizado em 1913, tendo sido desativado para que a produção de energia fosse
restrita ao uso particular em 1947. Os ônibus só passaram a circular na capital
em 1920, com estrutura equipada para transportar pessoas e cargas. A frota de
ônibus de grande porte começou a funcionar no início da década de 40. Diante
das mudanças ocorridas durante as primeiras décadas do século XX, seguidas até
o término deste, a população passou adaptar-se aos itinerários que eram
estabelecidos. No entanto, os critérios de renovação, vistoria, controle
operacional e de gestão tiveram seu amadurecimento condicionado às mudanças
ocorridas ao longo do tempo.
Atualmente, os avanços que são
percebidos se devem ao processo de racionalização do sistema de transportes.
Como exemplo temos a criação de terminais de integração, implantação de linhas interbairros,
renovação das frotas em funcionamento (incluindo aparelhos de ar-condicionado
em parte dos veículos, com a promessa de implantação em toda a frota além de
conexão de internet sem fio), revitalização das ruas e avenidas, sinalização
adequada em vários pontos da cidade, fiscalização eletrônica, criação de faixas
e corredores específicos, razoável reforço educativo no trânsito, mapeamento
dos itinerários úteis em algumas paradas de ônibus e troca de suas estruturas
(passando de bancos de concreto para novos de ferro), entre outros. No entanto,
o que nos interessa aqui são as mudanças relativas à implantação de faixas
exclusivas para ônibus e de ciclo-faixas nas principais ruas de Fortaleza.
As mudanças registradas podem ser consideradas,
entre outras razões, como resultantes da a) reivindicação popular – em
particular por parte dos moradores de bairros que carecem da conexão com outros
locais, através da câmara municipal ou das organizações comunitárias -, b) das
ações provenientes das promessas de campanha com a finalidade de tornar público
o “compromisso firmado”, seja como forma de convencimento ou de manutenção de
um eleitorado cativo, com elevadas chances de interferir em uma possível
reeleição e da c) segurança e melhoria geral para os usuários de veículos
coletivos das prestadoras de serviço público de transporte e de bicicletas.
Isto posto, passaremos a analisar as
circunstâncias pontuais que desencadearam na preocupação desta gestão em
fornecer as melhorias aqui especificadas, bem como o comportamento dos seus
usuários frente às mudanças estabelecidas nos últimos meses. Resultados como o
descaso, o desrespeito por parte dos condutores de veículos particulares, os
acidentes, avanços não permitidos nas faixas de trânsito caracterizando
ultrapassagem perigosa, etc., justificam a opção pelo assunto e são motivos que
dão sentido à análise ora desenvolvida.
Ativismo e Gestão: Iniciativas de
mobilidade urbana
Os
integrantes do movimento Massa Crítica, cujo nome surgiu a partir de um evento
internacional que leva o mesmo nome, organizaram passeios ciclísticos na cidade
de Fortaleza repetindo o que já aconteceu em outras cidades como Londres e Nova
Yorque. Diante do aumento de usuários de bicicletas, o coletivo passou a adotar
os passeios como tática de protesto e pressão popular desde agosto de 2013. Entre
outras intervenções, os integrantes fizeram intervenções nas ruas e avenidas
que davam acesso aos principais pontos da cidade. No período noturno alguns
colaboradores saiam pintando e sinalizando uma “ciclovia”, que foi denominada
de “ciclofaixa cidadã”. Quarenta dias depois, a prefeitura implantou uma
ciclofaixa no local. A ação oficial foi considerada uma vitória pelo grupo.
Segundo
Relatório[2] de
2015 produzido pela prefeitura municipal, o plano de mobilidade urbana de
Fortaleza encontra-se em fase de estudos para a etapa de diagnóstico. Por
enquanto os estudos ainda estão em fase de apuração de dados, sendo conduzidos
por uma equipe multidisciplinar formada para o projeto “Fortaleza 2040”. Este
projeto pretende elaborar planos econômicos, de mobilidade e urbanísticos. O
prazo para elaboração dos planos com os índices que contemplem o corrente ano
será janeiro de 2016. O Relatório atual indica que:
[...]
ano de 2014, implantaram-se sete faixas dedicadas de ônibus distribuídas pela
cidade, o que refletiu no pequeno aumento na porcentagem de área atendida por
vias exclusivas ou preferenciais (16,90%) (Projeto Copa, 2014). Para 2015, a
meta é expandir dos 53 quilômetros de faixas exclusivas para ônibus existentes
no fim de 2014, para 122 quilômetros, atingindo mais que o dobro de desempenho
do cenário anterior. (2015, p.15)
Os
dados apresentados referentes àquele momento estão claramente ligados às
melhorias realizadas em decorrência das proximidades do evento da Copa do
Mundo. Fortaleza sediou alguns jogos e muitas obras foram realizadas para
recepcionar o evento, vale lembrar que muitas estavam vinculadas à segurança e
infraestrutura. Voltando à análise atual, o presidente da Associação de Ciclistas
Urbanos de Fortaleza - Ciclovida, o engenheiro de transportes Phelipe Rabay, em
entrevista[3]
concedida ao site “O Estado”, em 28 de março 2016, disse que a inclusão de
ciclo-faixas em Fortaleza foi vantajosa para a capital cearense, porém esbarra
com alguns erros em seu modelo de implantação.
As
críticas são muitas em torno do tema, ele pontuou problemas relacionados a
lentidão, ao elitismo do projeto que prioriza áreas centrais da cidade enquanto
a maioria dos usuários está nas áreas periféricas e dos problemas de
manutenção, por exemplo:
“As
ciclofaixas em Fortaleza, no geral, são bem planejadas e de boa qualidade, mas
tem outras que fogem do ideal, como a da Avenida Antônio Sales, que finaliza no
viaduto do Cocó e a da Avenida Rui Barbosa, pois quando foi implantada não foi
feito um tratamento anterior e, por isso, está esburacada”.
Mesmo
após as providências tomadas pela prefeitura de Fortaleza nos últimos meses,
uma parcela da população continua descontente com a falta de proteção do
ciclista. Em março deste ano cerca de 50 ciclistas percorreram o bairro Benfica
concluindo o percurso no Aterro da Praia de Iracema. O que chamou atenção nesta
manifestação de ativismo foi o fato da maioria ter pedalado sem roupas ou
seminus. O ato foi chamado de “pedalada pelada”. Em resposta ao Jornal O Povo[4],
os ativistas explicaram que o ato de tirar a roupa para pedalar tinha por
objetivo chamar a atenção para a fragilidade do ciclista nas vias de Fortaleza.
Esse tipo de movimento já foi realizado em outras capitais do Brasil.
A
“pedalada pelada” em termos da teoria da ação para Jon Elster, que explicou a
possibilidade de que algumas ações mesmo sendo racionais possam ser
consideradas irracionais, isso em relação à preocupação com o seu resultado.
Embora represente uma causa legítima e importante, a maneira como ela foi
realizada provocou nas pessoas que presenciaram uma interpretação distanciada
da intenção inicial dos ciclistas. Tanto é que um dos participantes contou ao
jornal como conseguiu esquivar-se de um acidente durante a manifestação, e a
maneira depreciativa com que os motoristas e pedestres se dirigiam ao grupo.
Tomando
a opinião de quatro entrevistados - sendo dois deles um casal de jornalistas
que usam a bicicleta para se dirigirem diariamente ao trabalho (respectivamente,
com iniciais B.C.R. e R.D.R., 37 e 31 anos), um terceiro colaborador estudante
do curso de Filosofia, no Centro de Humanidades da Universidade Estadual do
Ceará – UECE (iniciais D.F.S, 26 anos), e por último uma professora (iniciais
A.C.A., 41 anos) do ensino médio, moradora do mesmo prédio, que utiliza ônibus
e bicicleta para ir até a escola estadual onde trabalha que fica localizada no
mesmo bairro em que residimos -, e a minha experiência diária analisarei as
principais questões que permeiam a utilização dos transportes.
Quando os interroguei sobre quais
eram as interferências (sejam elas vantajosas ou não) que a implantação da
ciclo-faixa, do equipamento de bicicletas compartilhadas e dos corredores
exclusivos para os ônibus haviam trazido para o trajeto diário deles na cidade,
pude constatar que o casal de entrevistados preferiu deixar o carro na garagem
de casa para utilizar o compartilhamento de bicicletas, devido a facilidade de
acesso ao ponto de troca próximo da casa e do trabalho. O estudante, por sua
vez, informou que antes da criação da nova linha que liga o campus do Itaperi
ao campus Fátima, o acesso à universidade era dificultado pela falta de
integração que facilitasse o seu percurso que iniciava no bairro Parangaba e
demorava cerca de uma hora. Com a nova linha e o bilhete único foi possível
realizar economia de tempo de dinheiro, segundo ele.
Além disso, D.F.S. explicou que “Depois
da aula fica mais fácil pegar uma bike perto do estacionamento do CH e de lá ir
para o Benfica esperar o horário do meu curso de inglês. Aí espero o meu ônibus
passar em frente ao CH1”. A última entrevistada contou que a localização da
escola onde ela trabalha dispensa o uso de transporte coletivo, mesmo assim costuma
usar a sua bicicleta ou aguardar o ônibus na parada que fica perto do prédio,
na Avenida Antônio Sales. A.C.A. contou que:
“Na
volta eu pedalo pela ciclo-faixa da Rua João Brígido sem dificuldade. Olha, o
perigo existe. Até porque já me deparei com carros estacionados na minha faixa,
inclusive ocupando mais da metade da calçada. Por isso tive que parar, olhar
pra trás e esperar até o movimento diminuir pra poder passar. Eles não
respeitam. A bicicleta facilita muito a minha vida, o ônibus também. Agora com
o corredor exclusivo ficou melhor, reduziu o tempo de espera. Eu tenho o
privilégio de não morar longe da parada de ônibus. Já algumas amigas que
esperam o ‘Antônio Sales/Aldeota’ no mesmo horário sofrem com a distância de
uma parada pra outra. Acho que o Roberto Cláudio privilegia mais os carros do
que os pedestres, pois as paradas são muito distantes e o tempo dos sinais das
ruas que cortam a Avenida Antônio Sales são de poucos segundos”.
Em seguida, fazendo algumas
perguntas ligadas especificamente ao problema da insegurança no trânsito,
indaguei sobre qual seria a opinião deles. Os quatro entrevistados disseram não
sentir segurança no trânsito de Fortaleza. R.D.R se considerou sortuda por
trabalhar no mesmo local que o seu marido B.C.R., explicando:
“Caso
a gente trabalhasse em lugares diferentes eu não arriscaria andar de bicicleta
sozinha por essas avenidas. Eu sei que a gente tá o tempo todo exposto ao risco
de sofrer um assalto ou atropelamento. A gente vai na confiança e no gosto pela
atividade física, sabe? Sei lá...se a gente tivesse tempo e coragem de pedalar
à noite seria ótimo, mas o que trava em geral é o medo. Amigos da gente já
foram assaltados”.
A professora A.C.A. considerou o
risco do assalto como algo que pode ocorrer no trânsito ou fora dele, mas que
mesmo assim sai de casa sempre rezando para que nada de ruim aconteça. O
estudante de Filosofia, por último, pensa que:
“A pouca qualidade dos ônibus, a condição precária de trabalho do motorista que muitas vezes faz o papel de motorista e de cobrador, arrisca a vida de todo mundo lá dentro. Essa linha nova que eu pego tem uns ônibus novos e alguns que mais parecem brinquedo de parque de diversão da periferia. E eu não vou mentir que quando estou na bike tenho o maior medo de ser atropelado por um carro ou de um motoqueiro daqueles acabar esbarrando em mim”.
Apesar de ter escolhido poucas
pessoas nesta curta entrevista, é possível entender a partir dos argumentos aqui
transcritos que a falta de educação e de responsabilidade no trânsito reforça o
medo de sofrer acidentes durante o percurso, além das altas chances de sofrer
assaltos ou frustrações. Em relação às políticas públicas de mobilidade os
entrevistados consideraram como ações típicas de ano eleitoral, ocasião em que
o político desengaveta as obras e projetos que poderia ter realizado ao longo
dos quatro anos do seu mandato.
Conclusão
Para Jon Elster, de maneira
simplificada, a teoria da escolha racional em uma sentença que parece óbvia
resume-se na escolha que possa gerar o melhor resultado. Segundo a sua teoria,
a escolha racional é conduzida pelo resultado da ação. O resultado delimita a
intenção, seja na conduta racionalizada ou desprovida de atenção, chegando até
mesmo ao ato inconsciente. O problema aqui analisado deixa claro uma leve
possibilidade de erro por parte dos atores nela envolvidos, devido ao fato do
prévio planejamento e da seriedade das consequências esperadas. Não é por
qualquer razão que as ações que envolvam benefícios muitas vezes resultam
justamente no oposto daquilo que foi meticulosamente previsto.
Percebe-se, diante do exposto, a
possibilidade entender que a escolha racional tem por objetivo ir de encontro
aos melhores meios que possam alcançar fins esperados, mas nem sempre é o que
de fato ocorre. Esta afirmação pode ser conferida na observação das constantes
críticas e no descrédito populacional para com as medidas de mobilidade urbana
implantadas recentemente. Seja do ponto de vista da gestão estratégica
municipal ou das consequências das ações dos sujeitos que se manifestam
contrariamente ao atual quadro de insegurança no trânsito e/ou fora dele.
Bibliografia consultada
HELLER, Agnes, O Cotidiano e a História. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1972; GINZBUURG, Carlo e PONI, Carlo, “Il nome e il come: scambi ineguale e mercato storiografico”. In: Quaderni Storici, n 40, 1979; ELSTER, Jon, Peças e engrenagens
das ciências sociais. Rio de Janeiro-RJ. Relume-Dumará, 1994; BIANCO, S. L., “O Papel da Bicicleta para a Mobilidade Urbana e a Inclusão Social”. In: Revistas dos Transportes Públicos. São Paulo: ANTP, ano 25, 3º trim. 2003, n° 100, pp 167-176; SOARES, Joisa
Maria Barroso, Parque Ecológico do Cocó: A Produção do Espaço Urbano no Entorno
de Áreas de Proteção Ambiental. Dissertação de Mestrado. Programa Regional de Pós-Graduação em
Desenvolvimento e Meio Ambiente. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2005; KERCKHOVE, Derrick de, A Pele da Cultura. São Paulo: Editora Annablume, 2009; MAFFESOLI, Michel, Saturação. São Paulo: Iluminuras, 2010; ARAUJO, Fabíola Guedes, A influência da infraestrutura cicloviária no comportamento de viagens por bicicleta. Dissertação de Mestrado em Transportes – Departamento de Engenharia Civil e Ambiental, Faculdade de Tecnologia, Universidade de Brasília, Brasília, 2014; entre outros.
[1] Fonte: “Sistema antigo de
transporte em Fortaleza”. Blog Fortalbus, 19 de mar. 2015. Disponível em: http://www.fortalbus.com/2012/09/sistema-antigo-de-transporte-de.html.
[2] Relatório: “Análise das
iniciativas municipais de mobilidade urbana em Fortaleza sob a ótica da
Política Nacional de Mobilidade Urbana”. Instituto de Políticas de
Transporte e Desenvolvimento. Outubro de 2015. Disponível em: http://itdpbrasil.org.br/wp-content/uploads/2015/10/Relat%C3%B3rio-Mobilidade-Fortaleza_final.pdf.
[3]
“Implantação de ciclofaixas pela Prefeitura é elitista”. O Estado. 28 de mar.
2016. Disponível em: http://www.oestadoce.com.br/geral/implantacao-de-ciclofaixas-pela-prefeitura-e-elitista.
[4] “Ciclistas tiram a roupa em pedalada
por mais segurança no trânsito de Fortaleza”. Jornal O Povo. 06 de mar. de
2016. Disponível em: http://www.opovo.com.br/app/fortaleza/2016/03/06/noticiafortaleza,3584612/ciclistas-tiram-a-roupa-em-pedalada-por-mais-seguranca-no-transito-de.shtml.
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