quinta-feira, 28 de maio de 2015

Darcy Ribeiro – A Consciência da América Latina.

                                Ubiracy de Souza Braga*

        Mulheres yawalapitis que em 2012 homenagearam Darcy Ribeiro - O Globo. Foto: André Coelho.

Escrevi estas “Confissões”, (1997), dizia Darcy Ribeiro urgido por duas lanças. Meu “medo-pânico” de morrer antes de dizer a que vim. Meu medo ainda maior de que sobreviessem as dores terminais e as drogas heroicas trazendo com elas as bobeiras do barato. Bobo não sabe de nada. Não se lembra de nada. Tinha que escrever ligeiro, ao correr da pena. Hoje, o medo é menor, e a aflição também. Melhorei. Vou durar mais do que pensava. Se nada de irremediável suceder, terei tempo para revisões. Não ouso pensar que me reste vida para escrever mais um livro. Nem preciso, já escrevi livros demais. Mas admito que tirar mais suco de mim nesta porta terminal é o que quisera. Impossível? Este livro meu, ao contrário dos outros todos, cheios de datas e precisões, é um mero reconto espontâneo, “como me vem à cabeça, o que me sucedeu pela vida afora, desde o começo, sob o olhar de Fininha, até agora, sozinho neste mundo”.
- “Muito relato será, talvez, equivocado em alguma coisa”. Acho melhor que seja assim, para que meu retrato do que fui e sou saia tal como me lembro. Neguei-me, por isso, a castigar o texto com revisões críticas e pesquisas. Isso é tarefa de biógrafo. Se eu tiver algum, ele que se vire, sem me querer mal por isso. Quero muito que estas minhas Confissões comovam. Para isso as escrevi, dia a dia, recordando meus dias. Sem minhas “Confissões” comovam. Para isso as escrevi, dia a dia, recordando meus dias. Sem nada tirar por vexame ou mesquinhez nem nada acrescentar por tolo orgulho. Termino esta minha vida exausto de viver, mas querendo mais vida, mais amor, mais saber, mais travessuras. A você que fica aí, inútil, vivendo vida insossa, só digo: ‘Coragem! Mais vale errar, se arrebentando, do que poupar-se para nada. O único clamor da vida é por mais vida bem vivida. Essa é, aqui e agora, a nossa parte. Depois, seremos matéria cósmica, sem memórias de virtudes ou de gozos. Apagados, minerais. Para sempre mortos’” (cf. Ribeiro, 1997).
       Na Introdução à Fenomenologia Hegel repete suas críticas a uma filosofia que não fosse mais que “teoria do conhecimento”. E não obstante, a Fenomenologia, como têm assinalado todos os seus comentaristas (cf. Wahl, 1951; Kojève, 1972; Hypollite, 1974; Labarrière, 1975), demarca em certos aspectos um retorno ao ponto de vista de Kant e de Fichte. Em que novo sentido deve-se subentendê-lo? Ora, se o saber é um instrumento, modifica o objeto de sua apreensão e não nos apresenta em sua pureza. Se for um meio tampouco, nos transmite a verdade sem alterá-la de acordo com a própria natureza do meio interposto. Se o saber é um instrumento, isto supõe que o sujeito do saber e seu objeto de conhecimento se encontram separados. O Absoluto seria distinto do conhecimento. Nem o Absoluto poderia ser saber de si mesmo, nem o saber poderia ser saber do Absoluto. Contra tais pressupostos a existência mesma da ciência filosófica e no âmbito da dialética que conhece efetivamente, é já uma afirmação analogamente como realiza Darcy Ribeiro o saber e a consciência entre os povos indígenas.
Enfim, se a Fenomenologia é “o itinerário da alma que se eleva ao espírito por meio da consciência”, fora de dúvida, a idéia de semelhante itinerário foi sugerida a Hegel pari passu com a convergência entre as obras literárias. Como também aquelas que nos parecem referidas como “novelas de cultura” tendo em vista a leitura feita sobre o Emílio, de Jean-Jacques Rousseau. Ipso facto, na dita obra encontrava uma primeira história da “consciência natural”, elevando-se por si mesma à liberdade, através das experiências que lhe são próprias e que são particularmente formadoras. Ou seja, ao “formar a coisa, forma-se a si mesmo”. É neste sentido que apresentamos outro Darcy Ribeiro, sem querer dizer mais do que já foi dito. Embora com a intenção de religar sua démarche à questão etnográfica e de formação da consciência dos povos Ameríndios.
Em verdade, um fragmento etnográfico importante nas páginas da vida latino-americana da década de 1950 até os dias de hoje, pode se documentar seguindo-se o rastro aberto por Darcy Ribeiro. Traçou o plano de uma obra que incluiu, entre outros aspectos, a chamada “revolução humana”; as experiências junto às “formações pré-agrícolas”; um estudo sobre a “revolução agrícola” e sobre as “aldeias agrícolas indiferenciadas”; as “sociedades pastoris”; a “revolução urbana” e os “Estados rurais artesanais” e principalmente, – para o que nos interessa o lugar da “revolução do regadio” e os “Impérios teocráticos de regadio”, assim como a “revolução metalúrgica” e os “Impérios mercantil-escravistas” que têm como consequência, grosso modo, a “revolução mercantil”. O Autor examina os efeitos diferenciais das diversas fronteiras comparativamente de expansão econômica perante os grupos que classifica segundo a intensidade de sua relação com o espaço antrópico e social com a sociedade nacional.

                  O antropólogo quando viveu entre indígenas na Amazônia e no Pantanal brasileiro.

Este modelo de análise será desenvolvido anos depois pelos projetos de investigação mais avançados da antropologia brasileira. Por volta de 1957 – assinala Darcy – “haviam sido extintos só no Brasil, 87 grupos [indígenas], dos 230 registrados em 1900”. Impávido, admite, “o processo civilizatório é minha voz nesse debate. Ouvida, quero crer, porque foi traduzida para as línguas de nosso circuito ocidental, editada e reeditada muitas vezes e é objeto de debates internacionais nos Estados Unidos e na Alemanha. A ousadia de escrever um livro tão ambicioso me custou algum despeito dos enfermos de sentimentos de inferioridade, que não admitem a um intelectual brasileiro o direito de entrar nesses debates, tratando de matérias tão complexas. Sofreu restrições, também, dos comunistas, porque não era um livro marxista, e dos acadêmicos da direita, porque era um livro marxista. Isso não fez dano porque ele acabou sendo mais editado e mais lido do que qualquer outro livro recente sobre o mesmo tema” (cf. Ribeiro, 1995:14).
Além disso, este plano é muito importante na medida em que o Autor teve acesso a obras que em sua maioria estavam sendo publicadas quase que imediatamente “sobre o estudo das revoluções tecnológicas e na fixação dos modelos teóricos das formações socioculturais”. Contou também com suas próprias experiências concretas como antropólogo junto a grupos indígenas como os Guajá e os Xokléng, os índios Kadiuéu (1950) e particularmente a “Arte Plumária dos Índios Kaapor” (1957a) e, igualmente, sobre os índios Urubus-Kaapor (1957b) e as tribos do Xingu, entre outras pesquisas originalmente realizadas sobre os índios no Brasil. Mesmo o livro de Stanley J. Stein e Barbara H. Stein, “The Colonial Heritage of Latin América”, (Oxford University Press, 1970) publicado dois anos depois que o “Processo Civilizatório” (Ed. Civilização Brasileira, 1968) onde inclui fontes bibliográficas importantes sobre a Península Ibérica (1580-1800), sobre as colônias ibero-americanas com a projeção da América Latina em sua fase neocolonial no século XIX, desconhece a redução antropológica contida no “Diagrama do Processo Civilizatório. Principais Focos de Irradiação, suas Interpenetrações e Projeções sobre os Povos contemporâneos”, considerando a importância do estudo de Darcy Ribeiro sobre antropologia das civilizações. Repetem algumas de suas fontes e referências bibliográficas.
Isto é importante, repetimos, na medida em que com a “revolução do regadio” Ribeiro compreendeu que alguns processos civilizatórios brotaram de gestação autóctone, cumpridas passo a passo, como parece ter ocorrido analogamente na Mesopotâmia e nas Américas. Outros podem ter surgido da fecundação de um velho contexto cultural originalmente desenvolvida em diferentes lugares. Mas o fundamental é que se configuram como formações socioculturais “tão radicalmente diferenciadas das anteriores e das posteriores” que só podem ser compreendidas “como uma nova etapa da evolução humana ou como fruto amadurecido de uma nova revolução tecnológica, a do regadio” (cf. Ribeiro, 1968:94) que o levou mais adiante em “busca de explicações terra-a-terra” (sic) para reconstituir o processo de formação dos povos americanos, com uma profunda reflexão para explicar as causas do seu desenvolvimento.



- “Salto, assim, afirma ele, da escala de 10 mil anos de história geral para os quinhentos anos da história americana com um novo livro: As Américas e a Civilização, em que proponho uma tipologia dos povos americanos, na forma de uma ampla explanação explicativa”. Ou seja, como vimos com a referência ao Diagrama do Processo Civilizatório (cf. Ribeiro, 1968:53; 1995:15). A abordagem básica consistiu no desenvolvimento de uma metodologia própria e inovadora que permitiu reunir os povos americanos em três categorias gerais explicativas do seu modo de ser e elucidativas de suas perspectivas de desenvolvimento humano. Essa tipologia etnográfica “possibilitou superar o nível de análise meramente histórico, incapaz de generalizações, e focalizar cada povo de forma mais ampla e compreensível do que seria praticável com as categorias antropológicas e sociológicas habituais” (cf. Ribeiro, 1983a: 12).
A tipologia utilizada por Darcy Ribeiro foi elaborada, como ele dizia, “com esse espírito”. O que nos faz compreender o seguinte: - “Em lugar de transpor à América Latina esquemas desenvolvidos pela análise de distintas situações históricas, procuramos elaborar uma tipologia fundada na observação da realidade presente e na análise da formação das classes da América Latina, a partir da estratificação social registrada nas metrópoles ibéricas e do estudo de suas transformações posteriores. Nossa tipologia aqui apresentada de forma sumária nada mais é, na verdade, do que um esquema de posições correntes, e também mais fiel ao verdadeiro significado da teoria marxista de classes sociais” (1983b: 66). Tais são os Povos-Testemunho (os mesoamericanos que integram o México Asteca-Náhuatl); os Povos-Novos (os brasileiros, os grã-colombianos, os antilhanos, os chilenos); os Povos-Transplantados (os anglo-americanos, os rio-platenses) e os Povos-Emergentes (africanos e asiáticos).
Os primeiros são constituídos pelos representantes modernos das velhas civilizações autônomas sob as quais se abateu a expansão europeia. O segundo bloco é representado pelos povos americanos plasmados nos últimos séculos como um subproduto da expansão europeia pela fusão e aculturação de matrizes indígenas, negras e europeias. O terceiro é integrado pelas nações constituídas pela implantação de populações europeias no ultramar com a preservação do perfil étnico, da língua e da cultura originais. Finalmente, os últimos, representam as nações novas da África e da Ásia cujas populações ascendem de um “nível tribal” (cf. Maffesoli, 1987: 95), onde a constatação poética ou, mais tarde, psicológica da pluralidade da pessoa (“eu é um outro”), pode ser interpretada, de um ponto de vista sócio-antropológico como expressão de um continuun intangível, ou da condição de meras “feitorias coloniais” para a de “etnias nacionais”. Só temos valor pelo fato de pertencermos a um grupo.
A primeira destas configurações designada como Povos-Testemunho é integrada pelos sobreviventes de altas civilizações autônomas que sofreram o impacto da expansão europeia. São resultantes modernos da ação traumatizadora daquela expansão e dos seus esforços de reconstituição étnica como sociedades nacionais modernas. Reintegradas em sua independência, não voltam a ser o que eram antes, porque se haviam transfigurado profundamente. Mais do que povos considerados atrasados na história, eles são os povos espoliados da história. Séculos de subjugação ou de dominação direta ou indireta impuseram-lhes profundas deformações que não só depauperaram seus povos como também traumatizaram toda a sua vida cultural. Como problema básico, enfrenta a integração dentro de si mesmo das duas tradições culturais de que se fizeram herdeiros, não apenas diversas, mas, em muitos aspectos, contrapostas. Atraídos ainda simultaneamente pelas duas tradições, mas incapazes de fundi-las numa síntese significativa para toda a população, conduzem dentro de si o conflito étnico entre a cultura original e a civilização colonizadora europeia.
Neste bloco, encontram-se a Índia, a China, o Japão, a então Coréia unificada, a Indochina, os países islâmicos e alguns outros. Nas Américas, são representados pelo México, pela Guatemala, bem como pelos povos do Altiplano Andino; sobreviventes das populações Astecas e Maia, os primeiros, e da civilização Incaica, os últimos. Dentre estes povos apenas o Japão e, mais recentemente a China conseguiram incorporar às respectivas economias a tecnologia industrial moderna e reestruturar suas próprias sociedades em novas bases. Os dois núcleos de povos das Américas, como povos conquistados e subjugados, sofreram um processo de compulsão europeizadora muito mais violento do que resultou sua complexa transfiguração étnica. Seus perfis étnicos nacionais conformam perfis neo-hispânicos metidos nos descendentes da antiga sociedade, mestiçados com europeus e negros. Os demais povos apenas coloriram sua figura étnico-cultural nas Américas, “a etnia neo-européia é que se tinge com as cores das antigas tradições culturais, tirando delas características que as singularizam”.
A segunda configuração, os “Povos-Novos” constituíram-se pela confluência de contingentes díspares em suas características raciais, culturais e linguísticas. Reunindo negros, brancos e índios para abrir grandes plantações de produtos tropicais ou para a exploração mineira, visando tão-somente atender aos mercados europeus e gerar lucros, as nações colonizadoras acabaram por plasmar povos profundamente diferenciados de si mesmas e de todas as outras matrizes formadoras. Estes contingentes básicos, embora exercendo papéis distintos, entraram a mesclar-se e a fundir-se culturalmente com maior intensidade do que em qualquer outro tipo de conjunção. Assim, ao lado do branco, “chamado a exercer os papéis de chefia na empresa” (por força das condições de dominação impostas aos demais); do negro, nela “engajado como escravo”; do índio, “também escravizado ou tratado como mero obstáculo a erradicar”, foi surgindo uma população mestiça que fundia aquelas matrizes nas mais variadas proporções.
Etnograficamente os Povos-Novos surgem hierarquizados, como os Povos-Testemunho, pela distância social que separa a sua camada senhorial de fazendeiros, mineradores, comerciantes, funcionários coloniais e clérigos da massa escrava engajada na produção. Constituíam-se de rudes empresários, senhores de suas terras e de seus escravos, forçados a viver junto a seu negócio e a dirigi-lo pessoalmente com a ajuda de uma pequena camada intermédia, de técnicos, capatazes e sacerdotes. Onde a empresa prosperou muito, como nas zonas açucareiras e mineradoras do Brasil e das Antilhas, puderam dar-se ao luxo de residências senhoriais e tiveram de alargar a camada intermédia, dos engenhos como das vilas costeiras, incumbidas do comércio exterior.
Vale lembrar que nenhum dos povos deste bloco constitui uma nacionalidade multiétnica. Em todos os casos, seu processo de formação foi suficientemente violento para compelir a fusão das matrizes originais em novas unidades homogêneas. Somente o Chile, por sua formação peculiar, guarda no contingente Araucano, uma micro-etnia diferenciada da nacional, historicamente reivindicante do direito de ser ela própria, ao menos como modo diferenciado de participação na sociedade nacional. Os chilenos e os paraguaios contrastam também com os outros Povos-Novos pela ascendência principalmente indígena de sua população e pela ausência do contingente negro escravo, bem como do sistema de plantation, que tiveram papel tão saliente na formação dos brasileiros, dos antilhanos, dos colombianos e dos venezuelanos. Ambos conformam, juntamente com a matriz étnica original dos rio-platenses, a variante dos Povos-Novos.



A composição predominantemente “índio-espanhola” dos Povos-Testemunho se diferencia dessa variante porque suas populações indígenas originais não haviam alcançado um nível de desenvolvimento cultural equiparável ao dos mexicanos ou dos Incas. É o resultado da seleção de qualidades raciais e culturais das matrizes formadoras, que melhor se ajustaram às condições que lhes foram impostas. O papel decisivo em sua formação foi representado pela escravidão que, operando como força distribalizadora, desgarrava as novas criaturas das tradições ancestrais. São produto tanto da deculturação redutora de seus patrimônios tribais indígenas e africanos, quanto da aculturação seletiva desses patrimônios e da própria criatividade face ao novo meio.
A terceira configuração analítica histórico-cultural é representada pelos Povos-Transplantados, correspondentes às nações modernas criadas pela migração de populações europeias para novos espaços mundiais, onde procuram reconstituir formas de vida essencialmente idênticas às de origem. Cada um deles estruturou-se segundo modelos de vida econômica e social da nação de que provinha, levando adiante, nas terras adotivas, processos de renovação que já operavam nos velhos contextos europeus. Suas características referem-se à homogeneidade cultural que mantiveram pela origem comum de sua população, ou que plasmaram pela assimilação dos novos contingentes. A maioria destes contingentes veio ter à América como trabalhadores rurais aliciados mediante contr@tos que os submetiam a anos de trabalho servil “para ingressar na categoria de granjeiros livres e de artesãos também independentes”.
Integram o bloco de Povos-Transplantados a Austrália e a Nova Zelândia, em certa medida também os bolsões neoeuropeus de Israel, da União Sul-Africana e da Rodésia. Nas Américas são representados pelos Estados Unidos, pelo Canadá e também pelo Uruguai e a Argentina. Nos primeiros casos tais povos nascem de projetos de colonização implantados sobre territórios, cujas populações tribais foram dizimadas ou confinadas em reservations para que uma nova sociedade neles se instalasse. No caso dos países rio-platenses, resultante de um empreendimento peculiaríssimo da “elite crioula” – inteiramente alienada e hostil à sua própria etnia de Povo-Novo. Concebidos como gente com mais peremptória vocação para o progresso. A Argentina e o Uruguai resultam de sucessão ecológica deliberadamente desencadeada pelas oligarquias nacionais e se transforma em Povo-Transplantado. A população ladina e a gaúcha, originária da mestiçagem dos povoadores ibéricos com o indígena, foi esmagada e substituída, como contingente básico da nação, por um alude de imigrantes europeus.
Finalmente, o quarto bloco de povos extra-europeus do mundo moderno é constituído pelos Povos-Emergentes. São integrados pelas populações africanas que ascendem da condição tribal à nacional. Na Ásia encontram-se também alguns casos de Povos-Emergentes que transitam da condição tribal à nacional. Esta categoria não surgiu na América, apesar do avultado número de populações tribais que, ao tempo da conquista, contavam com centenas de milhares e com mais de um milhão de habitantes. Este fator, mais do que qualquer outro, exprime a violência da dominação primeiro europeia que se prolongou por quase quatro séculos, depois nacional, a que estiveram submetidos os povos tribais americanos. Dizimados prontamente alguns deles, outros mais lentamente, somente sobreviveram uns poucos que foram anulados como etnias e como base de novas nacionalidades, enquanto seus equivalentes africanos e asiáticos, apesar da violência do impacto que sofreram, ascendem hoje para a vida nacional. A consciência étnica percorre todo o mundo. Nunca as chamadas “minorias nacionais” foram tão combativas como agora. Isto se pode constatar pela luta dos Bascos, Catalães, Galegos, Bretões, Flamengos e de outras nacionalidades fanaticamente apegadas a tudo que afirme seu caráter de etnias autônomas imersas em entidades multiétnicas. 

Bibliografia geral consultada:

RIBEIRO, Darcy, O Processo Civilizatório. Etapas da Evolução Sociocultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968; Idem, Os Índios e a Civilização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970; Idem, Uirá Sai à Procura de Deus. Ensaios de Etnologia e Indigenismo. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1974; Idem, “Por uma Antropologia melhor e mais nossa”. In: Encontros com a Civilização Brasileira n˚ 15. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979a; Idem, “Antropologia ou a Teoria do Bombardeio de Berlim” - Darcy Ribeiro entrevistado por Edilson Martins. In: Encontros com a Civilização Brasileira n˚ 12. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979b; Idem, Ensaios Insólitos. Porto Alegre: L&PM Editores, 1979c; Idem, “Nosotros Latino-Americanos”. In: Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982a; Idem, Utopia Selvagem. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1982b; Idem, As Américas e a Civilização, Processo de Formação e Causas do Desenvolvimento Desigual dos Povos Americanos. Petrópolis (RJ): Vozes, 1983a; Idem, O Dilema da América Latina: Estruturas de Poder e Forças Insurgentes. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 1983b; Idem, Testemunho. Rio de Janeiro: Editora Siciliano, 1991; Idem, “Tiradentes Estadista”. In: A sagração da liberdade: heróis e mártires da América Latina. Rio de Janeiro: Revan, 1994; Idem, O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. 2ª edição. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1995; Idem, Mestiço é Que é Bom. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1996; Idem, Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, entre outros.
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).  Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Comentários sobre Michel de Certeau & Ludwig Wittgenstein.

Giuliane de Alencar & Ubiracy de Souza Braga

                          “O conhecimento é uma ilha cercada por um oceano de mistério”. Ludwig Wittgenstein


             

           A voga da frase “a utilização da linguagem ordinária” (cf. Ryle, 1980: 37 e ss.), parece sugerir a alguns intelectuais e livres pensadores a ideia de que existe uma doutrina filosófica segundo a qual: (a) todas as Philosophische Untersunchungen se ocupam com termos vernaculares, por oposição a termos mais ou menos técnicos, acadêmicos ou esotéricos; (b), em consequência, todas as discussões filosóficas devem elas próprias exprimir-se integralmente em expressões vernaculares. A inferência é falaciosa, embora exista alguma verdade na sua conclusão. Mesmo que fosse verdade – o que não é o caso – que todos os problemas filosóficos se referem a conceitos não técnicos, i, é, se referem ao “modo de emprego de expressões vernaculares”, não se seguiria dessa (falsa) premissa que as discussões desses problemas devessem ser feitas ou fossem mais adequadamente feitas em inglês, francês ou alemão dos homens de ruas. 
         Se historicamente a palavra “modelo” advém do italiano “modelo”, neste sentido Viena representou uma “colcha de retalhos” cuidadosamente costurada, em três aspectos ímpares: a) por uma experiente dinastia amparada em burocracia (Weber), b) matrimônios (F. Alberoni) e, c) um “liberalismo pragmático” (J. Bentham). A Europa média ou central era a própria Áustria-Hungria, como o Oriente Médio, até 1918, confundia-se com o Império Otomano. Englobava boa parte da Europa central, oriental, norte da Itália e Bálcãs, vinte nações que poderiam ser arrumadas em 16 diferentes composições geopolíticas. As pilastras do antigo império – Áustria, Boêmia, Morávia, Hungria – integravam as alternativas. Politicamente o reinado de Francisco José I, que vai de 1848 a 1916, mais longo da história europeia. Em 68 anos de estabilidade, burocracia, rigor, tradição e protocolo, a aristocracia difundiu um comportamento sobre a cultura e a política austríacas pelo menos até a 2ª grande guerra (1939-1945).  
        A celebrada efervescência vienense é de intensa produção artística e principalmente literária. Melhor dizendo, na virada para o século XX, Viena experimentava díspares: de um lado, “decadência e inovação; unidade e multiplicidade cosmopolitismo e provincianismo; de outro, Levante e Ocidente”, escreveu Carl Shorske em seu libelo: “Viena fin-de-siècle”. Viena fin-de-siècle demonstra onde, quando e como se fabricou a essência irradiante da modernidade. Paradigmáticos foram o salão da musa Alma Malher, Gustav Mahler, Kokoschka, Klimt, Gropius e Werfel, Hofmannsthal e Schnitzler, mas também o café Central onde se cruzavam Freud, Mazarik, Trotski, Bauer, o reacionário Lueger. Wittgenstein, Schoenberg e Schiele, Loos e Otto Wagner, por sua vez discutiam avanços da matemática à estética. Casa de Ludwig Wittgenstein. 
        Os cenários intelectuais de “leitura” eram múltiplos: a) havia o salão de Alma Mahler, mulher de Gustav e musa de Kokoschka, Giropius e Werfel; b) o Café Central, onde se cruzavam Freud, Mazarik, Bronstein (ou melhor, Leon Trotsky), o socialista Bauer e o reacionário Lueger. Wittgenstein, Schoenberg, Klimt e Otto Wagner discutiam avanços que iam da matemática à estética; c) Herzl vislumbrava o Estado judeu, já temendo o antissemitismo crescente; e d) tragicamente o então jovem Adolf percorria maravilhado, a monumental Avenida Ringstrasse. A vida de Arthur Schnitzler coincide com o outono áureo de uma civilização majestosa, cenário ideal para romper com a tradição e antecipar a modernidade. Mas as circunstâncias trágicas pelas quais a Áustria acabou sendo enredada nas duas grandes guerras, até ser anexada pela Alemanha em 1938, aguçaram os contrastes e antinomias. Num cenário histórico de intolerância crescente e irradiação artística luminosa, o esplendor vienense degradou-se.
                                      

         A obra de Ludwig Wittgenstein teve recentemente uma abordagem inédita e provavelmente única a partir da fenomenologia da linguagem de Michel de Certeau (1974; 1975; 1980; 1994), objeto de nossa análise. Antes a advertência: “para descrever essas práticas cotidianas que produzem sem capitalizar, isto é, sem dominar o tempo, impunha-se um ponto de partida por ser o foco exorbitado da cultura contemporânea e de seu consumo: a leitura”. Isto porque, da televisão ao jornal, da publicidade a todas as epifanias mercadológicas, a nossa sociedade canceriza a vista, mede toda a realidade por sua capacidade de mostrar ou de se mostrar e transforma as comunicações em viagens do olhar. É de fato, uma epopeia do olho e da pulsão de ler. A economia fomenta uma hipertrofia da leitura. O binômio de produção-consumo poderia ser substituído por seu equivalente geral: “escritura-leitura”. Aliás, a leitura da imagem, ou do texto, parece constituir o ponto máximo da passividade que caracterizaria o consumidor, constituído em voyeur em uma “sociedade do espetáculo” (cf. Debord, 1967; 1995).
          Para lembramos de Ginzburg e Poni (1979), no ensaio: “Il nome e il come: scambi ineguale e mercato storiografico”, Ludwig Wittgenstein não era inglês por nascimento ou “comportamento social”, ainda que ao morrer tenha levado consigo, talvez por “acidente de percurso” a nacionalidade inglesa. Filho caçula de uma família vienense rica e culturalmente refinada, de ascendência judaica, teve, tal como o sociólogo Max Weber, em família, a virtù como centro de vida artística, mas não política, e, em particular, a música do classicismo vienense. Na literatura a influência do extraordinário Wolfgang Goethe, formando um ambiente que mais tarde ele denominaria, com argúcia, o seu “bom treinamento intelectual pré-escolar”. Viena na virada para o século 20 viveu momentos e circunstâncias díspares de decadência e inovação, unidade e multiplicidade, cosmopolitismo e provincianismo, propiciando o florescimento de surto de criatividade tal que a vida cultural e política posterior seriam marcadas por traços de gênio e bom humor, culpa e redenção, angústia e beleza.           
        Os sábios eram pensadores de fora do ambiente filosófico acadêmico cuja obra Wittgenstein lera ainda bem moço, como Karl Kraus, o “feroz crítico” da cultura e da linguagem do final do Império Habsburgo que lhe causou forte impressão, por sua insistência na integridade pessoal. A obra de Kraus inseria-se no contexto da chamada “crise da linguagem”, quando a preocupação geral era a autenticidade da expressão simbólica na arte e na vida pública. Outra expressão dessa crise foi a crítica da linguagem de Mauthner, autor que perseguiu uma meta kantiana, a derrota da especulação metafísica, substituindo a “crítica da razão” por uma “crítica da linguagem”, sendo sua obra mais tributária de Hume e de Mach. Seu método era psicologista e historicista: a crítica da linguagem faz parte da psicologia social. O conteúdo da crítica era empirista – a linguagem funda-se nas sensações. Seu resultado foi cético – a razão idêntica à linguagem. Mas esta última não serve para penetrar a realidade. Wittgenstein, acertadamente, opõe sua própria “crítica [lógica] da linguagem” à de Mauthner, quem primeiro identificou a filosofia com a crítica da linguagem.
          Historicamente em 1752, Hume é convidado a dirigir a biblioteca da Faculdade dos Advogados de Edimburgo. Embora fosse escassamente remunerada, a função colocava à disposição as fontes bibliográficas para um novo projeto: a elaboração da História da Inglaterra. Essa obra historiográfica de importância monumental foi publicada em seis volumes, nos anos de 1754, 1756, 1759 e 1762. Esse esforço de uma década foi recompensado. Os volumes da História da Inglaterra valeram ao seu autor a tão almejada celebridade literária e, além disso, proporcionaram-lhe bons retornos pecuniários. Mas Hume não ficou livre dos ataques de seus adversários. Em 1754, ele foi acusado de encomendar “livros indecentes” para a biblioteca, e houve uma movimentação para destituí-lo do cargo. Diante das pressões, os membros do conselho diretor cancelaram as encomendas dos livros “considerados ofensivos” – decisão que Hume tomou como uma ofensa pessoal. Como precisava do acervo da biblioteca para prosseguir suas pesquisas para a História da Inglaterra, adiou seu pedido de demissão, mas reverteu os pagamentos de seu salário em benefício de Thomas Blacklock (1721-1791) – poeta cego que decidira ajudar. Antes de sua demissão em 1757, foi alvo de processo inquisitório mal sucedido de excomunhão em 1756.

Foi também durante o período em que exerceu a função de bibliotecário que escreveu duas grandes obras sobre religião: História Natural da Religião e os Diálogos sobre Religião Natural. A primeira veio a público em 1757 como parte das Quatro Dissertações. O projeto original previa cinco dissertações: além da História Natural da Religião, o livro também incluiria os ensaios “Sobre as Paixões”, “Sobre a Tragédia”, “Sobre o Suicídio” e “Sobre a Imortalidade da Alma”. Esses dois últimos ensaios foram as investidas frontais contra os dogmas religiosos, pois criticavam a condenação ao suicídio e a crença na vida após a morte. Antes que fossem publicados, pelo Editor de Hume, Andrew Millar (1705-1768), um britânico do século XVIII. Em 1725, como aprendiz de livreiro aos 20 anos, ele evitou as “restrições de impressão” da cidade de Edimburgo indo para Leith para imprimir, o que foi considerado fora da jurisdição de Edimburgo. Millar logo assumiria a gráfica de Londres de seu mestre aprendiz. Ele estava ativamente envolvido em protestos contra as autoridades em Edimburgo. Em torno de 1729, Millar iniciou seus negócios como Livreiro e Editor em Strand, Londres.

Seu próprio julgamento em assuntos literários era pequeno, mas ele reuniu uma excelente equipe de consultores literários e não hesitou em pagar o que na época era considerado alto preço por bom material. “Respeito Millar, senhor”, disse o Dr. Johnson em 1755, “ele aumentou o preço da literatura”. Ele pagou a Thomson £ 105 por The Seasons e Fielding uma quantia total de £ 700 por Tom Jones e £ 1.000 por Amelia. Millar fazia parte do Sindicato de Livreiros que financiou o Johnson`s Dictionary em 1755, e sobre ele recaiu principalmente o trabalho de ver esse livro na imprensa. Durante o mesmo ano, Millar publicou a primeira edição do Mitchell Map. Ele também publicou as histórias de Robertson e Hume. Millar foi o queixoso no caso de 1769, Millar versus Taylor, que sustentou que “autores e editores têm direito a direitos autorais perpétuos de direito comum. Essa decisão acabou sendo anulada no caso histórico de 1774 Donaldson versus Beckett, cujo autor malsucedido era o aprendiz de Millar, Thomas Becket (ou Beckett). Millar morreu em em Kew Green, perto de Londres, em 8 de junho de 1768.

Por isso, recebeu ameaças de ser judicialmente processado caso os textos fossem distribuídos publicamente. Diante disso, fez alterações na História e substituiu os dois últimos textos pelo ensaio “Sobre o Padrão de Gosto”. Os Diálogos, por sua vez, só foram publicados em 1779, três anos após a morte de Hume. Hume nunca se casou. Suas opiniões políticas eram tipicamente progressistas, e era, assim como seu amigo Adam Smith, um fervoroso defensor do livre-comércio. De maneira geral, a vida de Hume é condizente com as palavras que escreveu sobre si mesmo: “um homem de disposição branda, de têmpera equilibrada, de humor franco, sociável e alegre, capaz de manter laços de afeição e pouco propenso a inimizades, e de grande moderação em todas as minhas paixões”. Numa carta em que fala sobre o passamento de Hume, Adam Smith conclui sua exposição com as seguintes palavras: - “No todo, sempre o considerei, tanto durante a sua vida como desde a sua morte, como alguém que se aproximava tanto da ideia de um homem sábio e virtuoso permite a frágil natureza humana”. Quando as ideias representam seus objetos, as relações, contradições e concordâncias entre elas são aplicáveis, como podemos observar em geral, o fundamento do conhecimento humano.

O termo unidade é apenas uma denominação fictícia, que a mente pode aplicar a qualquer quantidade de objetos por ela reunidos. Sendo na verdade um verdadeiro número, tal unidade não pode existir sozinha, já que um número não o pode. A unidade que pode existir sozinha, e cuja existência é necessária à existência de todos os números, é uma unidade de outro tipo; ela deve ser perfeitamente indivisível e incapaz de ser resolvida em qualquer unidade menor. Todo esse raciocínio também se aplica ao tempo, juntamente com um argumento adicional, que valeria a pena considerar. Uma propriedade inseparável do tempo, e que constitui, e que constitui de certa maneira sua essência, é que suas partes são todas sucessivas, nenhuma delas podendo coexistir com outra, ainda que sejam contíguas. A mesma razão pela qual os anos de 1737 não podem coincidir com o presente ano de 1738 faz que todo momento deva ser distinto, deva ser posterior ou anterior a ele. Portanto, é certo que o tempo, tal como existe, deve ser composto de momentos indivisíveis. Pois se, no caso do tempo, nunca pudéssemos chegar ao fim da divisão. E, se cada momento, ao suceder o outro, não fosse singular e indivisível, haveria um número infinito de momentos ou partes coexistentes do tempo. A divisibilidade infinita do espaço implica o tempo, evidente, pela natureza do movimento.

Mas podemos aqui observar, afirma David Hume (2009), que nada pode ser mais absurdo que esse costume de atribuir uma dificuldade aquilo que pretende ser uma demonstração. As demonstrações não são como as probabilidades, em que podem ocorrer dificuldades, e um argumento pode contrabalançar outro, diminuindo sua autoridade. Uma demonstração ou é irresistível, ou não tem força alguma. Portanto, falar em objeções e respostas, em contraposição de argumentos numa questão como essa, é o mesmo que confessar que a razão humana é um simples jogo de palavras, ou que a pessoa que assim se exprime não está à altura desses assuntos. Há demonstrações difíceis de compreender, por causa do caráter abstrato de seu tema; nenhuma demonstração, porém, uma vez compreendida, pode conter dificuldades que enfraqueçam sua autoridade. É uma máxima estabelecida da metafísica que tudo que a mente concebe claramente inclui a ideia da existência possível, ou, em outras palavras, que anda que imaginamos é absolutamente impossível. Não poderia haver descoberta mais feliz para a solução de todas as controvérsias em torno das ideias que as impressões sempre precedem as ideias, e que toda ideia contida na imaginação apareceu primeiro em uma impressão correspondente. As percepções deste último tipo são tão claras e evidentes que não admitem discussão, ao passo que muitas de nossas ideias são tão obscuras que é quase impossível, mesmo para a mente que as forma, dizer qual é exatamente sua natureza e composição. Pallais Wittgenstein. 

        De Otto Weiniger, autor do célebre livro: Sex and Character pode-se dizer, talvez, que era mais um psicopata do que propriamente um sábio. Este autor defendia a tese da inferioridade da mulher relativamente ao homem, receitando, então, aos homens a abstinência sexual. Contudo, Weiniger parece ter sido um autor bastante influente na Europa do início do século, pelo menos se levarmos em conta o seu livro “Sexo e Caráter” que mereceu, em vinte anos, 25 edições, e traduções em 8 línguas, o próprio Freud teve acesso e serviu-se dos manuscritos. Seu suicídio, encenado teatralmente em 1903, foi imitado por vários jovens em Viena. A influência benigna que exerceu sobre Wittgenstein foi restrita. Contaminou-o com sua misoginia, com dúvidas, igualmente tola e perniciosa, quanto ao poder criativo dos judeus, mas talvez como Theodor Herzl que vislumbrava o Estado judeu, temendo o antissemitismo ainda existente em Viena. A influência mais importante reside, entretanto, na ideia de que o indivíduo tem o dever moral para consigo, e elementos empíricos e os elementos a priori da mecânica.
     Elucidou a possibilidade de explicação científica com base na natureza da representação. A ciência constrói modelos (“Bilder”) da realidade, de tal modo que as consequências lógicas de tais modelos correspondam às consequências reais das situações externas que descrevem. Suas teorias não são predeterminadas pela experiência, mas antes construídas de forma ativa, respeitando-se restrições formais e pragmáticas, às quais Hertz se referia como “as leis do pensamento”. Ele requereu da ciência evitar pseudoproblemas pela apresentação desses elementos apriorísticos de modo claro e perspícuo. Boltzmann foi mais hostil a Kant. Acusou-o, em um espírito darwiniano, de não levar em conta o fato de que as “leis do pensamento” não são imutáveis, mas apenas inatas no indivíduo, resultantes da “experiência da espécie”.
            Família de Wittgenstein em Viena, no verão de 1917. Levou adiante, contudo, o projeto hertziano de esclarecer a ciência com base em modelos que não se originam da experiência, conservando a visão de que a confusão filosófica deve ser resolvida pela revelação da natureza absurda de certas questões. Estes autores exerceram influência sobre a teoria pictórica do Tractatus, e também sobre a discussão que ali se encontra acerca da ciência. E mais ainda, reforçaram uma concepção kantiana sobre a tarefa da filosofia, que Wittgenstein encontrara também em Schopenhauer: distinguindo-se da ciência, a filosofia não descreve a realidade; sua tarefa é crítica. O plano inicial de Wittgenstein de estudar com Boltzmann, em Viena, foi frustrado pelo suicídio deste último em 1906. Ele foi, então, encaminhado a Berlim para estudar engenharia. Não tardou, entretanto, a ver-se atraído por problemas filosóficos, “dando início ao hábito, que duraria por toda a vida, de anotar suas reflexões filosóficas em apontamentos datados de 1914 em cadernos”.
            Em 1908, mudou-se para Manchester, onde desenvolveu interesse primeiro pela matemática pura, e logo por seus fundamentos filosóficos. Conheceu os escritos de Frege e Russell e, em 1909, tentou resolver o maior problema então em destaque – a contradição que Russell descobrira no sistema de Frege. Em 1911, traçou um plano para um trabalho filosófico, o qual discutiu com Frege, mas desde Frege a semântica filosófica colocou no centro a estreita relação entre significado e verdade. Contudo, a completa equiparação do compreender ao conhecimento de condições da verdade ou métodos de verificação, no entanto, é insustentável, visto que o aspecto da verdade não é constitutivo para todas as modalidades, e a compreensibilidade inclusive de sentenças afirmativas não verificáveis é indiscutível. Especialmente a análise linguística provinda de situações sociais e culturais ditas radicais (Quine) de tradução e aprendizagem demonstra-nos quantas coisas permanecem inaplicadas em teorias existentes.
        Ao conselho deste foi para Cambridge estudar com Russell, que a esta altura tornara-se a figura central destes debates. Isto foi decisivo na vida de Wittgenstein. Frege e Russell proporcionaram o pano de fundo essencial para sua “primeira filosofia”, bem como alvos importantes de seu pensamento posterior. Enfim, para sermos breves, o sistema lógico dos Princípia Mathematica, de Russell e Alfred North Whitehead, assim como os de Frege, faz uso da analogia de eventos entre a estrutura de proposições e estruturas associadas à teoria das funções presentes na análise matemática. Entretanto, a concepção que Russell tinha de função proposicional, na perspectiva comparada, diferia da noção de conceito de Frege, no sentido de que seus valores não eram duas entidades lógicas e relacionais, como o verdadeiro e o falso, mas sim proposições. Russell negou, por conseguinte, que as sentenças “nomeiem valores de verdade”.
           Repudiou, além disso, a distinção fregiana entre sentido e significado, juntamente com a suposição “de que é possível a existência de proposições destituídas de valor de verdade”. Durante um curto espaço de tempo, o que não é pouco, Wittgenstein foi a estrela em ascensão em Cambridge, tendo sido membro de uma autoproclamada elite intelectual, “os Apóstolos”. Em 1913, entretanto, ele parte para a Noruega, com o objetivo de trabalhar sozinho em sua nova teoria da lógica. Com a deflagração da guerra de 1914-18, vai para Viena e se voluntaria ao serviço militar. Feito prisioneiro em 1918, arranjou um jeito de enviar o manuscrito a Cambridge. O apoio de Russell acabou por garantir sua publicação, em 1921, do que hoje se conhece como: “Tractatus logico-philosophicus”, bem como de uma tradução inglesa “plus tard”. Com o “Tractatus”, impresso no papel Wittgenstein acreditava ter resolvido “todos” os problemas fundamentais da filosofia. Ao retornar do cárcere, em 1919, doou a fortuna que herdara de seu pai com o objetivo de “romper com o passado”.
         Para Michel de Certeau, enquanto diz respeito à linguagem, a questão filosófica consistiria, sobretudo em interrogar, em nossas sociedades técnicas, a grande partilha entre as discursividades reguladoras da especialização e as narrativas do intercâmbio massificado. - “Quando os filósofos usam uma palavra – ‘saber’, ‘ser’, ‘objecto’, ‘eu’, ‘proposição’, ‘nome’, – e procuram captar a essência da coisa, devemo-nos sempre perguntar: na linguagem onde vive, esta palavra é de facto sempre assim usada? (…) Nós reconduzimos as palavras do seu emprego metafísico ao seu emprego quotidiano” (cf. Wittgenstein, 1987: 259; 1979: 55). Se Ludwig Wittgenstein pretende “trazer a linguagem do seu uso filosófico de volta ao seu uso ordinário”, ao “everyday use”, ele se proíbe, ou proíbe ao filósofo toda extrapolação metafísica “para fora”, como ocorre com Pierre Bourdieu no livro: - “Ce Que Parler Veut Dire”, quando ele afirma: - “Le discours n’est pas seulement un message destiné à être déchiffré; c’est aussi un produit que nous livrons à l’appréciation des autres et dont la valeur se définira dans sa relation avec d’autres produits plus rares ou plus communs” (cf. Bourdieu, 1998).
       Enfim, Ludwig Wittgenstein opera a mudança simbólica do lugar de análise, definida agora “por uma universalidade que é identicamente uma obediência ao uso ordinário”. Essa mudança modifica o estatuto do discurso antecipando M. Foucault. Vendo-se “preso” na linguagem ordinária, o filósofo não possui mais lugar próprio ou apropriável. É-lhe retirada toda “posição” de domínio. O discurso analisador e o “objeto” analisado têm o mesmo estatuto. De se organizar pelo trabalho de que dá testemunho. Determinados por regras que não fundam nem superam. Igualmente disseminadas em funcionamentos diferenciados. Inscritos em uma textura onde cada fragmento pode “apelar” a outra instância. Dá-se uma permanente troca de lugares distintos. O privilégio filosófico ou científico se perde no ordinário. Essa perda tem como corolário a invalidação das verdades. Demonstrando que são uma mistura de “nonsense” e de poder. Wittgenstein se esforça por reduzir essas verdades a fatos e nos remete a uma redutibilidade linguística identificada na exterioridade da linguagem. Queremos dizer com isso que a referência à “linguagem comum” demarca o contraste com concepções anteriores sobre o papel da linguagem na resolução de problemas filosóficos. Se para os filósofos do período clássico da análise filosófica, tais como, Frege, Russell, e em geral os positivistas lógicos os problemas teriam de ser resolvidos por linguagens artificiais – mais precisas e exatas que a linguagem natural –, a ênfase do segundo Ludwig Wittgenstein e dos filósofos de Oxford concentra-se nos conceitos “tal como forjados pelos falantes da língua em situações concretas de uso das palavras”. Michel de Certeau acaba, afirmando que por essas características a obra disseminada e rigorosa parece oferecer uma épura filosófica a uma ciência contemporânea do ordinário. Sem entrar nos pormenores de sua tese, ao menos por ora, deve-se confrontar este método, tomado como hipótese teórica no campo da comunicação, do poder e da linguagem, com as contribuições positivas de ciências humanas com a redução paradigmática ao conhecimento da cultura ordinária. 
Bibliografia geral consultada.

RYLE, Gilbbert, “A Linguagem Ordinária”. In: Ensaios. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1980; GLOCK, Hans-Johan, Dicionário Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998; WITTGENSTEIN, Ludwig, Investigações Filosóficas. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os Pensadores); Idem, Tratado Lógico – Filosófico / Investigações Filosóficas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987; BOURDIEU, Pierre, Ce Que Parler Veut Dire. Paris: Fayard (Coleção Cahiers Rougess), 1998; CERTEAU, Michel, La Culture au Pluriel. Paris: Union Gerneral d`Éditions 10-18, 1974; Idem, L`Ecriture de l`Histoire. Paris: Editions Gallimard, 1975; Idem, L`Invention du Quotidienne. Vol 1. Arts de Faire: Union Générale d`Éditions 10-18, 1980; HALLER, Rudolf, “A Ética no Pensamento de Wittgenstein”. In: Revista Estudos Avançados. São Paulo/USP, janeiro/abril. Volume 5 – número 11, 1991; HARTNACK, Justus, Wittgenstein y la Filosofía Contemporánea. Barcelona: Editorial Ariel, 1977; JANIK, Allan, A Viena de Wittgenstein. Rio de Janeiro: Editora Campos, 1991; RORTY, Richard, A filosofia e o espelho da natureza. 3ª edição. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994; SCHLICK, Moritz/CARNAP, Rudolf, Coletânea de Textos. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Os Pensadores); SCHORSKE, Carl, Viena – Fin-de-siècle: Política e Cultura. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1988; MARCONDES, Danilo, Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos à Wittgenstein. 8ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004;  D`ALKAINE, Carlos Ventura, Os Trabalhos de Godel e as Chamadas Ciências Exatas. Em Homenagem ao Centenário do Nascimento de Kurt Godel. In: Rev. Bras. Ens. Fis. 28, 525 (2006); BALIEIRO, Marcos Ribeiro, Essa Mistura Terrena Grosseira: Filosofia e Vida Comum em David Hume. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009; GIMBO, Fernando Sepe, Foucault, o Ethos e o Pathos de um Pensamento. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2015; SIAPKAS, Johannes, Ontología del Otro: Reflexiones sobre la Filosofía de Michel de Certeau. In: La Torre del Virrey. Revista de Estudios Culturales, nº 17, pp. 48-59, 2015;  entre outros.

terça-feira, 26 de maio de 2015

O Vazio na Política: Criação do Shopping dos Deputados (DF)?

Ubiracy de Souza Braga*
                       
Performance Cegos ocorrida no Shopping Midway Mall em dezembro de 2013.

Apresentada nas imediações (e dentro) do Shopping Midway Mall, a performance “Cegos” refletiu de forma crítica e contundente o padrão de comportamento da sociedade e a cegueira que o consumo provoca nas pessoas, cuja intenção foi provocar reflexões. A intervenção artístico-urbana criada por Marcos Bulhões e Marcelo Denny, ambos professores do curso de teatro na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP),  levou um ‘exército’ de 40 pessoas, homens e mulheres bem vestidos, devidamente vendadas e munidas com suas sacolas de compras.  Durante mais de duas horas, esses ‘cegos’ passearam tranquilamente entre pedestres, carros e clientes do centro comercial, sempre perseguidos por um batalhão de fotógrafos e curiosos: “Valha-me!”, disseram uns; “que coisa macabra” disse outro; “isso deve ser uma ação de marketing”, arriscou um terceiro. 
        A invenção do “shopping centers” ou centro comercial refere-se a uma estrutura física que contém estabelecimentos comerciais como lojas, lanchonetes, restaurantes, salas de cinema, playground e estacionamento, caracterizado pelo seu “fechamento” em relação à cidade. É um espaço planejado sob uma administração centralizada. Composto de lojas destinadas à exploração comercial e à prestação de serviços, sujeitas a normas contratuais padronizadas, para manter o equilíbrio da oferta e da funcionalidade, procurando assegurar convivência social integrada. Os locatários pagam um valor em conformidade com um percentual do faturamento em torno de 5% a 9% ou um valor mínimo básico estabelecido no contrato - o que for maior. O centro comercial, na maior parte das vezes, cobra por muitos serviços, como por exemplo, o estacionamento.
Em primeiro lugar, a lei nº 8.245/91 - Lei do Inquilinato prevê o contrato do espaço em shopping centers como de locação, submetendo-o ao regime do inquilinato, locação esta não residencial e sim comercial. Dentro desse liame é conveniente lembrar que os contratos podem ser classificados quanto à tipicidade, podendo ser atípicos ou típicos. Em vista disso, depreende-se que “os contratos típicos são aqueles a que a Lei confere denominação própria e se sujeita a regras que ela determina”. Já os contratos atípicos são aqueles que “a lei não disciplina de forma expressa, carecem de disciplina particular não podendo a regulamentação dos interesses dos contratantes contrariar a lei, a ordem pública, os bons costumes e os princípios gerais do direito”. Contudo são lícitos, em conformidade com o principio da autonomia das vontades sobre vontades.  
         Com o crescimento urbano a partir da década de 1980 a construção de shopping center`s aumentaram suas participações econômicas nas atividades varejistas, passando a disputar os consumidores, construindo novas unidades e com isso contribuiu para a expansão de novos formatos arquitetônicos de shopping center`s. Quanto a sua origem, pode-se afirmar que surgiram nos Estados Unidos na década de 1950 em função das estratégias do comércio a fim de atrair o crescente número de consumidores que se expandia para os subúrbios das grandes cidades. Os fatores resultantes do crescimento urbano, tais como a necessidade de segurança, maior conforto e as condições climáticas incentivaram o crescimento desse importante segmento. A Associação Brasileira de Shoppings Center`s – Abrasce-, contabilizou em 2010 quatrocentos e doze (412) unidades já construídas, com cerca de 73.800 lojas no seu interior e oferecendo 732 mil empregos. A Região Sudeste concentra 56% das unidades, principalmente São Paulo.
Tal convergência de entendimento surge uma vez que há doutrinadores que defendem a tipicidade do presente contrato – considerando-o simplesmente como de locação – mesmo, muitas vezes admitindo cláusulas atípicas em seu teor. De outra parte, há diversos interesses que sustentam a atipicidade do contrato, tendo em vista as peculiaridades que o instrumento possui, advindas, principalmente, dos aspectos específicos e complexos que o centro comercial detém, mediante a relação comercial entre público e privado. Além disso, parceria público-privada é o contrato pelo qual o parceiro privado assume o compromisso de disponibilizar à administração pública ou à comunidade uma certa utilidade mensurável mediante a operação e manutenção de uma obra pública por ele previamente projetada, financiada e construída como bem público.
Em contrapartida há uma remuneração periódica paga pelo Estado e vinculada ao seu desempenho no período de referência. Alguns exemplos de obras realizadas por PPPs são: a) vagas prisionais, b) leitos hospitalares, c) elétrica, d) autoestrada e assim por diante. Os últimos anos têm sido demarcados por um crescente aumento da colaboração entre setor público e o privado para o desenvolvimento e operação de infraestruturas para um leque alargado de atividades econômicas. Assim os acordos das “parcerias público-privadas” (PPP) são guiados por limitações dos fundos públicos para cobrir os investimentos necessários. Mas também os esforços para aumentar a qualidade e a eficiência dos serviços públicos entendidos como puzzle nos serviços públicos brasileiros da era Vargas aos dias atuais permeadas por escândalos na administração.            

Juventude barrada na entrada de Shopping em Natal-RN.

A presidente Dilma Rousseff disse nesta quarta-feira que a confusão entre o que é público e privado no Brasil vem de muito tempo e tem “a mesma idade da escravidão”. Em discurso durante o 3º Festival da Juventude Rural, em Brasília, Dilma também voltou a se manifestar contra a redução da maioridade penal, atualmente em discussão no Congresso Nacional. – “Essa confusão entre o que é privado e o que é público veio lá de trás nesse país. Tem a mesma idade que a escravidão”, disse a presidente. – “A confusão entre o que é bem individual e o que é bem público decorre de uma coisa chamada patrimonialismo que era típico da oligarquia rural brasileira, que achava que o Brasil como nação era só dela porque parte da população era escrava e não tinha direito nenhum”. A presidente Dilma Rousseff já havia reiterado recentemente, em meio ao aparente escândalo de corrupção na Petrobras, que “as irregularidades existem no Brasil há muito tempo e que não começaram no seu governo ou nas gestões do PT”.
No Congresso nacional os embates duraram mais de três horas, houve gritaria em uníssono de partidos da base e da oposição, o presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ) precisou fazer um recuo estratégico, mas ao final os deputados autorizaram o Legislativo a realizar Parcerias Público-Privadas (PPPs). Foram 273 votos favoráveis à liberação que vai permitir à Cunha cumprir sua principal promessa de campanha à presidência Câmara: “a construção de um novo prédio estimado em R$ 1 bilhão”. Outros 183 parlamentares foram contrários ao novo prédio, que vem sendo chamada de “projeto shopping centers” por incluir lojas e escritórios de empresas privadas no mesmo ambiente do Legislativo. A obra será realizada por meio de PPP, o que até agora era proibido ao Poder Legislativo. O tema foi um dos muitos temas estranhos incluídos na Medida Provisória 668 e que são chamados no jargão do Congresso de “jabutis”.
Segundo a Lei 11.079/2004, as parcerias público-privadas são aplicáveis às modalidades de contratos de concessão de serviços públicos que não tenham autossustentação, seja porque o fluxo de caixa é insuficiente e deve ser complementado por recursos de um parceiro público como concessão patrocinada, seja porque é um serviço prestado ao Estado e não tem outra fonte de receita que não aquela representada pelo pagamento pelo ente público representado pela concessão administrativa. Uma rodovia ou uma linha de metrô como a MG 050 e linha amarela da cidade de São Paulo, podem ser um exemplo da primeira, e um presídio, pode ser exemplo da segunda. A Parceria Público-Privada (PPP) é um contrato de prestação de obras ou serviços não inferior a R$ 20 milhões, com duração mínima de 5 anos e no máximo de 35 anos, firmado entre empresa privada e o governo federal, estadual ou municipal.  
O famigerado Eduardo Cunha quer garantir o controle sobre o processo que envolve a construção do novo prédio. - “Ele afastou o diretor da Casa porque ele que deu aquela declaração de forma antecipada. O diretor fez uma colocação como se aquilo (a construção de um shopping por meio de PPP) fosse uma decisão final, e não é. Aquilo é uma das possibilidades”, disse o líder do PSC, André Moura (SE). Procurado pela reportagem, Matta confirmou o afastamento do cargo, mas disse que ainda não havia sido comunicado oficialmente até o começo da noite de ontem. Servidor de carreira da Câmara, Matta conversou com jornalistas sobre o tema, inclusive com o Correio, mas não forneceu detalhes sobre a proposta de parceria público-privada.                                          
Projeto de ampliação da câmara dos deputados: anexo 5. Administrativamente difere ainda da lei de concessão comum pela forma de remuneração do parceiro privado. No setor federal, o Comitê Gestor da PPP (CGP) é quem ordena, autoriza e estabelece critérios para selecionar projetos da PPP. Integram o CGP, os representantes dos ministérios do Planejamento, Fazenda e Casa Civil. Assim, o Ministério do Planejamento passa a coordenar as Parecerias Público-Privada. O pagamento ao sócio privado é feito quando as obras e serviços firmados pelo contrato estiverem prontos. À medida que o serviço é prestado, haverá avaliação periódica, geralmente mensal, do desempenho do prestador de serviço, comparativamente aos padrões de desempenho estabelecidos em contrato. Na concessão comum, o pagamento é realizado com base nas tarifas cobradas dos usuários dos serviços concedidos.
  Nas PPPs, o agente privado é remunerado exclusivamente pelo governo ou numa combinação de tarifas cobradas dos usuários dos serviços mais recursos públicos. De acordo com a lei da PPP de n° 11.079/2004, as parcerias podem ser de dois tipos: a) “Concessão Patrocinada”: As tarifas cobradas dos usuários da concessão não são suficientes para pagar os investimentos feitos pelo parceiro privado. Assim, o poder público complementa a remuneração da empresa “por meio de contribuições regulares”, isto é, o pagamento do valor mais imposto e encargos; b) “Concessão Administrativa”: A “brecha” ocorre quando não é possível ou conveniente cobrar do usuário pelo serviço de interesse público prestado pelo parceiro privado. Por isso, justifica-se porque “a remuneração da empresa é integralmente feita por pelo poder público”.
A Câmara dos Deputados terá um “shopping center”. Essa foi a principal “bandeira” de Eduardo Cunha (PMDB) em sua candidatura para presidente da Casa e, na noite de quarta-feira (20/05/2015), por meio de uma manobra, a proposta foi votada e aprovada. Enquanto avaliam medidas de ajuste e que apertam os gastos públicos, os deputados aliados de Cunha não se ressentem em deixar passar um projeto de ampliação da estrutura do Congresso que, além do centro comercial, prevê a reforma e construção de novos gabinetes. O orçamento é de R$ 1 bilhão, comparativamente 1/30 da Harvard University que detém o maior orçamento de qualquer outra instituição acadêmica do mundo, em cerca de 30 bilhões de dólares em setembro de 2012. Para conseguir aprovar o projeto, o presidente da Casa e os deputados de seu partido incluíram a possibilidade da construção da obra dentro de outra Medida Provisória que trata da tributação sobre produtos importados. Assim, a Câmara pode recorrer a uma PPP para realizar o projeto. Deputados do PT, PSDB e PSOL votaram contra. - “Uma megalomania típica de quem se acha dono do Parlamento brasileiro, e que legisla de costas para o povo e de mãos dadas com os financiadores privados de campanha, que agora serão sócios na construção do Shopping Centers em plena Câmara dos Deputados. É o fim da picada! O povo deve repudiar este abuso”, afirmou o deputado federal Ivan Valente (PSOL).
Valquíria Padilha professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade sa Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto, observa que o shopping passa a ser objeto de estudo da sociologia já quando se transforma no lugar mais visitado de uma cidade, ou, quando uma “criança de rua” é barrada na porta pelos seguranças. Para narrar à história social dos shoppings centers, a pesquisadora remonta historicamente ao século 19, quando nasceram as lojas de departamento na Europa ocidental e começaram a desenvolver a “cultura do consumo”. Com essa nova forma de comércio, que passa da compra e venda de bens de extrema necessidade para a compra e venda de bem supérfluos para o consumo, cria-se um ambiente de imagens e símbolos que se associam aos bens para torná-los atraentes e levar as pessoas a acreditarem que eles são necessários. Começa, então, a haver uma grande mudança na concepção das pessoas sobre o que é e o que não é necessário para ser feliz. O shopping colabora para o declínio do espaço público quando ele redesenha as formas de controle nas cidades.



Mulher que estava em companhia de duas crianças é barrada pelos seguranças do shopping Iguatemi de Fortaleza (CE), em 02 de dezembro de 2011. Em seu livro, “Shopping Center – a catedral das mercadorias” (2006), Valquíria Padilha analisa se o shopping centers é um espaço público ou privado. Ela considera que no Brasil, como em todos os países onde a desigualdade social e econômica é mais visível, a violência urbana aparece como um complexo fenômeno que acentua a degradação do espaço público e empurra as camadas privilegiadas da população para lugares mais protegidos como o shopping. A cidadania parte do princípio de que na vida em sociedade todos têm direitos. Assim, numa democracia, como pensar que na prática uns tenham mais direitos que outros?  Na avaliação da pesquisadora, a cultura do consumo nasce e se estabelece pautada nos ideais da liberdade individual de escolha, o que gera uma equação complicada do ponto de vista da política e da cidadania, uma vez que a liberdade de escolha é maior, no capitalismo, para quem tem mais dinheiro.
- “Então, quanto mais se acentua a liberdade individual do consumidor, mais a vida pública vai se debilitando, porque os pontos comuns entre as pessoas que compõem a coletividade ficam reduzidos: ricos podem mais do que os pobres. A questão da pobreza e da cidadania está diretamente ligada à questão do consumismo, porque coloca frente a frente a carência com a abundância, a inclusão com a exclusão”.
Paralelamente à multiplicação de empreendimentos, ao contínuo crescimento da comunidade de lojistas, ao incremento substancial da participação dos shoppings no varejo nacional, tudo com o entusiasmado aplauso de milhões de consumidores, alguns percalços brotam aqui e ali. E precisam ser gerenciados. Por exemplo, a incompreensão de que a excelência do setor é fruto da mistura da livre iniciativa com a livre concorrência, tem suscitado ultimamente, proposições manifestamente deletérias ao desenvolvimento do negócio. É o caso de propostas que visam à intervenção legislativa na relação contratual entre empreendedores e lojistas, “sob o falso argumento de que estes últimos seriam dependentes do protecionismo estatal”. É também a situação da gratuidade compulsória de estacionamento, cogitada ao absurdo pretexto de que existiria, para todo consumidor proprietário de automóvel, um “direito” a essa benesse. Diante de situações como essas, tem sido esclarecedora a atuação da Abrasce. Seja prestando esclarecimentos a parlamentares e ao público, por meio da imprensa, quanto à inviabilidade jurídica ou econômica da medida respectiva. Seja exercendo a legítima faculdade de recorrer ao Judiciário, na defesa de seus associados, com ações diretas de inconstitucionalidade, mandados de segurança coletivos e outros meios processuais. 

Bibliografia geral consultada. 
ANDRADE, Luís Antonio de, Considerações sobre o aluguel em shopping centers: aspectos jurídicos. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1984; BUZAID, Alfredo. “Estudo sobre shopping centers”. In: Shopping centers. Questões jurídicas. São Paulo: Editora Saraiva 1991; PINTO, Dinah Sonia Renault, Shopping centers. Uma nova era empresarial. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001; ANDRADE, Marli Tereza Michelsen de, O Shopping Center na Sociedade Globalizada e sua Complexidade.  Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Geografia. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2007; ANDRADE, Charles Albert de, Shopping Center Também Tem Memória: Uma História Esquecida dos Shoppings nos Espaços Intra-urbanos do Rio de Janeiro e São Paulo nos anos 60 e 70. Dissertação de Mestrado em Geografia. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2009; COSTA, João Marcos Alves, Shopping Center - do Projeto ao Champagne - a Arte do Controle Sobre o Planejamento. São Paulo: Editora Jurua, 2010; PADILHA, Valquíria, Shopping Center: a catedral das mercadorias e do lazer reificado. Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – ICHF/UNICAMP, 2003; Idem, “Desafios da crítica imanente do lazer e do consumo a partir do shopping center”. In: ArtCultura (UFU), vol. 10, pp. 103-119, 2009; Idem,  “Nojo, humilhação e controle: o trabalho de limpeza de shopping centers no Brasil e no Canadá”. In: Caderno CRH. Universidade Federal da Bahia, vol. 27, pp. 329-344, 2014; Artigo: “Performance ‘invade’ shopping e critica consumo”. Disponível em: http://blogurakensilva.blogspot.com.br/2013/12Artigo: “Cunha aprova projeto para construir ‘shopping’ na Câmara no valor de R$ 1 bilhão”. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/05/; Artigo: “Cunha vence, e deputados dão aval a construção de shopping na Câmara”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/05/AUIP, Marie Araujo, Diálogos em Resistência: Um Estudo da Performance Arte Ativista e as Instituições Culturais. TCC de Especialização em Gestão de Projetos Culturais e Organização de Eventos. Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015;  entre outros.  
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes. SãoPaulo: Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).