quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Arte, Princípio & Manifestações


Fernando Átila Freitas de Oliveira Filho*


A arte enquanto manifestação serve de instrumento de expressão corporal utilizando-se de aparatos, como instrumentos musicais na música, para a expressão de uma ideia ou como entretenimento, tendo um plano de fundo sendo apreciado por um público. Ao transformar a natureza, o homem acaba por transformar também suas condições materiais de vida, ao longo da história a arte, como parte integrante da cultura de um povo, desenvolve-se e transforma-se tanto quanto as condições materiais de uma sociedade, sendo parte constitutiva desta, assim ficando conhecidas como escolas, seja na literatura, na música, artes plásticas ou cênicas, expressando de diferentes modos a vida e as ideias de determinada época.
A arte é uma abstração distorcida da realidade mais ou menos como ela se apresenta para o autor – agente – e em como este a representa – portanto um fenômeno perceptivo e consciente. Sendo assim, fazer arte é refazer a realidade tal qual ela se apresenta subjetivamente transpondo-a num quadro estático; fazer isso é desnudar-se frente a estranhos que recebem aquela mesma resposta objetiva da realidade; porém, é também um ato de egoísmo, ao representar impõe-se a sua concepção, sobretudo única e individual, sobre o real coletivo. Já do lado do receptor, é imprescindível praticar a arte da empatia, e só assim se consegue ter o mínimo de entendimento para além da aparência daquilo. 


Talvez aí resida o fato da arte de hoje precisar de tão pouca forma – comparando-se aos séculos passados –, redefinindo questões estéticas, não excluindo a própria capacidade de essência quanto as pinturas de Bruegel; necessidade essa que surge como efeito de uma sociedade fetichista que mantém seus indivíduos alienados do próprio fruto de seu trabalho laboral, em relações coisificadas (Versachlichung) uns com os outros reduzindo-se o viver em meras relações quantitativas e monetárias; mas antes é importante evocar o impressionismo que dominava a cena até poucas décadas atrás, este foi o grito de passagem para o que hoje chamamos de arte abstrata ou moderna, que agora expressa-se de modo mais intenso dando ênfase a não-figuras – cores e linhas – provando que a essência da obra nunca esteve em sua forma, mas em seu conteúdo e em como este expressa sentimentos e ânimos no observador. O que falta aos críticos da arte, desde os críticos de Van Gogh até aos do Funk Brasileiro Proibidão, é a capacidade que até ao mais sofisticado dos indivíduos pode ser de comum carência, e já citada.
Sendo uma ação como outra qualquer, porém tão diferente quanto outras quaisquer, naturalmente a produção de uma obra, qualquer que seja, exige um sem-números de escolhas de seu autor. Não há fenômeno mais individual que a produção da arte. Portanto, não há como entender a obra sem entender o artista e seu tempo. Se antes o artista, especialmente o artista plástico, produzia suas obras sob encomenda, visto que tal ofício veio a se tornar e tornar seus praticantes bem sucedidos e almejados há poucos séculos se comparada a toda a história da humanidade desde que a estética e a própria arte passaram a ser assuntos de discussão, hoje os artistas e suas obras passaram a ser objeto de estudo, especialmente os ditos expressionistas.
O expressionismo desenvolveu-se na França na segunda metade do século XIX, na época o centro do mundo da arte e do império de Napoleão III; a cidade, com suas ruas e casas estreitas desenvolvidas pelo engenheiro civil barão Georges Haussmann, abriram novas perspectivas e temas para os novos pintores e sua nova técnica: um sistema de pintura que traduz pura e simplesmente a impressão tal qual foi percebida materialmente. Os temas nada têm de intelectual, tirando a atenção dos cenários e figuras históricas e heroicas, marcado pela rejeição dos temas literários, transferindo a atenção para os efeitos sensoriais produzidos pelo mundo externo.
Os expressionistas destacaram-se por formar um grupo com objetivos em comum: o desejo de levar seus trabalhos ao público. Além da vida boêmia na grande capital. A pintura de paisagem antes era considerada secundária e baixa desde o século XVII, os membros da Académie royale de peinture, sculpture etc. discutiam os méritos de Rubens e Poussin, da cor e do desenho. Estes eram considerados os únicos praticantes válidos da arte. O início do século XIX foi o germe para o desenvolvimento dos grandes artistas do século XX, quando a rígida hierarquia acadêmica passou a conceder bolsas para alguns artistas de paisagem desenvolver sua técnica em Roma, apesar de ainda continuarem sendo consideradas atividades menores e menos atrativas. 


Eugène Delacroix foi o grande elo entre o novo e o antigo, apesar de seus quadros possuírem temáticas heroicas e históricas – um dos mais famosos, “A liberdade guia o povo” ou “A barca de Dante” – o artista foi responsável pela introdução de cores mais vivas; a obra “Orfeu e Eurídice” é um marco, lembra bastante a pintura e a técnica expressionista, especialmente Renoir. Mesmo com sua genialidade e capacidade técnica sobre a arte aceita, Delacroix optou pelo novo, “Existem certos defeitos que dão vida a pessoas comuns”, relatou em seu diário. Como já foi dito, os expressionistas e até os romancistas – aqui, Delacroix – renunciaram às figuras históricas em favor de seu tempo,
“Esse renovado interesse pelas idades Média e Moderna – num momento em que a Europa redefinia limites territoriais – indicou claramente o papel do movimento romântico na elaboração do conceito moderno de nação. Contra a vontade, afirmada pelo Congresso de Viena, de restaurar a estrutura do Antigo Regime – seguindo o princípio de que na monarquia estava a identidade de um povo –, o pensamento romântico pintou, com sua descoberta do indivíduo, uma nova estruturação desse conceito.” (Delacroix/Abril Coleções; tradução de Simone Esmanhotto. São Paulo: Abril, 2011)
A tela escolhida para estreia no salão, em 1822, não poderia ser outra senão “A barca de Dante”, especialmente porque marcava seus traços inconfundíveis com um toque de escultura, as reverências aos grandes autores do passado e, como novidade, os contemporâneos como Victor Hugo, Balzac, Cheteaubriand, assim como aos compositores, especialmente seu amigo Chopin. Apesar da escolha e magnitude da obra, esta não foi bem acolhida pela grande crítica, entretanto um pequeno grupo convenceu o Estado a comprar as obras daquele estreante. Um ano antes, em 1821, revelava em uma carta enviada ao amigo, Raymond Soulier: “Pintura é vida. É a natureza passada para a alma sem intermediários, sem véus, sem regras convencionais. A música é vaga. A poesia é vaga. A escultura exige uma convenção. Mas a pintura, especialmente nas paisagens, é a própria realidade.”. Mesmo seguindo a tradição, Delacroix já deixava suas marcas nos quadros de teor religioso, sob a proteção do convencional.
Em 1874 nasceu uma revolta contra o establishment do mundo da arte com a exposição da Societé anontme dês artistes, peintres, sculpteurs, graveurs etc. A revolta de fato já tinha sido iniciada vinte anos antes por Gustave Coubert – que defendia uma arte concreta de seu tempo, com protagonistas comuns, não heróis – com a decisão de montar uma mostra individual independente da exposição oficial, inspirando mais tarde Edouard Manet.
“O grupo de jovens artistas [Monet, Manet, Renoir, Pissarro e Sisley], que não se satisfaziam mais com os motivos fornecidos pelos parques e jardins de Paris, foi para subúrbios rurais ou vilas mais distantes. Lá, em suas imagens do Sena e da paisagem adjacente, eliminaram gradativamente todas as referências humanas com o objetivo de se concentrarem na variedade aparente inexaurível de efeitos atmosféricos produzidos pelo clima volátil.” (KELDER, Diane. O melhor do impressionismo francês. São Paulo: Editora Ática, 1997)
Nos anos posteriores os mesmos artistas distanciavam-se tanto em termos de localização quanto de filosofia. Entre 1874 e 1886 foram feitas oito exposições, somente Camille Pissarro participou de todas elas; Degas em sete; Monet participou de cinco; Renoir, quatro; e Cézanne em apenas duas (KELDER, 1997).
Suas pinturas, marcadas por fortes traços, rigorosamente analítica, sendo talvez o mais excêntrico do grupo, pareceram inicialmente estranhas, entretanto, quando exibidas em 1907 numa grande mostra comemorativa, suas formas irregulares e grosseiras marcaram Pablo Picasso, o pai de uma nova revolução dentro da arte, redefinindo as noções estéticas, agora no século XX. Sobre Picasso, quando o escritor austríaco Franz Kafka (1883-1924), em uma visita a uma exposição francesa numa galeria de Praga, ficou diante de várias obras de naturezas-mortas cubistas e alguns quadros pós-cubistas, o jovem Gustav Janouch comentou que o pintor espanhol distorcia deliberadamente os seres e as coisas, Kafka respondeu: “Ele apenas registra as deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência”. Após aquele momento, na literatura especificamente, nascia o realismo kafkiano. As obras de Kafka são marcadas evidentemente pela tragédia e pela constante transformação e auto-sacrifício de seus personagens, com a presença da inversão, de transformar o irreal em real e o real em irreal, além da visão amedrontadora e exagerada dos personagens que representam a figura do Pai – quase sempre não recebendo um nome próprio, mas simplesmente visto enquanto a figura de pai –, o que se elucida na obra Carta ao pai, na relação do escritor com seu próprio pai, Hermann Kafka. O conto que marca sua passagem, não por acaso recebe o título de Na galeria (Auf der Galerie), composto de dois parágrafos curtos e complementares:
“Se alguma amazona frágil e tísica fosse impelida meses sem interrupção em círculos ao redor do picadeiro sobre o cavalo oscilante diante de um público infatigável pelo diretor de circo impiedoso de chicote na mão, sibilando em cima do cavalo, atirando beijos, equilibrando-se na cintura, e se esse espetáculo prosseguisse pelo futuro que vai se abrindo à frente sempre cinzento sob o bramido incessante da orquestra e dos ventiladores, acompanhado pelo aplauso que se esvai e outra vez se avoluma das mãos que na verdade são martelos a vapor – talvez então um jovem espectador da galeria descesse às pressas a longa escada através de todas as filas, se arrojasse no picadeiro e bradasse o basta! Em meio às fanfarras da orquestra sempre pronta a se ajustar às situações. Mas uma vez que não é assim, uma bela dama em branco e vermelho entra voando por entre as cortinas que os orgulhosos criados de libré abrem diante dela; o diretor, buscando abnegadamente os seus olhos respira voltando para ela numa postura de animal fiel; ergue-a cautelosamente sobre o alazão como se fosse a neta amada acima de tudo que parte para uma viagem perigosa; não consegue se decidir a dar o sinal com o chicote; afinal dominando-se ele o dá com um estalo; corre de boca aberta ao lado do cavalo; segue com olhar agudo os saltos da amazona; mal pode entender sua destreza; procura adverti-la com exclamações em inglês; furioso exorta os palafreneiros que seguram os arcos à atenção mais minuciosa; as mãos levantadas, implora à orquestra para que faça silêncio antes do grande salto mortal; finalmente alça a pequena do cavalo trêmulo, beija-a nas duas faces e não considera suficiente nenhuma homenagem do público; enquanto ela própria, sustentada por ele, na ponta dos pés, envolta pela poeira, de braços estendidos, a cabecinha inclinada para trás, quer partilhar sua felicidade com o circo inteiro – uma vez que é assim, o espectador da galeria apoia o rosto sobre o parapeito e, afundando na marcha final como num sonho pesado, chora sem o saber.”
Ambos os parágrafos têm o mesmo cenário de fundo, narrando o mesmo acontecimento; no primeiro nota-se, logo ao início do segundo com a afirmação “Mas uma vez que não é assim”, que a descrição não passa de possibilidades, de um caráter hipotético, apesar do cenário parecer contínuo nos dois parágrafos. Os dois parágrafos estão entre a essência e a aparência, no primeiro é relatado um cenário de atmosfera triste, com um chefe impiedoso e a amazona sob seu poder, um público infatigável, com um fluxo rápido, sem pontos, apenas vírgulas; no segundo, com um tom de ânimo, com uma jovem bela, com a presença do amor abnegado do diretor e as homenagens do público, numa narrativa acompanhada de pausas, marcadas por ponto e vírgula. Em ambos, o traço marca a pausa, entre a visão descritiva, objetiva, e a reação subjetiva: no primeiro, é mostrada a possibilidade de um espectador jovem romper o silêncio, no segundo o mesmo não acontece, e esse chora, “sem o saber” desviando o olhar da arena, revelando sua incapacidade de impedir o sofrimento alheio, mesmo que ele o perceba, ao mesmo tempo convidando o leitor a dar o grito de basta.
As obras desse tempo foram decisivas para o desenvolvimento da arte e dos artistas, abrindo maiores possibilidades dentro desse campo; a genialidade e ousadia desses artistas, acompanhadas de suas vidas boêmias e suas escolhas permitiram a inserção do povo e suas respectivas representações. Certamente enriqueceram os estudos desde a história passando pela sociologia, a quebra do costumeiro, das representações heroicas e seletivas diretamente para a representação do simples, rotineiro e até mesmo vulgar, essa certamente foi uma época de suma importância para os estudos posteriores da humanidade, principalmente para as áreas já citadas; uma época representada por grandes atores que remodelaram noções e ideias, marcados por transformações rápidas, golpes, guerras e revoluções, alguns marcados por uma vida curta – aqui me refiro a Modigliani –, intensa e apaixonada. 



     Edgar Degas comentava que todos os aspectos da vida contemporânea são dignos de exploração artística (KELDER, 1997), a escolha de suas cenas sempre foram as imagens da vida comum de um povo comum, ou das ansiedades da vida burguesa etc., Degas foi um frequentador assíduo do foyer de dança da Ópera de Paris suas cenas nos balés e teatros – especialmente os atores dos espetáculos, e principalmente as bailarinas – são marcantes e delicadas. Certamente, hoje não saberíamos o suficiente sobre o século XIX/XX se não fosse por esses atores registrando ações comuns, porém reveladoras. Para exemplificar examinemos a obra “Mulher no banho”: uma cena de uma cidadã média francesa, praticando uma ação típica humana; o desenho representa uma mulher qualquer durante um banho, a mulher não tem a intenção de exibição – marcando os objetivos do autor de representar cenas comuns da vida cotidiana – e está sobre uma bacia de latão (le tub), na época comuns nos aposentos – uma peça comum nos pequenos apartamentos franceses – apenas se enxugando após lavar-se. Antes, Degas foi apresentado ao impressionismo pelo próprio Manet depois de uma viagem à Itália.
O impressionismo marcou uma virada na história da humanidade, o “eu sinto, logo sou” de Gide tomou o lugar do “eu penso, logo existo”. Esses pintores “impressionistas” avant la lettre serão encontrados, não entre os clássicos e os acadêmicos, mas entre os realistas (SERULLAZ, 1989). Não se pode entender a arte do século XXI sem antes compreender o que foi o expressionismo e os impressionistas. Em como eles refizeram seu tempo, indivíduos como Delacroix, Renoir, Picasso, Vincent van Gogh e etc. reinventaram, durante suas breves passagens e com suas incomensuráveis contribuições, a estética e a arte, e que perdura até os dias atuais. Parafraseando Marx, se a aparência e a essência do mundo estivessem diretamente à disposição dos homens, a arte seria desnecessária.

Bibliografia geral:

Delacroix/Abril Coleções; tradução de Simone Esmanhotto. São Paulo: Abril, 2011; KAFKA, Franz. Franz Kafka: Essencial. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011; KELDER, Diane. O melhor do impressionismo francês. São Paulo: Editora Ática, 1997; SERULLAZ, Mauric. O impressionismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989.
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* Estudante do curso de Ciências Sociais (UFC), músico e artista plástico.

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