sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Golpe de Estado – Repetição do Teatro de Horrores no Brasil

     Ubiracy de Souza Braga*

Para mim, isso foi um golpe de Estado institucional. Laurence Cohen
           

                      
O Senado Federal é representado por 81 senadores que através do voto majoritário são eleitos e exercem seus cargos para mandatos de oito (8) anos, renovados em uma eleição dentre um terço das cadeiras e na eleição subsequente dois terços delas. As eleições para senador são realizadas no Estado nacional brasileiro em conjunto com as eleições para Presidente da República, Governador estadual, Deputado Federal, Estadual e/ou Distrital, dois anos após as eleições municipais. A presidente Dilma Vana Rousseff foi destituída do cargo através de um golpe institucional no Senado. A decisão do Senado de afastar definitivamente Dilma Rousseff (PT) do cargo de presidente do país não foi bem aceita pelos membros da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA), Venezuela, Bolívia, Equador e Nicarágua que denunciaram na Organização dos Estados Americanos (OEA), um golpe de Estado no Brasil.
O afastamento definitivo de Dilma Rousseff da Presidência da República é sem dúvida o capítulo mais vergonhoso e criminoso da história política brasileira. Dilma Rousseff foi acusada de praticar uma manobra contábil nas contas públicas, as chamadas “pedaladas fiscais”. Contudo, contra ela não foram levantadas e demonstradas quaisquer suspeitas de enriquecimento ilícito ou aproveitamento do cargo em benefício próprio, ou do Partido dos Trabalhadores, ainda que sua vida, privada e pública, tenham sido vasculhadas como ocorrera com o famigerado golpe político-militar de 1° de abril de 1964, guardadas as proporções, com lupa por seus adversários. Politicamente, se ela cometeu “crime de responsabilidade”, também o fizeram e deveriam perder o cargo 16 dos 27 atuais governadores brasileiros, que utilizam o mesmo artifício político-administrativo de contabilidade pública para “fechar” as contas em seus Estados.


            Em uma única jogada o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, pode ter beneficiado dois inimigos políticos: a ex-presidente Dilma Rousseff e o deputado afastado Eduardo Cunha, maior artífice de seu impeachment. A petista foi afastada definitivamente da presidência da República. No entanto, diferentemente do que ocorreu com o ex-presidente Fernando Collor de Mello em 1992, a petista não perdeu seus direitos políticos. Lewandowski, que presidia a sessão que a condenou por “crime de responsabilidade”, permitiu que fosse realizada uma votação separada para analisar se Dilma deveria ser inabilitada para ocupar cargos públicos. E mesmo perdendo por 42 votos a 36, ela manteve o direito civil não só de participar da administração pública como disputar eleições gerais em todo o território brasileiro.  
            Para Monica Hirst, doutora em “Estudos Estratégicos” e professora da Universidade Torcuato di Tella, na Argentina, o presidente pode enfrentar obstáculos já que terá que lidar com o fato de que a legalidade do seu mandato “é engolida por muito poucos lá fora (...). Essa crise política que o Brasil vive não será apagada rapidamente como ele espera. A própria crise gerada pelo fatiamento dos votos no impeachment envolvendo os direitos políticos de Dilma é uma clara manifestação nesse sentido. Tudo isso afeta a visão que se tem do Brasil e a credibilidade do novo Governo”. Ela não crê em uma etapa de diplomacia muito forte. –“Não vejo o Brasil com capacidade e se beneficiar de cenário internacional, porque ele não tem capital político”.
            Na etnologia de Marc Augé, por outro lado, acerca de uma antropologia dos mundos contemporâneos, afinal “o indivíduo não é senão o entrecruzamento necessário, porém variável, de um conjunto de relações” e é “com a linguagem o mundo tornou-se significativo, mas nem por isso melhor conhecido”. O imaginário é o produto da imaginação, podendo referir-se a contos ou imagens, por exemplo. A relação imaginária com as coisas é individual. Temos uma relação imaginária com o que imagino ou temos uma relação imaginária com a imagem. Se virmos na televisão indivíduos que narram coisas, temos com eles uma relação imaginária – no sentido de que é uma relação que não se aplica ao outro. É diferente em uma peça de teatro, que pertence ao nosso patrimônio comum, uma tragédia grega, p. ex., onde há uma convergência de imaginação em direção a algo comum que nos diz determinada coisa. Há um elo entre os que compartilham esse momento. O que nos parece importante é a relação entre o imaginário individual e coletivo e entre o imaginário coletivo e sua simbolização. 




            Legitimidade é um termo utilizado em Teoria Geral do Direito, em Ciência Política e em Filosofia Política que define a qualidade de uma norma ou de um governo  ser conforme a um mandato legal, à Justiça, à Razão ou a qualquer outro mandato ético-legal. Em outras palavras, a legitimidade é o critério utilizado para se verificar se determinada norma se adequa ao sistema jurídico ao qual se alega que esta faz parte. Em Teoria Política é o conceito com o qual se julga a capacidade de um determinado poder para conseguir obediência sem necessidade de recorrer à coerção, que supõe a ameaça da força, de tal forma que um Estado é legítimo se existe um consenso entre os membros da política para aceitar a autoridade vigente. Jürgen Habermas, por outro lado, apresenta uma concepção teórica diferente de qual seria o critério para se assegurar a legitimidade de uma norma. Primeiramente ele refuta a relação intensa entre legalidade e legitimidade, buscando outro fundamento para tal legitimidade. Portanto, afirma que este fundamento seria a existência de uma moral convencional que, por determinar normas prévias, gerais e vinculantes para todos, possibilitam o surgimento de um poder político que possa justificar a sua autoridade coercitiva. 
        Assim, a fundamentação da autoridade do direito se daria devido a este entrelaçamento entre direito e moral. A sua originalidade refere-se ao momento de incondicionalidade que inclusive no Direito moderno “constitui um contrapeso à instrumentalização política do meio que é o Direito, deve-se ao entrelaçamento da política e do Direito com a moral”. As manifestações de rua contra seu governo, orquestradas por defensores dos mais diversos interesses, muitos deles espúrios, levantavam bandeiras anticorrupção, porém alimentavam-se de ressentimento. A república brasileira acostumada a usufruir os mais amplos privilégios, nunca aceitou dividir espaço com os pobres, destinada, em sua “invisibilidade”, na falta de melhor expressão, a manter-se apenas como um “exército industrial de reserva”, no sentido marxista do termo. As poucas, mas importantes, mudanças nesse quadro de políticas públicas, patrocinadas pelos governos petistas, fermentaram uma reação de ódio e intolerância. As oposições, lideradas nas sombras pelo vice-presidente golpista Michel Temer, passaram a articular demonstrações de força. Por trás dos protestos aparentemente “espontâneos” contra o governo Dilma Rousseff havia entidades como o “Movimento Brasil Livre” (MBL), financiado pelo DEM, PSDB, SD e PMDB; “Vem pra Rua”, criado em 2014 por empresários para apoiar a candidatura do senador Aécio Neves (PSDB) à Presidência da República; e “Revoltados On-Line”, tendo como prócer o empresário Marcello Reis, que não esconde sua simpatia pela intervenção militar e possui ligações com o deputado fascista Jair Bolsonaro (PSC-RJ), pré-candidato à Presidência da República.
Vale lembrar que o “Movimento Brasil Livre” (MBL) é um movimento fundado em 2014, que defende o liberalismo e o republicanismo. Em seu manifesto, citam cinco objetivos: “imprensa livre e independente, liberdade econômica, separação de poderes, eleições livres e idôneas e fim de subsídios diretos e indiretos para ditaduras”. Com sede nacional em São Paulo, o movimento realiza frequentes protestos e ações políticas em todo país. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, foi o principal responsável pela convocação das manifestações dos dias 15 de março e 12 de abril de 2015. De acordo com o jornal The Economist, o grupo é composto por aderentes do “thatcherismo” e foi fundado “para promover respostas do livre mercado aos problemas do país”. Formado em sua maioria por jovens com menos de trinta anos, seus integrantes são conhecidos pelo estilo de suas roupas e por seus discursos incisivos, sendo comparados a uma banda de “indie rock” pelo jornal El País. Segundo a revista Época, nos protestos de 16 de agosto de 2015, Kim Kataguiri e Fernando Holiday, duas lideranças do movimento social, foram recebidas pela população como “estrelas” da política brasileira.
O MBL surgiu em 1º de novembro de 2014, quando promoveu sua primeira manifestação, reunindo cerca de 5.000 pessoas no MASP pela investigação e punição dos envolvidos no escândalo apurado pela Operação Lava Jato, e pela liberdade de imprensa, depois da sede do Grupo Abril ter sido vandalizada em outubro do mesmo ano. Ao nível ideológico em seu manual, o movimento cita como referências teórico-ideológica o liberalismo brasileiro de Meira Penna, a doutrina econômica de Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, a defesa do império da lei de Frédéric Bastiat e a ciência política de Eric Voegelin, Edmund Burke, Russell Kirk e de Ortega y Gasset. O MBL se define publicamente como um movimento liberal e republicano, político, apartidário. Em prol do livre mercado, da redução do Estado e em defesa do “direito natural”, do império da lei enquanto a organização coletiva do direito individual de legítima.
O deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) afastado por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), alçada na qual é réu por crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro tinha interesse em negociar a manutenção de seu mandato, em perigo desde a instauração, no dia 3 de dezembro, de um processo por quebra de decoro parlamentar no Conselho de Ética da Casa. Indignado com a retirada de apoio do PT à sua causa,  deu andamento ao pedido de admissibilidade do “impeachment” contra a presidente Dilma Rousseff. No dia 17 de abril, o plenário da Câmara, que entre seus 513 membros conta com 53 réus na Suprema Corte, enquanto outros 148 parlamentares respondem a inúmeros crimes em diversas instâncias, antecipou o destino inglório da nação. Baseado em um relatório de Antonio Anastasia (PSDB-MG), burocrata tornado político pelas mãos do candidato derrotado em 2014, Aécio Neves, o Senado cassou o mandato da presidente Dilma Rousseff. Do total de parlamentares que a julgaram, 60% são suspeitos ou acusados de crimes que vão desde falsidade ideológica até abuso de poder econômico. Um terço da Casa – 23 parlamentares – responde a inquérito em ação penal no STF, entre eles nomes bastante conhecidos como Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), Fernando Collor (PTB-AL), Jader Barbalho (PMDB-PA), Lobão Filho (PMDB-MA), Renan Calheiros (PMDB-AL) e Romero Jucá (PMDB-RR). Com uma coragem e altivez poucas vezes vistas na política brasileira, a presidente Dilma Rousseff enfrentou 14 horas de interrogatório nas dependências do Senado através de um teatro de operações. O PMDB teve a virtù nesse jogo macabro, rasteiro e podre da política brasileira.

A presidenta Dilma Rousseff está sendo julgada pela segunda vez no cenário político brasileiro, antes por fazer parte da guerrilha, agora por insofismável misoginia. A corrida em direção à farsa de domingo foi monopolizada pela mídia “mainstream”, controlada por quatro famílias, pretendendo criar uma inevitabilidade do impeachment. E, no entanto, todas as apostas estão fora. A oposição à Rousseff, cada vez mais desesperada, não arregimentou todos os dois terços necessários dos traidores no momento da votação na Câmara. A questão foi encaminhada ao Senado. E a Suprema Corte conivente entendeu que a presidente Dilma Rousseff cometeu um “crime de responsabilidade”. Ela está sendo acusado de “truques de contabilidade” que supostamente deturpou o estatuto fiscal do governo, o que alguns presidentes brasileiros de Fernando Henrique Cardoso aos nossos dias, têm feito, para não mencionar líderes em todo o mundo ocidental. Em paralelo, grandes vertentes da sociedade civil vinha mobilizando-se para garantir que o golpe de Estado parlamentar fosse derrotado no Congresso nacional e nas mobilizações sociais ruas do país.
Esta dimensão da esfera política não tem nada a ver com corrupção, supostamente o principal motivo. É tudo oportunismo político sujo, golpista. O plano do conspirador e vice-presidente Michel Temer foi revelado através de um vazamento de áudio no noticiário noturno da rede Globo. O ângulo era criar um falso clima “positivo” no sentido do impeachment, com M. Temer já atuando como presidente-golpista e posicionando-se como o portador pródigo de “boas notícias”. Naquela quarta-feira (11/07/2016), parte significativa do Brasil “parou” para acompanhar a votação no Senado sobre a admissão do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Ao todo, 80 parlamentares tiveram direito a voto, destes, 55 se declararam favoráveis à abertura das investigações, e consequentemente ao afastamento de Dilma. Um levantamento feito pelo Jornal do Brasil demonstra estatisticamente que, dos 55 senadores que declararam seus votos favoráveis ao processo, 34 respondem ou já responderam algum tipo de problemas judiciais. Dos 55 senadores que votaram em prol do impeachment, 11 já tiveram seus casos encerrados e foram condenados nos processos. São eles: Ataídes Oliveira (PSDB-TO), Cassio Cunha Lima (PSDB-PB), Ciro Nogueira (PP-PI), Dario Berger (PMDB-SC), Eduardo Amorim (PSC-CE), Ivo Cassol (PP-RO), Marta Suplicy (PMDB-SP), Paulo Bauer (PSDB-SC), Romero Jucá (PMDB-RR), Valdir Raupp (PMDB-RO), Zezé Perrella (PDT-MG). 
Bibliografia geral consultada.

LUHMANN, Niklas. “L’Opinione Pubblica”. In: Stato di Diritto e Sistema Sociale. Napoli: Guida Editori, 1978; HAUG, Wolfgang Fritz, Theorien über Ideologie. Berlin: Editor Argument-Verlag, 1979; HABERMAS, Jürgen, Teoría de la Acción Comunicativa. Madrid: Ediciones Taurus, 1987; MALAPARTE, Curzio, Tecnicas de Golpe de Estado. Madrid: Blacklist, 2009; MARTURANO, L. Quando il potere si trasferisce con la forza. Per um’analisi dei colpi di Stato. Tesi (Laurea): Calabria: Universitá della Calabria, 2010; NEDER, Gizlene, “Casamento perfeito, cultura religiosa e sentimentos políticos”. In: Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, volume 8, pp. 3-20, 2016; Entrevista: “Sociólogo Michael Löwy lamenta Golpe de Estado no Brasil”. In: http://www.ocafezinho.com/2016/05/30; RUFFATO, Luiz, “O Golpe contra Dilma Rousseff”. In: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/31; CARDOSO, Sílvia Alvarez, Golpe de Estado no Século XXI: O Caso de Honduras (2009) e a Recomposição Hegemônica Neoliberal. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Instituto de Ciências Sociais, Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as América, Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados sobre as Américas. Brasília: Universidade de Brasília, 2016; NAPOLITANO, Paola, Neogolpismo na América Latina: Uma Análise Comparativa do Paraguai (2012) e do Brasil (2016). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2019; NAPOLITANO, Marcos, “Golpe de Estado: entre o nome e a coisa”. In: Estudos Avançados, 33 (96), 2019; POZZI, Henrique Costa, Golpe de 2016: Uma Análise a partir dos Editoriais da FSP, O Globo e OESP. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2019; entre outros. 

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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes (ECA/USP). São Paulo: Universidade de São Paulo. Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).    

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