sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Friedrich Engels - História da Família & Antropologia do Direito.

                                                                                                       Ubiracy de Souza Braga
                                                                                                                                             
                                                               “A religião nasce das concepções restritas do homem”. Friedrich Engels     
                                     

      Principal amigo e colaborador de Marx, o teórico alemão Friedrich Engels desempenhou papel de destaque na elaboração da teoria das classes sociais, a partir do materialismo histórico e dialético. Nasceu em 28 de novembro de 1820 e morreu em 5 de agosto de 1895. Era o mais velho de nove filhos de um rico industrial de Barmen, Alemanha. Na juventude, fica impressionado com a miséria em que vivem os trabalhadores das fábricas de sua família. Fruto dessa indignação, Engels desenvolve um detalhado estudo sobre a situação da classe operária na Inglaterra. Em 1842, com 22 anos de idade foi enviado por seus pais para Manchester, para trabalhar para o Ermen e Engels Victoria Mill em Weaste que fazia linhas de costura. Após a estadia produtiva na Grã-Bretanha, Engels decidiu voltar para a Alemanha em 1844. No caminho, ele estabeleceu-se em Paris para atender um pedido de Marx, que lá se encontrava desde o final de outubro 1843 na sequência da proibição da “Gazeta Renana” em março de 1843. Seus trabalhos e pesquisas posteriores são produzidos com Marx, sendo considerado o mais politizado deles o “Manifesto Comunista” (1848).
            O grande mérito de Morgan, afirma Engels, é o de ter descoberto e restabelecido em seus traços essenciais esse fundamento pré-histórico da nossa história escrita e o de ter encontrado, nas uniões gentílicas dos índios norte-americanos, a chave para decifrar importantíssimos enigmas, ainda não resolvidos, da história da Grécia, Roma e Alemanha. Sua obra não foi trabalho de um dia. Levou cerca de 40 anos elaborando seus dados. O estudo da história da família começa, de fato, em 1861, com o “Direito Materno”, de Bachofen. Nesse livro o autor formula as seguintes teses, resumidamente: 1. Primitivamente, os seres humanos viveram em promiscuidade sexual; 2. Estas relações excluíam toda possibilidade de estabelecer, com certeza, a paternidade; 3. Em consequência desse fato, as mulheres, como mães, como únicos progenitores conhecidos da jovem geração, gozavam de grande apreço e respeito, chegando ao domínio feminino absoluto; 4. A passagem para a monogamia incidia na transgressão de uma lei religiosa antiga, em que devia ser castigada, ou cuja tolerância se compensava com a posse da mulher por outros homens. Bachofen encontrou as provas dessas teses em numerosos trechos da literatura clássica antiga, por ele reunidos com zelo singular.


A contribuição engelsiana conferiu ao marxismo que engloba uma teoria econômica, uma teoria sociológica, um método filosófico e uma visão revolucionária de mudança social, o caráter particular de Antropologia, contrariando a generalização metodológica. A partir das pesquisas antropológicas de L. H. Morgan, lidas e anotadas por Marx, formulou Engels a teoria antropológica do Estado, na obra: ”Der Ursprung der Familie, des Privateigentums und des Staats”, cujos pressupostos não estavam em sua reflexão anterior, nem de forma sistêmica e embasada na história e na antropologia. A sua importância na literatura de diversos países, ocorre que muitos antropólogos se valeram do arcabouço marxista para entender sociedades não capitalistas e sociedades camponesas. Não só a escola estruturalista francesa, da segunda metade do século XX, com Maurice Godelier e Meillaseux são exemplos. Mas também, no período de surgimento da Antropologia moderna com admite  Leslie White. Este influenciou uma geração de antropólogos coerentes com o marxismo, como Marshal Sahlins, antes de seu “acerto de contas” no ensaio: “Cultura e Razão Prática”, Erick Wolf e Elman Service.
No prefácio à primeira edição (1884), Engels enfatiza três aspectos: a) As páginas seguintes vêm a ser, de certo, a execução de um testamento; b) A ordem social em que vivem os homens de determinada época ou determinado país está condicionada por essas duas espécies de produção: pelo grau de desenvolvimento do trabalho, de um lado, e da família, de outro; c) O grande mérito de Morgan é o de ter descoberto e restabelecido em seus traços essenciais esse fundamento pré-histórico da nossa história escrita e o de ter encontrado, nas uniões gentílicas dos índios norte-americanos, a chave para decifrar importantíssimos enigmas, ainda não resolvidos, da história antiga da Grécia, Roma e Alemanha. Sua obra não foi trabalho de um dia, mas cerca de 40 anos elaborando dados, até conseguir dominar inteiramente o assunto. Seu livro é um dos poucos destes dias que fazem época.
O volumoso tomo de Bachofen estava escrito em alemão, isto é, na língua da nação que menos se interessava, então, pela pré-história da família contemporânea. Por isso permaneceu ignorado. O sucessor imediato de Bachofen nesse terreno entrou em cena em 1865, sem jamais ter ouvido falar dele. Esse sucessor foi J. F. Mac Lennan, o polo oposto de seu predecessor. Ao invés do místico genial, temos aqui um árido jurisconsulto; em lugar de uma exuberante e poética fantasia, as plausíveis combinações de um arrazoado de advogado. Mac Lennan encontra em muitos povos selvagens, bárbaros e até civilizados, dos tempos antigos e modernos, uma forma de matrimônio em que o noivo, só ou assistido por seus amigos, deve arrebatar sua futura esposa da casa dos pais, simulando um rapto com violência. Este costume deve ser vestígio de um costume anterior, pelo qual os homens de uma tribo obtinham mulheres tomando-as realmente de outras tribos, pela força. Mas como teria nascido esse “matrimônio por rapto”? Enquanto os homens puderam encontrar mulheres suficientes em sua própria tribo, não tiveram motivo para semelhante procedimento. Por outro lado, e com frequência não menor, encontramos em povos não civilizados certos grupos (que em 1865 ainda eram muitas vezes identificados com as próprias tribos) no seio dos quais era proibido o matrimônio, vendo-se os homens obrigados a buscar esposas – e as mulheres, esposos – fora do grupo; enquanto isso, outro costume existe, em outros povos, pelo qual os homens só devem procurar suas esposas no seio de seu próprio grupo.
Mac Lennan chama as primeiras de tribos exógamas; e as segundas, de endógamas e, de imediato, sem maior investigação, estabelece uma antítese bem definida entre “tribos” exógamas e endógamas. E, ainda quando as suas próprias investigações sobre a exogamia lhe evidenciam que, em muitos casos, senão na maioria, ou mesmo em todos, essa antítese só existe na sua imaginação, nem por isso deixa de toma-la como base para toda a sua teoria. De acordo com ela, as tribos exógamas não podiam tomar mulheres senão de outras tribos, o que apenas podia ser feito mediante rapto, dada a guerra permanente entre as tribos, característica do estado selvagem. De onde provém a exogamia? Em sua opinião, as ideias de consanguinidade e incesto nascidas mais tarde nada têm a ver com ele. Sua causa poderia ser o costume entre eles de matar as crianças do sexo feminino logo após seu nascimento.
Disso resultaria um excedente de homens em cada tribo, tomada separadamente, tendo como consequência imediata a posse de uma mesma mulher, em comum, por vários homens, isto é, a poliandria. Daí decorria, por sua vez, que a mãe de uma criança era conhecida, mas não o pai; por isso, a ascendência era contada pela linha materna, e não paterna pelo direito paterno. E da escassez de mulheres no seio da tribo, atenuada, mas não suprimida pela poliandria, advinha, ainda, outra consequência, que era precisamente o rapto sistemático de mulheres de outras tribos. Para Mac Lennan, como a exogamia e a poliandria procedem de uma só causa, do desequilíbrio numérico entre os sexos, devemos considerar que, “entre todas as raças exógamas, existiu primitivamente a poliandria”. O mérito de Mac Lennan consiste em ter indicado a difusão geral e a grande importância do que ele chama de exogamia. Quanto ao fato da existência de grupos exógamos, não o descobriu e muito menos o compreendeu.
 Além disso, também Morgan observara e descrevera perfeitamente o mesmo fenômeno, em 1847, em suas cartas sobre os iroqueses, e em 1851 na Liga dos Iroqueses, ao passo que a mentalidade do advogado de Mac Lennan causou confusão ainda maior sobre o assunto do que a causada pela fantasia mística de Bachofen no terreno do direito materno. Outro mérito de Mac Lennan consiste em ter reconhecido como primária a ordem de descendência baseada no direito materno, conquanto, também aqui, conforme reconheceu mais tarde, Bachofen se lhe tenha antecipado. Mas, também neste ponto, ele não vê claro, pois fala, sem cessar, “em parentesco apenas por linha feminina” (“kinship through females only”), empregando continuamente essa expressão, exata apara um período anterior, na análise de fases posteriores de desenvolvimento, em que, se é verdade que a filiação e o direito de herança continuam a contar-se exclusivamente segundo a linha materna, o parentesco por linha paterna também já está reconhecido e expresso na estreiteza de critério do jurisconsulto, que forja um termo jurídico socialmente fixo e continua aplicando-o, sem modifica-lo.
Não obstante, sua teoria foi acolhida na Inglaterra com grande aprovação e simpatia. Mac Lennan foi considerado por todos como o fundador da história da família e a primeira autoridade na matéria. Sua antítese entre as “tribos” exógamas e endógamas continuou sendo a base reconhecida das opiniões dominantes, apesar de certas exceções e modificações admitidas, e se transformou nos antolhos que impediam ver livremente o terreno explorado e, por conseguinte, todo progresso decisivo. Em face do exagero dos méritos de Mac Lennan , que ficou em voga na Inglaterra e, seguida a moda inglesa, em toda a parte, devemos assinalar que, ratifica Engels, com sua antítese de “tribos” exógenas e endógamas, baseada na mais pura confusão, ele causou um prejuízo maior do que os serviços prestados em suas pesquisas.
Imediatamente depois, em 1871, apareceu em cena Morgan com documentos novos e, sob muitos pontos de vista, decisivos. Convencera-se que o sistema de parentesco próprio dos iroqueses, e ainda em vigor entre eles, era comum a todos os aborígenes dos Estados Unidos, quer dizer, estava difundido em todo o continente, ainda quando em condição formal com os graus de parentesco que resultam do sistema conjugal ali imperante. Incitou, então, o governo federal americano a que recolhesse informes sobre os sistemas de parentesco dos demais povos, de acordo com um formulário e quadros elaborados por ele mesmo. Morgan publicou os dados coligidos e as conclusões que deles tirou em seu “Sistema de Consanguinidade e Afinidade da Família Humana” em 1871, levando, assim, a discussão para um campo infinitamente mais amplo. Tomou como ponto de partida os sistemas de parentesco e, reconstituindo as formas de família a eles correspondentes, abriu novos caminhos à investigação e criou a possibilidade de se ver muito mais longe na pré-história da humanidade. A aceitação desse método reduzia a pó as frágeis definições de Mac Lennan. 
Em uma palavra: a defesa de Mac Lennan foi miseravelmente fraca. Permanecia, contudo, um ponto no qual ele era invulnerável. A antítese das “tribos” exógamas e endógamas, base de seu sistema, longe de estremecer, continuava reconhecida universalmente como fundamento de toda a história da família. Admitia-se que a demonstração dessa antítese por Mac Lennan era insuficiente, e colidia com os dados que ele mesmo apresentava. Mas se considerava como um evangelho indiscutível a antítese em si, a existência de dois tipos, que mutuamente se excluíam, de tribos autônomas e independentes, num dos quais as mulheres eram tomadas no seio da própria tribo pelos homens, ao passo que no outro isso era terminantemente proibido. O descobrimento da primitiva gens do direito materno, como etapa anterior à gens de direito paterno dos povos civilizados, tem, para a história primitiva, a mesma importância que a teoria da evolução de Darwin para a biologia e a teoria da mais-valia, enunciada por Marx, para a economia política. Essa descoberta permitiu a Morgan esboçar, pela primeira vez, uma história da família, onde pelo menos as fases clássicas da sua evolução, em linhas gerais, são provisoriamente estabelecidas, tanto quanto permitem os dados. Evidentemente, iniciou-se uma nova era no estudo da pré-história da etnologia. Em torno da gens de direito materno, gravita, toda essa ciência; desde seu descobrimento, sabe-se em que a direção encaminhar as pesquisas e o que estudar, assim como de que modo devem ser classificados os resultados. Por isso, fazem-se nesse terreno, progressos muito mais rápidos que antes de aparecer o ensaio de Morgan, “Ancient Society”. Reconstituindo retrospectivamente a história da família, chega, de acordo com a maioria de seus colegas, à conclusão de que existiu uma época primitiva em que imperava, no seio da tribo, o comércio sexual promíscuo, de modo que cada mulher pertencia igualmente a todos os homens e cada homem a todas as mulheres. No século XIX, havia feito menção a esse estado primitivo, mas apenas de modo geral; Bachofen foi o primeiro - este é um dos seus maiores méritos – que o levou a sério e procurou seus vestígios nas tradições históricas e religiosas.  
Bibliografia geral consultada.
NAPOLEONI, Claudio, Smith, Ricardo, Marx. Considerazioni sulla Storia del Pensiero Econômico. Torino: Boringhieri Editore, 1970; BACHOFEN, Johann Jakob, El Matriarcado: Una Investigación sobre la Ginecocracia en el Mundo Antiguo según su Naturaleza Religiosa y Jurídica. 2ª edición. Madrid: Akal, 1992; ENGELS, Friedrich, El Origen de la Familia, la Propriedad Privada y el Estado. Moscú: Editorial Progreso, 2000; ERIKSEN, Thomas, História da Antropologia. Petropolis (RJ): Editoras Vozes, 2007; LATOUR, Bruno, The Making of Law: An Ethnography of Conseil d’État. Malden (Massachusetts): Polity Press, 2010; RODRIGUES, Guilherme Tavares, Antropologia e Direito: A Justiça como Possibilidade. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Marília: Universidade Estadual Paulista, 2010; ANFRA, Douglas Rogério, Friedrich Engels: Guerra e Política. Uma Investigação sobre a Análise Marxista da Guerra e das Organizações Militares. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2013; SILVA, Newton Ferreira da, Transição Comunista e Ditadura do Proletariado na Revolução Cubana de 1959. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia e Ciências.  Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 2015; BRAGA, Ubiracy de Souza, “A Exegese da Arte, o Amarelo”. In: Jornal O Povo. Fortaleza, 21/02/2015; DURKHEIM, Émile, Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: WMF/Martins Fontes, 2015; ABREU, Alice Rangel de Paiva; HIRATA, Helena; LOMBARDI, Maria Rosa (Org.), Gênero e Trabalho no Brasil e na França: Perspectivas Interseccionais. São Paulo: Editorial Boitempo, 2016; entre outros. 
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado do curso de Ciências Sociais do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

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