Ubiracy de Souza Braga*
“O
poder tem sempre razão contra a razão dos que não têm poder”. Boaventura de
Sousa Santos
O
cravo vermelho tornou-se o símbolo da
Revolução de abril de 1974 (cf. Santos, 1985). Segundo a narrativa, foi
uma florista de Lisboa que iniciou a distribuição dos cravos vermelhos pelos
populares que os ofereceram aos soldados. Estes os colocaram nos canos das
espingardas. Por isso se chama ao dia 25 de abril de 1974 a “Revolução dos
Cravos”. Há 40 anos, na noite de 24 de abril, os ouvintes de rádio em Lisboa
nada suspeitaram, quando uma emissora executou a canção: “E depois do adeus”,
de Paulo de Carvalho, vencedora do Festival RTP da Canção de 1974. Mal sabiam
que era uma “senha”, pela qual os membros do Movimento das Forças Armadas (MFA), davam início a um golpe político
contra uma ditadura militar que duravam 48 anos.
Fora fundada por
Oliveira Salazar e chefiada, depois da doença e morte do líder, pelo professor
Marcelo Caetano. A segunda parte da operação também fora divulgada por uma
canção executada na Rádio Renascença, exatamente aos 20 minutos da madrugada de
25 de abril. Esta segunda senha diz respeito à canção “Grândola, Vila Morena”.
Ao contrário da primeira, estava proibida sob a acusação de “fazer propaganda
comunista”. A transmissão tinha como significado
que as tropas sob o comando do capitão
Salgueiro Maia estavam ocupando o Terreiro do Paço e logo a seguir cercando o
quartel do Carmo, onde se abrigavam Marcelo Caetano e alguns ministros de
Estado. Melhor dizendo, a canção “E depois do Adeus” de autoria de Paulo de
Carvalho, representou o primeiro sinal para o inicio da ação militar golpista. A canção “Grandola
Vila Morena” de José Afonso concorreu para a confirmação da “guerra de posições”.
Vejamos em versos a radicalização política apresentada na música E Depois do Adeus, vencedora do festival da canção em Portugal no ano de 1974:
“Quis saber quem sou/O que faço aqui/Quem me abandonou/De quem me esqueci/Perguntei por mim/Quis saber de nós/Mas o mar/Não me traz/Tua voz./Em silêncio, amor/Em tristeza e fim/Eu te sinto, em flor/Eu te sofro, em mim/Eu te lembro, assim/Partir é morrer/Como amar/É ganhar/E perder/Tu vieste em flor/Eu te desfolhei/Tu te deste em amor/Eu nada te dei/Em teu corpo, amor/Eu adormeci/Morri nele/E ao morrer/Renasci/E depois do amor/E depois de nós/O dizer adeus/O ficarmos sós/Teu lugar a mais/Tua ausência em mim/Tua paz/Que perdi/Minha dor que aprendi/De novo vieste em flor/Te desfolhei.../E depois do amor/E depois de nós/O adeus/O ficarmos sós”.
Ora,
como sabemos um golpe de Estado, histórica e etimologicamente também conhecido
internacionalmente como coup d’État
e Putsch que são respectivamente:
“ações políticas em grande estilo, como greves gerais ou ações armadas, podem ter sucesso somente se envolvem as regiões econômicas mais importantes do país. Ações menores com objetivos políticos que visam à conquista do poder político por parte do proletariado são putsch” (cf. Hobsbawm, 1985a: 93 e ss.).
Ou
ainda, Staatsstreich, para designar
“uma mudança de governo súbita, imposta por uma minoria que age com o elemento
surpresa” (cf. Hobsbawm, 1985). Têm este nome de golpe porque se caracteriza
por “uma ruptura institucional violenta”, contrariando a normalidade lei &
ordem de tipo americanista submetendo o controle do Estado. Ou seja, sociedade
civil e sociedade política, aqui no sentido do termo que emprega Antônio Gramsci,
a pessoas que não haviam sido legalmente designadas seja por eleição,
hereditariedade ou outro processo de transição legalista. Na teoria política, o
conceito de golpe de Estado surge apenas com a modernidade após a quebra de
paradigmas causada pela Revolução clássica Francesa e pela doutrina Iluminista.
Antes, as rupturas bruscas da ordem institucional eram chamadas genericamente
de Revolução, como as tomadas de poder em 1648 e 1688 na Inglaterra. A
Revolução Inglesa do século XVII representou a primeira manifestação de crise
do sistema político moderno, identificado com o Absolutismo. O poder
monárquico, severamente limitado, cedeu a parte de suas prerrogativas
instaurando o regime parlamentarista que permanece até hoje.
O golpe de
Estado conhecido pelos portugueses como 25 de abril foi conduzido pelo Movimento das Forças Armadas (MFA),
composto por oficiais intermédios da hierarquia militar, na sua maior parte
capitães que tinham participado na Guerra Colonial e que foram apoiados por
oficiais milicianos, estudantes recrutados, muitos deles universitários. Este
movimento nasceu por volta de 1973, baseado inicialmente em reivindicações
corporativistas como a luta pelo prestígio das forças armadas, acabando por se
estender ao regime político em vigor. Sem apoios militares, e com a adesão em massa
da população ao golpe de Estado, a resistência do regime foi praticamente
inexistente, registando-se apenas quatro mortos em Lisboa pelas balas da DGS.
Após
o golpe foi criada a Junta de Salvação
Nacional, responsável pela nomeação do Presidente da República, pelo
programa do Governo Provisório e respectiva orgânica. Assim, a 15 de maio de
1974 o General Antônio de Spínola foi nomeado Presidente da República. O cargo
de primeiro-ministro atribuído a Adelino da Palma Carlos. Seguiu-se um período
de grande agitação social, política e militar conhecido como o Processo Revolucionário Em Curso,
doravante PREC, marcado por manifestações, ocupações, governos provisórios,
nacionalizações e confrontos militar, apenas concluído no dia 25 de novembro de
1975. Estabilizada a conjuntura política, prosseguiram os trabalhos da Assembleia
Constituinte para a nova Constituição democrática, que entrou em vigor no dia
25 de Abril de 1976, o mesmo dia das primeiras eleições legislativas da nova
República. Na sequência destes eventos foi instituído em Portugal um feriado
nacional no dia 25 de Abril, denominado “Dia da Liberdade”.
No
início da década de 1970 mantinha-se vivo o ideário autoritário salazarista.
Continuavam os ideólogos do regime a alimentar o mito considerado
“orgulhosamente só”, como todos entendiam, num país periférico e pequeno,
marcado pelo isolamento rural: estar ali e ter-se orgulho nisso representavam
valores, como merecedor de respeito. Mesmo em plena “Primavera Marcelista”, com
Marcelo Caetano, que sucedeu a Salazar no início da década de 1970, coincidindo
com o ano da morte do ditador, não destoa. Sentindo o mesmo, age a seu modo,
governa em isolamento, faz o que pode, mas um dia virá em que já nada pode
fazer. Qualquer tentativa de reforma política era impedida pela própria inércia
do regime político e pelo poder da sua polícia política (PIDE).
Nos finais de
década de 1960, o regime exilava-se, envelhecido, num ocidente de países em
plena efervescência social e intelectual. Em Portugal cultivam-se outros
ideais: defender o Império pela força das armas. O contexto internacional era
cada vez mais desfavorável ao regime salazarista/marcelista. No auge da chamada
“Guerra Fria”, as nações dos blocos capitalista e comunistas começavam a apoiar
e financiar as guerras de guerrilhas das colônias portuguesas, numa tentativa
de atraí-las para a influência norte-americana ou da então União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas – U. R. S. S. A intransigência do regime e mesmo o
desejo de muitos colonos de continuarem sob o domínio português, atrasaram o
processo de descolonização, como ocorre no caso de Angola e Moçambique, um
atraso forçado de quase 20 anos.
Do ponto de
vista da economia Portugal mantinha laços fortes e duradouros com as suas
colônias africanas, quer como mercado para os produtos manufaturados
portugueses quer como produtoras de matérias primas para a indústria portuguesa.
Muitos portugueses concordavam com a existência de um império colonial como
necessária para o país ter poder e influência contínua. Mas o peso da guerra, o
contexto político e os interesses estratégicos de certas potências estrangeiras
inviabilizariam essa ideia. Apesar das constantes objeções em fóruns
internacionais, como a ONU – Organização das Nações Unidas, Portugal mantinha
as colônias considerando-as parte integral de Portugal e defendendo-as
militarmente. O problema surge com a ocupação unilateral e forçada dos enclaves
portugueses de Goa, Damão e Diu, em 1961, quando tropas da união indiana ocuparam tais territórios portugueses pondo fim
ao Estado português na Índia.
A guerra
colonial, guerra do ultramar, é designação oficial portuguesa do conflito até ao
dia 25 de abril, ou guerra de libertação nacional (cf. Braga, 2011a; 2011b),
sendo esta designação mais utilizada pelos povos africanos independentistas, o
período de confrontos entre as forças armadas portuguesas e as forças
organizadas pelos movimentos de libertação nacional das antigas províncias
ultramarinas de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, entre 1961 e 1975. Na época,
era também referida vulgarmente em Portugal como Guerra de África. Contudo, a batalha
de Cuito Cuanavale representou o maior confronto militar da guerra civil Angolana,
ocorrido entre 15 de novembro de 1987 e 23 de março de 1988. O local da batalha
foi o sul de Angola na região do Cuito Cuanavale na província de
Cuando-Cubango, onde se confrontaram os exércitos de Angola FAPLA - Forças
Armadas Populares de Libertação de Angola - e Cuba (FAR) contra a UNITA - União
Nacional para a Independência Total de Angola- e o exército sul-africano. Foi a
batalha mais prolongada que teve lugar no continente africano desde a 2ª guerra
mundial.
Nesta batalha, o “mito da invencibilidade” do
exército da África do Sul foi quebrado, alterando dessa forma, por um lado, a
correlação de forças sociais e políticas na região austral do continente,
tornando-se o ponto decisivo na guerra que se arrastava há longos anos. Por
outro lado, a superioridade demonstrada pelas FAPLA no campo de batalha fez com
que o regime Apartheid, aceitasse a
assinatura dos acordos de Nova Iorque, que deram origem à implementação da
resolução 435/78 do Conselho de Segurança da ONU, levando à Independência da
Namíbia e ao fim do regime de segregação racial, que vigorava na África do Sul.
Em sua progênie, temos o início deste episódio da história militar portuguesa
ocorrendo em Angola, a 4 de fevereiro de 1961, na região que viria a
designar-se por Zona Sublevada do Norte, que corresponde aos distritos do
Zaire, Uíje e Quanza-Norte. A Revolução dos Cravos em Portugal, a 25 de Abril
de 1974, determinou o seu fim. Com a mudança do rumo político do país, o
empenhamento político-militar das forças armadas portuguesas deixou de fazer
sentido. Os novos dirigentes anunciavam a democratização do país e
predispunham-se a aceitar as reivindicações de Independência das colónias -
pelo que se passou a negociar as fases de transição com os movimentos políticos
de libertação nacional empenhados na luta armada.
Em quase todas as colônias portuguesas
africanas - Moçambique, Angola, Guiné, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde - surgiam,
entretanto movimentos independentistas, que acabariam por se manifestar sob a
forma de guerrilhas armadas. Estas não foram facilmente contidas, tendo
conseguido controlar uma parte importante do território, apesar da presença de
um grande número de tropas portuguesas que, mais tarde, seriam em parte
significativas recrutadas nas próprias colônias. Os vários conflitos forçavam
Salazar e o seu sucessor Caetano a gastar uma grande parte do orçamento de
Estado na administração colonial e nas despesas militares. A administração das
colônias custava a Portugal um pesado aumento percentual anual no seu orçamento
e tal empreendimento contribuiu para o empobrecimento da economia portuguesa, pois
como sabemos, o dinheiro era desviado de investimentos infraestruturais na
metrópole. Até 1960 o país continuou relativamente frágil em termos econômicos,
o que aumentou a emigração para países em rápido crescimento e de escassa
mão-de-obra da Europa ocidental, como França ou Alemanha. O processo iniciava-se
no fim da 2ª guerra mundial.
A primeira
reunião clandestina de capitães foi realizada em Bissau, em 21 de agosto de 1973.
Uma nova reunião, em 9 de setembro de 1973 no Monte Sobral (Alcáçovas) dá
origem ao Movimento das Forças Armadas.
No dia 5 de março de 1974 é aprovado o primeiro documento do movimento: “Os
Militares, as Forças Armadas e a Nação”. Este documento é posto a circular clandestinamente.
No dia 14 de março o governo demite os generais Spínola e Costa Gomes dos
cargos de Vice-Chefe e Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas,
alegadamente por estes se terem recusado a participar numa cerimónia de apoio
ao regime. No entanto, a verdadeira causa da expulsão dos dois Generais foi o
fato do primeiro ter escrito, com a cobertura do segundo, um livro, “Portugal e
o Futuro”, no qual, pela primeira vez uma alta patente advogava a necessidade
de uma solução política para as revoltas separatistas nas colônias e não uma
solução militar. No dia 24 de março, a última reunião clandestina dos capitães
revoltosos decide o derrube do regime pela força. Prossegue a movimentação
secreta dos capitães até ao dia 25 de abril. A mudança de regime político acaba
por ser feita através da força bruta por estratégia militar de ação armada.
O golpe militar
do dia 25 de abril tem a colaboração de vários regimentos militares que
desenvolvem uma ação concertada. No Norte, uma força do CICA liderada pelo
Tenente-Coronel Carlos de Azeredo toma o Quartel-General da Região Militar do
Porto. Estas forças são reforçadas por tropas vindas de Lamego. Forças do BC9
de Viana do Castelo tomam o Aeroporto de Pedras Rubras. Forças do CIOE tomam a
RTP e o RCP no Porto. O regime reage, e o ministro da Defesa ordena as forças
sediadas em Braga para avançarem sobre o Porto, no que não é obedecido, dado
que estas já tinham aderido ao golpe político-militar.
À Escola Prática
de Cavalaria, que parte de Santarém, cabe o papel mais importante: a ocupação
do Terreiro do Paço. As forças da Escola Prática de Cavalaria são comandadas
pelo Capitão Salgueiro Maia. O Terreiro do Paço é ocupado às primeiras horas da
manhã. Salgueiro Maia move, mais tarde, parte das suas forças para o Quartel do
Carmo onde se encontra o chefe do governo, Marcelo Caetano, que ao final do dia
se rende, exigindo, contudo, que o poder seja entregue ao General Antônio de
Spínola, que não fazia parte do MFA, para que o “poder não caísse na rua”
Marcelo Caetano parte, depois, para a Madeira, rumo ao exílio no Brasil. No
rescaldo dos confrontos morrem quatro pessoas, quando elementos da polícia
política (DGS) disparam sobre um grupo que se manifesta à porta das suas
instalações na Rua Antônio Maria Cardoso, em Lisboa.
Portugal passará
por um período conturbado de cerca de dois anos, comumente designado por PREC, como
vimos, em que se confrontam facções políticas de esquerda e direita, por vezes
com alguma violência, sobretudo em ações organizadas no Norte do país. São nacionalizadas
grandes empresas, “saneados quadros importantes e levadas ao exílio
personalidades identificadas com o Estado Novo” (cf. Rojas e Brito, 1996),
gente que não partilha da visão política que a revolução prescreve. Consumam-se
várias conquistas da revolução. Acabada a guerra colonial e durante o PREC, as
colônias africanas e de Timor-Leste tornam-se independentes. Finalmente, no dia
25 de abril de 1975, têm lugar as primeiras eleições livres para a Assembleia Constituinte,
ganhas pelo Partido Socialista. Na sequência dos trabalhos desta assembleia é
elaborada uma nova Constituição, de forte pendor socialista, e estabelecida uma
democracia parlamentar de tipo ocidental. A constituição é aprovada em 1976
pela maioria dos deputados, abstendo-se apenas o CDS.
Forma-se o I
Governo Constitucional de Portugal, chefiado por Mário Soares em 23 de
setembro de 1976. Ramalho Eanes, militar em Angola no dia 25 de abril, o sisudo
oficial que adere ao MFA fora de horas, o extemporâneo general que na televisão
se esconde por trás de uns óculos de sol, ganha as presidenciais de 27 de junho
de 1976. Segue-se o fim do PREC e um período de estabilização política. Eanes
impõe-se como chefe militar e Mário Soares, desvinculado dos fundamentos
marxistas do ideário socialista, “proclama as virtudes do pluralismo, a
inevitabilidade do liberalismo, e lidera, dominando o partido e o país”. Com o
seu talento político, ergue a voz e faz-se ouvir: com ele, a democracia em
Portugal está garantida e o país aparentemente livre da “ameaça comunista”. Com
a sua habitual persistência, mantendo durante anos o mesmo discurso político sempre
que fala, acaba por ganhar terreno e isolar a esquerda.
A Revolução dos
Cravos continua a dividir a sociedade portuguesa, sobretudo nos estratos mais
velhos da população que viveram os acontecimentos, nas facções extremas do
espectro político e nas pessoas politicamente mais empenhadas. A análise que se
segue refere-se apenas às divisões entre estes estratos sociais. Extremam-se
entre eles os pontos de vista dominantes na sociedade portuguesa em relação ao dia
25 de abril. Quase todos reconhecem, de uma forma ou de outra, que a revolução
de abril representou um grande salto no desenvolvimento político-social do país.
À esquerda, pensa-se que o espírito inicial da revolução se perdeu. O PCP (cf.
Varela, 2011) lamenta que não se tenha ido mais longe e que muitas das chamadas
“conquistas da revolução” se tenham perdido. Os setores mais conservadores de
direita tendem a lamentar o que se passou. De uma forma geral, uns e outros
lamentam a forma como a descolonização foi feita. A direita lamenta as
nacionalizações no período imediato ao dia 25 de abril de 1974, afirmando que a
revolução agravou o crescimento de uma economia já então fraca. A esquerda
defende que a o agravamento da situação econômica do país é consequente de
medidas então programadas que não foram aplicadas ou que foram desfeitas pelos
governos posteriores a 1975, e com isso, desfeitas as utopias da construção de
um socialismo democrático.
Ao golpe político-militar
seguiu-se o chamado PREC, caracterizado por fortes embates entre as diferentes
correntes de esquerda que assumiram o poder, e envolveram-se na formulação da
Constituição aprovada em 1976. Houve muitas ocupações de terras e de edifícios
privados, nacionalizações de bancos, seguradoras, indústrias químicas e de
papel, e outras atividades que poderiam interessar ao Estado. Também se
promoveu uma “limpeza” ideológica na mídia, com demissão de jornalistas
conservadores ou ligados ao antigo regime. Em reação às medidas mais radicais,
grupos clandestinos de direita, alguns com participação e apoio de setores da
Igreja, praticavam atos terroristas, explosões e assassinatos, principalmente
na região central do país e na área do Porto, ao norte.
Lembra-nos Boaventura de Sousa Santos que,
“A morte no último dia 10 de Maria de Lurdes Pintasilgo (primeira-ministra de Portugal após a Revolução dos Cravos, em 1974) ocorreu num momento sombrio da democracia portuguesa. No momento em que os interesses econômicos e políticos dos poderosos confiscam a participação democrática antes que esta se vire contra eles; no momento em que os zeladores das instituições democráticas as esvaziam sob o pretexto de assegurar o seu regular funcionamento; no momento em que a violência da injustiça social, do desemprego, da pobreza, da destruição do serviço nacional de saúde entra na casa de milhões de portugueses, enquanto uns milhares de compradores de decisões políticas enchem os bolsos de dividendos e fazem esgotar os bens de luxo no mercado; no momento em que um discurso político patético do mais alto magistrado da nação transmite uma mensagem de medíocre resignação, exigindo a continuação de políticas que os portugueses afirmaram democraticamente serem ruinosas e impedindo a ruptura com elas, por supor, obviamente, que, se a houver, será para pior; no momento, enfim, em que o poder tem sempre razão contra a razão dos que não têm poder” (cf. Santos, 2004).
Ipso
facto, para Santos (1981; 1985a;
1985b; 1996; 2010) a sociedade portuguesa ainda transita sob a turbulência das rupturas e das continuidades, quanto
os portugueses estão divididos “entre a vontade de navegar e a vontade de
ancorar”. Navegar, metaforicamente, significa “viajar para onde o quotidiano
não dói”. Ancorar significa “ter a certeza da segurança contra as tempestades
do risco”. A vontade de navegar apela à sociedade de consumo, sobretudo dos
consumos culturais. A vontade de ancorar apela à sociedade dos direitos civis.
Quanto à vontade de navegar, é evidente a tendência para o crescimento dos
consumos culturais e das práticas de lazer em Portugal. Opinião associada ao
crescimento das classes médias, ao aumento dos níveis médios de escolarização e
à intensificação destas práticas entre os jovens. É manifesto, ao longo dos
últimos trinta anos, o domínio das práticas culturais realizadas na esfera
doméstica e, portanto, a sua prevalência relativamente às que se dirigem para o
espaço público. Entre
as “práticas domésticas”, destaca-se claramente o uso da televisão que é, a uma
distância muito grande de todas as outras, a atividade cultural que maiores
taxas de consumo revela. A televisão apresenta-se, de resto, como o produto
cultural de consumo socialmente mais transversal. O peso esmagador que os
consumos televisivos ocupam nos consumos culturais dos portugueses enuncia um
traço importante da cultura de massas em Portugal.
É que embora, do lado da oferta, seja visível a expansão crescente de outras expressões da cultura de massas como cinema, imprensa, livro, música, a verdade é que elas são hoje muito pouco massificadas entre os portugueses. Do lado dos consumos massivos, só a televisão parece constituir-se como um campo de inequívoca afirmação da cultura de massas em Portugal. Melhor
dizendo, a continuar, esta discrepância chocante entre o país oficial dos
direitos e o país real da denegação impune dos direitos civis consegue tirar
aos portugueses a âncora das expectativas fundadas e, com o tempo, pode mesmo
aniquilar-lhes a “vontade de ancorar”. E como sem âncora não se navega, a
sociedade portuguesa poderá ficar bloqueada no cais de embarque. Atulhada de
equipamentos para viagens vertiginosas, mas, em verdade, apenas
vertiginosamente parada. Para que tal não aconteça, os portugueses terão de
saber que na Europa de que fazem parte os direitos de cidadania não foram
historicamente uma concessão desinteressada das classes dominantes ou das
elites políticas. Foi antes uma conquista difícil, se já não é um truísmo, resultado
de lutas sociais e políticas frequentemente consideradas, desde seu início,
criminosas ou utópicas. A “vontade da viagem”, para a análise política e conjuntural de Boaventura de Sousa Santos,
deve se manter intacta e forte para que não desistamos da “vontade de ter
âncora”.
Do
ponto de vista da 7ª Arte após o dia 25 de abril de 1974 e com o fim da censura
política, a produção cinematográfica alterava substancialmente o teor das
produções, agora mais voltado para a exposição do pós-guerra. Produzido para a
RTP, Adeus, até ao Meu Regresso
(1974), dirigido por Antônio-Pedro Vasconcelos narrava alguns casos
significativos entre os milhares de soldados que combatiam na Guiné, a
propósito das mensagens de Natal para as famílias. Incompleto ficou O Último Soldado (1979), dirigido Jorge
Alves da Silva, sobre as dificuldades de readaptação conjugal e social de um
oficial paraquedista (João Perry) de regresso a Portugal. O filme: La Vitta e Bella (1979), dirigido por Grigori
Tchoukrai, é uma coprodução luso-ítalo-soviética, filmada em Lisboa, sobre um
taxista, ex-aviador militar que, durante a guerra de Angola, recusara abrir
fogo e afundar um barco com mulheres e crianças.
Do
ponto de vista da colonização o filme: Actos
dos Feitos da Guiné (1980), dirigido por Fernando Matos Silva argumenta com
Margarida Gouveia Fernandes, mas que encena, em forma de teatro de crítica, a
relação histórica do colonialismo português e seus heróis, com excertos
filmados na Guiné, em 1969-70. No caso do filme: A Culpa (1980), dirigido por Antônio Vitorino d`Almeida, narra a
obsessão de um ex-combatentes da guerra da Guiné (Sinde Filipe). Analogamente Em Gestos & Fragmentos - Ensaios sobre
os Militares e o Poder (1982), dirigido por Alberto Seixas Santos e Otelo
Saraiva de Carvalho descreve o percurso, seu e dos seus camaradas do chamado “Movimento
dos Capitães”, que levou o país da guerra colonial ao golpe de Estado do 25 de
abril. Enfim, Um Adeus Português
(1985), dirigido por João Botelho e Leonor Pinhão evocam um incidente com uma
patrulha militar que se perde no mato, com a morte de um furriel. Em Era Uma Vez um Alferes (1987), dirigido
por Luís Filipe Rocha, baseado na obra de Mário de Carvalho, produzido para a
RTP, reconstitui um episódio em África, em que um alferes português pisa numa
mina, que explodirá quando ele levantar o pé. Finalmente, em Non ou a Vã Glória de Mandar (1990), dirigido
por Manoel de Oliveira, uma reflexão sobre a identidade da pátria por parte de
alguns soldados, no final da guerra, pouco antes do golpe de 25 de abril,
ilustrada desde o início de Portugal como nação Independente.
Bibliografia geral consultada.
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Soldado Profissional: Um Estudo Social e Político. Rio de Janeiro: Edições G. R. D.,
1967; GINZBURG, Carlo, “Spie –
Radici di un Paradigma Indiziario”. In: Miti, Emblemi, Spie. Morfologia e Storia. Torino:
Einaudi Editore, 1986; CANFORA, Luciano, Togliatti e i Dilemmi della Politica. Bari: Edizione Laterza, 1989; BRAGA, Ubiracy de Souza,
Das Caravelas aos Ônibus Espaciais. A Trajetória da Informação no Capitalismo.
Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social. Escola de Comunicação
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Camargo, Meia Volta Volver: Um Estudo Antropológico da Hierarquia Militar.
Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997; ANCIÃES, Silvia Lemgruber Julianele, A Revolução dos Cravos e a Adoção da Opção Europeia da Política Portuguesa. Dissertação de Mestrado. Programa de Relações Internacionais. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2004; SECCO, Lincol, 25 de
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1984)”. In: Pensamiento Iberoamericano, 5, 499-520; Idem, “A Crise e a
Reconstituição do Estado em Portugal (1974 - 1984)”. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, 14, 7-29; Idem, (1985a), “Os
Três Tempos Simbólicos da Relação entre as Forças Armadas e a Sociedade em
Portugal”. In: Revista Crítica de
Ciências Sociais, 15/16/17, 11-45; Idem, (1985b), “O Estado e o Direito na Transição
Pós-Moderna”. In: Revista Crítica de
Ciências Sociais, 30, 13-44; Idem, & Maria Manuel Leitão; Pedroso,
João (1999), “Les Tribunaux dans les Sociétés Contemporaines: Le Cas Portugais”.
In: Droit et Société, 42-43,
311-331; ABADIA, Danúbia Mendes, O Jornal Combate e as Lutas Sociais Autonomistas em Portugal durante a Revolução dos Cravos (1974-1978). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2010; VARELA, Raquel, História
do PCP na Revolução dos Cravos. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 2011; ALMEIDA, Fábio Change de, “A Direita Radical em Portugal: da Revolução dos Cravos à Era da Internet”. In: Dossiê: Laços Sociais, Laços Transnacionais - da Construção de Vínculos na História. Estudos Ibero-Americanos, vol. 41, nº 1 (2015); entre
outros.
_______________
* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).
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