“Há um mínimo de dignidade que o homem não pode negociar”. Dias Gomes
Alfredo de Freitas Dias Gomes, romancista, contista e teatrólogo nasceu no bairro do Canela em Salvador, Bahia, no dia 19 de outubro de 1922, e faleceu aos 76 anos, em 18 de maio de 1999, vítima de acidente de carro em São Paulo. Filho do engenheiro Plínio Alves Dias Gomes e de Alice Ribeiro de Freitas Gomes, fez o curso primário no Colégio Nossa Senhora das Vitórias, dos Irmãos Maristas, e iniciou o secundário no Ginásio Ipiranga. Em 1935, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, onde prosseguiu o curso secundário no Ginásio Vera Cruz e posteriormente no Instituto de Ensino Secundário. Com apenas 15 anos escreveu sua primeira peça, A Comédia dos Moralistas (1937), que obteve o 1º lugar no Concurso do Serviço Nacional de Teatro em 1939, criado em 1937 por Gustavo Capanema, o Ministro da Educação que mais tempo ficou no cargo em toda a história social e política do Brasil, entre os anos de 1934 a 1945, durando aproximadamente 11 anos contínuos como Ministro da Educação e Saúde durante o governo autoritário de Getúlio Vargas. Embora não tenha sido encenada, a obra foi premiada em 1939 num concurso do Serviço Nacional de Teatro (SNT) e publicada no mesmo ano pela Fênix Gráfica, da Bahia, a expensas de um tio entusiasta, Alfredo Soares da Cunha. Ela foi seguida por Esperidião (1938), Ludovico (1940), Amanhã será outro dia (1941) e O homem que não era seu (1942).
Em 1942, o jovem autor conhece a sua primeira realização teatral de sucesso com Pé de cabra, produzida e encenada pelo ator Procópio Ferreira e exibida em diversas capitais brasileiras entre 1943 e 1944. A peça foi censurada e “proibida na estreia, no dia 31 de julho de 1942, por ser considerada marxista. Liberada mais tarde, serviu, no entanto, para caracterizar Dias Gomes como comunista muito antes de ele ingressar de fato no Partido Comunista Brasileiro” (cf. Paranhos, 2017). Estreou no teatro profissional com a comédia Pé-de-cabra (1942), encenada no Rio de Janeiro e posteriormente em São Paulo por Procópio Ferreira, que com ele excursionou pelo país. Escreveu as peças O homem que não era seu e João Cambão (1942). Em 1943, sua peça Amanhã será outro dia foi encenada pela Comédia Brasileira, do Serviço Nacional de Teatro (SNT) e novelas globais como O Bem Amado (1973), Roque Santeiro (1985), Saramandaia (1976) e O Pagador de Promessas (1982), uma minissérie produzida e exibida pela Rede Globo entre 5 e 15 de abril de 1988, em 12 capítulos, ás 22h30. Escrita por Dias Gomes, adaptando a peça teatral de sua autoria, e dirigida por Tizuka Yamasaki. Concebida tecnicamente em 12 capítulos, a história político-religiosa teve que ser reeditada por imposição da censura civil-militar no Brasil, e acabou sendo exibida em apenas oito capítulos. As referências políticas, as menções das lutas dos trabalhadores rurais sem-terra e posseiros e a inconclusiva reforma agrária foram suprimidas tirando o gênese mitico-poética da personagem.
O
símbolo com o formato da cruz, que está sendo representado em sua forma mais simples e através
do cruzamento de duas linhas em ângulos retos, antecede em muitos séculos, comparativamente tanto no Ocidente quanto no Oriente, historicamente a introdução do cristianismo;
data a um período muito remoto na história da civilização. Supõe-se que seria
usado não apenas por seu valor ornamental, mas também com a diversidade de seus significados
religiosos. Entetanto, a cruz cristã é o reconhecido símbolo religioso do cristianismo. É uma representação do instrumento da crucificação de Jesus Cristo, e está
relacionada ao crucifixo, ou seja, a cruz que inclui uma representação religiosa do corpo de Jesus e à família genérica mais ampla dos símbolos em forma de cruzes. A cruz representou em
diversas sociedades a interseção do plano material e do transcendental em seus
eixos perpendiculares. Por exemplo, era insígnia de Serápis no Egito. Ao ser
apropriado pelo cristianismo, este símbolo enriqueceu e sintetizou a história social
da salvação e paixão de Jesus, significando também a possibilidade de
ressurreição. As igrejas cristãs modernas tendem a se preocupar muito mais em
como a humanidade pode ser salva de uma condição que tende a ser universal de
pecado e morte do que na questão de como judeus e gentios podem fazer parte da
família de Deus.
De
acordo com a teologia ortodoxa oriental, com base em sua compreensão da
expiação apresentada pela teoria da recapitulação de Irineu, a morte de Jesus é
um resgate. Isso restaura a relação com Deus, que é amoroso e se aproxima da
humanidade, e oferece a possibilidade de theosis e divinização,
tornando-se o tipo de homem que Deus quer que a humanidade seja. Segundo a
doutrina católica, a morte de Jesus satisfaz a ira de Deus, suscitada pela
ofensa à honra de Deus causada pela pecaminosidade humana. A Igreja Católica
ensina que a salvação não ocorre sem a fidelidade dos cristãos; os convertidos
devem viver de acordo com os princípios do amor e normalmente devem ser
batizados. Na teologia protestante, a morte de Jesus é considerada como uma
pena substitutiva carregada por Jesus, pela dívida que deve ser paga pela
humanidade quando ela quebrou a lei moral de Deus. Os cristãos diferem em seus
pontos de vista sobre até que ponto a salvação dos indivíduos é pré-ordenada
por Deus. A teologia reformada coloca ênfase distinta na graça ao ensinar que
os indivíduos são completamente incapazes de autorredenção, mas que a graça santificadora
é irresistível. Em contraste, católicos, cristãos ortodoxos e protestantes
arminianos acreditam que o exercício do livre arbítrio é necessário para ter fé
em Jesus.
Neste período também escreveu alguns contos e romances: O Chefe (1938), O Ressuscitado (1938), Duas Sombras Apenas (1945), Um Amor e Sete Pecados (1946), A Dama da Noite (1947) e Quando é Amanhã (1948). Em 1944, a convite de Oduvaldo Viana, foi trabalhar na Rádio Pan-Americana (São Paulo), fazendo adaptações de peças, romances e contos para o Grande Teatro Pan-Americano. Regressou ao Rio de Janeiro, em 1948, onde passou a trabalhar sucessivamente na chamada Era do Rádio com as famosas Rádios Tupi e Rádio Tamoio (1950), Rádio Clube do Brasil (1951) e Rádio Nacional (1956). Em 1950, casou-se com Janete Emmer (Janete Clair), com quem teve cinco filhos: Guilherme, Alfredo, Denise, Alfredo e Marcos Plínio. Em fins de 1953, viajou à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) com uma delegação de escritores, para as comemorações do 1º de Maio. Por essa razão, ao voltar ao Brasil, foi demitido da Rádio Clube. Seu nome censurado foi incluído numa lista, e durante nove meses seus textos tiveram que ser negociados com a TV Tupi em nome de colegas.
Janete Clair nasceu Jenete Stoco Emmer, filha do comerciante libanês Salim Emmer e da costureira Carolina Stocco Emmer, de ascendência portuguesa. Seu nome era para ser Janete, mas devido ao forte sotaque de seu pai, o cartório a registrou erroneamente como Jenete. Depois de passar uma infância tranquila em Conquista, no Triângulo Mineiro, no Vale do Rio Grande, o talento de Jenete para a vida artísticadespontou quando a família se mudou para Franca, no interior de São Paulo. Na Rádio Herz, a principal emissora da cidade, Jenete fazia sucesso interpretando canções, tanto em árabe quanto em francês. Aos quatorze anos de idade, precisou interromper temporariamente a vida artística e se dedicou a trabalhar como datilógrafa para ajudar na renda da família. Depois, já na capital São Paulo fez estágio num laboratório como bacteriologista e aos vinte anos passou num teste para ser locutora e rádio atriz da Rádio Tupi. Adotou o nome artístico Janete por ser de mais fácil pronúncia, e o sobrenome Clair, inspirada na canção Clair de Lune, de Claude Debussy por sugestão de Otávio Gabus Mendes. Trabalhando na rádio, conheceu e se apaixonou por seu futuro marido, o dramaturgo Dias Gomes. Nos anos 1950, incentivada pelo marido, passou a escrever radionovelas e teve grande sucesso com Perdão, Meu Filho (Rádio Nacional, 1956). Na década de 1960 iniciou a produção para a televisão, com as telenovelas O Acusador e Paixão Proibida, ambas pela TV Tupi.
Depois teve uma temporada em Minas Gerais onde escreveu a novela Estrada do Pecado (1965) para a TV Itacolomy, volta ao Rio de Janeiro e adapta A Herança do Ódio (1951) de Oduvaldo Vianna para a TV Rio. Em 1967, recebeu a incumbência de alterar a trama da telenovela Anastácia, a Mulher sem Destino, da Rede Globo, para reduzir drasticamente as despesas de produção. Ela inseriu na história um terremoto que matou mais da metade dos personagens e destruiu inúmeros cenários. Depois disso, ficou em definitivo na Rede Globo, onde escreveu telenovelas como Sangue e Areia (1967), Passo dos Ventos (1968), Rosa Rebelde (1969) e Véu de Noiva (1970). Nos anos 1970 escreveu algumas das telenovelas de maior sucesso da história televisiva nacional, como Irmãos Coragem (1970), Selva de Pedra (1972) e Pecado Capital (1975), período este em que passou a ser chamada de “a maga das oito”, por garantir índices de audiência estratosféricos nas telenovelas exibidas neste horário, sendo, em muitas, indiscutivelmente imbatível.
Em 1978, paralisou o Brasil com a telenovela O Astro, introduzindo a técnica do mistério: “Quem matou Salomão Hayala?”, personagem interpretado por Dionísio Azevedo. Janete Clair se “tornou a maior autora popular da história da televisão do Brasil, a única a alcançar 100 pontos de audiência”. Em 11 de agosto de 2005 o pesquisador em Teledramaturgia e também diretor e roteirista Márcio Tavolari, após dois anos de intensos trabalhos de pesquisa dedicados a catalogação, organização e inventário do acervo da novelista, promoveu na Associação Brasileira de Letras (ABL/RJ) um evento póstumo em reconhecimento de Janete Clair “como a mais popular autora da Televisão Brasileira”. Morreu precocemente, vitimada por um câncer no intestino, enquanto escrevia a telenovela Eu Prometo (1983), que deixou inacabada. Foi concluída pela colaboradora e brilhante escritora Glória Perez, que torna-se reconhecida e respeitada novelista, e naturalmente, pelo cariz de seu viúvo Dias Gomes.
Em 1959, Dias Gomes escreveu a peça O Pagador de Promessas, que estreou no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em São Paulo, com a direção de Flávio Rangel e com Leonardo Vilar no papel principal. Dias Gomes ganhou projeção nacional e internacional. A peça, traduzida para mais de uma dúzia de idiomas, foi encenada em boa parte do mundo. Adaptada pelo próprio autor para o cinema, dirigido por Anselmo Duarte, recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1962. Nesse ano, recebeu o Prêmio Cláudio de Sousa, da Academia Brasileira de Letras (ABL), com a peça A invasão, uma obra que foi encenada pela primeira vez em 25 de outubro de 1962. Retrata a necessidade de mudança que a sociedade necessitava no período que se iniciou em 1° de abril de 1964, com uma sociedade viciada politicamente e presa a uma dramaturgia tradicionalista sem renovação do aplauso fácil da classe dominante. Foi premiada duas vezes com o Prêmio Padre Ventura, 1962 pelo Círculo Independente dos Críticos Teatrais (CICT) e o Prêmio Cláudio de Souza, 1961 pela Academia Brasileira de Letras. É uma peça de teatro escrita em três atos e com cinco quadros.
Os fabulosos Janete Clair e Dias Gomes.
Não queremos perder de vista que a Associação Brasileira de Críticos Teatrais (ABCT) foi criada em 1937, tendo por principal objetivo incrementar o teatro brasileiro através de medidas e leis que o incentivassem. Assim, em 1943 levou ao então ditador Getúlio Vargas um memorial com críticas ao Serviço Nacional do Teatro (SNT) no qual propunham mudanças em sua estrutura e sugeriam a criação de Departamentos nos estados. Em agosto do ano seguinte, junto à Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT) e também representados pelo Sindicato dos Atores Teatrais, Cenógrafos e Cenotécnicos do Rio de Janeiro (Casa dos Artistas) criou uma Comissão Permanente de Teatro que logo encaminhou ao presidente da República um plano de ideias onde recomendava a concessão pelo SNT de subvenções, num momento em que este órgão estatal atravessava crises internas. A ABCT foi responsável pela realização dos dois primeiros congressos brasileiros de teatro; idealizado inicialmente pelo então presidente da entidade Augusto de Freitas Lopes Gonçalves, teve para tal o apoio da SBAT, da Casa dos Artistas e outras instituições como a Academia Brasileira de Letras; o primeiro deles foi realizado no Rio de Janeiro em 1951, e o segundo na capital paulista em 1953, ambos contando com o apoio oficial do governo através do Serviço Nacional de Teatro. A entidade começou a perder força política com a fundação, em 1957, do Círculo Independente de Críticos Teatrais (CICT), com a qual passou a rivalizar; mas, por outro lado a própria crítica teatral foi deixando de existir a partir da década de 1960, sobretudo com a instauração no país do golpe de Estado e da ditadura militar de 1964, o desaparecimento de muitos jornais com o advento da televisão e outros fatores sociais.
Dias Gomes baseou a história num fato real: no final dos anos 1950, um grupo de favelados do Rio de Janeiro que perderam seus barracos, devido a uma enchente. Sem ter onde se abrigar invade uma construção abandonada. A primeira família narrada é a de Bené, um ex-jogador de futebol, que sem esperanças encontra na bebida seu único meio para suportar tamanho sofrimento e pobreza. Espera no filho, Lula, a oportunidade que nunca teve. Sem opção de moradia Bené, Isabel e Lula iniciam propriamente a Invasão. Depois seguido de Justino, Santa, O Filho de Santa, Tonho, Malu e Rita. Já estavam lá Bola Sete e Lindalva que no início os confunde com a polícia. Depois os outros vão chegando, O Profeta, no primeiro piso e a Invasão vai se dando gradativamente no prédio abandonado. O edifício ficou reconhecido como Favela do Esqueleto, onde depois nasceu a Universidade do Estado da Guanabara, com gente pobre, negros, mulatos e muitos palavrões, mesclados com desemprego e fome.
Apesar dos problemas acumulados nos últimos anos, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) começou como um sonho. Renascida em 4 de dezembro de 1950, a então Universidade do Distrito Federal (UDF) pretendia fazer dar certo um projeto de ensino superior que existiu entre 1935 e 1939, quando a instituição fora criada sob a liderança do educador Anísio Teixeira. Para isso, nos anos 1950 unificou quatro escolas já estabelecidas: a Faculdade de Ciências Médicas, a de Ciências Jurídicas, a de Ciências Econômicas e a de Filosofia e Letras. O Rio de Janeiro, então capital da República, buscava acompanhar as mudanças na educação superior no Brasil. Sua história social teve início em 4 de dezembro de 1950, com a promulgação da lei municipal nº 547, que cria a nova Universidade do Distrito Federal (UDF) durante mandato do então General de Divisão e Prefeito do Distrito Federal do Rio de Janeiro Marechal Ângelo Mendes de Moraes. Diferente da instituição homônima, fundada em 1935 e extinta em 1939, a nova universidade ganhou força estratégia e tornou-se uma referência em ensino superior, pesquisa e extensão na Região Sudeste. Em 1961, após a transferência do Distrito Federal para a recém-inaugurada Brasília, a UDF passou a se chamar Universidade do Estado da Guanabara (UEG). Finalmente, com a fusão do estado em 1975, ganhou o nome de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
O país era governado por uma ditadura militar desde o golpe civil-militar de 1964. O governo estava enfraquecido, dividido pelos militares mestiços da linha-dura e os militares moderados. A economia apresentava uma alta inflação, o povo saía às ruas nas chamadas Diretas Já. O militar Ernesto Geisel, presidente entre 1974 e 1979, garantiu uma “distensão lenta, segura e gradual”. Assim, iniciou-se a abertura política. Aos poucos, a oposição, representada pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) ganhou força política. Mas foi no governo de João Figueiredo (1979-1985) que o país passou para os civis, após anos de frustração. Em 1985, Tancredo Neves foi eleito pelo Colégio Eleitoral com 480 votos contra 180 de Paulo Maluf (PDS) que representava a ditadura. Na véspera da posse de Tancredo em 14 de março de 1985, ele foi internado. No dia seguinte, José Sarney tomou posse interinamente até que o titular assumisse. Em 21 de abril de 1985, Tancredo falece aos 75 anos, e Sarney tornou-se presidente não eleito em definitivo. A última eleição disputada pelo PDS ocorreu em 1992 quando Maluf venceu em São Paulo e Teresa Jucá em Boa Vista. Naquele ano os pedessistas mantiveram o posto de 3° maior partido do Brasil ao elegerem 363 prefeitos. A história da agremiação teve fim em 4 de abril de 1993, quando este se fundiu ao PDC para criar o Partido Progressista Reformador (PPR), presidido pelo senador Espiridião Amin.
Também naquela década, conheceria uma de suas primeiras crises financeiras, a partir do final de 1964. Em 12 de novembro daquele ano, o reitor Haroldo Lisboa da Cunha afirmava que sem mais verba do governo, a UEG fecharia. Não fechou. E em 1967, começaria um de seus planos mais ousados: a construção do campus do Maracanã. A obra duraria até a década de 1970, mas alguns de seus cursos ocupariam as instalações em 1969, antes de estarem prontas. Na década de 1970, a UEG, finalmente, se tornaria UERJ. No ano de 1975, com a fusão dos estados do Rio e da Guanabara, na época do reitor Oscar Tenório, a universidade mudou o nome. Um ano depois, já se falava em interiorização da instituição, que agora pertencia ao Estado do Rio de Janeiro. Sob novos padrões e no novo campus, idealizado para ser uma “microuniversidade urbana”, a nova instituição aumentou sua participação na integração política da cidade. O campus do Maracanã ocupava o lugar da antiga Favela do Esqueleto e havia desabrigado seus moradores, removidos para o bairro da Vila Kennedy, na longínqua Zona Oeste. A retribuição à população ocorreria por meio de projetos sociais, como os desenvolvidos no extraordinário Morro da Mangueira a partir da redemocratização de 1985. Uma integração social e um projeto dinâmico, real de que viria de fato para ficar.
Criada a partir da fusão da Faculdade de Ciências Econômicas do Rio de Janeiro, da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, da Faculdade de Filosofia do Instituto La-Fayette e da Faculdade de Ciências Médicas, a Universidade cresceu, incorporando e criando novas unidades com o passar dos anos. Às faculdades fundadoras uniram-se instituições como a Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi), o Hospital Geral Pedro Ernesto (Hupe), a Escola de Enfermagem Raquel Haddock Lobo, entre outras. Além disso, novas unidades foram criadas para atender às demandas da Universidade e da comunidade, como o Instituto de Aplicação (CAp) e a Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Eduerj), entre outros. Nesses 60 anos de história, a Universidade cresceu em tamanho, estrutura e importância social, política e administrativa, comparativamente nos cenários educacional, regional, nacional e internacional. O campus Francisco Negrão de Lima, no bairro Maracanã, zona norte do Rio de Janeiro, foi erguido no local da antiga Favela do Esqueleto, reconhecida por esse nome, pois lá existia a estrutura abandonada da construção de um hospital público que, após sua conclusão, passou a representar o Pavilhão Haroldo Lisboa da Cunha.
Dias Gomes e Aguinaldo Silva escreveram Roque Santeiro (1985) baseando-se em uma peça de teatro, de autoria de Dias Gomes, O Berço do Herói, que já havia sido censurada e proibida de estrear em 1963. A telenovela seria exibida a partir do dia 27 de agosto de 1975, pela Rede Globo, substituindo a novela Escalada (1975), de Lauro César Muniz, e já havia 30 capítulos gravados e as chamadas publicitárias de áudio na TV anunciavam sua estreia. Porém, no dia preparado para sua estreia, a emissora recebeu um ofício do anacrônico Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), do governo federal censurando a exibição pública da novela. O motivo da censura foi “uma escuta telefônica do governo, em que foi gravada uma conversa do autor da novela, Dias Gomes, afirmando que Roque Santeiro era apenas uma forma de enganar os militares”, adaptando O Berço do Herói (1965) para a televisão, com ligeiras modificações que fariam que os militares não percebessem que se tratava da obra.
Após 10 anos, já no governo do vice-presidente José Sarney, que assumiu interinamente após a internação de Tancredo Neves, e definitivamente na farsa do programado dia 21 de abril de 1985, após a morte do qual foi o primeiro presidente civil após mais de vinte anos de regime militar no Brasil. A telenovela foi finalmente liberada e pôde ser exibida na televisão. Por consideração aos artistas envolvidos no trabalho original, os mesmos foram convidados à participar da nova versão da novela, com seus respectivos personagens. Porém, Francisco Cuoco e Betty Faria recusaram os papéis principais de Roque Santeiro e Viúva Porcina, mas Lima Duarte retornou à produção novamente como o inesquecível Sinhozinho Malta. Além dele, alguns atores que participaram da versão censurada da novela retornaram à produção interpretando os mesmos personagens, como João Carlos Barroso, Luiz Armando Queiroz e Ilva Niño. Milton Gonçalves, que interpretava o padre Honório, nome esse trocado para Hipólito na versão censurada, ganhou o papel do promotor público Lourival Prata. A atriz Elizângela, também participou da versão censurada, mas teve seu papel alterado para viver Marilda, esposa de Roberto Mathias, interpretado por Fábio Júnior. Dennis Carvalho, que interpretou Roberto Mathias em 1975, era Tomazini em 1985 e Lutero Luiz que interpretou o prefeito Flô, nesta versão, interpretou o Dr. Cazuza Amaral.
Para o que nos interessa, enquanto objeto de análise teórica, O Pagador de Promessas teve versão cinematográfica em 1962, dirigida por Anselmo Duarte, ipsofacto, o único filme brasileiro a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, na França. Vale lembrar que se trata de um festival de cinema criado em 1946, e conforme a concepção de Jean Zay, e até 2002, chamado Festival International du Film, é um dos mais prestigiados festivais de cinema do mundo. Acontece tradicionalmente todos os anos, no mês de maio, na cidade francesa de Cannes. Igualmente o chamado marché du film (mercado do filme) acontece paralelamente ao festival. No final dos anos 1930, contrariado pela ingerência dos governos fascista alemão e italiano na seleção dos filmes da Mostra de Veneza, Zay, ministro da Instrução pública e de Belas Artes, propõe a criação, em Cannes, de um festival cinematográfico de nível internacional. Em junho de 1939, Louis Lumière aceita ser o presidente da primeira edição do festival, que deveria acontecer do 1° dia ao dia 30 de setembro. A declaração de guerra da França e do Reino Unido à Alemanha em 3 de setembro, põe fim, prematuramente a essa decisão, apesar de o prêmio ter sido atribuído a Union Pacific, de Cecil B. DeMille, um filme norte-americano de 1939, do gênero faroeste, baseado no livro Trouble shooter de Ernest Haycox, dirigido por Cecil B. DeMille e estrelado por Barbara Stanwick e Joel McCrea. Zé do Burro (José Mayer) é um simplório lavrador de uma família de posseiros que luta contra a secularização dos latifundiários rurais, cujo principal representante é Tião Gadelha (Carlos Eduardo Dolabella).
Porém o ingênuo Zé é alheio a esses conflitos e vive num mundo à parte com seu fiel companheiro, um burro chamado Nicolau. Do costume do povoado na companhia do burro, nasce seu apelido, Zé do Burro. Vítima de um acidente, Nicolau fica à beira da morte, e Zé faz uma promessa a Santa Bárbara para que ela salve o animal. O pagamento da promessa é carregar uma pesada cruz de sua roça em Monte Santo, interior baiano, até a igreja de Santa Bárbara em Salvador. Nas escadarias da igreja, com os ombros feridos, o conflito maior é deflagrado a partir da incompreensão do Padre Olavo (Walmor Chagas), religioso conservador que não consegue entender a simbiose ou sincretismo religioso na pureza da proposta. A promessa tinha sido feita num ritual de candomblé para Santa Bárbara, da Igreja Católica, que é sincretizada como Orixá Iansã, a senhora dos ventos e das tempestades. Tem como símbolos principais o raio e a espada. O raio é o símbolo da justiça divina atuando no plano físico. É a força que ilumina as trevas do ego. A espada é o instrumento da lei, que zela, protege e ampara a todos. É a luta pessoal, o melhoramento, a morte dos vícios. Seu sincretismo acontece com Santa Bárbara, santa católica que tem como insígnias o cálice e a espada.
Ela é valente, tem temperamento forte e independente. Os rituais do candomblé são realizados em templos chamados casas, roças ou terreiros que podem ser de linhagem matriarcal: quando somente as mulheres podem assumir a liderança; patriarcal: quando somente homens podem assumir a liderança, ou mista: quando homens e mulheres podem assumir a liderança do terreiro. Furioso, o padre tranca a porta da igreja e acusa o lavrador de heresia. Aos poucos, no cotidiano da vida social, Zé do Burro cativa a comunidade e através de sua insistência vai elevando a tensão social até um confronto de rua com a polícia, bem nos meios dos barulhentos festejos em homenagem à santa. No seu aparente insano calvário, Zé do Burro, vê sua bela mulher Rosa (Denise Milfont), ser seduzida pelo gigolô Bonitão. Fascinada pelo cafetão, Rosa ainda enfrenta o ódio da prostituta Marli (Joana Fomm). Para completar a rede de confusões, Zé torna-se vítima das manipulações de Aderbal (Guilherme Fontes), um jornalista que o transforma num místico revolucionário, dando a promessa do peregrino uma realidade de conotação política. Em novembro de 2015 o filme O Pagador de Promessas entrou na lista elaborada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos.
Bibliografia geral consultada.
SOARES, Afonso Maria Ligorio, Le Religioni Afrobrasiliane e l`Inculturazione delle Fede. Roma: Pontifícia Universidade Gregoriana, 1990; MERTEN, Luiz Carlos, Anselmo Duarte: O Homem da Palma de Ouro. 1ª edição. São Paulo: Imprensa Oficial, 2004; SILVA, Sebastiana Siqueira, O Pagador de Promessas – Um Drama Trágico em Tempos Modernos. Dissertação de Mestrado em Letras. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2009; PINHEIRO, Roberta Vanessa Crispim, O Pagador de Promessas: Dramaticidade e Tragicidade, da Literatura ao Cinema. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2010; SANTOS, Josué Pereira dos, O Pagador de Promessas no Contexto do Drama/Teatro Brasileiro Moderno: Discussão sobre a Tragédia Nacional-Popular. Dissertação de Mestrado em Literatura e Interculturalidade. Departamento de Letras e Artes. Campina Grande: Universidade Estadual da Paraíba, 2012; GOMES, Robson Teles, Alegorias do Estado Autoritário em O Pagador de Promessas e em O Santo Inquérito. Tese de Doutorado. Programa de Pòs-Graduação em Letras. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2014; PARANHOS, Kátia Rodrigues, “Dias Gomes entre Textos e Cenas: A Construção e a Reconstrução de um Autor”. In: ArtCultura. Uberlândia, Vol. 19, n° 34, pp. 139-152; jan./jun., 2017; DI SALVO, Leandro Braga, O Herói e o Bode Expiatório na Tragicomédia de Dias Gomes. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2018; LIMA LUIZ, Michelly Jacinto, O Discurso da Intolerância Religiosa no Filme O Pagador de Promessas sob a Perspectiva da Análise do Discurso Ecológico. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2018; VILELA, Anne Araújo,
As Performances de Odorico Paraguaçu em “O Bem Amado” (1973): Uma Sátira à Política
Brasileira no Século XX. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação
em Performances Culturais. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, Goiânia,
2020; entre outros.
Em filosofia, transcendência é um termo que pode conduzir a três diferentes relações, todos elas originárias da raiz latina que tem como significado essencial“ascender” ou “indo além”, segundo interpretação oriunda da filosofia antiga; outro, da filosofia medieval, e o último, ligado à filosofia moderna. Esquemas e arquétipos de transcendência exigem um procedimento dialético, entendendo com esse argumento, a intenção polêmica, mas necessária, que os põe em confronto com os seus contrários. A ascensão é imaginada contra a queda e a luz contra as trevas. O dinamismo de tais imagens prova facilmente um belicoso dogmatismo da representação. É do que se trata. A luz tende para se tornar raio ou gládio e a ascensão para espezinhar um adversário vencido. O tema do herói combatente encontra-se nos contos populares do Príncipe Encantado que afasta e frustra os malefícios, liberta, encobre, descobre e acorda. Príncipe encantado que aparece também na lenda nórdica de Sigur e Brunehilde, num conto tártaro, ou naquele da Bela Adormecida. Todas ilustram este tema velho como os argonautas. Todos os membros dessas sociedades são, antes de tudo, os guerreiros que possuem amplos direitos reais sexuais, praticam severos maus-tratos iniciáticos que constituem talvez um equivalente litúrgico dos feitos eternos do herói primordial.
Metodologicamente, seguindo “as pegadas” de Gilbert Durand (1997), queremos dizer com isso, que as imagens arquetípicas, ou simbólicas, subentendem que já não bastam a si próprias em seu simbolismo intrínseco, mas por um dinamismo extrínseco, ligando-se umas às outras sob a forma de narrativa, segundo ele “obcecada pelos estilos da história e pelas estruturas dramáticas que chama mito”. Sua conceituação é ampla, fazendo entrar nesse vocábulo, tudo o que está balizado por um lado, pelo estatismo dos símbolos, e por outro, pelas verificações arqueológicas. Assim, o termo mito “engloba para nós quer o mito propriamente dito, ou seja, a narrativa que legitima esta ou aquela fé religiosa ou mágica, a lenda e as suas limitações explicativas, o conto popular ou a narrativa romanesca”. Seu ponto de partida refere-se ao método de análise estabelecido por Claude Lévi-Strauss quanto á investigação mitológica, levando-o à precisão da noção de estrutura. Não se trata de negar os resultados a que chegou comparando as equações formais induzidas do sincronismo mítico e que lhe permitem integrar fatos tão díspares como as relações de subordinação dos galináceos a outros animais, comparativamente como ocorre com “a troca generalizada nos sistemas de parentesco” ambientada na dualidade de natureza de certas divindades.
Somente à luz da consciência e da razão pode o homem reconhecer. Esse ato de cognição e de discriminação consciente, divide o mundo social e político tendo em vista que a experiência do mundo só é possível por meio dos opostos. Mais uma vez queremos enfatizar que o simbolismo dos mitos, que nos ajuda a compreender os estágios humanos correspondentes não é filosofia ou mera especulação de notícia. Também a obra de arte em sua reprodutibilidade técnica, assim como o sonho, em toda a sua significação surge, de igual maneira, das profundezas da psique e revela o seu conteúdo de sentido ao intérprete perspicaz, embora muitas vezes esse sentido não seja abstraído de modo espontâneo pelo artista, pela arte em geral ou sonhador. De forma semelhante, a expressão mítica é uma demonstração ingênua do que ocorre nos seus processos psíquicos, embora a própria humanidade experimente e transmita o mito como algo totalmente diferente. Sabemos que, com toda probabilidade, um ritual, isto é, alguma cerimônia ou curso de ação social, sempre procede como relato, e é óbvio que o ato vem antes do conhecimentoe ação inconsciente antes do conteúdo enunciado. Por conseguinte, as nossas formulações são abstratos sumários e não afirmações que o chamado homem primitivo pudesse ter feito de maneira consciente acerca de si mesmo. Enquanto não nos tivermos familiarizado com as imagens dominantes que dirigem o curso do desenvolvimento humano, não seremos capazes de compreender as variantes e vicinais que cobrem por toda parte em diversos níveis o traçado principal desse curso.
Ipso facto, qualquer esforço mental de tradução do mito, como qualquer esforço para passar do semântico ao semiológico, é um raciocínio de empobrecimento. O que há de universal no imaginário não é a forma desafetada, é sim o fundo, em que se deve voltar à noção de estrutura utilizada e que não deve ser confundida com uma simples forma como Lévi-Strauss parece ter a tendência a fazer. Não é a forma que explica o fundo e a infraestrutura, afirma Durand (1997), mas muito pelo contrário é o dinamismo qualitativo da estrutura que faz relacionar e compreender a forma. As estruturas que são estabelecidas são puramente pragmáticas, e não respondem de modo nenhum a uma necessidade lógica. Porque a estrutura antropológica só tem com a estrutura fonológica um parentesco de nome, por isso valeria mais escrever o termo forma para a fonologia e estrutura para todo o sistema também instaurativo. Uma estrutura é, uma forma, mas que implica significações puramente qualitativas para além das coisas que se podem medir, ou mesmo simplesmente resolver numa equação formal, porque, para parafrasear Lévi-Strauss, há, no domínio dos símbolos, muitas coisas que se poderiam formular matematicamente, “mas não é de modo nenhum certo que sejam as mais importantes”.
Dado que um mito não se traduz, que teria ele a ver, no seu fundo, com uma máquina de traduzir? Porque uma “máquina de traduzir” não será nunca uma máquina de criar mitos. Para que haja símbolo é preciso que exista uma dominante vital. Por isso, o que nos parece caracterizar uma estrutura é precisamente que ela não pode formalizar totalmente e descolar do trajeto antropológico concreto que a fez crescer. Uma estrutura não é uma forma vazia, ela tem sempre o lastro, para além dos signos e das sintaxes, de um peso semântico inalienável. Está nisso mais próximo do sintoma ou da síndrome, que traz nele a doença, que da compreensão da função. E se a função tem alguma utilidade nos sistemas formais da linguística e da economia, e em geral todos os sistemas de trocas, essa utilidade esbate-se quando se quer aplicar a matemática, mesmo que “nova”, mesmo que chamada metaforicamente qualitativa, mesmo que para lhes legitimar o emprego se tivesse que apelar muito curiosamente para a aritmologia, a um conteúdo de uso e de que as religiões formais não constituem mais do que a epiderme superficial. A repetição tem uma função que é a de tornar manifesta a estrutura do mito.
Historicamente não só as grandes ordens medievais de cavalaria, e em particular a famosa Pauperes commilitones Christi Templique Salomonici, reconhecida como Cavaleiros Templários, Ordem do Templo (em francês: Ordre du Temple ou Templiers) ou simplesmente como Templários, foi uma ordem militar de Cavalaria. Ordem dos Templários com seus ascetismos simultaneamente militar e “homossexual” (cf. Kates, 1996), na falta de melhor expressão, nos parece ser a sequela das primitivas “sociedades de homens”, como também os círculos de estudantes da Alemanha bismarckiana, com seu ritual belicoso, e os maus-tratos praticados em qualquer grupo masculino fechado nos aparecem como herdeiros dos longínquos costumes dos berserkir. Por fim, podemos levar ainda mais longe esta filiação do herói solar e afirmarmos com Georges Gusdorf que “o próprio romance policial, que constitui um dos aspectos mais singulares do folclore, prolonga sob a aparência dos romances de capa e espada que foi mais longinquamente a dos romances de cavalaria”. Dom Quixote não sai da moda nunca, dado que faz\ parte do psiquismo eterno e Sherlock Holmes torna-se assim o sucessor direto de S. Jorge, do mesmo modo que Maigret recolhe a herança de S. Hilário. A espada é o arquétipo para o qual parece orientar-se a significação profunda das armas e, neste exemplo, como se ligam inextricavelmente num sobredeterminismo as motivações psicológicas e as intimações tecnológicas. Georges Dumézil, acumulando um número de observações etnográficas ou documentais, tenta mostrar que as funções do ligador-mágico comparativamente são irredutíveis às do guerreiro-cortador de nós.
O puro herói, o herói exemplar, continua a ser o “matador de dragões”. Apesar desse compromisso do gládio com o fio, mesmo que enfraquecido em metáfora jurídica, permanece essencialmente o instrumentos das divindades da morte e do tempo, das fiandeiras, dos demônios como Yama e Nirrti. Todo o apelo ao soberano celeste faz-se contra o que prende todo o batismo ou iluminação consiste para o homem em desligar o que prende e rasgar os véus de irrealidade, e, a situação temporal e a miséria do homem, como afirma o mitólogo Mircea Eliade, exprimem-se por palavras-chaves que contém a ideia de atar, de acorrentamento, de ligação. O complexo do prender não passa, assim, de uma espécie de arquétipo da própria situação do homem no mundo. Nesta perspectiva dualista e polêmica, a soberania assume os atributos do despender, e só por contaminação de outras intenções é que o herói vai buscar as astúcias do tempo e as redes do mal. É nesse contexto heroico que nos aparece a mitologia de Atena, a deusa armada, a deusa dos olhos flamejantes, tão pouco feminina e ferozmente virgem, saída do machado de Hefesto e da fronte de Zeus, senhora das armas, senhora do espirito, mas igualmente senhora da tecelagem. Mas é a lança, como a espada para Parsifal, um dos cavaleiros do século XIII que permanece a sua arma preferida. Nobreza da espada ou da lança sublinhada pela tradição medieval que fazia do gládio e da cerimônia de armar cavaleiro o símbolo de uma transmissão de potência e simultânea de retidão moral.
A fábula de d`Eon sobre a imperatriz Elizabeth deve ser entendida quando começaram a circular no final da década de 1770 e início da seguinte, e tornaram matéria de lendas, que o converteram em uma espécie de herói. Muitos pesquisadores e biógrafos aceitam s suas memórias como factuais, e se mostram maravilhados ao ver como, “disfarçado de mulher, d`Eon se tornou amigo íntimo da Imperatriz Elizabeth, a qual persuadiu a fazer uma aliança secreta com a França”. Não obstante, a história de que d`Eon vestiu-se de mulher a fim de tornar-se a professora particular da imperatriz Elizabeth não é de modo algum verdadeira. Ele inventou isso, provavelmente em 1775, ou pouco depois. Os pesquisadores suspeitaram da verdade, pela primeira vez, há mais de cem anos, quando os arquivos do Ministério do Exterior da França foram abertos. Com certeza, afirma Kates (1996: 104 e ss.), se esse engodo tivesse ocorrido, estaria na correspondência secreta de Luís XV, Conti, seus assistentes de D`Eon, para o Segredo do Rei da Rússia, não encontramos a menor referência às mudanças de indumentária dele, à sua identidade de gênero, tampouco às suas relações pessoais com Elizabeth.
O rei e a corte encaravam a transformação de d`Eon, de homem em mulher, ocorrida em 1777, e o seu subsequente retorno à França, como uma aposentadoria definitiva da carreira de homem de Estado. O governo vinculou, de forma explícita, o sexo de d`Eon à sua aptidão para permanecer ativo na esfera da política. Assim, d`Eon esperava usar o mito russo para afirmar o seu patriotismo e solapar a exclusividade de gênero que dominava o corpo diplomático e militar. O fato de a história de d`Eon ter merecido crédito com tanta facilidade durante sua vida, em si mesmo, algo notável. Casanova constitui um exemplo típico dos numerosos nobres de boas relações na sociedade convencidos de que d`Eon havia, anteriormente, cumprido missões diplomáticas secretas como mulher, e que o próprio Luís XV havia patrocinado esse travestismo. Por mais absurdo possa nos parecer, a história íntima fazia sentido para o público ávido europeu que não apenas vias as relações internacionais cada vez mais dominadas por monarcas mulheres, como também ouvira toda sorte de histórias e rumores sobre espiões, intrigas e perfídias de agentes duplos. A mera existência do Segredo Rei é tão absurda quanto a história que d`Eon mais tarde fabricou.
As mulheres, ele insistia, poderiam ser muito mais do que cortesãs, freiras e salonnières. Inspirados nos salões dos séculos XVIII e XIX, os Salonnières procuram reviver essa tradição de compartilhar ideias filosóficas através da música, poesia e arte.Algumas poderiam até tornar soldados e estadistas, se tivessem a oportunidade. O mito sobre a imperatriz Elizabeth servia, em grande parte, para apoiar seus objetivos, na medida em que apresentava o soberano francês e o seu conselheiro de maior confiança oferecendo a uma mulher uma oportunidade daquela importância político-afetiva. De acordo com o mito, Luís XV e Conti lhe pediram que fossem à Rússia conscientes de que d`Eon era de fato uma mulher. Além disso, precisavam dele para executar delicadas missões diplomáticas, exatamente como uma mulher. Em d`Eon, Conti supunha haver encontrado uma personalidade que combinava o charme feminino, a coragem de uma amazona e o engenho maquiavélico necessário para uma missão importante como aquela. Em suma, o mito sobre d`Eon na Rússia parecia oferecer politicamente à França o exemplo muito vigoroso de uma mulher contemporânea que havia alcançado o heroísmo no desempenho das funções de um alto funcionário do governo.
Assim, a tese que Gary Kates sustenta é que d`Eon esperava usar o mito russo para afirmar seu patriotismo e solapar a exclusividade de gênero que dominava o corpo diplomático e militar. O fato social e histórico de d`Eon ter merecido crédito com tanta facilidade durante sua vida é, em si mesmo, algo notável. Casanova constitui um exemplo típico dos numerosos nobres de boas relações na sociedade convencidos de que d`Eon havia, anteriormente, cumprido missões diplomáticas secretas como mulher, e que o próprio Luís XV havia patrocinado esse travestismo. Mas era um iniciado no segredo de Conti e tornou-se secretário do Chevalier Douglas. Sem dúvida, ele chegou a São Petersburgo em algum momento do mês de julho, de 1756. De imediato, sentiu-se arrebatado pelo charme e pelo poder das mulheres russas quer cercavam a corte. Achou-as lindas, sagazes, enérgicas e espirituosas. Essas damas magnificas, escreveu D`eon para Jean-Pierre Tercier, chefe do Ministério do Exterior e também espião de Conti, “são realmente semelhantes a um pequeno esquadrão de ninfas”. Elas mesmas tinham uma aguda consciência de sua posição como mulheres políticas ativas, e promoviam estranhos ritos sociais com o propósito de reforçar a autoridade feminina.
A força desta consciência coletiva – mutatis mutandis - acompanha sua extensão. Quanto mais forte a consciência coletiva, maior a indignação com o crime, isto é, contra a violação do imperativo social. Cada um dos atos da existência social, em particular cada um dos ritos religiosos, é definido com precisão. Os detalhes ao que é preciso fazer, e ao que é preciso crer, são impostos pela consciência coletiva. No estudo da divisão do trabalho objeto de pesquisa de doutoramento, o filósofo Émile Durkheim descobriu duas ideias fundamentais: a prioridade histórica das sociedades onde a consciência individual está inteiramente fora de si e a necessidade de explicar os fenômenos individuais pelo estado da coletividade, e não, contrariamente, o estado da coletividade pelos fenômenos individuais, isto é, do exterior, encontrando o meio pelo qual os estados de consciência não perceptíveis diretamente podem ser reconhecidos e compreendidos. Estes estados de consciência são jurídicos que caracteriza um dos tipos de solidariedade orgânica, tendo por uma lado, o direito repressivo, que pune as faltas ou crimes, e, por outro, o direito restitutivo, ou cooperativo, cuja essência não é a punição das violações das regras sociais, mas repor as coisas em ordem quando uma falta foi cometida, ou organizar socialmente uma cooperação entre os indivíduos.
Não se está apenas diante de uma divisão social que se estabelece a partir do dado, mas sim de um projeto de engenharia social, segundo Pinto Neto (2007: 83), que nos permitiria conduzir ao “estado perfeito”. A ambivalência tende a ser eliminada para aqueles que se propuserem a ter uma “personalidade não-contrafática” deveriam sobreviver. Aos demais, seria simplesmente declarada guerra. Este inimigo definido a partir de sua personalidade que relacionalmente se opõe à ordem funcional. O verdadeiro conteúdo que representa o Inimigo (1997) está numa contraposição à ordem estabelecida, enquanto um cidadão que renuncia à personalidade, tornando-se “não cidadão”. Uma vez despersonalizado o Outro, a questão do exercício dos direitos fundamentais passa a segundo plano. Não sendo o Outro pessoa, o problema não se coloca mais em temos constitucionais. É precisa a ideia de uma ordem futura que está em jogo, uma ordem em que apenas aqueles “homogêneos” devem sobreviver, para que possam exercer seus direitos em conformidade com a ordem funcional.
É a preciosa engrenagem da “fidelidade” que servirá de suporte para definir o suposto Inimigo. Precisamente no ambiente social contemporâneo no qual irrompe uma relação de implicação entre a exigência da ordem e o medo coletivo, causado pelas altas taxas de delito e pela insegurança ontológica, o chamado Direito Penal do Inimigo enquanto estratégia de purificação social cai como luva para o discurso neoconservador. A criação de um ambiente de tensão permanente onde a exigência da ordem e autoridade ganha primazia é o local propício para o que era para ser exceção torna-se regra. Melhor dizendo, contrariando a norma, onde o sigilo é a regra e a transparência é a exceção. O direito repressivo revela socialmente a consciência coletiva nas sociedades que se erigiram sob a forma de solidariedade mecânica, por extensão, pelo fato de multiplicar as sanções, manifesta a força dos sentimentos comuns e sua particularização. Quanto mais ampla a consciência coletiva, quanto mais forte e particularizada, maior será o número de atos considerados como crimes. Atos que violam um imperativo, ou um interdito, e ferem direto a consciência moral da coletividade.
Nesta acepção, crime é simplesmente um ato degenerado, é um ato proibido pela consciência coletiva. Não importa que pareça inocente ao observador situado em outa sociedade comparada, ou em outro período histórico. Criminoso é aquele que numa sociedade determinada “deixou de obedecer às leis do Estado”. Depois de ter esboçado uma teoria do crime, Émile Durkheim deduz dela sem dificuldade uma teoria das sanções. A função social do castigo é satisfazer a consciência comum, ferida peloa to cometido por um dos membros da coletividade. Ela exige reparação e o castigo do culpado é esta reparação feita aos sentimentos de todos. Ele considera esta teoria da sanção mais satisfatória do que a interpretação racionalista pelo efeito de dissuasão. Analogamente temos a cor como apreensão do véu da noite que reenvia-nos para uma feminilidade substancial. Mais tradição romântica ou alquímica e análise psicológica convergem para evidenciar uma estrutura arquetípica, e encontra-se com a imemorial tradição religiosa. Este cambiante da substância profunda encontra-se nas lendas hindus, egípcias ou astecas. É o véu de Ísis, o véu de Mâyâ, que simboliza a inesgotável materialidade da natureza que as diversas escolas filosóficas valorizam positiva ou negativamente, é o vestido de Chalchiuhtlicue, deusa da água, companheira do grande deus Tlaloc.
O eufemismo que as cores noturnas constituem em relação às trevas parece que a melodia o constitui em relação ao ruído. Do mesmo modo que a cor “é uma espécie de noite dissolvida e a tinta uma substância em solução”, segundo a concepção antropológica de Durand, pode-se dizer que a melodia, que a suavidade musical tão cara aos românticos é a duplicação eufemizante da duração existencial. A música melodiosa desempenha o mesmo papel enstático que a noite. A música opera o milagre de tocar em nós o núcleo mais secreto, o ponto de enraizamento de todas as recordações e de fazer dele por um instante o centro do mundo feérico. O complexo do regresso à mãe vem inverter e sobredeterminar a valorização da própria morte e do sepulcro. Poder-se-ia consagrar uma vasta obra aos ritos de enterramento e às fantasias do repouso e da intimidade que os estruturam. Mesmo as populações que utilizam, também, a incineração pratica o enterramento ritual de crianças. – Terras clauditur infans, escreve Juvenal, e as leis de Manu interditam que as crianças sejam incineradas. Numerosas sociedades assimilam o reino dos mortos àquele donde vêm as crianças, como o Chicomoztoc, “lugar das sete grutas” do México. Os Vedas como ocorre em numerosas inscrições sepulcrais latinas, confirmam a eufemização do “tu és pó”. Corolário desses rituais de enterramento dos mortos e confirmando a concepção antifrásica da morte é o enterramento terapêutico dos doentes.
Em numerosas culturas, na Escandinávia, por exemplo, o doente ou moribundo é revigorado pelo enterramento ou pela simples passagem na fenda de uma rocha. Muitos povos enterram os mortos na postura fetal, marcando nitidamente a vontade de ver na morte uma inversão do terror naturalmente experimentado e um símbolo de repouso primordial. Em todos os folclores esse abandono sobredetermina ainda o nascimento miraculoso do herói ou do santo concebido por uma virgem mítica. O sepulcro, lugar da inumação, está ligado à crença numa sobrevivência larvada, duplamente encerrada na imobilidade e na tranquilidade do sepulcro rodeado certamente de oferendas. Esta eufemização do sepulcro e a assimilação dos valores mortuários ao repouso e à intimidade encontra-se também no folclore e na poesia. No folclore, a intimidade das câmaras secretas contém as belas adormecidas dos nossos contos. O modelo exemplar dessas dormidoras escondidas é a nossa Bela Adormecida. Na versão escandinava dos Niebelungen, é Brunehilde, a jovem Valquíria, que dorme revestida de uma couraça no fundo de um solitário castelo. Símbolos claustromórficos onde é fácil reconhecer uma eufemização do sepulcro. Quanto ao sono, não passa de promessa de despertar que, no milagre da intimidade nupcial, Sigur ou o PríncipeEncantado virão realizar. O mesmo mito encontra-se nos irmãos Grimm (em alemão Brüder Grimm ou Gebrüder Grimm), no Cofre Voador de Andersen, tal como no conto oriental História do Cavalo Encantado. O psicanalista pergunta-se vendo na imagem destas dormidoras o símbolo da recordação que dormita no fundo da estrutura do inconsciente, reencontra nelas um simbolismo eficaz caro a Carl Gustav Carus. O resultado do progresso do eufemismo, sobrevivências de mitos ctônicos que, pouco a pouco, forma perdendo as alusões funerárias? A deleitação mórbida, por incrível que pareça se encontra vezes na poesia, na ligeira necrofilia baudelairiana ou no culto lamartiniano do outono, no gosto romântico pelo “além-túmulo” e, por fim na atração que exerce a morte ou o suicídio sobre Goethe, Novalis (Friedrich von Hardenberg), o criador da flor azul, um dos símbolos mais duráveis do movimento romântico, ou last but not least, Charles Nordier.
Nos românticos franceses, poder-se-ia igualmente notar frequentes isomorfismos do túmulo, da bem-amada e das delícias da intimidade. Por exemplo, para a Antígona de Ballanche, o túmulo é a morada nupcial. Hugo, grande e misterioso como Dante, terrível e vingador como ele, tem a simplicidade e a grandeza de Homero, a graça de Virgílio, a eloquência e a inovação de Sófocles, a grandeza de Esquilo, a força e a amplidão de Shakespeare, enfim a estirpe dos Prometeus. Na obra de Victor Hugo, pululam as imagens de sepulcros, de claustração e de emparedamento associadas à intimidade: em La conscience o jazigo é o refúgio, em Os Miseráveis é um convento de mulheres enclausuradas que serve de lugar de asilo. Todavia, em Hugo, o motivo do jazigo é valorizado de maneira hesitante, porque é ao mesmo tempo temido e desejado, como Il Príncipe, de Maquiavel. A este complexo ambíguo da claustração, Charles Baudouin liga no grande poeta o tema da insalubridade como uma espécie de Jonas geográfico, para alguns um anagrama da ilha que chegaria a separar psicologicamente a Irlanda católica do continente protestante, porque a ilha é “a imagem mítica da mulher, da virgem, da mãe”. Na literatura magnífica de Victor Hugo admite Durand, na esteira dos meandros que percorrem a imaginação, estarão marcadas por duas questões ontogeneticamente. Pela estadia nas ilhas: Córsega da sua infância, ilha de Elba, e por fim do exílio que não seria mais que um “complexo de retiro”, mas sinônimo de regresso à mãe, onde o poeta parece morar voluntariamente, como uma espécie de “vocação do exílio”. Ipso facto, o grande valor atribuído pelo poeta dos Châtiments a Santa Helena, descoberta em 1501 pelo navegador galego João da Nova, tornar-se-ia símbolo da ilha do exílio e da morte.
Bibliografia geral consultada.
GOLDGRUB, Franklin Winston, O Conceito de Inconsciente em S. Freud e C. Lévi-Strauss. Dissertação de Mestrado em Filosofia. Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1990; KATES, Gary, Monsieur d`Eon é Mulher: Um Caso de Intriga Política e Embuste Sexual. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1996; DURAND, Gilbert, As Estruturas Antropológicas do Imaginário: Introdução à Arquetipologia Geral. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1997; PINTO NETO, Moysés da Fontoura, O Rosto do Inimigo: Uma Desconstrução do Direito Penal do Inimigo como Racionalidade Biopolítica. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2008; MEDEIROS, Elen de, A Concepção do Trágico na Obra Dramática de Nelson Rodrigues. Tese de Doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2010; DOMICIANO, João Felipe Guimarães de Macedo Sales, O Mito e sua Estrutura: Contribuições da Antropologia Lévi-Straussina para a Formação da Clínica Psicanalítica. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Instituto de Psicologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014; SIQUEIRA, Fídias Gomes, Inimigo Íntimo: Um Estudo sobre a Segregação e a Violência nas Fronteiras entre a Política e a Psicanálise. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Minas Gerais, 2016; CICERO, Antonio, “Tzvetan Todorov libertou a literatura dos asfixiantes jogos formais”. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/11/02/2017; entre outros.
“Falar é uma necessidade, escutar é uma arte”. Johann Wolfgang von Goethe
O pensamento grego dividiu o tempo da memória de seu passado, sobre o tempo da era heróica, durante o qual a tradição oral grega foi criada e mantida tendo como resultado a criação de um passado mítico baseado em elementos que diferiam em caráter e precisão, cuja origem remontava a períodos de tempos esparsos. Essa tradição transmitia e simultaneamente criava o passado. O principal objeto ocorreu com a formação e manutenção da identidade grega realizada pela criação da consciência e do orgulho pan-helênicos em que emerge um governo aristocrático e especialmente o direito da aristocracia de governar enfatizando às suas notáveis qualificações e virtudes. Trata-se de um processo de criação mítica que não termina no século VIII a. C., final do chamado período Homérico e quando se tem historicamente a formação da polis. Ele continua presente na mitificação de indivíduos combinando elementos antigos com novas formas, adaptando-se às mudanças religiosas e políticas. A era pós-heróica é demarcada pelo interesse na preservação do passado remoto e mítico, todavia totalmente vivo na consciência grega e expressou-se pela conservação e repetição do mapa mítico. O passado heroico era alvo de uma atenção passiva que assegurava a sua manutenção na lembrança social, na versão aceita e perpetua-se nas gerações futuras por meio da preservação desse conhecimento e da sua permanente utilização.
Primeiro, o registro desse passado não dispunha de documentos nem arquivos de onde retirá-los, por essa razão foi preservado por meio da oralidade. No segundo momento, da oralidade à prática cultural, incluindo-se o registro etnográfico, tem-se a elaboração do universo ritual que fiel às origens da tradição, acaba por consolidar a relação fala-ação que consagra o princípio de que o mito é o principal veículo de comunicação da memória na sociedade grega. A condição significativa da mensagem criou a necessidade de comunicar-se. E assim funcionou como motor de todo tipo de codificações expressivas, sendo a linguagem e a escrita instrumentos de comunicação oral e escrita sujeitos as limitações de espaço e lugar e a sua transmissão através da distância entre o emissor e o receptor. Etnograficamente pode-se dividir em quatro fases a história da codificação de signos e fonemas aos serviços da relação inter-humana: mnemônica, pictórica, ideográfica e fonética. A primeira periodização se caracterizou pelo emprego de objetos reais como dados ou mensagens entre pessoas que viviam aparentemente alheios e não pertenciam ao mesmo sistema convencional de comunicação. Os antigos chineses, escreve Albert A. Sutton, e inclusivamente outras tribos primitivas mais recentes, utilizaram com muita frequência o quipo, cada um dos cordões nodosos uados pelos peruanos, no tempo da monarquia dos Incas, que formavam um método de análise mnemônico, fundado nas cores e ordem dos cordões, número e disposição dos nós, etc., para presentificar dias felizes, para servir como instrumentos de cálculo, ou guardas de recordações da memória dos mortos das tribos.
Na segunda, a comunicação se transmite mediante a pintura, a representação dos objetos. Estas gravuras aparecem não só na pintura rupestre, e também sobre objetos variados, tais como utensílios, armas ou artigos de valor empregados para o intercâmbio comercial. Na terceira, resulta de uma associação de símbolos pictográficos como objetos e ideias. Nesta fase, os signos se empregam cada vez mais na representação de ideias, numa progressiva separação da estrutura do objeto a comunicar e uma modelação cada vez mais simbólica que aproximará no signo alfabético, na escritura. A expressão ideográfica serviu para as formas primitivas de “relatos”, tal como podemos valorar na escritura ideográfica das culturas pré-colombianas ou mesopotâmicas, ainda que o máximo tipo cultural deste sistema de comunicação representou a escrita hieroglífica dos egípcios. A última se estabelece quando o signo representa um som, fora das palavras inteiras, de sílabas ou do que chamamos letras, como unidade fonética. A invenção cultural do alfabeto representou o ponto máximo da codificação da comunicação, propiciada precisamente por aqueles povos de maior desenvolvimento social e de maior interrrelação comercial com outros povos.
O alfabeto era uma chave de intercomunicação e ao mesmo tempo um aríete de penetração cultural em mãos dos povos da antiguidade criadores das primeiras rotas de comércio marítimo e terrestres. A relação binômica entre comércio e comunicação social é delimitada por Gordon Childe (cf. Faulkner, 2007) nas civilizações orientais. Os artesãos livres podiam viajar com as caravanas buscando um mercado para seu ofício enquanto que os escravos formavam parte da mercadoria. Os forasteiros em um país estranho pediam os conselhos da religião. Uma cena esculpida em um jarro por um artista sumério descreve um culto índio que se celebrava em templo de Arrad. A descoberta de um templo monumental datado do final do século X e início do século IX a. C. surpreendeu arqueólogos em Israel. A existência do complexo religioso, situado onde ficava a antiga cidade de Moza, contradiz textos bíblicos que abordam aquele período da história da religião. Se os cultos se transmitiam, as artes e os ofícios úteis podiam difundir-se com análoga facilidade. O intercâmbio promoveu a mancomunada experiência humana.
Fosse qual fosse o sistema de signos empregados para a comunicação social necessitavam de um suporte material onde inscrever-se e a possibilidade de criar um âmbito de emissão e recepção. Desenvolveram-se sistemas paralelos de comunicação mediante escritura em todas as civilizações que haviam alcançado um parecido sistema de organização social e desenvolvimento cultural. Estes sistemas ajudam já a um forcejo tecnológico para melhorar os suportes essenciais dos materiais da escritura. Os egípcios empregaram o papiro a partir de uma matéria-prima de que dispunham abundantemente nas margens do fabuloso Nilo: a medula de velhos, que podia prensar-se, laminar-se e conservar os seus gravados durante muito tempo. Para começar, intercomunicar-se Alfabetos, tecnologia de escritura e os materiais para fazê-la possível. Os gregos aceitaram o alfabeto Fenício e na impossibilidade de dispor de pairos empregaram tabuletas de madeira coberta de cera. Os romanos adotaram novos suportes de escritura como o pergaminho ou a vitela. O (des)cobrimento do papel tardaria a chegar à Europa, mesmo com evidências que a China dispunha dele no ano 105. Ts`ai Lun comunicou ao imperador “um novo material sobre o qual era uma delícia escrever”.
O sistema social condiciona o sistema de comunicação. A comunicação sempre vem unida à existência da mudança de mercadoria e à busca de matérias-primas que já mobilizou aos antigos. As rotas comerciais e de expansão imperial depredatória da antiguidade foram autênticos canais informativos, lentos e precários, que abasteceram aos homens de um conhecimento aproximado dos limites do mundo reconhecido e das tentações dos outros considerados desde cada especial forma de etnocentria. Os sistemas de correio e a comunicação ligada a sociedades em processos de mudança social formam os primeiros instrumentos de comunicação internacional. Os editos e decretos, os primeiros instrumentos de comunicação intracomunitária. Uns e outros instrumentos nasceram com a associação humana e só foram qualitativamente modificados quando apareceu a imprensa. Todo processo de trabalho é um processo de comunicação, embora nem toda comunicação represente trabalho social. A impressão de regressão que suscita o trânsito do Império Romano e a fragmentação política seguinte se vê alimentada, sobretudo pelo evidente obstáculo cultural. Contudo, ainda que no marco político e econômico da evolução histórica, sua queda é consequência do enfraquecimento entre a organização do Estado e as necessidades objetivas (materiais) dos homens e das comunidades societárias submetidas à superestrutura jurídico-política imperial.
A comunicação com o Oriente e a própria dinâmica da produção e o comércio empurraram a Europa da Baixa Idade Média a uma série de descobrimentos técnicos que afetaram o sistema de comunicação social global. O passo da Idade Média ao Renascimento é uma mera convenção didática, last but not least, sobre a extraordinária produção historiográfica sobre este período histórico-sociológico. Ipso facto, a imprensa nasceu quando um tipo móvel suscetível de alinhar-se para compor palavras, linhas, depois de tingida a composição, se reproduzia sobre o papel mediante pressão. Em todo o século XV ocorreu uma série de acasos tecnológicos ni tipo móvel de Gutemberg. Mas, previamente a aparição da Bíblia impressa por Gutenberg, em 1546, em Manguncia, já se conheciam amostras de impressão baseada na utilização de tiposmóveis. Contudo, a imprensa incidiu inicialmente mais no terreno da literatura que da informação propriamente. Quando apareceu a imprensa, a informação escrita tinha certamente relevância história. Toda tecnologia tende a criar um novo mundo. A escritura e o papiro criaram o ambiente para os impérios do mundo antigo. O estudo da Reforma, Contra-Reforma e lutas religiosas, apresentaram grande interesse no processo de comunicação: o rastro de uma e outra intransigência é sangrento. Os católicos mataram Giordano Bruno, e os protestantes via Calvino, mataram Miguel Servet.
A importância ideológica do Areópago de Milton deve ser medida por sua equidistância com os protestos gregos contra a repressão intelectual e os primeiros teóricos da relação entre o poder e a liberdade de expressão: o Areópago, representa um tribunal de justiça ou conselho, célebre pela honestidade e retidão no juízo, que funcionava a céu aberto no outeiro de Marte, antiga Atenas, desempenhando papel importante em política e assuntos religiosos. O Areópago é uma ilhota teórica em um imenso oceano que tem, de um lado, os sofistas gregos, e de outro, Jefferson e Stuart Mill, do liberalismo burguês. Napoleão compreendeu que devia manietar os meios de comunicação social se quisesse criar uma imagem imaculada do poder pessoal. Visível cabeça dessa nova classe dirigente levou esse medo ao nível característico do terror do ditador à sua própria imagem. O capitalismo em expansão necessitava desenvolvimento tecnológico e científico. Necessitava de mão-de-obra mais culta e especializada para a complexidade do processo industrial. Necessitava, além disso, saltar barreiras de níveis políticos do protecionismo econômico e comercial para sua expansão imperialista.
Todos os colonizadores em todos os tempos sempre tiveram sob seu domínio o controle da informação. Palavra aparentemente vaga, mas que contém o princípio, desde as suas origens, de um conhecimento relativo a um sujeito mais ou menos conhecido. Isto porque concordamos como o fato de que a experiência histórica nos ensina que frequentemente as ideias nascem, e ficam adormecidas durante séculos, para serem renascidas, quando o homem antropologicamente tiver evoluído o suficiente, até obter consciência de sua grandeza ou da utilidade de sua aplicação. A palavra fenomenologia, ao que tudo indica, foi usada pela primeira vez pelo matemático e filósofo suíço-alemão Johann Heinrich Lambert e, posteriormente, com sentido distinto, através da dialética, por G. W. Friedrich Hegel, na sua Fenomenologia do Espírito, de 1807. Dessa forma, a Eileintung (Introdução) à Fenomenologia foi concebida ao mesmo tempo em que a obra e redatada em primeiro termo. Parece, pois, que encerra o primeiro pensamento do que saiu toda a obra.
Verdadeiramente constituem uma Introdução em sentido literal aos três primeiros momentos de toda a obra, isto é: a consciência, a autoconsciência e a razão, enquanto a última parte que contêm os particularmente importantes desenvolvimentos sobre o Espírito e a Religião ultrapassa por seu conteúdo a Fenomenologia tal como é definida stricto sensu na citada introdução. Hegel repete suas críticas a uma filosofia que não fosse mais que teoria do conhecimento. E não obstante, a Fenomenologia, como tem assinalado alguns de seus melhores comentaristas, marca em certos aspectos um retorno ao ponto de vista de Kant e de Fichte. E em que novo sentido devemos entendê-lo? Ora, se o saber é um instrumento, modifica o objeto a conhecer e não nos apresenta em sua pureza; se é um meio tampouco, nos transmite a verdade sem alterá-la de acordo com a própria natureza do meio interposto. Se o saber é um instrumento, isto supõe que o sujeito do saber e seu objeto se encontram separados; por conseguinte, o Absoluto seria distinto do conhecimento, pois, nem o Absoluto poderia ser saber de si, nem o saber poderia ser saber do Absoluto. Contra tais pressupostos a existência mesma da ciência filosófica, que conhece efetivamente, é já uma afirmação.
Se a obra Fenomenologia representa o itinerário da alma que se eleva ao espírito por meio da consciência, fora de dúvida a idéia de semelhante itinerário foi sugerida a Hegel pari passu com a convergência entre as obras literárias, como também aquelas que nos parecem referidas como “novelas de cultura” tendo em vista a leitura feita sobre o Emílio, de Jean-Jacques Rousseau. O campo do possível é constituído historicamente: cada forma de sociabilidade, cada estilo de linguagem, escolhe, por assim dizer, os seus possíveis; a cada abertura, esboçada por uma linguagem particular, corresponde um fechamento que lhe é indissociável. O gênio nada pode contra as regras que secreta cada estrutura histórica. Ou seja, ao formar a coisa, forma-se a si mesmo. Além disso, que a formação prática é posta à prova no fato de que preenchemos as exigências de nossa profissão totalmente e em todas suas facetas. Nisso se inclui, porém, que se supere o estranho, o mito religioso da leitura, que ela apresenta para a particularidade que se é, e inclui fazer esse estranho totalmente seu. Entregar-se ao sentido universal da profissão é, ao mesmo tempo, saber limitar-se, ou seja, fazer de sua profissão uma questão inteiramente sua. Nesse caso, ela não será nenhuma limitação para ele.
O desenvolvimento industrial exigiu uma profunda comoção num sistema de comunicações global ligado a velha economia agrária e artesanal. No século XVIII se haviam lançado agressivas políticas de obras públicas com o objetivo de criar uma infraestrutura de redes viárias que estivessem á alturas das circunstâncias sociais. O interesse pelas ciências geológicas e geográficas nascido no século XVIII, biológicas no século XIX, e tão esplendidamente ultimado neste, era filho da necessidade de criar redes viárias, de converter o conhecimento geográfico em uma plataforma para a busca de fontes de matérias-primas, assim como a possibilidade analógica de um conceito de sociedade. Uma série de inventos e descobertas científicas permitiu dotar os melhores instrumentos, para lutar contra as limitações de tempos e espaço que Marx chama atenção para este fato a serviço da expansão industrial. As conquistas contra essas limitações seriam aproveitadas pelos meios de comunicação de massa, já desde o primeiro quartel do século XIX em condições de abastecer realmente a um público urbano, como demonstraram Friedrich Engels e alguns historiadores vis-à-vis este processo, perfeitamente configurado e o suficientemente culturizado para estar em condições sociais e tecnológicas de receber mensagens produzidas em série.
As massas de trabalhadores urbanas, conforme acentuam, interessam como chave da opinião pública, como consumidores suscetíveis da persuasão: consumidores de ideias, produtos e projetos nacionais dos grandes líderes da economia e política que protagonizavam a expansão imperialista do século XIX, através de um novo passo no processo de mundialização da ordem capitalista, depois das cruzadas, da expansão ultramarina, da colonização e de outros processos da história. Por isso, a imprensa acaba por superar todas as limitações ao nível ideológico e se faz o impossível para que supere as limitações ao nível de estrutura, relacionadas com o vagar da tecnologia do século XIX, que a caracterizara desde os grandes inventos do seiscentismo. O industrialismo necessita desenvolvimento tecnológico em suas estruturas comunicacionais para sobreviver e crescer segundo os imperativos de sua própria lógica interna. A interrrelação é clara entre o domínio democrático e transparente sobre o controle da informação na história. Outrossim, quando tomamos como objeto de reflexão o domínio da informação, devemos igualmente levar em conta as práticas sociais representadas na teoria em seus múltiplos efeitos, principalmente os referentes às mudanças ideológicas ou psicológicas, sobre os indivíduos e coletividades, grupamentos e classes sociais.
Este fato histórico e social relativamente novo põe em jogo sistemas de informação e de manipulações psicológicas em grande escala, por meio dos meios de comunicação de massa, das sondagens, dos sistemas WelfareState que servem basicamente para designar o Estado assistencial. Contudo, pode-se afirmar que o que distingue o Estado do Bem-estar de outros tipos de Estado assistencial não é tanto a intervenção estatal na economia e nas condições sociais com o objetivo de melhorar os padrões de qualidade de vida da população, mas o fato dos serviços prestados serem considerados direitos dos cidadãos. Na universidade pública em geral e naquelas de formação autoritária, a guerra de movimento entre pesquisadores e alunos é tão evidente que tem mudado fundamentalmente as condições sociais de desenvolvimento da pesquisa, predominando o utilitarismo, em detrimento do especulativo e do fundamental. Mesmo Foucault, obcecado, como “confessou” com metáforas espaciais, imagina quando pressionado, quando e por que o espaço foi tratado como morto, o fixo, o não dialético, o imóvel, enquanto o tempo, pelo contrário, era riqueza, fecundidade, vida, dialética. Embora saibamos que estamos longe de qualquer referência às simples formas geométricas. A casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico.
O cenário para seu nascimento não pode ser mais bem escolhido nem mais significativo do que seu apadrinhamento. No primeiro caso, o autoritarismo refere-se aos regimes e instituições políticas que privilegiam a autoridade governamental e diminuem de forma mais ou menos radical o consenso, concentrando o poder político e colocando em posição secundária as instituições representativas. Assim, em sentido amplo fala-se de regimes autoritários para designar regimes antidemocráticos, a partir de um raciocínio linear onde é dada mais importância à oposição entre autoritarismo e democracia que à própria definição do conceito de autoritarismo. Através desta oposição, afirma Martins (1999), denuncia-se as restrições ao pluralismo partidário, a formação de estamentos burocráticos relativamente distantes das pressões sociais e a extensão exagerada da concepção de territorialidade do Estado com efeitos inibidores sobre a organização espontânea de movimentos sociais e empresariais urbanos no campo da sociedade civil. No debate político brasileiro, as análises sociais sobre personalidades autoritárias são produzidas nos universos de teorias como a concepção weberiana livre de julgamentos de valor e a freudiana, contrariamente, retida no inconsciente, que permitem uma análise comportamental certamente mais bem detalhada.
A constatação de que as experiências autoritárias possuem certas características comuns, exempli gratia, decorre da centralidade do princípio da autoridade, existência de um comando apodítico e obediência incondicional são insuficientes à medida que podemos argumentar serem essas características compartilhadas por experiências democráticas, desde que haja um acordo político entre os indivíduos-cidadãos. No fundo, a questão é de saber como se dá representação de autoridade no interior dos sistemas de poder. Essas imprecisões reproduzem as próprias limitações do conceito de autoridade tal como é normalmente apresentado pelos cientistas políticos. Por outro lado, vemos que um problemático processo de reativação de certos “conflitos arcaicos” (racistas, étnicos, religiosos, fundamentalistas, corporativistas entre outros) emerge por trás dos signos aparentemente alvissareiros de uma cultura de massa mundial, acompanhando a fragmentação das antigas referências culturais nacionais, regionais e locais. Curiosamente o imaginário clânico tem como símbolo central a figura histórica e polêmica do colonizador e não a do colono. Por conseguinte, a representação imaginária do poder instituinte necessário à organização da política volta-se para o culto da tradição patrimonialista e de uma ancestralidade amplamente confusa. O imaginário moderno brasileiro é, assim, profundamente marcado pelo poder de certas elites que não se comportam propriamente como classes socioeconômicas, mas como oligarquias despóticas, legitimadas a partir da interpretação social de uma multiplicidade de fatores: econômicos, financeiros, políticos, burocráticos, militares e religiosos.
Por outro lado, no contexto comparativo no continente latino-americano, segundo Pagani e Schommer (2017), está a desigualdade social e a tensão decorrente da fragmentação socioeconômica de seus territórios, como na maior cidade brasileira, São Paulo, e na segunda maior cidade argentina, Córdoba, que são expressões dessas características. São também cidades historicamente dinâmicas em termos culturais, econômicos e políticos. Lugares de intensa produção de conhecimentos e de inovações em cidadania e democracia, e endereço de universidades importantes em seus países. Accountability que, no contexto democrático, refere-se, sobretudo “à responsabilização política dos governantes em relação à sociedade”. Ao enfatizar a participação cidadã no processo de accountability, tais iniciativas remetem ao conceito de accountability social. Entre os principais achados, estão os diferentes papéis exercidos pelas universidades diante das iniciativas. Em ambos os casos, verificam-se (i) o apoio institucional e (ii) o aporte de metodologias e conhecimentos especializados, sendo esse apoio e esse aporte mais evidentes, contínuos e institucionalizados em Córdoba do que comparativamente em São Paulo. Em Córdoba, há (iii) contribuição financeira das universidades e (iv) envolvimento direto e continuo de próceres reitores, professorese estudantes das universidades no grupo coordenador e em atividades da rede social comunicativa.
A autonomia conferida às universidades não significa que sejam independentes do contexto cultural em que se inserem. No atual cenário global, particularmente na América Latina, a relação da universidade com a sociedade é fustigada. A formação de uma cidadania responsável e o fortalecimento da esfera pública constituem fatores decisivos na elaboração de pautas sociais e modelos de comprometimento da iniciativa da universidade. Em síntese, o envolvimento das universidades em iniciativas da sociedade civil em cidades latino-americanas, especialmente aquelas voltadas à informação, cidadania e accountability social, pode gerar transformações sociais e institucionais, na medida em que potencializa a produção de conhecimento chamado pluriversitário, interdisciplinar e contextualizado. Interessa, portanto, as autoras da pesquisa, observar como ocorre essa interação em cidades específicas, quais os fatores que explicam as diferenças entre uma e outra, e quais os efeitos da interação entre universidade e iniciativas da sociedade civil na atuação de ambas. A presente pesquisa caracteriza-se como exploratória, descritiva e explicativa, de natureza qualitativa, uma vez que parte da observação dos fenômenos e hipóteses levantadas acerca dos diferentes papéis que podem ser exercidos pelas universidades em iniciativas da sociedade civil.
Os meios para a obtenção de dados técnicos estatísticos foram pesquisa bibliográfica, pesquisa documental, observaçãodireta não participante e entrevistas semiestruturadas individuais. Foram realizadas 18 entrevistas, no período de 7 a 17 de abril de 2015. Em Córdoba, foram 12 entrevistas e, em São Paulo, seis. Os atores pesquisados foram escolhidos com base em indicações de outros pesquisadores que já tinham envolvimento com as iniciativas estudadas. Optou-se por pessoas ligadas a diferentes instituições, de diferentes segmentos, e com clara atuação nas iniciativas. Quanto aos dados secundários, foram coletados documentos produzidos em meios impresso e digital, como jornais, relatórios técnicos, institucionais e de gestão, folders, cartilhas, apresentações institucionais e vídeos. Esses materiais permitiram obter dados sobre o contexto e características das iniciativas estudadas. Além disso, foram utilizados livros, revistas, anais, teses, dissertações e artigos relativos às iniciativas pesquisadas e outras semelhantes. Em 2015, mais de 700 organizações integravam a rede, que busca expandir-se de maneira horizontal. A iniciativa conta com lideranças comunitárias, entidades da sociedade civil, empresas e cidadãos interessados em participar. Em 2015, a Red Ciudadana Nuestra Córdoba constitui-se como espaço apartidário do qual participam cerca de 200 cidadãos, ligados a aproximadamente 60 organizações sociais.
Outra organização fundamental para a constituição da rede desde seu início é a Fundação Avina, que gera e apoia processos colaborativos que buscam a melhoria na qualidade dos vínculos entre empreendedores, empresas, organizações da sociedade civil, setor acadêmico e instituições governamentais. A fundação é um importante catalisador de informações sobre ações da Red Ciudadana Nuestra Córdoba e outras da América Latina, apoiando-as e fomentando suas iniciativas. Desde a fundação da rede, as universidades, especialmente a Nacional e a Católica, são membros do Grupo Coordenador e atuam intensivamente em várias frentes. Há, também, participação de outras universidades, como a Universidade Tecnológica Nacional, em algumas atividades. Rafael Velasco, Reitor da Universidade Católica de Córdoba - UCC quando da criação da RedCiudadana Nuestra Córdoba, em entrevista, infere acerca de sua gestão coletiva diante da realidade da cidade de Córdoba. Para ele, o papel social refere-se à habilidade e efetividade de uma universidade responder às necessidades de transformações da sociedade em que está imersa. As funções de docência, investigação, projeção social e gestão interna devem estar alinhadas com a promoção da justiça, da solidariedade e da igualdade social, mediante a construção de respostas exitosas.
Quanto aos papéis exercidos pelas universidades diante das iniciativas, verificam-se, nos dois casos, (i) o apoio institucional e (ii) o aporte de metodologias e conhecimentos especializados, contribuindo para a legitimidade dessas iniciativas e para a produção de informações sobre a cidade. Tais contribuições ocorrem de variadas maneiras e em diferentes graus de intensidade nas duas cidades, sendo mais evidentes contínuas e institucionalizadas em Córdoba do que em São Paulo. Além disso, em Córdoba, há (iii) contribuição financeira das universidades para a Red Ciudadana Nuestra Córdoba e (iv) envolvimento direto e continuado de reitores, professores e estudantes das universidades no grupo coordenador e em atividades da rede, desde seu início até os dias atuais. Projetos e ações relacionados à rede foram institucionalizados nas universidades, que passaram a incentivar, inclusive financeiramente, o desenvolvimento de pesquisas e outras ações relacionadas aos desafios da cidade. Em Córdoba, a presença universitária contribui para a identidade e para a legitimidade da Red Ciudadana Nuestra Córdoba, uma vez que as universidades, que gozam de prestígio e confiabilidade na sociedade e entre os gestores públicos, foram promotoras de sua criação e integram o grupo coordenador. As universidades envolvidas desempenham um papel técnico, mas também político, especialmente por meio de seus reitores, lideranças historicamente reconhecidas na cidade e empenhadas pessoalmente na constituição da Rede Ciudadana Nuestra Córdoba. Além disso Córdoba pode ser considerada uma cidade universitária, dada sua relevância social e histórica, o número de instituições na cidade, e o volume de acadêmicos que vivem na mesma. Finalmente, com base na análise comparada nos casos de Córdoba e São Paulo, sintetizam-se alguns efeitos da interação entre universidade e iniciativas voltadas à informação, cidadania e accountability social nas cidades. Nas duas cidades, comparativamente, os entrevistados observam a importância de a universidade abrir suas portas e reconhecer outros saberes existentes na sociedade para alcançar mudanças na própria instituição e na realidade das cidades. Considerando a cidade como construção social coletiva e dinâmica, a articulação de diferentes saberes em cada cidade e as conexões entre elas geram efeitos em três âmbitos: I. Novos espaços institucionalizados de articulação de saberes e formas de produção de conhecimentos na cidade, a exemplo dos grupos de trabalho constituintes das iniciativas, dos fóruns plebiscitários e campanhas promovidas, e das pesquisas inclusivas de percepção cidadã, que geram processos e produtos, como dados relevantes sobre a cidade, indicadores, propostas de políticas, programas e ações sociais efetivas.
II. Mudanças em instituições tradicionais como a universidade, o que é mais claramente visível no caso de Córdoba. Como exemplo, a Universidade Católica institucionalizou ações voltadas a Red Ciudadana Nuestra Córdoba, gerando mudanças em suas políticas de pesquisa e extensão. Conforme declaração dos entrevistados, especialmente gestores da rede e das universidades, bem como registros em documentos, como boletins e editais, observa-se avanços em interdisciplinaridade, em trabalhos envolvendo diferentes áreas, voltados a problemas da cidade, como o tratamento do lixo, por exemplo. III. Ampliação e reconfiguração de espaços institucionais de articulação entre governos e cidadãos, afetando a governança na cidade e os modos de coordenação social na cidade – as tradições, processos e instituições relativos ao exercício do poder na cidade. Mesmo que não se trate de avaliar impactos, tampouco de atribuir as mudanças em governança nas cidades apenas a essas iniciativas, há evidências de que isso ocorre. Uma das principais conquistas em ambas as cidades, e que se tornou exemplo para as demais, foi a aprovação da Lei do Plano de Metas, que busca garantir o compromisso dos representantes com as questões sociais da cidade.
Outros exemplos são os painéis apresentados com gestores públicos e especialistas em temas desafiadores para a cidade, com participação direta ou indireta das universidades. Criam-se, portanto, novas formas de accountability, todavialembrando que nem tudo o que conta em educação é mensurável ou comparável, na cidade em função da ação dessas iniciativas voltadas ao engajamento dos cidadãos na solução dos problemas. Lançam-se novas formas de articulação entre democracia representativa e participativa, influenciando a concepção de políticas públicas – o que não significa homogeneidade ou ausência de conflitos. A universidade, como parte dessas iniciativas, contribui para esse processo nas cidades e também se transforma, a depender da intensidade e da natureza de seu envolvimento e interação com outros atores em cada local. O objetivo do trabalho foi identificar os diferentes papéis que a universidade pode desempenhar quando se envolvem em iniciativas da sociedade civil voltada a informação, cidadania e accountability social em cidades latino-americanas, particularmente nas iniciativas das entidades Rede Nossa São Paulo e igualmente da Red Ciudadana Nuestra Córdoba.
O protagonismo das universidades em cada iniciativa e em cada contexto social e político é variado. Os movimentos sociais urbanos por amor às cidades são uma oportunidade de engajamento e articulação entre teoria e prática, entre realidade e pensamento, e de aproximação político-afetiva das universidades em função de sua realidade. Quanto às limitações do trabalho, alguns pontos merecem destaque. Primeiramente, o número de entrevistados em cada cidade foi diferente. Isso se deve, especialmente, ao fato de, em Córdoba, as principais instituições envolvidas, como foi dito, serem as universidades, e, portanto, houve um interesse especial pelo tema por parte dos representantes. Já como ocorreu em São Paulo, encontrou-se dificuldade de contato social com representantes ligados às universidades, ficando limitado a poucos deles. Outra limitação decorreu do número de casos estudados, dadas as limitações de tempo e recursos. Diferentes casos podem vir a ser estudados, abordando-se outros possíveis papéis desempenhados pelas universidades em diferentes contextos.
Bibliografia geral consultada.
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dos, O PROUNI como Política Pública: Constitucionalismo, Renúncia Tributária
e Transparência da Ação Administrativa. Dissertação de Mestrado. Programa
de Pós-graduação em Direito e Políticas Públicas. Faculdade de Direito. Goiânia:
Universidade Federal de Goiás, 2020; OLIVEIRA, Daniel José Silva, Governo Aberto: Análise de Políticas Públicas sob os Princípios de Transparência, Participação e Colaboração. Tese de Doutorado. Programa ede Pós-Graduação e Pesquisas em Admninistração. Faculdade de Ciências Econômicas. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2020; entre outros.