segunda-feira, 20 de abril de 2020

Arte Cinematográfica - Identificando o Arquétipo do Inimigo Íntimo


                                                           Só o inimigo não trai nunca”. Nelson Rodrigues



               Em filosofia, transcendência é um termo que pode conduzir a três diferentes relações, todos elas originárias da raiz latina que tem como significado essencial  “ascender” ou “indo além”, segundo interpretação oriunda da filosofia antiga; outro, da filosofia medieval, e o último, ligado à filosofia moderna. Esquemas e arquétipos de transcendência exigem um procedimento dialético, entendendo com esse argumento, a intenção polêmica, mas necessária, que os põe em confronto com os seus contrários. A ascensão é imaginada contra a queda e a luz contra as trevas. O dinamismo de tais imagens prova facilmente um belicoso dogmatismo da representação. É do que se trata. A luz tende para se tornar raio ou gládio e a ascensão para espezinhar um adversário vencido. O tema do herói combatente encontra-se nos contos populares do Príncipe Encantado que afasta e frustra os malefícios, liberta, encobre, descobre e acorda. Príncipe encantado que aparece também na lenda nórdica de Sigur e Brunehilde, num conto tártaro, ou naquele da Bela Adormecida. Todas ilustram este tema velho como os argonautas. Todos os membros dessas sociedades são, antes de tudo, os guerreiros que  possuem amplos direitos reais sexuais, praticam severos maus-tratos iniciáticos que constituem talvez um equivalente litúrgico dos feitos eternos do herói primordial.
              Metodologicamente, seguindo “as pegadas” de Gilbert Durand (1997), queremos dizer com isso, que as imagens arquetípicas, ou simbólicas, subentendem que já não bastam a si próprias em seu simbolismo intrínseco, mas por um dinamismo extrínseco, ligando-se umas às outras sob a forma de narrativa, segundo ele “obcecada pelos estilos da história e pelas estruturas dramáticas que chama mito”. Sua conceituação é ampla, fazendo entrar nesse vocábulo, tudo o que está balizado por um lado, pelo estatismo dos símbolos, e por outro, pelas verificações arqueológicas. Assim, o termo mito “engloba para nós quer o mito propriamente dito, ou seja, a narrativa que legitima esta ou aquela fé religiosa ou mágica, a lenda e as suas limitações explicativas, o conto popular ou a narrativa romanesca”. Seu ponto de partida refere-se ao método de análise estabelecido por Claude Lévi-Strauss quanto á investigação mitológica, levando-o à precisão da noção de estrutura. Não se trata de negar os resultados a que chegou comparando as equações formais induzidas do sincronismo mítico e que lhe permitem integrar fatos tão díspares como as relações de subordinação dos galináceos a outros animais, comparativamente como ocorre com “a troca generalizada nos sistemas de parentesco” ambientada na dualidade de natureza de certas divindades.



            Somente à luz da consciência e da razão pode o homem reconhecer. Esse ato de cognição e de discriminação consciente, divide o mundo social e político tendo em vista que a experiência do mundo só é possível por meio dos opostos. Mais uma vez queremos enfatizar que o simbolismo dos mitos, que nos ajuda a compreender os estágios humanos correspondentes não é filosofia ou mera especulação de notícia. Também a obra de arte em sua reprodutibilidade técnica, assim como o sonho, em toda a sua significação surge, de igual maneira, das profundezas da psique e revela o seu conteúdo de sentido ao intérprete perspicaz, embora muitas vezes esse sentido não seja abstraído de modo espontâneo pelo artista, pela arte em geral ou sonhador. De forma semelhante, a expressão mítica é uma demonstração ingênua do que ocorre nos seus processos psíquicos, embora a própria humanidade experimente e transmita o mito como algo totalmente diferente. Sabemos que, com toda probabilidade, um ritual, isto é, alguma cerimônia ou curso de ação social, sempre procede como relato, e é óbvio que o ato vem antes do conhecimento  e ação inconsciente antes do conteúdo enunciado. Por conseguinte, as nossas formulações são abstratos sumários e não afirmações que o chamado homem primitivo pudesse ter feito de maneira consciente acerca de si mesmo. Enquanto não nos tivermos familiarizado com as imagens dominantes que dirigem o curso do desenvolvimento humano, não seremos capazes de compreender as variantes e vicinais que cobrem por toda parte em diversos níveis o traçado principal desse curso.       
Ipso facto, qualquer esforço mental de tradução do mito, como qualquer esforço para passar do semântico ao semiológico, é um raciocínio de empobrecimento. O que há de universal no imaginário não é a forma desafetada, é sim o fundo, em que se deve voltar à noção de estrutura utilizada e que não deve ser confundida com uma simples forma como Lévi-Strauss parece ter a tendência a fazer. Não é a forma que explica o fundo e a infraestrutura, afirma Durand (1997), mas muito pelo contrário é o dinamismo qualitativo da estrutura que faz relacionar e compreender a forma. As estruturas que são estabelecidas são puramente pragmáticas, e não respondem de modo nenhum a uma necessidade lógica. Porque a estrutura antropológica só tem com a estrutura fonológica um parentesco de nome, por isso valeria mais escrever o termo forma para a fonologia e estrutura para todo o sistema também instaurativo. Uma estrutura é, uma forma, mas que implica significações puramente qualitativas para além das coisas que se podem medir, ou mesmo simplesmente resolver numa equação formal, porque, para parafrasear Lévi-Strauss, há, no domínio dos símbolos, muitas coisas que se poderiam formular matematicamente, “mas não é de modo nenhum certo que sejam as mais importantes”.
               Dado que um mito não se traduz, que teria ele a ver, no seu fundo, com uma máquina de traduzir? Porque uma “máquina de traduzir” não será nunca uma máquina de criar mitos. Para que haja símbolo é preciso que exista uma dominante vital. Por isso, o que nos parece caracterizar uma estrutura é precisamente que ela não pode formalizar totalmente e descolar do trajeto antropológico concreto que a fez crescer. Uma estrutura não é uma forma vazia, ela tem sempre o lastro, para além dos signos e das sintaxes, de um peso semântico inalienável. Está nisso mais próximo do sintoma ou da síndrome, que traz nele a doença, que da compreensão da função. E se a função tem alguma utilidade nos sistemas formais da linguística e da economia, e em geral todos os sistemas de trocas, essa utilidade esbate-se quando se quer aplicar a matemática, mesmo que “nova”, mesmo que chamada metaforicamente qualitativa, mesmo que para lhes legitimar o emprego se tivesse que apelar muito curiosamente para a aritmologia, a um conteúdo de uso e de que as religiões formais não constituem mais do que a epiderme superficial. A repetição tem uma função que é a de tornar manifesta a estrutura do mito. 



  
Historicamente não só as grandes ordens medievais de cavalaria, e em particular a famosa Pauperes commilitones Christi Templique Salomonici, reconhecida como Cavaleiros Templários, Ordem do Templo (em francês: Ordre du Temple ou Templiers) ou simplesmente como Templários, foi uma ordem militar de Cavalaria. Ordem dos Templários com seus ascetismos simultaneamente militar e “homossexual” (cf. Kates, 1996), na falta de melhor expressão, nos parece ser a sequela das primitivas “sociedades de homens”, como também os círculos de estudantes da Alemanha bismarckiana, com seu ritual belicoso, e os maus-tratos praticados em qualquer grupo masculino fechado nos aparecem como herdeiros dos longínquos costumes dos berserkir. Por fim, podemos levar ainda mais longe esta filiação do herói solar e afirmarmos com Georges Gusdorf que “o próprio romance policial, que constitui um dos aspectos mais singulares do folclore, prolonga sob a aparência dos romances de capa e espada que foi mais longinquamente a dos romances de cavalaria”. Dom Quixote não sai da moda nunca, dado que faz\ parte do psiquismo eterno e Sherlock Holmes torna-se assim o sucessor direto de S. Jorge, do mesmo modo que Maigret recolhe a herança de S. Hilário. A espada é o arquétipo para o qual parece orientar-se a significação profunda das armas e, neste exemplo, como se ligam inextricavelmente num sobredeterminismo as motivações psicológicas e as intimações tecnológicas. Georges Dumézil, acumulando um número de observações etnográficas ou documentais, tenta mostrar que as funções do ligador-mágico comparativamente são irredutíveis às do guerreiro-cortador de nós.
O puro herói, o herói exemplar, continua a ser o “matador de dragões”. Apesar desse compromisso do gládio com o fio, mesmo que enfraquecido em metáfora jurídica, permanece essencialmente o instrumentos das divindades da morte e do tempo, das fiandeiras, dos demônios como Yama e Nirrti. Todo o apelo ao soberano celeste faz-se contra o que prende todo o batismo ou iluminação consiste para o homem em desligar o que prende e rasgar os véus de irrealidade, e, a situação temporal e a miséria do homem, como afirma o mitólogo Mircea Eliade, exprimem-se por palavras-chaves que contém a ideia de atar, de acorrentamento, de ligação. O complexo do prender não passa, assim, de uma espécie de arquétipo da própria situação do homem no mundo. Nesta perspectiva dualista e polêmica, a soberania assume os atributos do despender, e só por contaminação de outras intenções é que o herói vai buscar as astúcias do tempo e as redes do mal. É nesse contexto heroico que nos aparece a mitologia de Atena, a deusa armada, a deusa dos olhos flamejantes, tão pouco feminina e ferozmente virgem, saída do machado de Hefesto e da fronte de Zeus, senhora das armas, senhora do espirito, mas igualmente senhora da tecelagem. Mas é a lança, como a espada para Parsifal, um dos cavaleiros do século XIII que permanece a sua arma preferida. Nobreza da espada ou da lança sublinhada pela tradição medieval que fazia do gládio e da cerimônia de armar cavaleiro o símbolo de uma transmissão de potência e simultânea de retidão moral.
A fábula de d`Eon sobre a imperatriz Elizabeth deve ser entendida quando começaram a circular no final da década de 1770 e início da seguinte, e tornaram matéria de lendas, que o converteram em uma espécie de herói. Muitos pesquisadores e biógrafos aceitam s suas memórias como factuais, e se mostram maravilhados ao ver como, “disfarçado de mulher, d`Eon se tornou amigo íntimo da Imperatriz Elizabeth, a qual persuadiu a fazer uma aliança secreta com a França”. Não obstante, a história de que d`Eon vestiu-se de mulher a fim de tornar-se a professora particular da imperatriz Elizabeth não é de modo algum verdadeira. Ele inventou isso, provavelmente em 1775, ou pouco depois. Os pesquisadores suspeitaram da verdade, pela primeira vez, há mais de cem anos, quando os arquivos do Ministério do Exterior da França foram abertos. Com certeza, afirma Kates (1996: 104 e ss.), se esse engodo tivesse ocorrido, estaria na correspondência secreta de Luís XV, Conti, seus assistentes de D`Eon, para o Segredo do Rei da Rússia, não encontramos a menor referência às mudanças de indumentária dele, à sua identidade de gênero, tampouco às suas relações pessoais com Elizabeth.
 O rei e a corte encaravam a transformação de d`Eon, de homem em mulher, ocorrida em 1777, e o seu subsequente retorno à França, como uma aposentadoria definitiva da carreira de homem de Estado. O governo vinculou, de forma explícita, o sexo de d`Eon à sua aptidão para permanecer ativo na esfera da política. Assim, d`Eon esperava usar o mito russo para afirmar o seu patriotismo e solapar a exclusividade de gênero que dominava o corpo diplomático e militar. O fato de a história de d`Eon ter merecido crédito com tanta facilidade durante sua vida, em si mesmo, algo notável. Casanova constitui um exemplo típico dos numerosos nobres de boas relações na sociedade convencidos de que d`Eon havia, anteriormente, cumprido missões diplomáticas secretas como mulher, e que o próprio Luís XV havia patrocinado esse travestismo. Por mais absurdo possa nos parecer, a história íntima fazia sentido para o público ávido europeu que não apenas vias as relações internacionais cada vez mais dominadas por monarcas mulheres, como também ouvira toda sorte de histórias e rumores sobre espiões, intrigas e perfídias de agentes duplos. A mera existência do Segredo Rei é tão absurda quanto a história que d`Eon mais tarde fabricou.
As mulheres, ele insistia, poderiam ser muito mais do que cortesãs, freiras e salonnières. Inspirados nos salões dos séculos XVIII e XIX, os Salonnières procuram reviver essa tradição de compartilhar ideias filosóficas através da música, poesia e arte.  Algumas poderiam até tornar soldados e estadistas, se tivessem a oportunidade. O mito sobre a imperatriz Elizabeth servia, em grande parte, para apoiar seus objetivos, na medida em que apresentava o soberano francês e o seu conselheiro de maior confiança oferecendo a uma mulher uma oportunidade daquela importância político-afetiva. De acordo com o mito, Luís XV e Conti lhe pediram que fossem à Rússia conscientes de que d`Eon era de fato uma mulher. Além disso, precisavam dele para executar delicadas missões diplomáticas, exatamente como uma mulher. Em d`Eon, Conti supunha haver encontrado uma personalidade que combinava o charme feminino, a coragem de uma amazona e o engenho maquiavélico necessário para uma missão importante como aquela. Em suma, o mito sobre d`Eon na Rússia parecia oferecer politicamente à França o exemplo muito vigoroso de uma mulher contemporânea que havia alcançado o heroísmo no desempenho das funções de um alto funcionário do governo.
Assim, a tese que Gary Kates sustenta é que d`Eon esperava usar o mito russo para afirmar seu patriotismo e solapar a exclusividade de gênero que dominava o corpo diplomático e militar. O fato social e histórico de d`Eon ter merecido crédito com tanta facilidade durante sua vida é, em si mesmo, algo notável. Casanova constitui um exemplo típico dos numerosos nobres de boas relações na sociedade convencidos de que d`Eon havia, anteriormente, cumprido missões diplomáticas secretas como mulher, e que o próprio Luís XV havia patrocinado esse travestismo. Mas era um iniciado no segredo de Conti e tornou-se secretário do Chevalier Douglas. Sem dúvida, ele chegou a São Petersburgo em algum momento do mês de julho, de 1756. De imediato, sentiu-se arrebatado pelo charme e pelo poder das mulheres russas quer cercavam a corte. Achou-as lindas, sagazes, enérgicas e espirituosas. Essas damas magnificas, escreveu D`eon para Jean-Pierre Tercier, chefe do Ministério do Exterior e também espião de Conti, “são realmente semelhantes a um pequeno esquadrão de ninfas”. Elas mesmas tinham uma aguda consciência de sua posição como mulheres políticas ativas, e promoviam estranhos ritos sociais com o propósito de reforçar a autoridade feminina.
A força desta consciência coletivamutatis mutandis - acompanha sua extensão. Quanto mais forte a consciência coletiva, maior a indignação com o crime, isto é, contra a violação do imperativo social. Cada um dos atos da existência social, em particular cada um dos ritos religiosos, é definido com precisão. Os detalhes ao que é preciso fazer, e ao que é preciso crer, são impostos pela consciência coletiva. No estudo da divisão do trabalho objeto de pesquisa de doutoramento, o filósofo Émile Durkheim descobriu duas ideias fundamentais: a prioridade histórica das sociedades onde a consciência individual está inteiramente fora de si e a necessidade de explicar os fenômenos individuais pelo estado da coletividade, e não, contrariamente, o estado da coletividade pelos fenômenos individuais, isto é, do exterior, encontrando o meio pelo qual os estados de consciência não perceptíveis diretamente podem ser reconhecidos e compreendidos. Estes estados de consciência são jurídicos que caracteriza um dos tipos de solidariedade orgânica, tendo por uma lado, o direito repressivo, que pune as faltas ou crimes, e, por outro, o direito restitutivo, ou cooperativo, cuja essência não é a punição das violações das regras sociais, mas repor as coisas em ordem quando uma falta foi cometida, ou organizar socialmente uma cooperação entre os indivíduos.
  Não se está apenas diante de uma divisão social que se estabelece a partir do dado, mas sim de um projeto de engenharia social, segundo Pinto Neto (2007: 83), que nos permitiria conduzir ao “estado perfeito”. A ambivalência tende a ser eliminada para aqueles que se propuserem a ter uma “personalidade não-contrafática” deveriam sobreviver. Aos demais, seria simplesmente declarada guerra. Este inimigo definido a partir de sua personalidade que relacionalmente se opõe à ordem funcional. O verdadeiro conteúdo que representa o Inimigo (1997) está numa contraposição à ordem estabelecida, enquanto um cidadão que renuncia à personalidade, tornando-se “não cidadão”. Uma vez despersonalizado o Outro, a questão do exercício dos direitos fundamentais passa a segundo plano. Não sendo o Outro pessoa, o problema não se coloca mais em temos constitucionais. É precisa a ideia de uma ordem futura que está em jogo, uma ordem em que apenas aqueles “homogêneos” devem sobreviver, para que possam exercer seus direitos em conformidade com a ordem funcional.
É a preciosa engrenagem da “fidelidade” que servirá de suporte para definir o suposto Inimigo. Precisamente no ambiente social contemporâneo no qual irrompe uma relação de implicação entre a exigência da ordem e o medo coletivo, causado pelas altas taxas de delito e pela insegurança ontológica, o chamado Direito Penal do Inimigo enquanto estratégia de purificação social cai como luva para o discurso neoconservador. A criação de um ambiente de tensão permanente onde a exigência da ordem e autoridade ganha primazia é o local propício para o que era para ser exceção torna-se regra. Melhor dizendo, contrariando a norma, onde o sigilo é a regra e a transparência é a exceção. O direito repressivo revela socialmente a consciência coletiva nas sociedades que se erigiram sob a forma de solidariedade mecânica, por extensão, pelo fato de multiplicar as sanções, manifesta a força dos sentimentos comuns e sua particularização. Quanto mais ampla a consciência coletiva, quanto mais forte e particularizada, maior será o número de atos considerados como crimes. Atos que violam um imperativo, ou um interdito, e ferem direto a consciência moral da coletividade.
Nesta acepção, crime é simplesmente um ato degenerado, é um ato proibido pela consciência coletiva. Não importa que pareça inocente ao observador situado em outa sociedade comparada, ou em outro período histórico. Criminoso é aquele que numa sociedade determinada “deixou de obedecer às leis do Estado”. Depois de ter esboçado uma teoria do crime, Émile Durkheim deduz dela sem dificuldade uma teoria das sanções. A função social do castigo é satisfazer a consciência comum, ferida peloa to cometido por um dos membros da coletividade. Ela exige reparação e o castigo do culpado é esta reparação feita aos sentimentos de todos. Ele considera esta teoria da sanção mais satisfatória do que a interpretação racionalista pelo efeito de dissuasão. Analogamente temos a cor como apreensão do véu da noite que  reenvia-nos para uma feminilidade substancial. Mais tradição romântica ou alquímica e análise psicológica convergem para evidenciar uma estrutura arquetípica, e encontra-se com a imemorial tradição religiosa. Este cambiante da substância profunda encontra-se nas lendas hindus, egípcias ou astecas. É o véu de Ísis, o véu de Mâyâ, que simboliza a inesgotável materialidade da natureza que as diversas escolas filosóficas valorizam positiva ou negativamente, é o vestido de Chalchiuhtlicue, deusa da água, companheira do grande deus Tlaloc.
O eufemismo que as cores noturnas constituem em relação às trevas parece que a melodia o constitui em relação ao ruído. Do mesmo modo que a cor “é uma espécie de noite dissolvida e a tinta uma substância em solução”, segundo a concepção antropológica de Durand, pode-se dizer que a melodia, que a suavidade musical tão cara aos românticos é a duplicação eufemizante da duração existencial. A música melodiosa desempenha o mesmo papel enstático que a noite. A música opera o milagre de tocar em nós o núcleo mais secreto, o ponto de enraizamento de todas as recordações e de fazer dele por um instante o centro do mundo feérico. O complexo do regresso à mãe vem inverter e sobredeterminar a valorização da própria morte e do sepulcro. Poder-se-ia consagrar uma vasta obra aos ritos de enterramento e às fantasias do repouso e da intimidade que os estruturam. Mesmo as populações que utilizam, também, a incineração pratica o enterramento ritual de crianças. – Terras clauditur infans, escreve Juvenal, e as leis de Manu interditam que as crianças sejam incineradas. Numerosas sociedades assimilam o reino dos mortos àquele donde vêm as crianças, como o Chicomoztoc, “lugar das sete grutas” do México. Os Vedas como ocorre em numerosas inscrições sepulcrais latinas, confirmam a eufemização do “tu és pó”. Corolário desses rituais de enterramento dos mortos e confirmando a concepção antifrásica da morte é o enterramento terapêutico dos doentes.




   Em numerosas culturas, na Escandinávia, por exemplo, o doente ou moribundo é revigorado pelo enterramento ou pela simples passagem na fenda de uma rocha. Muitos povos enterram os mortos na postura fetal, marcando nitidamente a vontade de ver na morte uma inversão do terror naturalmente experimentado e um símbolo de repouso primordial. Em todos os folclores esse abandono sobredetermina ainda o nascimento miraculoso do herói ou do santo concebido por uma virgem mítica. O sepulcro, lugar da inumação, está ligado à crença numa sobrevivência larvada, duplamente encerrada na imobilidade e na tranquilidade do sepulcro rodeado certamente de oferendas. Esta eufemização do sepulcro e a assimilação dos valores mortuários ao repouso e à intimidade encontra-se também no folclore e na poesia. No folclore, a intimidade das câmaras secretas contém as belas adormecidas dos nossos contos. O modelo exemplar dessas dormidoras escondidas é a nossa Bela Adormecida. Na versão escandinava dos Niebelungen, é Brunehilde, a jovem Valquíria, que dorme revestida de uma couraça no fundo de um solitário castelo. Símbolos claustromórficos onde é fácil reconhecer uma eufemização do sepulcro.
            Quanto ao sono, não passa de promessa de despertar que, no milagre da intimidade nupcial, Sigur ou o Príncipe  Encantado virão realizar. O mesmo mito encontra-se nos irmãos Grimm (em alemão Brüder Grimm ou Gebrüder Grimm), no Cofre Voador de Andersen, tal como no conto oriental História do Cavalo Encantado. O psicanalista pergunta-se vendo na imagem destas dormidoras o símbolo da recordação que dormita no fundo da estrutura do inconsciente, reencontra nelas um simbolismo eficaz caro a Carl Gustav Carus. O resultado do progresso do eufemismo, sobrevivências de mitos ctônicos que, pouco a pouco, forma perdendo as alusões funerárias? A deleitação mórbida, por incrível que pareça se encontra vezes na poesia, na ligeira necrofilia baudelairiana ou no culto lamartiniano do outono, no gosto romântico pelo “além-túmulo” e, por fim na atração que exerce a morte ou o suicídio sobre Goethe, Novalis (Friedrich von Hardenberg), o criador da flor azul, um dos símbolos mais duráveis do movimento romântico, ou last but not least, Charles Nordier.  
  Nos românticos franceses, poder-se-ia igualmente notar frequentes isomorfismos do túmulo, da bem-amada e das delícias da intimidade. Por exemplo, para a Antígona de Ballanche, o túmulo é a morada nupcial. Hugo, grande e misterioso como Dante, terrível e vingador como ele, tem a simplicidade e a grandeza de Homero, a graça de Virgílio, a eloquência e a inovação de Sófocles, a grandeza de Esquilo, a força e a amplidão de Shakespeare, enfim a estirpe dos Prometeus. Na obra de Victor Hugo, pululam as imagens de sepulcros, de claustração e de emparedamento associadas à intimidade: em La conscience o jazigo é o refúgio, em Os Miseráveis é um convento de mulheres enclausuradas que serve de lugar de asilo. Todavia, em Hugo, o motivo do jazigo é valorizado de maneira hesitante, porque é ao mesmo tempo temido e desejado, como Il Príncipe, de Maquiavel. A este complexo ambíguo da claustração, Charles Baudouin liga no grande poeta o tema da insalubridade como uma espécie de Jonas geográfico, para alguns um anagrama da ilha que chegaria a separar psicologicamente a Irlanda católica do continente protestante, porque a ilha é “a imagem mítica da mulher, da virgem, da mãe”. Na literatura magnífica de Victor Hugo admite Durand, na esteira dos meandros que percorrem a imaginação, estarão marcadas por duas questões ontogeneticamente. Pela estadia nas ilhas: Córsega da sua infância, ilha de Elba, e por fim do exílio que não seria mais que um “complexo de retiro”, mas sinônimo de regresso à mãe, onde o poeta parece morar voluntariamente, como uma espécie de “vocação do exílio”. Ipso facto, o grande valor atribuído pelo poeta dos Châtiments a Santa Helena, descoberta em 1501 pelo navegador galego João da Nova, tornar-se-ia símbolo da ilha do exílio e da morte. 

Bibliografia geral consultada.
GOLDGRUB, Franklin Winston, O Conceito de Inconsciente em S. Freud e C. Lévi-Strauss. Dissertação de Mestrado em Filosofia. Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1990; KATES, Gary, Monsieur d`Eon é Mulher: Um Caso de Intriga Política e Embuste Sexual. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1996; DURAND, Gilbert, As Estruturas Antropológicas do Imaginário: Introdução à Arquetipologia Geral. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1997; PINTO NETO, Moysés da Fontoura, O Rosto do Inimigo: Uma Desconstrução do Direito Penal do Inimigo como Racionalidade Biopolítica. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2008; MEDEIROS, Elen de, A Concepção do Trágico na Obra Dramática de Nelson Rodrigues. Tese de Doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2010; DOMICIANO, João Felipe Guimarães de Macedo Sales, O Mito e sua Estrutura: Contribuições da Antropologia Lévi-Straussina para a Formação da Clínica Psicanalítica. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Instituto de Psicologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014; SIQUEIRA, Fídias Gomes, Inimigo Íntimo: Um Estudo sobre a Segregação e a Violência nas Fronteiras entre a Política e a Psicanálise. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Minas Gerais, 2016; CICERO, Antonio, “Tzvetan Todorov libertou a literatura dos asfixiantes jogos formais”. Disponível em:  https://oglobo.globo.com/cultura/11/02/2017; entre outros.

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