domingo, 4 de março de 2018

Família Bélier - Talento Artístico & Narrativas Sociais de Surdos.

                                                                                                     Ubiracy de Souza Braga

 “O talento revela-se exatamente porque esconde a sua perfeição”. William Shakespeare

               
            
         Quando alguma pessoa apresenta uma desenvoltura perfeita ao desempenhar determinada atividade, dizem que ela tem um “dom” ou “talento” para aquilo. Apesar de ser empregado de formas semelhantes, o significado da palavra “dom” é diferente da definição de “talento” e, portanto, representam características distintas. Dom vem do latim “donus”, que significa dádiva, presente. Nessa perspectiva, trata-se de uma capacidade inata para desempenhar com destreza e maestria determinada tarefa, até mesmo em aspectos que elas parecem mais complexas para a maioria de um conjunto determinado de pessoas. Podemos citar, como exemplo, uma criança que demonstra desde cedo uma “afinidade eletiva” muito grande para tocar determinado instrumento. Quando falamos em facilidade em executar ou aprender determinada atividade, vale lembrarmos que o significado da palavra “dom” não tem como sinônimo apenas a representação do critério da genialidade. Já que essa condição social ocorre somente com alguns indivíduos determinados e devido a questões psíquico-físicas. E que estão sendo desvendadas através das investigações pluridisciplinares pela ciência. entendida como uma associação livre de disciplinas que concorrem para uma realização. Mas  que cada disciplina não tenha que modificar a visão das coisas e os seus próprios métodos.  
          É através da língua dos sinais que a família Bélier se comunica, saudável e positivamente como se demonstra no filme, La Famille Bélier, comédia dramática francesa realizada pelo cineasta Éric Lartigau. O filme foi lançado nos cinemas franceses a 17 de dezembro de 2014. Na família Bélier, Paula, a filha de 16 anos, é a intérprete indispensável para muitas das tarefas diárias de seus pais e irmãos, todos eles agricultores surdos, menos ela, que fala por telefone, lida com o banco ou facilita-lhes a compreensão no consultório médico, e, sobretudo relacionado à manutenção da granja. Paula representa a tradutora da sua família. Um dia, um professor de música descobre seu talento pelo canto e anima Paula para que participe de um prestigioso concurso musical em Paris, o que lhe daria acesso a uma boa carreira e aos estudos universitários. No entanto, esta decisão significa aparentemente deixar para trás sua família, desnorteada e inquieta pela iniciativa escolar e para quem o conceito da música resulta alheio, Paula começa a dar primeiros passos como adulta, ainda que enfrente a incompreensão dos pais, as dúvidas sobre a sua vocação musical, o abandono das responsabilidades com a família e a incerteza sobre a crescente atração por um rapaz de sua idade. Enquanto isso, seu pai, Rodolphe Bélier, insatisfeito com as ações políticas programadas do prefeito da cidade, decide concorrer às eleições municipais, apesar de ser portador de deficiência no processo social de comunicação visual.
           Uma língua de sinais é uma língua que procede no âmbito da comunicação visual, que surge nas comunidades de pessoas surdas ou se deriva de outras línguas de sinais. Assim como as línguas orais-auditivas, uma língua de sinais é considerada pela linguística como língua natural, pois atende a todos os critérios linguísticos como qualquer língua. Por seu canal comunicativo ser diferente das línguas orais-auditivas, as línguas de sinais são denominadas como línguas de modalidade visuoespacial. Os sinais, ou seja, as palavras, são articulados essencialmente pelas mãos e percebidos através da visão. Na língua de sinais, os sinais não são gestos. Os sinais são símbolos arbitrários, legitimados e convencionados pelos falantes de uma língua de sinais, assim como as palavras são em uma língua oral. Por meio de uma língua de sinais, o surdo ou pessoa com deficiência auditiva têm acesso à informação e à comunicação. Existem línguas de sinais e países com línguas de sinais têm recebido o status de língua oficial. Durante muitos anos, o oralismo, técnica defendida por Alexandre Graham Bell, foi a única forma aceitável de/para comunicação com as pessoas surdas. O famoso Congresso de Milão, de 1880, teve um impacto negativo sobre as línguas de sinais no mundo.

Nesse congresso, os presentes, influenciados pelas ideias de Graham Bell, decidiram pela proibição da língua de sinais como método de educação de surdos. Assim, a língua falada oralmente foi imposta às pessoas surdas, e decretou-se, sem fundamentação científica alguma, que o oralismo deveria constituir a única forma de ensino. Diante disso, as línguas de sinais por mais de 100 anos foram violentamente proibidas e banidas dos típicos espaços escolares. Mesmo com a imposição do Congresso de Milão, as línguas de sinais resistiram.  Muitos linguistas se dedicaram a estudar diferentes línguas de sinais. O pioneiro foi o linguista norte-americano William Stokoe (1919-2000), intitulado como o “pai da linguística das línguas sinalizadas”, concluiu que as línguas de sinais apresentam aspectos linguísticos de uma língua genuína, no léxico, na sintaxe e na sua capacidade de gerar infinitas sentenças e que deveriam ser pesquisadas e estudadas pela linguística. Ao contrário do que acreditam, a língua de sinais não é universal.

Assim como as línguas orais, a variação linguística está presente também nas línguas de sinais. É grande a variedade de línguas de sinais ao redor do mundo, onde há mais de 140 línguas de sinais. São línguas completas, outras complexas, mas com a sua própria gramática e léxico. Cada país tem a sua, ou até mais de uma, língua de sinais. Tomando como exemplo alguns países lusófonos, vemos que utilizam diferentes línguas de sinais: no Brasil existe a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e a Língua de Sinais Kaapor Brasileira, em Portugal existe a Língua Gestual Portuguesa (LGP), em Angola existe a Língua Angolana de Sinais (LAS), em Moçambique existe a Língua de Sinais Moçambicana (LMS). Assim como acontece nas línguas faladas oralmente, existem variações linguísticas dentro da própria língua de sinais, isto é, regionalismos e/ou sotaques. Essas variações se devem a ligeiras diferenças culturais e influências diversas no sistema de ensino do país, por exemplo. Há também outros fatores sociais e culturais que favorecem à diversidade e à mudança linguística, como, por exemplo, a extensão e a descontinuidade territorial e os contatos com outras línguas. 

Além disso, deve-se levar em conta que diferenças culturais são fatores naturais, históricos e sociais de condicionamento nos modos de representação e sobretudo, de interpretação do mundo. Assim, os surdos sentem as mesmas dificuldades que os ouvintes quando necessitam comunicar com outros que utilizam uma língua diferente. Há também uma língua de sinais, análoga ao Esperanto, reconhecida como Gestuno, também reconhecido como língua de sinais internacional, é uma língua artificial e é utilizada em convenções e competições internacionais, visando estabelecer uma comunicação internacional. Não se sabe historicamente quando as línguas de sinais se iniciaram. Mas, sua origem remonta possivelmente à mesma época ou a épocas anteriores àquelas em que foram sendo desenvolvidas as línguas orais. Uma pista interessante para esta possibilidade das línguas de sinais terem se desenvolvido primeiro que as línguas orais é o fato social concreto que o bebê humano desenvolve a coordenação motora dos membros antes de se tornar capaz de coordenar o aparelho fonoarticulatório. As línguas de sinais são criações espontâneas do ser humano e se aprimoram exatamente da mesma forma que as línguas orais. Nenhuma língua é superior ou inferior a outra, cada língua se desenvolve e expande na medida da necessidade ou utilidade de uso de seus usuários. 

             

O Esperanto é a representação social da língua planejada mais falada no mundo. Ao contrário da maioria das outras línguas planejadas, o esperanto já saiu dos níveis de projeto de publicação de instruções e semilíngua de uso em algumas poucas esferas da vida social. Seu iniciador, o médico judeu Ludwik Lejzer Zamenhof (1859-1917), publicou a versão inicial do idioma em 1887. Seu objetivo teve como intenção criar uma língua de mais fácil acesso e aprendizagem. E que servisse como língua franca internacional para toda a população mundial e não, apenas como erroneamente se supõem, para substituir todas as línguas existentes historicamente. O Esperanto é empregado com utilidade de uso comunicativo em viagens, correspondência, intercâmbio cultural, convenções, literatura, ensino de línguas, televisão e transmissões de rádio. Alguns sistemas estatais de educação oferecem cursos opcionais de esperanto, e há evidências de que auxilia na aprendizagem dos demais idiomas.  Apesar da facilidade gramatical, o Esperanto enfrenta dificuldade de ser adotado como língua auxiliar universal. É formado pela junção do radical esper (com origem no latim sperare, “esperar”), da desinência ant (própria do particípio presente) e da desinência o (dos substantivos). Significa, portanto, “aquele que espera”, “aquele que tem esperança”. Ludwik Lejzer Zamenhof vivia em Białystok (Polônia), na época Império Russo. Em Białystok, moravam muitos povos e falavam-se muitas línguas, o que dificultava a compreensão e comunicação, mesmo nas mais cotidianas situações, o que o motivou a criar uma língua auxiliar neutra, a fim de solucionar o problema. Durante a adolescência, criou a primeira versão de Esperanto, chamada lingwe universala, uma espécie de “esperanto arcaico”. 

O seu pai, conseguiu fazê-lo prometer trabalhar no seu idioma para se dedicar aos estudos. Zamenhof então foi para Moscou estudar Medicina. Em uma de suas visitas à terra natal, descobriu que seu pai queimara todos os manuscritos do seu idioma. Zamenhof pôs-se então a reescrever tudo, adicionando melhorias e fazendo a língua evoluir. O primeiro livro sobre o esperanto foi lançado em 26 de julho de 1887, em russo, contendo as 16 regras gramaticais, a pronúncia, alguns exercícios e um pequeno vocabulário. Logo depois, mais edições do Unua Libro foram lançadas em alemão, polaco e francês. O número de falantes cresceu rapidamente nas primeiras décadas, primordialmente no Império Russo e na Europa Oriental, depois na Europa Ocidental, nas Américas, na China e no Japão. Muitos desses primeiros falantes vinham de outro idioma planificado: volapük. As primeiras revistas e obras originais em esperanto começaram a ser publicadas. Em 1905, aconteceu o pioneiro Congresso Universal de Esperanto, em Bolonha-sobre-o-Mar, na França, juntando quase mil pessoas, de diversas nacionalidade e povos. Em 1906, foi fundado, no Brasil, o primeiro grupo esperantista: o Suda Stelaro, em Campinas. Colabora em desfazer as crenças  presentes em nossa sociedade, de que os surdos possuem prejuízos intelectuais, ou são pessoas infantis

Obviamente os surdos ainda sofrem discriminação e consequente isolamento social, este último amenizado, no filme, pelo fato social de serem três surdos na composição familiar e também por Paula ser a interprete em suas interações com os não surdos. Vale esclarecer que a expressão surda-muda é equivocada porque advém de uma crença comum que os surdos são também mudos e da negação dialética da alteridade pelo fato de não ouvirem. A audição é importante no aprendizado da fala, mas os mudos não o fazem porque possuem prejuízo crônico no aparelho fonador, o que não acontece com os surdos, que podem aprender a falar, embora seja difícil e necessite bastante investimento. Além disso, os surdos não detém a linguagem oral, mas possuem a possibilidade da língua dos sinais que não deixa de ser uma forma de linguagem. Família nuclear é termo usado para definir um grupo familiar composto por um par de adultos que devido a relações sexuais ocorridas e correntes entre o par que se uniu por relações, as mais diversas possíveis, tais como: físico, psíquico, emocional, espiritual, social, político, dentre outras, se houver, é que permitiu o surgimento dos parentes de primeiro grau e seus filhos. As estruturas familiares de um casal e seus filhos estiveram presentes na Europa Ocidental e na Nova Inglaterra, no século XVII, influenciada pela igreja e por governos teocráticos.
 
O surgimento e desenvolvimento da industrialização e o capitalismo, a família nuclear tornou-se uma unidade social financeiramente viável. O termo família nuclear apareceu pela primeira vez no início do curto século XX. Definições de sentido histórico sociológico, tornarma-se alternativas que evoluíram para incluir unidades familiares chefiadas por pais do mesmo sexo, com o distanciamento da influência da igreja e familiares adultos talvez adicionais que assumem um papel de coabitação parental; neste último caso, também recebe o nome de família conjugal. A rigor, uma família nuclear ou conjugal consiste meramente de pais e filhos, ainda que muitas vezes inclui, em função de certas condições sociais um ou dois outros parentes, bem como, um pai ou mãe viúva ou irmão solteiro de um ou outro cônjuge. 
A tese deste libelo francês é original: uma garota tímida descobre talento para o canto, o que gera problemas sociais e familiares caso queira seguir esta carreira. Escolher o caminho da música representaria cortar o cordão umbilical, algo doloroso para todos os envolvidos. A maior diferença etnográfica, neste caso, está na família de Paula: seu pai, sua mãe e o irmão são surdos-mudos. Por ser a única capaz de escutar, Paula trabalha como intérprete nas negociações comerciais da fazenda familiar, e se encarrega de traduzir a linguagem de sinais para os amigos e vizinhos. O talento vocal da filha ganha outro significado a partir do momento em que antiteticamente não pode ser apreciado pelos pais. A música também funciona como válvula de escape à vida de dependência nas relações familiares - não é à toa que a canção principal deste drama musical, Je Vole, sugere um rito de passagem, da fuga da adolescência para a passagem à fase adulta. Por este fator social, “A Família Bélier” (2014) representa um aparecer social mais dinâmico do que os filmes que retratam a música como passagem da categoria simples ao concreto que revela um talento providencial. O talento tende a associar-se à habilidade inata e à criação, embora se possa desenvolver com a prática e treino. A habilidade inata é a aptidão, competência, destreza ou faculdade adquirida e desenvolvida pela consciência em retrovidas, ou melhor, em períodos de intermissão, manifestando-se espontânea e naturalmente na ressoma intrafísica atual. 
O filme é beneficiado pelo ponto de vista naturalista do diretor Eric Lartigau: a deficiência auditiva da família é vista sem piedade ou vitimização.  O cineasta deve ter aprendido com o sucesso de “Intocáveis” - onde a imobilidade física pode ser abordada com humor - contanto que se mantenha o respeito e evite o paternalismo. O ambiente bucólico também é tratado com puro realismo, sem insinuações de monotonia ou atraso. Mesmo o ambiente escolar e as conversas entre os adolescentes, repletas de gírias e falas rápidas, funcionam como bom retrato das gerações. As unidades de geração desenvolvem perspectivas, reações e posições políticas e afetivas diferentes em relação a um mesmo dado problema. O nascimento em um contexto social idêntico, mas em um período específico, faz surgirem diversidades nas ações dos sujeitos. Outra característica é a adoção ou criação de estilos de vida distintos pelos indivíduos, em um mesmo âmbito social. Em outras palavras: a unidade geracional constitui uma adesão concreta em relação àquela estabelecida pela conexão geracional. 
Mas a forma como grupos de uma mesma conexão geracional lidam com os fatos históricos vividos, por sua geração, fará surgir distintas unidades geracionais no âmbito da mesma conexão geracional no conjunto macrossociológico da sociedade. As atuações exemplares chamam atenção. Para o papel dos pais, foram escolhidos dois ícones do cinema francês e belga, respectivamente: Karin Viard e François Damiens. Ambos transitam com facilidade entre a comédia e o drama, individual (o sonho) e coletivo (os mitos, os ritos, os símbolos) essencialmente nesta história, e se equilibram de modo eficaz, já que o estilo contido de Damiens completa a gesticulação exagerada de Viard. Hilários em cena, eles também demonstram respeito no retrato de surdos-mudos. O elo talvez mais fraco do elenco é a protagonista Louane Emera, candidata do programa The Voice na França, e que faz os seus primeiros passos no cinema. Seu início como atriz é promissor, e ainda pode se desenvolver muito, mas a falta de experiência dramática fica visível em cenas importantes como o clímax na Radio France, uma sociedade de serviço público, criada pelo Estado em 1° de janeiro de 1975 que gere as estações da rádio pública metropolitana assim como várias formações musicais. 
Na excêntrica família Bélier, todos os membros são surdos-mudos com exceção da jovem Paula, filha mais velha do casal Rodolphe e Gigi. Por conta ela acaba sendo a intérprete da família em quase todas as situações, sendo de extrema importância para a relação da família com o mundo exterior. Vivendo em uma fazenda, a principal rotina de todos é cuidar dos animais e das plantações da propriedade, mas Paula ainda precisa reservar um tempo para os estudos. Apesar de ser tímida e viver uma vida quase reclusa, ela não deixa de ser como todas as outras adolescentes de sua idade: tem uma melhor amiga inseparável, um namoro mal resolvido e o mais importante de tudo, sonhos. Incentivada pelo seu professor Thomasson, Paula descobre um dom seu até então desconhecido: o de cantar, e a começar a sonhar na carreira musical. E todas de extrema qualidade, graças à classe de voz de Leouane Emera, reconhecida por ter participado da edição francesa do programa de televisão The Voice. Sua singularidade é a valorização apenas da voz de um competidor, não julgando a sua aparência ou desempenho de palco, como diferença similares um artista pronto e não moldá-lo. Apesar de ser muito parecido com a questão referente aoo dom em definição, o talento se distingue por conter justamente uma habilidade técnica que pode ser desenvolvida ou aperfeiçoada.    

Trata-se de um gosto especial, uma aptidão, uma predisposição espontânea a algo, que atinge sua plenitude por meio de muito treino, disciplina e perseverança. Nesse sentido, ser muito bom em determinada atividade somente depende de você. Mas além da paixão pelo que faz, é necessário que seja comprometido, disciplinado com suas atividades e, principalmente, que esteja em constante treinamento. Apesar do significado da palavra dom estar diretamente relacionado a alguma característica social com a qual nascemos ele somente poderá tornar-se visível mediante a prática. Nesse caso, seus sentimentos (inconsciente), pensamentos (razão) e comportamentos devem bem conduzidos para serem utilizados, talvez, de forma produtiva. Freud salientou a importante relação entre o comportamento de um ser humano adulto e certos episódios de sua infância, mas resolveu preencher o considerável hiato entre causa e efeito com atividades ou estados do aparelho mental. Em relação aos costumes e comportamentos sociais, ele contribuiu para antropologia tendo como referência o método clínico que praticou e desenvolveu.    
A psicanálise interpreta as manifestações da psique, as tendências sexuais (ou libido), e as fórmulas morais e limitações condicionantes do indivíduo. São dois os fundamentos da teoria psicanalítica: 1) Os processos psíquicos são em sua imensa maioria inconscientes, a consciência não é mais do que uma fração de nossa vida psíquica total; 2) Os processos psíquicos inconscientes são dominados por nossas tendências sexuais reprodutivas. Nesse sentido, o psicanalista Freud pretendeu descrever e explicar a vida humana tanto do ponto de vista pessoal e individual, mas também pública e social, de forma mítica recorrendo a essas tendências sexuais a que chamou de libido. Com esse termo, o pai da psicanálise designou a “energia sexual” de maneira mais geral e indeterminada. Assim, por exemplo, em suas primeiras manifestações sociológicas, a libido liga-se as funções vitais, se entendermos que no bebê que mama, o ato de sugar o seio materno provoca outro prazer além daquele natural de obter alimento e esse prazer passa a ser buscado por si mesmo.
Na abordagem psicanalítica fundada por Sigmund Freud, o indivíduo se constitui como um ente à parte do social e que compõe o nível de análise social. Freud refere-se aos aspectos que compõem um estado instintivo humano e que acaba por se tornar inibido em prol da convivência em comunidade. A inibição destes aspectos, que são instintivos, consiste numa privação de características que são inatas aos homens, e, esta própria privação, acaba por consistir em determinados descontentamentos. Neste sentido, os homens em civilização ou civilizados demonstram-se descontentes na busca de sua felicidade, pois seus instintos não são prontamente atendidos em sociedade. No seu ensaio: “O mal-estar da civilização”, Freud elabora uma discussão filosófico-social a partir de sua teoria psicanalítica. O autor desenvolve a ideia pragmática segundo a qual, em sociedade, “não há avanço sem perdas”. A ideia central que desenvolve nesta obra é a de que a civilização é inimiga da satisfação dos instintos humanos. A sociedade modifica a natureza humana individual, constitui o homem como membro da comunidade, adaptando-o a um processo vital que torna o indivíduo um ente social.

Segundo Freud, o conteúdo do inconsciente é, muitas vezes, reprimido pelo Ego. Para “driblar” a repressão, as ideias inconscientes “apelam” aos mecanismos definidos por Freud n`A Interpretação dos Sonhos, como deslocamento e condensação. Estes dois seriam relacionados, na linguística por Romain Jacobson à metonímia e metáfora, respectivamente. Portanto, as representações de ideias inconscientes manifestam-se nos sonhos como símbolos, tanto metafóricos quanto metonímicos. Aplicando o conceito à fala, o inconsciente consegue expelir ideias recalcadas através dos chistes ou atos falhos. Antes, são mecanismos da fala que articulam ideias aparentes com ideias reprimidas, são meios sociais pelos quais é possível exprimir os “instintos primitivos”. Semelhante à análise dos sonhos, a análise da fala seria um caminho psicanalítico para investigar os desejos ocultos do homem e as causas das psicopatologias. – “É na palavra e pela palavra que o inconsciente encontra sua articulação essencial”. Deste modo, Freud cria uma inter-relação entre os campos da linguística e da psicanálise, que será retomada por estudiosos posteriores, como ocorre precisamente nos Séminaire de seu maior intérprete, Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981), mas que não trataremos agora. 
Sua primeira intervenção na psicanálise é para situar o Eu como instância de desconhecimento, de ilusão, de alienação, sede do narcisismo. É o momento do “Estádio do Espelho”. O Eu é situado no registro do Imaginário, juntamente com fenômenos como amor e ódio. É o lugar das identificações e das relações duais. Distingue-se do Sujeito do Inconsciente, instância simbólica. Lacan reafirma, então, a divisão do sujeito, pois o Inconsciente seria autônomo com relação ao Eu. E é no registro do Inconsciente que deveríamos situar a ação da psicanálise. Esse registro é o do simbólico, é o campo da linguagem, do significante. Claude Lévi-Strauss afirmava que “os símbolos são mais reais que aquilo que simbolizam, o significante precede e determina o significado”, no que é seguido por Lacan. Marca-se aqui a autonomia da função simbólica. Este é o “Grande Outro” que antecede o sujeito, que só se constitui através deste – “o inconsciente é o discurso do Outro”, “o desejo é o desejo do Outro”. O campo de ação da psicanálise situa-se então na fala, onde o inconsciente se manifesta, através de atos falhos, esquecimentos, chistes e de relatos de sonhos, enfim, naqueles fenômenos que Lacan nomeia como “formações do inconsciente”. A isto se refere decisivamente o lacanianismo “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”.
 Ipso facto, não há estatuto lacaniano de psicanálise. E até fica evidente que o próprio Lacan está às voltas com um problema. E que ele evolui, tenta soluções, o que leva seus alunos a periodizar seu ensino, e a admitir, conduzidos por uma leitura atenta, que ele talvez tenha dito, senão tudo e o contrário de tudo, pelo menos, que tenha tomado às avessas suas teses aparentemente mais garantidas. Desse estudo rigoroso do ensino de Lacan, nasce a pergunta: “que é ser lacaniano?” e essa pergunta de identificação, e de papéis, passa a ser: “qual é o problema lacaniano na psicanálise?”. Ser lacaniano torna-se uma questão de exercício pleno, uma questão nova quando a resposta “ser lacaniano é ser freudiano” já não satisfaz. No entanto, essa resposta é um convite de Lacan. Mas isso só podia ser dito, em relação a essa variedade de freudismo, o anafreudismo, que se impôs nos últimos anos da existência de Freud, dominando a psicanálise durante vários decênios, sendo considerada uma interpretação sociológica do freudismo, canônica, dogmática, de certos elementos da doutrina de Freud. Considerando este anafreudismo, era então possível responder “ser lacaniano nada mais é do que ser freudiano”. 

Nas trocas de presentes se misturam os sentimentos e as pessoas. Misturam-se as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas. As regras de generosidade descritas por Mauss são bem definidas pelo valor e a interdição freudiana que se liga ao fato de que o tabu ainda subsiste entre nós, como Freud considerou no prefácio da primeira edição de “Totem e Tabu”, em 1913. As considerações sobre o kula, enquanto grande potlatch leva os estudos etnológicos de Malinowski ao tema da dádiva na medida em que significa um comércio cujas particularidades são típicas dos povos das ilhas Trobriand. A interdição como dever recíproco estabelecido entre devedores e credores, orienta o movimento cíclico e regular das transações. O penhor dado condiciona-se ao zelo e a transferência, essa transmissão para um terceiro em outro kula configura a circulação dos signos de riqueza e traduzem o orgulho do possuidor que, por sua vez, não pode guarda-los por muito tempo. - “O kula, sua forma essencial, não é senão um momento, o mais solene, de um vasto sistema de prestações e de contraprestações que, em verdade, parece englobar a totalidade da vida econômica e civil das Trobriand”. Os exemplos analisados por Mauss no Ensaio sobre a Dádiva (2003) não representam casos isolados dessa instituição nas tribos da África, Melanésia, Polinésia, América do Sul e do Norte.
Em nossas práticas cotidianas e costumes não é raro o aparecimento de rivalidades e distintas formas de conflitos que caracterizam a troca de presentes. As manifestações são múltiplas, no entanto, carregam o mesmo cerne encontrado naquelas sociedades. Mauss destaca no caso polinésio o aspecto religioso e moral por trás do dever de retribuir o presente recebido, nele o que pode ser compensado ou trocado equivalem aos tesouros, talismãs, objetos sagrados, inclusive tradições e rituais mágicos. Os elementos essenciais do potlatch giram em torno dos seguintes critérios: “(...) honra, do prestígio, do mana que a riqueza confere, e o da obrigação absoluta de retribuir as dádivas sob pena de perder esse mana, essa autoridade, esse talismã e essa fonte de riqueza que é a própria autoridade”. Os aspectos históricos do que hoje entendemos como direito das obrigações são também abordados nesse livro, inclusive quanto ao aspecto diacrônico da origem da distinção, nas sociedades semíticas, grega e romana, entre a obrigação e a prestação não gratuita, de um lado, e a dádiva, do outro. Aquisições recentes da civilização, de acordo com ele, com possível origem em fase anterior, sem a mentalidade fria e calculista de dádivas trocadas, em que se fundem pessoas e coisas tal como pode ser deduzido em vestígios do direito romano, ou nas leis da Germânia, ou Código de Manu da cultural da Índia antiga.
O peso marcante da propriedade em nossos dias aproxima-se daquilo que para o direito maori anima espiritualmente a coisa colocada em circulação, que tende naturalmente ao retorno para o seu local de origem. A questão da recusa da obrigação de dar e receber, por sua vez, equivale a declaração de guerra, pois o vínculo estabelecido é eminentemente espiritual na concepção nativa. Outro aspecto interessante relatado etnograficamente por Mauss diz respeito a noção de economia e moral por trás do presente trocado com os deuses. Não é totalmente desconhecido, tendo em vista que as práticas religiosas ligadas ao cristianismo, de modo ilustrativo, são guiadas pela troca de favores e presentes em agradecimento às benesses vindas do céu, seja por intermédio da Trindade divina, dos santos ou demais entidades celestes. Sobre o “sacrifício-contrato” Marcel Mauss explica da seguinte forma: A destruição sacrificial tem por objetivo ser, precisamente, uma doação a ser necessariamente retribuída. Não é só para manifestar poder, riqueza e desprendimento que escravos são mortos, que óleos são queimados, que o cobre é lançado ao mar e até mesmo casas suntuosas são incendiadas.
         Assim, é também para sacrificar aos espíritos e aos deuses, em verdade confundidos com suas encarnações vivas, os portadores de seus títulos, seus aliados iniciados. Em poucas palavras, sobre as sociedades melanésias Mauss entendeu o complexo sistema de economia estabelecido entre aqueles povos. Por meio das dádivas feitas e retribuídas eles substituem o sistema de compra e venda e operam de modo semelhante aos nossos. No caso do noroeste americano, a diferença existente diz respeito a violência e ao exagero que chega a suscitar o que Mauss chamou de prestações totais simples, ou seja, uma certa desproporção em relação aos conceitos jurídicos observados na Melanésia. A certeza da retribuição das dádivas que circulam nesta e na Polinésia é garantia própria da coisa posta em circulação. A particularidade desta dádiva é o termo, o tempo para que a contraprestação seja executada. Nas palavras do autor: “a dádiva implica necessariamente a noção de crédito”. Não menos importante, como já foi mencionado aqui, é a noção de honra. Enfim, a ascensão de Paula na música não é súbita, mas fruto de trabalho, e seu tutor neste caminho, interpretado pelo  ótimo Eric Elmosnino, que também não é um homem generoso, apenas um professor arrogante que por acaso descobre o dom da aluna.
Bibliografia geral consultada.
THOMA, Adriana; LOPES, Maura Corcini (Orgs.), A Invenção da Surdez II: Espaços e Tempo de Aprendizagem na Educação de Surdos. Santa Cruz do Sul: Editora da Universidade de Santa Cruz do Sul, 2006; KELLER, Helen, A História de Minha Vida. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2008; WITKOSKI, Silvia Andreis, Educação de Surdos e Preconceito: Bilinguismo na Vitrine e Bimodalismo Precário no Estoque. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Setor de Educação. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2011; HÜBNER, Marcus, A Educação Ambiental no Contexto da Interculturalidade e da Cultura Surda. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental. Instituto de Educação. Rio Grande: Universidade Federal do Rio Grande, 2012; BRAUN, Patrícia, Práticas Pedagógicas e o Aluno com Deficiência Intelectual: Uma Intervenção Colaborativa sobre os Processos de Ensino e Aprendizagem na Perspectiva Histórico-Cultural. Tese Doutorado em Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2012; SAAVEDRA, Claudia Carla Echenique,  Shakespeare Além do Espaço Tempo: Uma Conversa sobre Direitos Humanos nas Tragédias Titus Andronicus, Ricardo III e Macbeth. Tese de Doutorado. Instituto de Artes. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2014; REIS, Flaviane, A Docência na Educação Superior: Narrativas das Diferenças Políticas de Sujeitos Surdos. Tese de Doutorado. Programa de Pòs-Graduação em Educação. Faculdade de Educação. Uberlândia: Universidade Federal de Ubelândia, 2015; GARCIA, Renata Rodrigues de Oliveira, Qualidade de Vida da Pessoa Surda no Ambiente Familiar. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde. Faculdade de Medicina. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2016; RUZZA, Mara Lopes Figueira de, A Inclusão Educacional do Sujeito Surdo: Direito Garantido ou Reprimido? Dissertação de Mestrado. Programa de Educação: Currículo. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016; BASTO, Renata Muniz Prado, Identificação e Promoção do Talento Feminino: Conhecendo Trajetórias e Despertando Potenciais. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde. Brasília: Universidade de Brasília, 2018; SOUZA, Gelida Fonseca de, Relações Familiares entre Surdos e Ouvintes: Análise de Narrativas Biográficas. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2018; entre outros.

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