quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Gaston Bachelard - Saber, Intuição Trabalhada & Ruptura Epistemológica.

                                                                  Giuliane de Alencar & Ubiracy de Souza Braga

“O homem é a criação do desejo e não a criação da necessidade”. Gaston Bachelard

    

A intuição (“insight”) como forma de representação do conhecimento consiste na capacidade de conhecer algo sem de fato ainda entender seu funcionamento. Está fundamentada na noção inicial que temos sobre algo, noção esta que nasce da experiência sensorial e/ou de uma análise superficial das características que compõe determinado elemento. Tomando como base esta noção inicial, conseguimos entender de forma pouco esclarecida do que se trata determinado elemento e já nos dispomos a emitir juízos acerca do mesmo. Todas estas concepções do homem, que se expressam de diversas formas, nasceram a partir da análise que seus sentidos o proporcionaram fazer. Mas há algo a mais nisto. Não bastariam ele olhar para a pedra e sentir seu peso para concluir todas estas coisas. Teria o homem que pensar por associação, por comparação. Entre habilidades ou competências determinadas importa destacar a relação contígua entre o ser capaz de pensar e o ser capaz de aprender. Teria o homem que se basear em outras experiências. Têm-se nas reflexões anteriores, um exemplo desta forma básica de entender o mundo que nos cerca. O pensamento por associação. O conhecimento que se constrói através de memórias de experiências passadas e logo comparações com experiências presentes.

O raciocínio intuitivo da forma como foi apresentado, revela-nos uma superficialidade na forma de compreender o mundo. Retomando ao exemplo do homem: o mesmo não saberia explicar o porquê de nenhuma de suas conclusões, visto que ele se baseou somente em suas antigas experiências. Os fatos usados para formar a conclusão, não são compreendidos pelo homem, ele apenas sabe que são tal como são e aceita isso como natural. Além dessas substâncias e de outras, que estão em menor quantidade, o ar, por exemplo, também apresenta gotículas de água, poeira, e sobretudo partículas de vírus, bactérias e outro micro-organismos. Não entende ele, no plano abstrato da teoria “como” e nem o “por que” daqueles fatos sociais do dia a dia se apresentarem daquela maneira. Tudo que ele sabe, foi captado pelos sentidos, guardado em sua memória. Isto é, podendo ser utilizado em seu dia-a-dia como forma de entender o mundo que lhe é anterior e per se está ao seu redor.  A “intuição trabalhada”, em Bachelard (1985), significa assumir com essa ideia a existência de dois polos presentes no universo cultural humano. Ou seja, o “polo da objetividade” e o “polo da subjetividade”, entrelaçados e mediados nos duros e doces caminhos da constituição da “mediação científica” assim como dos demais caminhos existentes, esta ideia tão cara à concepção de ciência nestes tempos.

O pensamento de Bachelard se faz contemporâneo (Pereira, 2018) na atualidade potente de sua reflexão. Felizmente fora da dinâmica consensual entre pesquisadores, pois é reconhecido por sua filosofia não cartesiana, por sua filosofia não bergsoniana, por sua filosofia não aristotélica e não kantiana, visto que sua obra excede a epistemologia e a estética e dialoga com diferentes níveis epistêmicos de saber. Foi o pensador do novo “espírito científico” que, ao refletir sobre o conhecimento, problematiza de forma clara e objetiva o erro em sua positividade e a importância real da retificação. Seu novo racionalismo aberto e dinâmico, histórico e factual, inova a concepção de imaginação social, porque explora os devaneios e desconfia das metáforas. A formação das expectativas não leva em consideração os fatores previstos na sociedade como muito incertos. Embora, em determinadas situações, fatos muito incertos possam se tornar decisivos, tornando-se um guia razoável para as decisões correntes e os eventos a que se atribui um grau elevado de confiança. Bachelard foi um “filósofo da solidão feliz” que a procura de instantes poéticos nos desestabiliza nas incertezas do mundo objetivo.

                                

Os espíritos de Niels Bohr (Stephen Rea) e sua esposa Margrethe (Francesca Annis) caminham por Copenhagen, na Dinamarca, e rumam para a antiga casa dos Bohr para encontrar Werner Heisenberg (Daniel Craig), que também já morreu. A razão deste inusitado encontro é que Niels e Werner foram grandes físicos na 1ª metade do século XX e criaram as diretrizes para a construção da bomba atômica, sendo Niels mentor de Werner. Acontece que Bohr era dinamarquês e Heisenberg era alemão. Em setembro de 1941 Werner resolveu visitar Niels, mas se no passado eram amigos a guerra agora os colocara em lados opostos. Como os nazistas tinham ocupado a Dinamarca a vinda de Werner representava o conquistador indo até a casa do conquistado e, por mais que Niels tivesse prometido para Margrethe não falar de política e só de física, ficou evidente que isto era quase impossível de ser cumprido. No mesmo dia da chegada Niels e Werner foram fazer um tradicional passeio e logo voltaram, pois houve uma séria desavença entre eles. Décadas depois Niels, Werner e Margrethe tentam entender o que motivou Werner, um ganhador do prêmio Nobel que chefiava o programa atômico alemão, a ir ao encontro de Niels, um “meio-judeu” e o que aconteceu naquele dia, pois o que supostamente houve foi motivo de inúmeras conversas através dos anos.
O “não” da filosofia do “não” designa a superação, por generalização dialética, de toda filosofia da ciência fechada em sistemas de axiomas, bem como a essencial abertura do pensamento científico, especialmente em três campos: química, física e lógica. Gaston Bachelard começa com a crítica da noção clássica de substância: entre os dois polos – realismo e kantismo -, o “racionalismo dialético” contido na noção de substância permite desenvolver uma filosofia de realização das matérias e de relativização das categorias. O substancialismo é assim condenado por seus próprios pressupostos a partir de um exemplo extraído da microfísica, o da conexão espacial linear, onde o filósofo demonstra que a intuição primeira ou “natural” deve ceder lugar à “intuição trabalhada”, se quisermos compreender certas propriedades paradoxais da organização fenomênica. Bachelard critica a noção clássica de intuição a partir de um exemplo extraído da microfísica, o da conexão espacial linear, onde o filósofo demonstra que a intuição primeira ou “natural” deve ceder lugar à intuição trabalhada, se quisermos compreender certas propriedades paradoxais da organização fenomênica.  
As incertezas complementares de Werner Heisenberg são assim confirmadas pela concepção de propagação de Adolphe Buhl. Por fim, o autor faz a crítica analítica da dominação exclusiva da lógica aristotélica. Em ligação com as teorias físicas de seu tempo, em particular a de Heisenberg, ressalta a pertinência da observação de lógicas não aristotélicas, como por exemplo, de três valores. Pelo estudo desses três campos – a química, física e lógica -, Bachelard mostra o caráter incitativo da filosofia indutiva e sintética, que ele reúne sob o título “filosofia do ‘não”’ a qual serve de fundamento a um suprarracionalíssimo, que determina as propriedades de um supra-objeto e de uma objetividade que do objeto só retém aquilo que nele criticou e constitui exemplo disso na microfísica contemporânea. O filme “Copenhagen”, uma produção canadense-estadunidense de 2002, dirigido por Howard Davies faz um recorte temático sobre a parceria entre outros dois cientistas, o dinamarquês Niels Bohr e o alemão Werner Heisenberg, combinando a aventura do gênero “coming-of-age”, com Daniel Craig, Stephen Rea e Francesca Annis quando narra a vida exemplar de Werner Heisenberg.
De origem humilde, Gaston Bachelard trabalhou enquanto estudava. Pretendia formar-se engenheiro até que a 1ª grande guerra (1914-18) eclodiu e impossibilitou-lhe, felizmente, a conclusão deste projeto. Em 1903, após o término do curso secundário, ingressou na administração dos Correios trabalhando sessenta horas semanais. Nos momentos de lazer estudava, vindo a licenciar-se em 1912, aos 28 anos em Ciências Matemáticas. No ano seguinte, a administração dos correios lhe concede uma bolsa de estudos, a fim de que se preparasse para o concurso de engenheiro de telégrafo no Liceu Saint-Louis. Com a eclosão a guerra mundial, sua carreira foi interrompida, sendo obrigado a desistir de seu intento. Em 8 de julho de 1914 casou-se, e em 1920 sua esposa faleceu, deixando com ele a pequena Suzane. De 1917 a 1930 foi professor no magistério secundário em Bar-Sur-Aube, dedicando-se ao ensino das ciências – Física e Química – e posteriormente de Filosofia, na qual se licenciou em 1920 e tornou-se mestre em 1922. Doutorou-se em Letras com menção honrosa na Sorbone, com a apresentação da tese: “Ensaio sobre o conhecimento aproximado”, em 1927, publicada um ano depois. Nesse ensaio, encontram-se as bases de uma nova epistemologia.
No panorama filosófico do século XX, a obra de Gaston Bachelard é uma reflexão referencial sobre a ciência e os saberes objetivos em que se revela outra direção fundamental do seu pensamento – a poética. A psicanálise vem em auxílio de uma ideia implícita na obra de Bachelard: o homem é um ser que se percebe na sua relação de habitação e familiaridade inquietante com as coisas do mundo. Essa é a condição do ser que vive num mundo constituído por saberes e verdades que ele próprio inventa. A poesia e a ciência é uma forma de compreender a relação do homem com o seu saber. O nascimento de tal categoria decorre do desdobramento de questões relativas ao tempo incluídas em obras anteriores como: “L´intuition de l`instant” (1932), e “La dialéctique de la durée”, (1936), nas quais Bachelard desenvolve as teses da instantaneidade e da descontinuidade temporais. Neste sentido da durée bergsoniana, Bachelard contrapõe a noção de descontinuidade temporal. O tempo e a instantaneidade correspondem, para ele a problemática presente no livro: “L´intuition de l`instant”, a saber, que o tempo é uma realidade fechada sobre o instante e interrompida entre dois nadas. O tempo poderá renascer, mas é necessário primeiramente que ele morra. Ele não poderá transportar o seu ser de um instante para outro instante para daí fazer uma duração. 
Em 1930, aos 46 anos, com a obtenção do título de doutor, iniciou sua carreira universitária na Faculdade de Letras, cidade de Dijon, capital da região da Burgúndia no Departamento francês Côte-d`Or, importante centro de comercial, industrial, cultural e universitário da França, permanecendo até novembro de 1940, quando foi nomeado para a Sorbone, onde passa a ministrar cursos muito disputados pelos alunos devido ao espírito livre, original e profundo deste filósofo que foi um professor par excellence. Em 1951, ingressa na legião para a Academia de Ciências Morais e Políticas de Paris, quando posteriormente laureado com o Grande Prêmio Nacional de Letras em 1961,  próximo de sua morte ocorrida em 1962. No auge do prestígio intelectual proferiu a conferência inaugural do 1° colóquio de Les Cahiers Internationaux de Symbolisme, realizado em 1962, em Paris. Em sua memória foi criado o Centre Gaston Bachelard de Recherches sur L`Imaginaire et la Racionalité na Universidade de Borgonha.  
Em “A Intuição do Instante” o autor desenvolve e amplia a ideia do historiador francês Gaston Roupnel em um de seus mais importantes estudos – chamado Siloë – que propõe o olhar sobre a história numa perspectiva de tempo descontinuada, em instantes. Em Siloë, só o amor faz com que a duração progrida à medida que nos direcionamos à fonte única e misteriosa de seu leito. A partir da demonstração de alguns dos principais conceitos da filosofia bergsoniana – duração, criação, impulso vital – ele desenvolve e alonga a tese de Roupnel refutando que “a duração não passa de um número cuja unidade é o instante”. Segue afirmando que a duração não tem força direta – já que não é em si representativa de um ato – e que o tempo real só existe verdadeiramente pelo instante isolado, esse sim, acontecendo inteiramente no presente, no ato. O autor propõe uma aproximação conceitual – comparativamente na mesma constelação de Roupnel – que os hábitos e o progresso não se dissipam na descontinuidade do tempo; eles ganham força e uma nova dimensão social.
Enfim, após ter lido os “Cantos de Maldoror” de Lautréamont – sua principal obra, escrita originalmente em francês –, o filósofo Gaston Bachelard será um dos primeiros a escrever um livro acerca deste literato em 1939, cuja atualidade da abordagem pode trazer perplexidade para muitos historiadores. Primitividade poética é, para Bachelard, a agressividade do movimento criativo das imagens poéticas, que está em descompasso com as referências intelectuais, com os valores aprendidos pela tradição, em contradição com as interpretações já consolidadas. É no instante da criação poética que é possível apreender-lhe sua primitividade, alheia aos esquemas interpretativos que a tradição intelectualista lhe impõe. É, portanto, a partir de uma filosofia do ato poético – e não da ação poética – que está a riqueza da análise bachelardiana da obra de Lautréamont. Quando põe em contraposição os pensamentos de Henri Bergson e de Gaston Roupnel acerca da natureza do tempo, faz uma constatação: enquanto Bergson admite ser a duração contínua seu princípio, Roupnel afirma ser o instante sua realidade. Bachelard aprofunda esta antinomia, comparando ato e ação citando o livro “Siloë” (1927), de Roupnel, para responder esta questão.
Acredita-se que o pseudônimo Lautréamont tenha sido inspirado no nome de um romance de Eugène Sue, “Latréaumont”. Note-se que há uma leve diferença na grafia da palavra. A atribuição do título de Conde poderá ser uma referência ao Marquês de Sade ou uma forma de destacar-se da burguesia, ainda que não existam quaisquer provas destas duas teses. Mais robustas são as hipóteses apresentadas pelo romancista, dramaturgo e poeta pernambucano Ruy Câmara, no seu belíssimo livro: “Cantos de Outono - O Romance da vida de Lautréamont”. Segundo Ruy Câmara, o codinome sugere a junção de duas palavras de grande relevância na vida de Isidore Ducasse. A primeira palavra seria “lauréat”, que significa laureado ou premiado em concurso acadêmico, deslocando-se o “t” final para o meio teremos “lautréa”, que acrescida de “mont”, raiz da palavra “Montevidéu”, cidade natal do poeta, tem como resultado “Lautréamont”, denotando “o laureado de Montevidéu”. A terceira possibilidade, mais rigorosa que as duas anteriores, trabalha com a associação da palavra “l'autre”, “o outro”, mais a preposição “a” que indica lugar, a raiz “mont”, de Montevidéu, dando Lautréamont, cujo sentido único, exato e incontestável na semiologia representa “o outro de Montevidéu”, já que o primeiro é ele próprio. O símbolo não sendo já de natureza linguística deixa de se desenvolver numa só dimensão. 
 As motivações que ordenam os símbolos não apenas já não formam longas cadeias de razões, mas nem sequer cadeias. A explicação linear do tipo de dedução lógica ou narrativa introspectiva já não basta para o estudo das motivações simbólicas. A classificação dos grandes símbolos da imaginação em categorias motivacionais distintas apresenta, com efeito, pelo próprio fato da não linearidade e do semantismo das imagens, grandes dificuldades. Metodologicamente, se se parte dos objetos bem definidos pelos quadros da lógica dos utensílios, como faziam as clássicas “chaves dos sonhos”, segundo as estruturas antropológicas do imaginário, cai-se rapidamente, pela massificação das motivações, numa inextricável confusão. Parecem-nos mais sérias as tentativas para repartir os símbolos segundo os grandes centros de interesse de um pensamento, certamente perceptivo, mas ainda completamente impregnado de atitudes assimiladoras nas quais os acontecimentos perceptivos não passam de pretextos para os devaneios imaginários. Tais são, de fato, as classificações mais profundas de analistas das motivações do simbolismo religioso ou da imaginação de modo geral literária.   
No prolongamento dos esquemas explicativos, arquétipos e simples símbolos modernos pode-se considerar o mito. Lembramos, todavia, que não estamos tomando este termo na concepção restrita que lhe dão os etnólogos, que fazem dele apenas o reverso representativo de um ato ritual. Entendemos por mito, “um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a compor-se na narrativa”. O mito é já um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em ideias. O mito explicita um esquema ou um grupo de esquemas. Do mesmo modo que o arquétipo promovia a ideia e que o símbolo engendrava o nome, podemos dizer que o mito promove a doutrina religiosa, o sistema filosófico ou, como bem observou Bréhier, a narrativa histórica e lendária. O método de convergência evidencia o mesmo isomorfismo na constelação e no mito. Enfim, para sermos breves, este isomorfismo dos esquemas, arquétipos e símbolos no seio dos sistemas míticos ou de constelações estáticas pode levar-nos a verificar a existência de protocolos normativos das representações imaginárias, bem definidos e relativamente estáveis, agrupados em torno dos esquemas originais e que antropologicamente a literatura refere-se como estruturas.
Uma parte de sua obra, incluindo seus livros mais representativos sobre a tópica da intuição trabalhada como: A Poética do Espaço, A Poética do Devaneio, A Água e os Sonhos e O Ar e os Sonhos, é permeada por categorias e conceitos que fogem ao lugar comum de análise e, sobretudo, do debate contemporâneo da ciência institucionalizada: sonho, devaneio, poética, alquimia, tempo, imaginação. A riqueza de Bachelard consiste fundamentalmente do ponto de vista do processo de criação em trazer para sua produção intelectual um duplo projeto: o aspecto diurno da sua obra – onde se inscrevem os conceitos mais ligados à epistemologia – e o aspecto noturno – onde aparece a complementaridade dos sinais da poesia e do sonho – e posteriormente do devaneio e da ciência. Ao aproximar os dois aspectos, a sua concepção de história e filosofia demonstra que a cisão entre razão e imaginação fica bem clara se utilizarmos a via racional; se usarmos a via onírica, a razão e a imaginação se articulam, se interpenetram e se tornam complementares.
A atividade dialética surge esboçada e a partir da análise da noção de “corpúsculo”. Tendo como certo que o filósofo deve tentar compreender a novidade da linguagem e ao mesmo tempo aprender a formar noções e conceitos completamente novos para resistir aos conhecimentos comuns e à memória cultural, Bachelard, tentando precisar a noção de “corpúsculo”, rememora uma sequência de teses: o corpúsculo não é um pequeno corpo. Não é fragmento de substância. O corpúsculo não tem dimensões absolutas definidas. Só existe nos limites do espaço em que atua.  Correlativamente, se o corpúsculo não tem dimensões definidas, não tem, portanto, forma reconhecida. Melhor dizendo, o elemento não tem geometria. E, ipso facto, não se lhe pode atribuir um lugar muito preciso em virtude do princípio da indeterminação na Física de Heisenberg, a sua localização é submetida a tais restrições que a função de existência situada não tem mais valor absoluto. Em várias circunstâncias, a microfísica põe como um verdadeiro princípio a perda da individualidade do corpúsculo. Enfim, uma última tese que contradiz o axioma fundamental do chamado atomismo filosófico.
Complementarmente com as suas reflexões acerca da imaginação criadora e da poética, Bachelard infere que os corpúsculos, não sendo dados dos sentidos, “nem de perto nem de longe”, também não são dados escondidos. No entanto, apenas é possível conhecê-los, descobrindo-os, ou melhor, inventando-os, porque eles são a prova de que algo está no limite da invenção e da descoberta. Admirável é, então, a referência que Bachelard faz à noção de intuição trabalhada. Em Études, no ensaio “Idealismo discursivo” ele sublinha que tem alguma confiança na intuição para descrever positivamente o seu ser íntimo. Diz mesmo que o fato de exercermos uma preparação discursiva dá à intuição uma nova jeunnesse. De maneira que aconselha a fecharmos os olhos como uma forma de nos prepararmos para termos uma visão do nosso ser. A intuição será a via refletida de renunciar aos acidentes na história e significa um recurso metafísico de compreensão “de si”. Interessa, então, a intuição trabalhada e não a intuição imediata, a intuição que permite uma espécie de “repouso”, mesmo sabendo que na ciência, esse “repouso” na intuição pode ser “quebrado” pela necessidade de rigor metafísico e pela necessidade de encadear mais forte as teorias sociais.
Esta valorização da intuição intelectual em detrimento da intuição sensível torna-se nítida quando sustenta que o realismo das primeiras intuições deve pôr-se entre parêntesis, uma vez que a apreensão do real científico não se satisfaz com imagens primeiras. As imagens podem ser então, “boas” e “más”, indispensáveis e perigosas, dependendo da moderação no seu uso e da instância da redução em que as imagens devem permanecer quando as queremos usar para descrever um mundo que não se vê, ou fenômenos que não aparecem. Na ciência é preciso ir das imagens às ideias e este caminho é de análise, de discussão e de ordenação. Com certeza, também de polêmica, uma razão polêmica pode pensar-se como uma razão que tanto sabe afirmar, em reação às negações oficiais antecedentes, como negar afirmações anteriores a partir dos valores da verificação e da descoberta; uma razão polêmica critica e introduz “nãos” que passam a desempenhar um papel pedagógico decisivo na produção de conhecimento por darem a compreender que na interpretação de Gaston Bachelard toda a afirmação não é sinônimo de conhecimento positivo e que aquilo que é dado como verdadeiro aparece, muitas vezes, sob um fundo de erros e de ignorâncias tomadas como antecedentes. O espírito científico bachelardiano, exigindo aproximações sucessivas da experiência deve afastar-se daquelas teses cartesianas da razão. Então, com o novo espírito científico, sabe-se que todo o problema da intuição se encontra subvertido, trabalhado.
Com efeito, esta intuição não poderá ser primitiva porque é precedida por um discurso que realiza uma espécie de dualidade fundamental. Sua critica analítica é dirigida a Descartes no ponto essencial da sua doutrina, afirmando que o pensador setecentista acreditava não somente na existência de elementos absolutos no mundo objetivo, mas também que esses elementos absolutos seriam conhecidos na sua totalidade e diretamente. Porque, no fundo, era por eles que a evidência se tornava tão clara. A noção de “aproximações sucessivas da experiência” sugere a modificação espiritual, indica a necessidade de uma filosofia das ciências não cartesiana, revela a razão solidária de uma experiência que constrói e celebra a pedagogia da ruptura. Numa atitude pedagógica, assegura que a “filosofia do não”, não tem necessariamente de conduzir a um niilismo; ela é, inversamente, uma atividade construtiva. Um pensamento dialetizador afigura-se, então, a melhor forma de aumentar a garantia de criar fenômenos científicos completos. Esta interação está presente e significa que não se obtém mais que um conhecimento aproximado, inacabado, cuja objetividade tem apenas uma garantia provisória. De fato, todo o desenvolvimento do pensamento científico desde há um século, segundo Gaston Bachelard, provém de tais generalizações dialéticas que, portanto, perfazem o envolvimento daquilo que se nega.
Bibliografia geral consultada.
JAPIASSÚ, Hilton, O Mito da Neutralidade Científica. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1975; Idem, Para Ler Bachelard. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1976; BACHELARD, Gaston, La Poétique de L`Espace. 3ª édition. Paris: Les Presses Universitaires de France, 1961;  Idem, La Intuición del Instante. México: Fondo de Cultura Económica, 1985; Idem, A Dialética da Duração. 2ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1994; ALMEIDA, Fábio Ferreira de, A Poética como Ontologia da Diferença. Ensaio sobre a Filosofia de Gaston Bachelard. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2007; BENTO, Elói Alberto, Gaston Bachelard: O Lado Nocturno do Filósofo. Dissertação de Mestrado em Filosofia da Educação. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2010; CARVALHO, Flávio José de, Da Imaginação Criadora da Ciência à Imaginação Criadora da Poesia em Gaston Bachelard. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2011; WUNENBURGER, Jean-Jacques, Gaston Bachelard, Poetique des Images. Paris: Editeur Mimesis, 2012; LONG, Ruperto, No Dejaré Memorias. El Enigma del Conde de Lautréamont. México: Ediciones Aguilar, 2012; MELO, Roberta; ROCHA, Fábio Libório, “A Noção de Ruptura Epistemológica em Gaston Bachelard”. In: Revista Humus, vol. 4, num. 11, 2014; ARAÚJO, David Velanes de, A Noção de Ruptura Epistemológica no Pensamento de Gaston Bachelard. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2017; MACHADO, Fernando da Silva, O Tempo e a Vida em Gaston Bachelard. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Faculdade de Filosofia. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2017; SOUSA, Tairone Lima de, Gaston Bachelard e a Educação. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Centro de Educação. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2018; PEREIRA, André Jorge Campello Rodrigues, Gaston Bachelard e Robert Desoille: Terapia e Teoria da Imaginação. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2018; entre outros.  

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