Richard Rorty - Racionalidade & Atitude Profissional de Filósofo.
Ubiracy de Souza Braga
“Não há nada em nosso íntimo, exceto o que nós mesmos colocamos lá”. Richard Rorty
O que leva um estudioso de filosofia do neopragmatismo de Richard Rorty negar a identidade do filósofo quando insinua um tipo de propriedade sobre sua imagem como vemos agora?Richard
Rorty foi aluno da Universidade de Chicago muito cedo, apenas com 15 anos de
idade e da Universidade de Yale, onde fez o doutoramento. Na política, era liberal
no sentido norte-americano do termo, comprometido com a esquerda e defensor
da democracia. A teoria neopragmática de Rorty representa um termo filosófico recente, existente da década de 1960, sendo utilizado para denominar a filosofia que reintroduziu muitos dos conceitos do pragmatismo, sobre a verdade como objetivo de desvencilhar-se das influências dos dualismos metafísicos típicos; as distinções entre essência e acidente, aparência e realidade, sendo tal posição denominada de antiessencialista. Grande parte do que Rorty descreve em seus textos sobre a verdade desenvolve-se através de um diálogo com Donald Davidson (2002) e sua teoria semântica da verdade. Ambos estão de acordo que a noção de verdade não pode ter uma correspondência, como uma representação, mas discordam em alguns pontos quanto à solução que procuram encaminhar nessa questão. Enquanto que para Davidson, os conceitos podem ser verdadeiros e utilmente descrever uma realidade objetiva, para Rorty a verdade não deve ser um objetivo da reflexão filosófica. O objetivo é procurar evidências para nossas crenças ocidentais, e que não há nada mais que possamos fazer para firmar convicções.
Na
verdade, como observou com razão Pogrebinschi (2006), o próprio Rorty se
intitulou como um neopragmatista, constituindo o ponto de partida da reflexão filosófica para que
diversos autores. Mas não apenas adstritos ao campo da filosofia, também o
fizessem, dando início nas últimas duas décadas, a uma extensa produção
acadêmica que pode ser com propriedade chamada de neopragmatista. Em primeiro
lugar, o pragmatismo originalmente demonstra ser claramente uma filosofia compatível
com o realismo, enquanto o neopragmatismo rortyano é eminentemente antirrealista.
Em segundo lugar, para o pragmatismo clássico a experiência é um conceito
que ultrapassa a esfera de análise meramente da linguagem, podendo até mesmo atingir em seu ersatz formas pré-linguísticas ou não-lingüísticas, ao passo que Richard Rorty, ao se engajar
na virada linguística, de fato opera a substituição de um conceito pelo outro,
fazendo a linguagem ocupar no neopragmatismo a posição que a experiência dantes
ocupava no pragmatismo. A começar por essas duas diferenças basilares,
permanece a questão analítica de saber quão pragmatista é o neopragmatismo rortyano.
Em outras palavras: pode-se falar em univocidade ou linearidade entre os
pensamentos de Charles Peirce, William James e John Dewey, de um lado, e o de Rorty, de outro? Ou
ainda: permanece a questão se é posasível falar em continuidade entre os elementos que caracterizam o
pragmatismo em sua origem que são constituídos pelo antifundacionalismo, o
consequencialismo e o contextualismo e o pensamento neopragmatista?
O pragmatismo que em
diferentes variantes apresenta-se como uma forma de filosofia capaz de
enfrentar os desafios próprios de nosso tempo, certamente, pode ser
compreendido do ponto de vista de suas raízes, como sendo devedor, de um lado, ao
pragmatismo clássico dos pensadores norte-americanos Peirce, Dewey, James, Schiller,
por outro lado, às filosofias que emergiram da reviravolta pragmática do
Wittgenstein das “Investigações Filosóficas”. O pragmatismo norte-americano,
que segundo J-P Cometti, “é a filosofia mais solidamente enraizada na cultura
americana”, desenvolveu-se em torno de uma filosofia do conhecimento, mas,
desde o princípio, se afastou de concepções que tendem a privilegiar a busca de
um fundamento no absoluto ou a de um modelo da razão, que determina a priori as
possibilidades de busca e de descoberta. Pode-se dizer que o pensamento central
da metafísica, é que o conhecimento humano não se limita ao conhecimento da
experiência, mas que é possível chegar a um conhecimento objetivo do mundo
através dos conceitos. Fundamento da verdade não é, então, o mundo “material
empírico”, mas o “mundo do pensamento”, que apreende a estrutura inteligível do
real de análise. O espírito
humano é compreendido como coextensivo ao mundo em que as leis da lógica
exprimem as leis que estruturam a realidade. Rorty interpreta esta
postura do pensamento clássico como sendo a pretensão de captar, pela mediação
do conceito, a forma e o movimento da natureza e da história o que, em última
instância, desembocou na ideia de que o ser humano é capaz de descobrir como
reparar a injustiça da história humana.
Há
cerca de duzentos anos, a ideia de que a verdade era produzida, e não
descoberta começou a tomar conta do imaginário individual (o sonho) e coletivo (os
mitos, os ritos, os símbolos) europeu. O precedente estabelecido pelos
românticos conferiu a seu pleito uma plausibilidade inicial. O papel efetivo de
romances, poemas, peças teatrais, quadros, estátuas e prédios no movimento
social dos últimos 150 anos deu-lhe uma plausibilidade ainda maior, obtendo
legitimidade, já que as ideias adquirem força na história. Alguns filósofos
inclinaram-se ao iluminismo e continuaram a se identificar com a ciência. Eles
veem a antiga luta entre a ciência e a religião, a razão e a irracionalidade,
como um processo em andamento que assumiu a forma de luta entre a
razão e todas as mediações intraculturais que pensam na verdade constituída e não encontrada. Esses filósofos consideram que a ciência é a atividade
paradigmática e insistem que a ciência natural descobre a verdade, ao invés de cria-la.
Encaram
a expressão “criar a verdade” como meramente metafórica e totalmente enganosa.
Pensam na política e na arte como esferas em que a ideia de “verdade” fica
deslocada. Outros filósofos, percebendo que o mundo descrito pelas ciências
físicas não ensina nenhuma lição moral e não oferece conforto espiritual,
concluíram que a ciência não passa de uma serva da tecnologia. Esses filósofos
alinham-se com o utopista político e com o artista inovador. Os primeiros
contrastam a “realidade científica concreta” com o “subjetivo” ou o “metafórico”,
os segundos veem a ciência como mais uma das atividades humanas, e não como o
lugar em que os seres humanos deparam
com uma realidade não humana “concreta”. De acordo com essa visão, os grandes
cientistas inventam descrições do mundo que são úteis para o objetivo de prever
e controlar o que acontece, assim como os poetas e os pensadores políticos
inventam outras descrições do mundo para outros fins. Não há sentido algum, porém,
em que qualquer dessas descrições seja uma representação exata de como é o
mundo em si. Esses filósofos consideram inútil a própria ideia dessa
representação, consignando uma verdade de categoria fenomênica, como uma descrição do espírito ainda não plenamente cônscio de sua natureza espiritual (dialética) e, elevar ao tipo de verdade oferecida pelo poeta e pelo
revolucionário político.
O
idealismo alemão, porém, representou uma solução de compromisso pouco duradoura e
insatisfatória. É que Immanuel Kant e Georg Hegel fizeram apenas concessões parciais em seu
repúdio à ideia de que a verdade está “dada”. Dispusera-se a ver o mundo da
ciência empírica como um mundo “fabricado” – a ver a matéria como algo
construído pela mente, ou como feita
de uma mente insuficientemente cônscia de seu próprio caráter mental -, mas
persistiram em ver a mente, o espírito, as profundezas do eu como dotados de
uma natureza intrínseca – uma natureza que se poderia conhecer por uma espécie
de superciência não empírica, chamada
de filosofia. Isso significava que apenas metade da verdade – a metade
científica inferior – era produzida. A verdade superior, a verdade sobre a
mente, seara da filosofia, ainda era uma questão de descoberta, não de criação.
Richard Rorty precisa sua tese de distinção entre a afirmação de que o mundo
está dado e a de que a verdade dada, equivale a dizer, com bom senso, que a
maioria das coisas no espaço e no tempo, é efeito de causas que não incluem os
estados mentais humanos. Dizer que a verdade não está dada é dizer
que, onde não há frases, não há verdade. E que as frases são componentes das
línguas humanas, e que as línguas humanas são criações humanas. Só as
descrições podem ser “verdadeiras” ou “falsas” - sem o auxílio das atividades
descritivas dos seres humanos - não pode sê-lo. Em filosofia e lógica, a contingência enquanto representação da realidade é o modo de ser daquilo que não é necessário nem impossível.
É
bem verdade que a liberdade no pensamento tem somente o puro pensamento por sua
verdade; e verdade sem a implementação da vida. Por isso, para lembrarmos de Hegel,
é ainda só o conceito da liberdade, não a própria liberdade viva. Com efeito,
para ela a essência é só o pensar em geral, a forma coo tal, que afastando-se
da independência das coisas retornou a si mesma. Mas porque a individualidade,
como individualidade atuante, deveria representar-se como viva; ou, como
individualidade pensante, captar o mundo vivo como um “sistema de pensamento”;
teria de encontrar-se no pensamento mesmo, para aquela expansão do agir, um
conteúdo do que é bom, e para essa expansão do agir, um conteúdo do que é bom,
e para essa expansão do pensamento, um conteúdo do que é verdadeiro. Com isso
não haveria, absolutamente nenhum outro ingrediente, naquilo que é para a
consciência, a não ser o conceito que é a essência. O conceito
enquanto abstração, separando-se da multiplicidade variada das coisas, não tem
conteúdo nenhum em si mesmo, exceto um conteúdo que lhe é dado. A consciência,
quando pensa o conteúdo, o destrói como um ser alheio; mas o conceito é
conceito determinado e justamente essa determinidade é o alheio que o conceito
possui nele.
Esta
unidade do existente, o que existe, e do que é em si é o essencial da evolução.
É um conceito especulativo, esta unidade do diferente, do gérmen e do
desenvolvido. Ambas estas coisas são duas e, no entanto, uma. É um conceito da
razão. Por isso só todas as outras determinações são inteligíveis, mas o
entendimento abstrato não pode conceber isto. O entendimento fica nas
diferenças, só pode compreender abstrações, não o concreto, nem o conceito.
Resumindo, teremos uma única vida a qual está oculta. Mas depois entra na
existência e separadamente, na multiplicidade das determinações, e que com
graus distintos, são necessárias. E juntas de novo, constituem um sistema. Essa
representação é uma imagem da história da filosofia. O primeiro momento era o
em si da realização, e em si do gérmen etc. O segundo é a existência, aquilo
que resulta. Assim, o terceiro é a identidade de ambos, mais precisamente agora
o fruto da evolução, o resultado de todo este movimento. E a isto Hegel chama
“o ser por si”. É o “por si” do homem, do espírito mesmo. Somente o espírito
chega a ser verdadeiro por si, idêntico consigo. O que o espírito produz, seu
objeto de pensamento, é ele mesmo. Ele é um desembocar em seu outro. É um
desprendimento, um desdobrar-se, e por isso, ao mesmo tempo, um desafogo.
No
que toca mais precisamente a um dos lados da educação, melhor dizendo, à
disciplina, não se há de permitir ao adolescente abandonar-se a seu próprio
bel-prazer; ele deve obedecer para aprender a mandar. A obediência é o começo
de toda a sabedoria; pois, por ela, a vontade que ainda não conhece o
verdadeiro, o objetivo, e não faz deles o seu fim, pelo que ainda não é
verdadeiramente autônoma e livre, mas, antes, uma vontade despreparada, faz que
em si vigore a vontade racional que lhe vem de fora, e que pouco a pouco esta
se torne a sua vontade. O capricho deve ser quebrado pela disciplina; por ela
deve ser aniquilado esse gérmen do mal. No começo, a passagem de sua vida ideal
à sociedade civil pode parecer ao jovem como uma dolorosa passagem à vida de
filisteu. Até então preocupado apenas com objetos universais, e trabalhando só
para si mesmo, o jovem que se torna homem deve, ao entrar na vida prática, ser
ativo para os outros e ocupar-se com singularidades, pois concretamente se se
deve agir, tem-se de avançar em direção ao singular. Nessa conservadora
produção do mundo consiste no trabalho do homem. Podemos, pois, fora de dúvida, de um lado
dizer que o homem só produz o que já existe. Por outro, é necessário que um
progresso individual seja efetuado. Mas o progredir no mundo só ocorrer nas
massas, e só se faz notar em uma grande soma de coisas produzidas.
É a característica preservada e atribuída ao ente
cuja existência é não necessária, mas, ao mesmo tempo, não impossível
- isto é, a sua realidade não pode ser demonstrada nem negada em termos abstratos definitivos. Dizer que são contingentes as proposições, e neste sentido que não contém um entendimento necessariamente verdadeiras nem necessariamente falsas é uma boutade. Há quatro classes de
proposições, algumas das quais se sobrepõem: proposições necessariamente
verdadeiras ou tautologias, que devem ser verdadeiras, não importam quais são
ou poderiam ser as circunstâncias. Geralmente o que se entende por proposição
necessária é a proposição “necessariamente verdadeira”. Proposições
necessariamente falsas ou contradições, que devem ser falsas, não importam
quais são ou poderiam ser as circunstâncias. Proposições contingentes, que não são necessariamente verdadeiras nem
necessariamente falsas. Proposições possíveis, que são verdadeiras ou poderiam
ter sido verdadeiras em certas circunstâncias. Enfim, todas as proposições
necessariamente verdadeiras e todas as proposições contingentes também são
proposições possíveis.
Richard Rorty estudou na Universidade
de Chicago precocemente, com apenas com 15 anos e da Universidade de Yale, onde
fez o doutoramento com o título “The concept of Potentiality” e seu primeiro
livro já como Editor, “The Linguistic Turn” (1967). Foi influenciado, e ao
mesmo tempo se apropriou de maneira singular dos escritos de John Dewey, e com
o notável trabalho feito por filósofos pós-analíticos, realizando uma leitura e combinação entre eles
muito original. Embora seja ideologizado um “crente na verdade” desiludido, não
se sustenta que Rorty tivesse, no início de sua carreira, objetivos
metafísicos. Em seu primeiro artigo, a primeira frase é comprometedora: “O
pragmatismo está se tornando respeitável novamente”. Para Rorty, o objetivo
fundamental da filosofia analítica consiste em demonstrar a insuficiência do
“horizonte mentalista” na concepção do conhecimento que é pensado como um
produto de uma ação da autoconsciência do sujeito. Os pragmáticos geralmente “defendem”
analiticamente que a importância de uma ideia deve ser medida pela sua
utilidade ou eficácia para lidar com um dado problema, e ipso facto que as ideias devem ser consideradas não como válidas em
si mesmas, mas como “guias para a ação”.
A postura de William James significou
uma enorme alteração no pensamento contemporâneo ocidental. A sua premissa
fundamental está associada ao “integralismo”. James afirmou que a filosofia
ocidental não havia feito nada senão viver indo de um extremo a outro no
entendimento da existência: de Parménides (como algo sempre estático) a
Heráclito (como algo sempre em mudança), de Aristóteles (com a sua insistência
no material como critério de verdade) a Platão (com as ideias como parâmetro do
certo), de Hegel (com o idealismo) a Auguste Comte (com o positivismo). E
assim, sem nunca lograr uma concepção medida da existência, onde o cambiante e
o estável, o material e o abstrato, se harmonizem. Nos últimos anos o “anti-epistemólogo”
que não defendia o fim da filosofia, mas sim da filosofia epistemologicamente centrada, surpreendeu os críticos quando
começou a intervir, fora de sua zona de conforto, cada vez mais em política. Contudo,
foi Nietzsche o primeiro a sugerir explicitamente que abandonássemos toda a
ideia de conhecer a verdade. Sua definição da verdade como um “exército móvel
de metáforas” equivaleu a dizer que a ideia inteira de “representar a realidade”
por meio da linguagem e, portanto, de descobrir um contexto único para todas as
vidas humanas, devia ser abandonada. Seu perspectivismo equivaleu a afirmar que
o universo não tinha um rol de carga a ser conhecida, nenhuma extensão
determinada. Criar a própria mente é criar a própria linguagem, em vez de
permitir que a extensão da mente seja ditada pela linguagem deixada por outros
seres humanos.
Só os poetas, suspeitava Friedrich Nietzsche,
podem verdadeiramente apreciar a contingência. O restante de nós está fadado a
continuar a ser filósofo, a insistir em que de fato só existe um rol de carga
verdadeiro, uma descrição verdadeira da situação humana, um contexto universal
de nossas vidas. Estamos fadados a passar nossa vida consciente tentando fugir
da contingência, em vez de, como o poeta forte, reconhecermos a contingência e
nos apropriarmos dela. A linha que separa a fraqueza e a força é, pois, a linha
entre usar uma linguagem que é conhecida e universal e produzir uma linguagem
que, apesar de inicialmente desconhecida e idiossincrática, de algum modo torna
tangível a marca cega exibida por todas as condutas do indivíduo. Com sorte – o
tipo de sorte que assinala a diferença entre o talento e a excentricidade -,
essa linguagem também parecerá inevitável à geração seguinte. As condutas dessa
nova geração exibirão essa marca. Nietzsche, ao contrário, acha que a fronteira
importante a cruzar não é a que separa o tempo da verdade atemporal, mas a que
separa o velho do novo. Ele só considera triunfal a vida humana na medida em
que ela escapa às descrições herdadas das contingências de sua existência e
encontra novas descrições.
O drama de uma vida humana
individual, ou da história da humanidade como um todo, não é um drama em que
uma meta preexistente seja triunfalmente atingida ou tragicamente não
alcançada. Nem uma realidade externa constante nem tampouco uma infalível fonte
interna de inspiração compõem o pano de fundo desses dramas. Ao contrário, ver
a própria vida ou a vida da comunidade como uma narrativa dramática é vê-la com
um processo de auto-superação nietzschiana. O paradigma dessa narrativa é a
vida do gênio capaz de dizer “eu quis assim”. Sobre a parte relevante do passado,
por ter encontrado um modo de descrever esse passado. E que o próprio passado
jamais conheceu e, ter descoberto um eu, de maneira afirmativa, para compreender que seus precursores nunca
souberam ser possível. Nessa cosmovisão nietzschiana, o impulso de pensar, indagar e
tecer outra vez a si mesmo, de maneira cada vez mais minuciosa, não é simplesmente
o assombro, mas o pavor.
O
que liga Nietzsche e Freud é essa tentativa – a tentativa de considerar que uma
marca cega não é indigna de programar nossa vida ou nossos poemas. Há uma diferença,
porém, entre Nietzsche e Freud que não é apreendida e que torna Freud mais útil
e mais plausível do que Nietzsche é que ele não relega a vasta maioria da
humanidade à condição de animais agonizantes. Isso porque a descrição freudiana
da fantasia inconsciente mostra-nos como ver toda vida humana como poema – ou,
mais exatamente, toda vida humana como não tão destroçada pela dor que não
possa aprender uma linguagem, nem tão imersa no trabalho que não tenha tempo
para gerar uma descrição de si mesma. Freud considera que cada vida é uma
tentativa de se revestir de suas próprias metáforas. Enfim, o progresso
poético, artístico, filosófico, científico ou político resulta da coincidência
acidental de uma obsessão particular com uma necessidade pública. A poesia
forte, a moral de senso comum, a moral revolucionária, a ciência normal, a
ciência revolucionária e o tipo de fantasia que só é inteligível para uma
pessoa, mas todos são do ponto de vista freudiano, maneiras diferentes de lidar
com “marcas cegas” – ou, em termos mais exatos, maneiras de lidar com
diferentes marcas cegas: marcas que podem ser exclusivas de indivíduo ou
comuns aos membros de uma comunidade historicamente condicionada.
Fundamentalmente, a linguagem, a consciência, a moral e as mais elevadas esperanças são entendidas como
produtos contingentes, como literalizações
do que já foi um conjunto representativo de metáforas acidentalmente produzidas é adotar uma
identidade pessoal apropriada à cidadania nesse Estado idealmente liberal. É por
isso que o cidadão ideal desse Estado liberal seria alguém que pensa nos
fundadores e nos preservadores de sua sociedade como poetas, e não como pessoas
que descobriram ou imaginaram claramente a verdade sobre o mundo ou sobre a
humanidade. Ele mesmo pode ser ou não poeta, pode ou não encontrar suas
próprias metáforas para suas fantasias idiossincráticas, pode ou não tornar
essas fantasias conscientes, mas será suficientemente freudiano, no plano do
senso comum – uma reflexão sem juízo, para ver os fundadores e transformadores
da sociedade, os legisladores reconhecidos de sua língua e, de sua moral, como
pessoas que por acaso encontraram palavras adequadas as suas fantasias, metáforas
que responderam às necessidades vagamente sentidas do resto da sociedade. Os
cidadãos da utopia liberal de Richard Rorty seriam pessoas com uma ideia da contingência de sua linguagem de
deliberação moral e, portanto, de sua consciência moral e, portanto, de sua
comunidade. Seriam ironistas liberais – pessoas que atenderiam ao critério
schumpeteriano de civilização, que combinariam o compromisso social com o
sentimento de contingência de seu próprio compromisso.
Para
enunciar cruamente as diferenças, Michel Foucault é um ironista que não se
dispõe a ser liberal, ao passo que Jürgen Habermas é um liberal que não se
dispõe a ser ironista. Foucault e Habermas, como Berlin, são críticos das
tentativas platônicas e kantianas tradicionais de isolar um componente nuclear
do eu. Ambos veem Friedrich Nietzsche como tendo uma importância crucial. Foucault
considera que Nietzsche ensinou-o a evitar a tentativa de uma perspectiva
supra-histórica, a tentativa de descobrir origens atemporais – a se contentar
com uma narrativa genealógica das contingências. Nietzsche também o ensinou a
olhar duas vezes para o liberalismo – a olhar para o que está atrás das novas
liberdades trazidas pela democracia política, para as novas formas de coerção
impostas pelas sociedades democráticas. Porém, enquanto Foucault toma Nietzsche
como inspiração, Habermas – apesar de concordar com as críticas nietzschianas à
“razão centrada no sujeito”, que faz parte do racionalismo tradicional –
considera que ele nos conduz a um beco sem saída. Habermas considera que
Nietzsche deixa clara a falência, para fins da “emancipação” humana, do que
chama de “filosofia da subjetividade”. Com Nietzsche, “a crítica da modernidade
[isto é, a tentativa de nos havermos com a perda dos tipos de coesão social
encontrados nas sociedades pré-modernas] prescinde pela primeira vez de sua
retenção de um conteúdo emancipador”.
Habermas
toma essa recusa da tentativa de emancipação como sendo um legado nietzschiano
para Heidegger, Adorno, Derrida e Foucault – legado desastroso, que tornou a
reflexão filosófica irrelevante para a esperança liberal, na melhor das
hipóteses, e antagônica a ela, na pior. Habermas considera que esses pensadores
– teóricos devorados por sua ironia – constituem uma espécie de reductio ad absurdum da filosofia da
subjetividade. A resposta de Habermas a Nietzsche é tentar minar o ataque
nietzschiano a nossas tradições religiosas e metafísicas, substituindo a ´filosofia
da subjetividade` por uma ´filosofia da intersubjetividade` – substituindo a
antiga ´concepção da ´razão` centrada no sujeito`, compartilhada por Kant e
Nietzsche, pelo que Habermas denomina ´razão comunicativa`. Nesse ponto
Habermas faz o mesmo gesto de Wilfrid Sellars: os dois filósofos tentam interpretar a
razão a internalização de normas sociais, e não um componente
intrínseco do eu humano. Habermas pretende ´fundamentar` as instituições
democráticas do mesmo modo que esperava Kant – porém almeja fazer melhor esse
trabalho, invocando a ideia de ´comunicação livre de dominação` para substituir
o ´respeito à dignidade humana` como a égide sob a qual a sociedade deve tornar-se
mais cosmopolita e democrática. A resposta de Foucault a tentativas como as de
Habermas, Dewey e Berlin – de erigir a filosofia em torno das necessidades de
uma sociedade democrática – é assinalar suas
deficiências, assim como suas maneiras de não
dar margem à criação pessoal, aos projetos particulares.
Tal
como Habermas e Sellars, ele aceita a visão de George Herbert Mead de que o eu é uma criação da
sociedade. Ao contrário deles, não se dispõe a admitir que os seus moldados
pelas sociedades liberais modernas sejam melhores do que os seus criados por
sociedades anteriores. Grande parte da obra de Foucault – a parte mais valiosa,
segundo Rorty, consiste em mostrar que os padrões de aculturação
característicos das sociedades liberais impuseram, aos integrantes destas,
certos tipos de limitações com que as antigas sociedades pré-modernas não
haviam sonhado. Por ouro lado, ele não se dispõe a ver essas limitações como
algo compensado pela redução do sofrimento, assim como Nietzsche não se dispunha
a ver o ressentimento da chamada “moral do escravo” como compensado nessa redução.
A discordância de Rorty com relação a Foucault resume-se na afirmação de que
essa redução efetivamente compensa tais limitações. Além disso, concorda com
Habermas em que a descrição foucaultiana de como o poder moldou nossa
subjetividade contemporânea exclui todos os aspectos em que a erotização e a
internalização da natureza subjetiva também significou um aumento da liberdade
e da expressão. E, o mais importante, enfatiza Rorty, que a sociedade liberal
contemporânea já contém as instituições para seu aprimoramento. Isto é a racionalidade de um aprimoramento
capaz de mitigar os perigos vistos, por exemplo por Michel Foucault, assim como sugere que o
pensamento social e político do Ocidente talvez tenham passado pela última
revolução conceitual de que
necessita.
A
principal discordância com relação a Michel Foucault é precisamente quanto ao fato de “nós,
os liberais”, como afirma Rorty, poder ser ou não algo suficientemente bom. O tipo de
autonomia buscado por ironistas criadores do eu, como Nietzsche, Derrida ou
Foucault, não é o tipo de coisa que pudesse algum
dia ser encarnada normalmente pelas instituições sociais. O desejo de ser autônomo para
o desejo do liberal de evitar a crueldade e o sofrimento – um desejo que
Foucault compartilhava, muito embora não se dispusesse a expressá-lo. Em 1997 Richard
Rorty apelou às universidades, a regressar a uma política liberal “que no
essencial se ocupa de impedir que os ricos desvalorizem o resto da população”. Ele
dedica seu livro: Contingency, Irony, and Solidarity (1989): - “Em memória
de seis liberais: meus pais e avós”. Foi galardoado com o Prêmio Meister
Eckhart, no ano de 2001, em cerimônia na qual Jürgen Habermas o nomeou como “um
dos mais significativos filósofos da atualidade”. No debate metodológico em
livro de Robert Brandom, intitulado: Rorty
and his Critics, a filosofia de Richard Rorty recebeu
críticas analíticas por parte de Donald Davidson, Jürgen Habermas, Hilary
Putnam, John McDowell, Jacques Bouveresse, Daniel Dennett, entre outros.
Enfim,
Para Rorty, os pragmatistas de nenhuma forma apelam no sentido hermenêutico a uma teoria sobre a
natureza da realidade, do conhecimento ou do homem, afirmando que “nada existe
como verdade ou bem”. Isto de forma alguma implica, para ele, uma teoria
subjetivista ou relativista da verdade ou do bem, porque o que eles desejam é
simplesmente mudar de tema. Segundo Manfredo de Oliveira (2013), o elemento
inteiramente novo é que a autoridade transfere-se de um sujeito que representa
o mundo objetivo para uma comunidade de sujeitos que se entendem entre si a
partir da base comum de um mundo vivido, compartilhado diante do qual cada um
justifica suas concepções. Conhecido é então o que é aceito como racional
segundo os critérios da práxis exercida pela comunidade. Isto provoca uma
reviravolta radical na concepção de conhecimento: a objetividade da experiência
cede o lugar à intersubjetividade da compreensão que é, em princípio, mutável
uma vez que podem ser outros as crenças e os valores do universo simbólico que
funda o entendimento recíproco entre os sujeitos. Uma
consequência imediata da nova concepção é que a justificação depende sempre de
critérios diferentes de acordo com a representação de contextos históricos e sociais.
Isto
exige de nós praticamente que abandonemos nossa preocupação com a pretensão de objetividade
e tornemo-nos satisfeitos com a intersubjetividade. São enormes as
consequências no que diz respeito à problemática da verdade: por não ser o
conhecimento um “espelho da natureza”, mas algo que está fundamentalmente
imbricado com a práxis dialogal e o contexto social, então a crítica das
diferentes formas de práxis social é destituída de qualquer sentido, já que
estamos presos pelos contextos simbólicos e qualquer tentativa de
transcendência a eles significa um retorno à postura fundamentalista. Numa
palavra, estabelecido que é impossível ir além do horizonte linguístico de
opiniões justificadas, como se combina esta tese fundamental da reviravolta
pragmática com a intuição de que sentenças verdadeiras levantam a pretensão de
dar conta dos fatos do mundo. O desafio central do contextualismo de Rorty está
aqui: relacionar verdade e justificação. A reviravolta pragmática traz um
modelo de conhecimento contraposto ao modelo tradicional da representação, que
é um modelo estático. Nossos conhecimentos constituem, na dimensão espacial, o
resultado de nosso trabalho sobre as decepções em nossa convivência inteligente
com um mundo repleto de riscos, na dimensão social, a partir da legitimação de
soluções de problemas frente às objeções de outros participantes da prática na
dimensão argumentativa e, na dimensão temporal, a partir de processos de
aprendizagem que se alimentam da revisão dos próprios erros.
Bibliografia
geral consultada.
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Maria Carvalho, “Niklas Luhmann e Richard Rorty: Contingências e
Inconsistências”. In: Trans/Form/Ação.
Vol. 38 n°1. Marília Jan./Apr. 2015; TOLEDO CIRNE DE JUNIOR, Joaquim Elói, Richard Rorty e a Emergência da Filosofia Pós-Analítica: Transformações Institucionais e Mudança Intelectual na Filosofia Profissional Norte-Americana Contemporânea. Tese de Doutorado em Filosofia. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade de Campinas, 2015; SOUZA, Roger
Klinsman Aguiar de, A Contingência dos Caminhos: Verdade e Redescrição em
Richard Rorty. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em
Filosofia. Instituto de Cultura e Arte. Departamento de Filosofia. Fortaleza: Universidade
Federal do Ceará, 2018; entre outros.
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