sábado, 6 de janeiro de 2018

Richard Rorty - Racionalidade & Atitude Profissional de Filósofo.

                                                                                                     Ubiracy de Souza Braga
 
Não há nada em nosso íntimo, exceto o que nós mesmos colocamos lá”. Richard Rorty


                    O que leva um estudioso de filosofia do neopragmatismo de Richard Rorty negar a identidade do filósofo quando insinua um tipo de propriedade sobre sua imagem como vemos agora?  Richard Rorty foi aluno da Universidade de Chicago muito cedo, apenas com 15 anos de idade e da Universidade de Yale, onde fez o doutoramento. Na política, era liberal no sentido norte-americano do termo, comprometido com a esquerda e defensor da democracia. A teoria neopragmática de Rorty representa um termo filosófico recente, existente da década de 1960, sendo utilizado para denominar a filosofia que reintroduziu muitos dos conceitos do pragmatismo, sobre a verdade como objetivo de desvencilhar-se das influências dos dualismos metafísicos típicos; as distinções entre essência e acidente, aparência e realidade, sendo tal posição denominada de antiessencialista. Grande parte do que Rorty descreve em seus textos sobre a verdade desenvolve-se através de um diálogo com Donald Davidson (2002) e sua teoria semântica da verdade. Ambos estão de acordo que a noção de verdade não pode ter uma correspondência, como uma representação, mas discordam em alguns pontos quanto à solução que procuram encaminhar nessa questão. Enquanto que para Davidson, os conceitos podem ser verdadeiros e utilmente descrever uma realidade objetiva, para Rorty a verdade não deve ser um objetivo da reflexão filosófica. O objetivo é procurar evidências para nossas crenças ocidentais, e que não há nada mais que possamos fazer para firmar convicções. 
         Na verdade, como observou com razão Pogrebinschi (2006), o próprio Rorty se intitulou como um neopragmatista, constituindo o ponto de partida da reflexão filosófica para que diversos autores. Mas não apenas adstritos ao campo da filosofia, também o fizessem, dando início nas últimas duas décadas, a uma extensa produção acadêmica que pode ser com propriedade chamada de neopragmatista. Em primeiro lugar, o pragmatismo originalmente demonstra ser claramente uma filosofia compatível com o realismo, enquanto o neopragmatismo rortyano é eminentemente antirrealista. Em segundo lugar, para o pragmatismo clássico a experiência é um conceito que ultrapassa a esfera de análise meramente da linguagem, podendo até mesmo atingir em seu ersatz formas pré-linguísticas ou não-lingüísticas, ao passo que Richard Rorty, ao se engajar na virada linguística, de fato opera a substituição de um conceito pelo outro, fazendo a linguagem ocupar no neopragmatismo a posição que a experiência dantes ocupava no pragmatismo. A começar por essas duas diferenças basilares, permanece a questão analítica de saber quão pragmatista é o neopragmatismo rortyano. Em outras palavras: pode-se falar em univocidade ou linearidade entre os pensamentos de Charles Peirce, William James e John Dewey, de um lado, e o de Rorty, de outro? Ou ainda: permanece a questão se é posasível falar em continuidade entre os elementos que caracterizam o pragmatismo em sua origem que são constituídos pelo antifundacionalismo, o consequencialismo e o contextualismo e o pensamento neopragmatista?

        O pragmatismo que em diferentes variantes apresenta-se como uma forma de filosofia capaz de enfrentar os desafios próprios de nosso tempo, certamente, pode ser compreendido do ponto de vista de suas raízes, como sendo devedor, de um lado, ao pragmatismo clássico dos pensadores norte-americanos Peirce, Dewey, James, Schiller, por outro lado, às filosofias que emergiram da reviravolta pragmática do Wittgenstein das “Investigações Filosóficas”. O pragmatismo norte-americano, que segundo J-P Cometti, “é a filosofia mais solidamente enraizada na cultura americana”, desenvolveu-se em torno de uma filosofia do conhecimento, mas, desde o princípio, se afastou de concepções que tendem a privilegiar a busca de um fundamento no absoluto ou a de um modelo da razão, que determina a priori as possibilidades de busca e de descoberta. Pode-se dizer que o pensamento central da metafísica, é que o conhecimento humano não se limita ao conhecimento da experiência, mas que é possível chegar a um conhecimento objetivo do mundo através dos conceitos. Fundamento da verdade não é, então, o mundo “material empírico”, mas o “mundo do pensamento”, que apreende a estrutura inteligível do real de análise. O espírito humano é compreendido como coextensivo ao mundo em que as leis da lógica exprimem as leis que estruturam a realidade. Rorty interpreta esta postura do pensamento clássico como sendo a pretensão de captar, pela mediação do conceito, a forma e o movimento da natureza e da história o que, em última instância, desembocou na ideia de que o ser humano é capaz de descobrir como reparar a injustiça da história humana.



Há cerca de duzentos anos, a ideia de que a verdade era produzida, e não descoberta começou a tomar conta do imaginário individual (o sonho) e coletivo (os mitos, os ritos, os símbolos) europeu. O precedente estabelecido pelos românticos conferiu a seu pleito uma plausibilidade inicial. O papel efetivo de romances, poemas, peças teatrais, quadros, estátuas e prédios no movimento social dos últimos 150 anos deu-lhe uma plausibilidade ainda maior, obtendo legitimidade, já que as ideias adquirem  força na história. Alguns filósofos inclinaram-se ao iluminismo e continuaram a se identificar com a ciência. Eles veem a antiga luta entre a ciência e a religião, a razão e a irracionalidade, como um processo em andamento que assumiu a forma de luta entre a razão e todas as mediações intraculturais que pensam na verdade constituída e não encontrada. Esses filósofos consideram que a ciência é a atividade paradigmática e insistem que a ciência natural descobre a verdade, ao invés de cria-la.
Encaram a expressão “criar a verdade” como meramente metafórica e totalmente enganosa. Pensam na política e na arte como esferas em que a ideia de “verdade” fica deslocada. Outros filósofos, percebendo que o mundo descrito pelas ciências físicas não ensina nenhuma lição moral e não oferece conforto espiritual, concluíram que a ciência não passa de uma serva da tecnologia. Esses filósofos alinham-se com o utopista político e com o artista inovador. Os primeiros contrastam a “realidade científica concreta” com o “subjetivo” ou o “metafórico”, os segundos veem a ciência como mais uma das atividades humanas, e não como o lugar em que os seres humanos  deparam com uma realidade não humana “concreta”. De acordo com essa visão, os grandes cientistas inventam descrições do mundo que são úteis para o objetivo de prever e controlar o que acontece, assim como os poetas e os pensadores políticos inventam outras descrições do mundo para outros fins. Não há sentido algum, porém, em que qualquer dessas descrições seja uma representação exata de como é o mundo em si. Esses filósofos consideram inútil a própria ideia dessa representação, consignando uma verdade de categoria fenomênica, como uma descrição do espírito ainda não plenamente cônscio de sua natureza espiritual (dialética) e, elevar ao tipo de verdade oferecida pelo poeta e pelo revolucionário político.                       
O idealismo alemão, porém, representou uma solução de compromisso pouco duradoura e insatisfatória. É que Immanuel Kant e Georg Hegel fizeram apenas concessões parciais em seu repúdio à ideia de que a verdade está “dada”. Dispusera-se a ver o mundo da ciência empírica como um mundo “fabricado” – a ver a matéria como algo construído pela mente, ou como feita de uma mente insuficientemente cônscia de seu próprio caráter mental -, mas persistiram em ver a mente, o espírito, as profundezas do eu como dotados de uma natureza intrínseca – uma natureza que se poderia conhecer por uma espécie de superciência não empírica, chamada de filosofia. Isso significava que apenas metade da verdade – a metade científica inferior – era produzida. A verdade superior, a verdade sobre a mente, seara da filosofia, ainda era uma questão de descoberta, não de criação. Richard Rorty precisa sua tese de distinção entre a afirmação de que o mundo está dado e a de que a verdade dada, equivale a dizer, com bom senso, que a maioria das coisas no espaço e no tempo, é efeito de causas que não incluem os estados mentais humanos. Dizer que a verdade não está dada é dizer que, onde não há frases, não há verdade. E que as frases são componentes das línguas humanas, e que as línguas humanas são criações humanas. Só as descrições podem ser “verdadeiras” ou “falsas” - sem o auxílio das atividades descritivas dos seres humanos - não pode sê-lo. Em filosofia e lógica, a contingência enquanto representação da realidade é o modo de ser daquilo que não é necessário nem impossível.  

É bem verdade que a liberdade no pensamento tem somente o puro pensamento por sua verdade; e verdade sem a implementação da vida. Por isso, para lembrarmos de Hegel, é ainda só o conceito da liberdade, não a própria liberdade viva. Com efeito, para ela a essência é só o pensar em geral, a forma coo tal, que afastando-se da independência das coisas retornou a si mesma. Mas porque a individualidade, como individualidade atuante, deveria representar-se como viva; ou, como individualidade pensante, captar o mundo vivo como um “sistema de pensamento”; teria de encontrar-se no pensamento mesmo, para aquela expansão do agir, um conteúdo do que é bom, e para essa expansão do agir, um conteúdo do que é bom, e para essa expansão do pensamento, um conteúdo do que é verdadeiro. Com isso não haveria, absolutamente nenhum outro ingrediente, naquilo que é para a consciência, a não ser o conceito que é a essência. O conceito enquanto abstração, separando-se da multiplicidade variada das coisas, não tem conteúdo nenhum em si mesmo, exceto um conteúdo que lhe é dado. A consciência, quando pensa o conteúdo, o destrói como um ser alheio; mas o conceito é conceito determinado e justamente essa determinidade é o alheio que o conceito possui nele.  

Esta unidade do existente, o que existe, e do que é em si é o essencial da evolução. É um conceito especulativo, esta unidade do diferente, do gérmen e do desenvolvido. Ambas estas coisas são duas e, no entanto, uma. É um conceito da razão. Por isso só todas as outras determinações são inteligíveis, mas o entendimento abstrato não pode conceber isto. O entendimento fica nas diferenças, só pode compreender abstrações, não o concreto, nem o conceito. Resumindo, teremos uma única vida a qual está oculta. Mas depois entra na existência e separadamente, na multiplicidade das determinações, e que com graus distintos, são necessárias. E juntas de novo, constituem um sistema. Essa representação é uma imagem da história da filosofia. O primeiro momento era o em si da realização, e em si do gérmen etc. O segundo é a existência, aquilo que resulta. Assim, o terceiro é a identidade de ambos, mais precisamente agora o fruto da evolução, o resultado de todo este movimento. E a isto Hegel chama “o ser por si”. É o “por si” do homem, do espírito mesmo. Somente o espírito chega a ser verdadeiro por si, idêntico consigo. O que o espírito produz, seu objeto de pensamento, é ele mesmo. Ele é um desembocar em seu outro. É um desprendimento, um desdobrar-se, e por isso, ao mesmo tempo, um desafogo.

No que toca mais precisamente a um dos lados da educação, melhor dizendo, à disciplina, não se há de permitir ao adolescente abandonar-se a seu próprio bel-prazer; ele deve obedecer para aprender a mandar. A obediência é o começo de toda a sabedoria; pois, por ela, a vontade que ainda não conhece o verdadeiro, o objetivo, e não faz deles o seu fim, pelo que ainda não é verdadeiramente autônoma e livre, mas, antes, uma vontade despreparada, faz que em si vigore a vontade racional que lhe vem de fora, e que pouco a pouco esta se torne a sua vontade. O capricho deve ser quebrado pela disciplina; por ela deve ser aniquilado esse gérmen do mal. No começo, a passagem de sua vida ideal à sociedade civil pode parecer ao jovem como uma dolorosa passagem à vida de filisteu. Até então preocupado apenas com objetos universais, e trabalhando só para si mesmo, o jovem que se torna homem deve, ao entrar na vida prática, ser ativo para os outros e ocupar-se com singularidades, pois concretamente se se deve agir, tem-se de avançar em direção ao singular. Nessa conservadora produção do mundo consiste no trabalho do homem. Podemos, pois, fora de dúvida, de um lado dizer que o homem só produz o que já existe. Por outro, é necessário que um progresso individual seja efetuado. Mas o progredir no mundo só ocorrer nas massas, e só se faz notar em uma grande soma de coisas produzidas.

         É a característica preservada e atribuída ao ente cuja existência é não necessária, mas, ao mesmo tempo, não impossível - isto é, a sua realidade não pode ser demonstrada nem negada em termos abstratos definitivos. Dizer que são contingentes as proposições, e neste sentido que não contém um entendimento necessariamente verdadeiras nem necessariamente falsas é uma boutade. Há quatro classes de proposições, algumas das quais se sobrepõem: proposições necessariamente verdadeiras ou tautologias, que devem ser verdadeiras, não importam quais são ou poderiam ser as circunstâncias. Geralmente o que se entende por proposição necessária é a proposição “necessariamente verdadeira”. Proposições necessariamente falsas ou contradições, que devem ser falsas, não importam quais são ou poderiam ser as circunstâncias. Proposições contingentes, que não são necessariamente verdadeiras nem necessariamente falsas. Proposições possíveis, que são verdadeiras ou poderiam ter sido verdadeiras em certas circunstâncias. Enfim, todas as proposições necessariamente verdadeiras e todas as proposições contingentes também são proposições possíveis.
         Richard Rorty estudou na Universidade de Chicago precocemente, com apenas com 15 anos e da Universidade de Yale, onde fez o doutoramento com o título “The concept of Potentiality” e seu primeiro livro já como Editor, “The Linguistic Turn” (1967). Foi influenciado, e ao mesmo tempo se apropriou de maneira singular dos escritos de John Dewey, e com o notável trabalho feito por filósofos pós-analíticos,  realizando uma leitura e combinação entre eles muito original. Embora seja ideologizado um “crente na verdade” desiludido, não se sustenta que Rorty tivesse, no início de sua carreira, objetivos metafísicos. Em seu primeiro artigo, a primeira frase é comprometedora: “O pragmatismo está se tornando respeitável novamente”. Para Rorty, o objetivo fundamental da filosofia analítica consiste em demonstrar a insuficiência do “horizonte mentalista” na concepção do conhecimento que é pensado como um produto de uma ação da autoconsciência do sujeito. Os pragmáticos geralmente “defendem” analiticamente que a importância de uma ideia deve ser medida pela sua utilidade ou eficácia para lidar com um dado problema, e ipso facto que as ideias devem ser consideradas não como válidas em si mesmas, mas como “guias para a ação”.                 
            A postura de William James significou uma enorme alteração no pensamento contemporâneo ocidental. A sua premissa fundamental está associada ao “integralismo”. James afirmou que a filosofia ocidental não havia feito nada senão viver indo de um extremo a outro no entendimento da existência: de Parménides (como algo sempre estático) a Heráclito (como algo sempre em mudança), de Aristóteles (com a sua insistência no material como critério de verdade) a Platão (com as ideias como parâmetro do certo), de Hegel (com o idealismo) a Auguste Comte (com o positivismo). E assim, sem nunca lograr uma concepção medida da existência, onde o cambiante e o estável, o material e o abstrato, se harmonizem. Nos últimos anos o “anti-epistemólogo” que não defendia o fim da filosofia, mas sim da filosofia epistemologicamente centrada, surpreendeu os críticos quando começou a intervir, fora de sua zona de conforto, cada vez mais em política. Contudo, foi Nietzsche o primeiro a sugerir explicitamente que abandonássemos toda a ideia de conhecer a verdade. Sua definição da verdade como um “exército móvel de metáforas” equivaleu a dizer que a ideia inteira de “representar a realidade” por meio da linguagem e, portanto, de descobrir um contexto único para todas as vidas humanas, devia ser abandonada. Seu perspectivismo equivaleu a afirmar que o universo não tinha um rol de carga a ser conhecida, nenhuma extensão determinada. Criar a própria mente é criar a própria linguagem, em vez de permitir que a extensão da mente seja ditada pela linguagem deixada por outros seres humanos.
            Só os poetas, suspeitava Friedrich Nietzsche, podem verdadeiramente apreciar a contingência. O restante de nós está fadado a continuar a ser filósofo, a insistir em que de fato só existe um rol de carga verdadeiro, uma descrição verdadeira da situação humana, um contexto universal de nossas vidas. Estamos fadados a passar nossa vida consciente tentando fugir da contingência, em vez de, como o poeta forte, reconhecermos a contingência e nos apropriarmos dela. A linha que separa a fraqueza e a força é, pois, a linha entre usar uma linguagem que é conhecida e universal e produzir uma linguagem que, apesar de inicialmente desconhecida e idiossincrática, de algum modo torna tangível a marca cega exibida por todas as condutas do indivíduo. Com sorte – o tipo de sorte que assinala a diferença entre o talento e a excentricidade -, essa linguagem também parecerá inevitável à geração seguinte. As condutas dessa nova geração exibirão essa marca. Nietzsche, ao contrário, acha que a fronteira importante a cruzar não é a que separa o tempo da verdade atemporal, mas a que separa o velho do novo. Ele só considera triunfal a vida humana na medida em que ela escapa às descrições herdadas das contingências de sua existência e encontra novas descrições.
            O drama de uma vida humana individual, ou da história da humanidade como um todo, não é um drama em que uma meta preexistente seja triunfalmente atingida ou tragicamente não alcançada. Nem uma realidade externa constante nem tampouco uma infalível fonte interna de inspiração compõem o pano de fundo desses dramas. Ao contrário, ver a própria vida ou a vida da comunidade como uma narrativa dramática é vê-la com um processo de auto-superação nietzschiana. O paradigma dessa narrativa é a vida do gênio capaz de dizer “eu quis assim”. Sobre a parte relevante do passado, por ter encontrado um modo de descrever esse passado. E que o próprio passado jamais conheceu e, ter descoberto um eu, de maneira afirmativa, para compreender que seus precursores nunca souberam ser possível. Nessa cosmovisão nietzschiana, o impulso de pensar, indagar e tecer outra vez a si mesmo, de maneira cada vez mais minuciosa, não é simplesmente o assombro, mas o pavor.  
O que liga Nietzsche e Freud é essa tentativa – a tentativa de considerar que uma marca cega não é indigna de programar nossa vida ou nossos poemas. Há uma diferença, porém, entre Nietzsche e Freud que não é apreendida e que torna Freud mais útil e mais plausível do que Nietzsche é que ele não relega a vasta maioria da humanidade à condição de animais agonizantes. Isso porque a descrição freudiana da fantasia inconsciente mostra-nos como ver toda vida humana como poema – ou, mais exatamente, toda vida humana como não tão destroçada pela dor que não possa aprender uma linguagem, nem tão imersa no trabalho que não tenha tempo para gerar uma descrição de si mesma. Freud considera que cada vida é uma tentativa de se revestir de suas próprias metáforas. Enfim, o progresso poético, artístico, filosófico, científico ou político resulta da coincidência acidental de uma obsessão particular com uma necessidade pública. A poesia forte, a moral de senso comum, a moral revolucionária, a ciência normal, a ciência revolucionária e o tipo de fantasia que só é inteligível para uma pessoa, mas todos são do ponto de vista freudiano, maneiras diferentes de lidar com “marcas cegas” – ou, em termos mais exatos, maneiras de lidar com diferentes marcas cegas: marcas que podem ser exclusivas de indivíduo ou comuns aos membros de uma comunidade historicamente condicionada.    
Fundamentalmente, a linguagem, a consciência, a moral e as mais elevadas esperanças são entendidas como produtos contingentes, como literalizações do que já foi um conjunto representativo de metáforas acidentalmente produzidas é adotar uma identidade pessoal apropriada à cidadania nesse Estado idealmente liberal. É por isso que o cidadão ideal desse Estado liberal seria alguém que pensa nos fundadores e nos preservadores de sua sociedade como poetas, e não como pessoas que descobriram ou imaginaram claramente a verdade sobre o mundo ou sobre a humanidade. Ele mesmo pode ser ou não poeta, pode ou não encontrar suas próprias metáforas para suas fantasias idiossincráticas, pode ou não tornar essas fantasias conscientes, mas será suficientemente freudiano, no plano do senso comum – uma reflexão sem juízo, para ver os fundadores e transformadores da sociedade, os legisladores reconhecidos de sua língua e, de sua moral, como pessoas que por acaso encontraram palavras adequadas as suas fantasias, metáforas que responderam às necessidades vagamente sentidas do resto da sociedade. Os cidadãos da utopia liberal de Richard Rorty seriam pessoas com uma ideia da contingência de sua linguagem de deliberação moral e, portanto, de sua consciência moral e, portanto, de sua comunidade. Seriam ironistas liberais – pessoas que atenderiam ao critério schumpeteriano de civilização, que combinariam o compromisso social com o sentimento de contingência de seu próprio compromisso.
Para enunciar cruamente as diferenças, Michel Foucault é um ironista que não se dispõe a ser liberal, ao passo que Jürgen Habermas é um liberal que não se dispõe a ser ironista. Foucault e Habermas, como Berlin, são críticos das tentativas platônicas e kantianas tradicionais de isolar um componente nuclear do eu. Ambos veem Friedrich Nietzsche como tendo uma importância crucial. Foucault considera que Nietzsche ensinou-o a evitar a tentativa de uma perspectiva supra-histórica, a tentativa de descobrir origens atemporais – a se contentar com uma narrativa genealógica das contingências. Nietzsche também o ensinou a olhar duas vezes para o liberalismo – a olhar para o que está atrás das novas liberdades trazidas pela democracia política, para as novas formas de coerção impostas pelas sociedades democráticas. Porém, enquanto Foucault toma Nietzsche como inspiração, Habermas – apesar de concordar com as críticas nietzschianas à “razão centrada no sujeito”, que faz parte do racionalismo tradicional – considera que ele nos conduz a um beco sem saída. Habermas considera que Nietzsche deixa clara a falência, para fins da “emancipação” humana, do que chama de “filosofia da subjetividade”. Com Nietzsche, “a crítica da modernidade [isto é, a tentativa de nos havermos com a perda dos tipos de coesão social encontrados nas sociedades pré-modernas] prescinde pela primeira vez de sua retenção de um conteúdo emancipador”.
Habermas toma essa recusa da tentativa de emancipação como sendo um legado nietzschiano para Heidegger, Adorno, Derrida e Foucault – legado desastroso, que tornou a reflexão filosófica irrelevante para a esperança liberal, na melhor das hipóteses, e antagônica a ela, na pior. Habermas considera que esses pensadores – teóricos devorados por sua ironia – constituem uma espécie de reductio ad absurdum da filosofia da subjetividade. A resposta de Habermas a Nietzsche é tentar minar o ataque nietzschiano a nossas tradições religiosas e metafísicas, substituindo a ´filosofia da subjetividade` por uma ´filosofia da intersubjetividade` – substituindo a antiga ´concepção da ´razão` centrada no sujeito`, compartilhada por Kant e Nietzsche, pelo que Habermas denomina ´razão comunicativa`. Nesse ponto Habermas faz o mesmo gesto de Wilfrid  Sellars: os dois filósofos tentam interpretar a razão a internalização de normas sociais, e não um componente intrínseco do eu humano. Habermas pretende ´fundamentar` as instituições democráticas do mesmo modo que esperava Kant – porém almeja fazer melhor esse trabalho, invocando a ideia de ´comunicação livre de dominação` para substituir o ´respeito à dignidade humana` como a égide sob a qual a sociedade deve tornar-se mais cosmopolita e democrática. A resposta de Foucault a tentativas como as de Habermas, Dewey e Berlin – de erigir a filosofia em torno das necessidades de uma sociedade democrática  – é assinalar suas deficiências, assim como suas maneiras de não dar margem à criação pessoal, aos projetos particulares.
Tal como Habermas e Sellars, ele aceita a visão de George Herbert Mead de que o eu é uma criação da sociedade. Ao contrário deles, não se dispõe a admitir que os seus moldados pelas sociedades liberais modernas sejam melhores do que os seus criados por sociedades anteriores. Grande parte da obra de Foucault – a parte mais valiosa, segundo Rorty, consiste em mostrar que os padrões de aculturação característicos das sociedades liberais impuseram, aos integrantes destas, certos tipos de limitações com que as antigas sociedades pré-modernas não haviam sonhado. Por ouro lado, ele não se dispõe a ver essas limitações como algo compensado pela redução do sofrimento, assim como Nietzsche não se dispunha a ver o ressentimento da chamada “moral do escravo” como compensado nessa redução. A discordância de Rorty com relação a Foucault resume-se na afirmação de que essa redução efetivamente compensa tais limitações. Além disso, concorda com Habermas em que a descrição foucaultiana de como o poder moldou nossa subjetividade contemporânea exclui todos os aspectos em que a erotização e a internalização da natureza subjetiva também significou um aumento da liberdade e da expressão. E, o mais importante, enfatiza Rorty, que a sociedade liberal contemporânea já contém as instituições para seu aprimoramento. Isto é a racionalidade de um aprimoramento capaz de mitigar os perigos vistos, por exemplo por Michel Foucault, assim como sugere que o pensamento social e político do Ocidente talvez tenham passado pela última revolução conceitual de que necessita.

A principal discordância com relação a Michel Foucault é precisamente quanto ao fato de “nós, os liberais”, como afirma Rorty, poder ser ou não algo suficientemente bom. O tipo de autonomia buscado por ironistas criadores do eu, como Nietzsche, Derrida ou Foucault, não é o tipo de coisa que pudesse algum dia ser encarnada normalmente pelas instituições sociais. O desejo de ser autônomo para o desejo do liberal de evitar a crueldade e o sofrimento – um desejo que Foucault compartilhava, muito embora não se dispusesse a expressá-lo. Em 1997 Richard Rorty apelou às universidades, a regressar a uma política liberal “que no essencial se ocupa de impedir que os ricos desvalorizem o resto da população”. Ele dedica seu livro: Contingency, Irony, and Solidarity (1989): - “Em memória de seis liberais: meus pais e avós”. Foi galardoado com o Prêmio Meister Eckhart, no ano de 2001, em cerimônia na qual Jürgen Habermas o nomeou como “um dos mais significativos filósofos da atualidade”. No debate metodológico em livro de Robert Brandom, intitulado: Rorty and his Critics, a filosofia de Richard Rorty recebeu críticas analíticas por parte de Donald Davidson, Jürgen Habermas, Hilary Putnam, John McDowell, Jacques Bouveresse, Daniel Dennett, entre outros.
Enfim, Para Rorty, os pragmatistas de nenhuma forma apelam no sentido hermenêutico a uma teoria sobre a natureza da realidade, do conhecimento ou do homem, afirmando que “nada existe como verdade ou bem”. Isto de forma alguma implica, para ele, uma teoria subjetivista ou relativista da verdade ou do bem, porque o que eles desejam é simplesmente mudar de tema. Segundo Manfredo de Oliveira (2013), o elemento inteiramente novo é que a autoridade transfere-se de um sujeito que representa o mundo objetivo para uma comunidade de sujeitos que se entendem entre si a partir da base comum de um mundo vivido, compartilhado diante do qual cada um justifica suas concepções. Conhecido é então o que é aceito como racional segundo os critérios da práxis exercida pela comunidade. Isto provoca uma reviravolta radical na concepção de conhecimento: a objetividade da experiência cede o lugar à intersubjetividade da compreensão que é, em princípio, mutável uma vez que podem ser outros as crenças e os valores do universo simbólico que funda o entendimento recíproco entre os sujeitos. Uma consequência imediata da nova concepção é que a justificação depende sempre de critérios diferentes de acordo com a representação de contextos históricos e sociais.
Isto exige de nós praticamente que abandonemos nossa preocupação com a pretensão de objetividade e tornemo-nos satisfeitos com a intersubjetividade. São enormes as consequências no que diz respeito à problemática da verdade: por não ser o conhecimento um “espelho da natureza”, mas algo que está fundamentalmente imbricado com a práxis dialogal e o contexto social, então a crítica das diferentes formas de práxis social é destituída de qualquer sentido, já que estamos presos pelos contextos simbólicos e qualquer tentativa de transcendência a eles significa um retorno à postura fundamentalista. Numa palavra, estabelecido que é impossível ir além do horizonte linguístico de opiniões justificadas, como se combina esta tese fundamental da reviravolta pragmática com a intuição de que sentenças verdadeiras levantam a pretensão de dar conta dos fatos do mundo. O desafio central do contextualismo de Rorty está aqui: relacionar verdade e justificação. A reviravolta pragmática traz um modelo de conhecimento contraposto ao modelo tradicional da representação, que é um modelo estático. Nossos conhecimentos constituem, na dimensão espacial, o resultado de nosso trabalho sobre as decepções em nossa convivência inteligente com um mundo repleto de riscos, na dimensão social, a partir da legitimação de soluções de problemas frente às objeções de outros participantes da prática na dimensão argumentativa e, na dimensão temporal, a partir de processos de aprendizagem que se alimentam da revisão dos próprios erros.
Bibliografia geral consultada.
LUHMANN, Niklas, Observaciones de la Modernidad: Racionalidad y Contigencia en la Sociedad Moderna. Buenos Aires: Ediciones Paidós, 1997; CARVALHO FILHO, Aldir Araújo, Individualismo Solidário: Uma Redescrição da Filosofia Política de Richard Rorty. Tese de Doutorado em Filosofia. Rio de Janeiro: Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006; RORTY, Richard, Consequências do Pragmatismo. Lisboa: Editor Rolos e Filhos, 1982; Idem, A Filosofia e o Espelho da Natureza. Rio de Janeiro: Editora Relume-Dumará, 1994; Idem, Objetivismo, Relativismo e Verdade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997; Idem, Duas Profecias. In: Folha de S. Paulo, 24 de maio de 1998; Idem, Contingência, Ironia e Solidariedade. São Paulo: Editora Martins Editora, 2007; AZEVEDO, Flora Muniz Tucci, A Concepção de Contingência em Richard Rorty. Dissertação de Mestrado em Filosofia. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2007; PASCHOALI, Roberto, A Razão nos Limites da Solidariedade: Um Projeto Social entre as Ideias e Pensamentos de Richard Rorty e Jürgen Habermas. Tese de Doutorado. Programa de Estudos pós-Graduados em Ciência da Religião. São Paulo: Pontifícia Universidade de Católica de São Paulo, 2008; SILVA, Heraldo Aparecido, O Pêndulo entre a Filosofia Fundacionista e a Cultura Literária: Uma Interpretação da Filosofia de Richard Rorty a partir da Teoria Poética de Harold Bloom. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2008; OLIVEIRA, Manfredo Araújo de, “Neopragmatismo de Richard Rorty x Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas”. In: Veritas - Revista de Filosofia. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Volume 58, n° 1, jan./abr. 2013; pp. 37-60; LEAL, Edilene Maria Carvalho, “Niklas Luhmann e Richard Rorty: Contingências e Inconsistências”. In: Trans/Form/Ação. Vol. 38 n°1. Marília Jan./Apr. 2015; TOLEDO CIRNE DE JUNIOR, Joaquim Elói, Richard Rorty e a Emergência da Filosofia Pós-Analítica: Transformações Institucionais e Mudança Intelectual na Filosofia Profissional Norte-Americana Contemporânea. Tese de Doutorado em Filosofia. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade de Campinas, 2015; SOUZA, Roger Klinsman Aguiar de, A Contingência dos Caminhos: Verdade e Redescrição em Richard Rorty. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Instituto de Cultura e Arte. Departamento de Filosofia. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2018; entre outros. 

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