quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Gilberto Velho - Antropologia, Pluralismo & Legalidade Estruturada.

                                                                                                     Ubiracy de Souza Braga

Somos uma sociedade muito desorganizada, quase sem cidadania”. Gilberto Cardoso Alves Velho


         Gilberto Cardoso Alves Velho foi um laureado antropólogo brasileiro, pioneiro pela consagração da Antropologia Urbana no país. É neste sentido que em contraste com as recentes abordagens da História da Antropologia e da Antropologia da Antropologia está a história teórica da disciplina que consiste em uma visão interna e inovadora à prática urbana da antropologia. É a história teórica que informa e guia o refinamento e a expansão da antropologia a partir da pesquisa de campo. É por meio da história teórica, por um lado, que vislumbramos as questões que demarcaram o desenvolvimento de obras consideradas fundantes da disciplina e, por outro, que tratamos assim do exame dos problemas reais que se tornaram pertinentes e merecedores de investigação científica, e dos diálogos que antropólogos empreenderam e que constituem um repertório aberto e continuamente renovado de novas perguntas ou formulações: questões prévias adquirem vida, afastando-se de uma ideia linear ou progressiva típica da influência evolucionista clássica na antropologia.
O primeiro curso de Antropologia Urbana ministrado no Museu Nacional ocorreu no primeiro semestre de 1969, sob a responsabilidade do professor Anthony Leeds, então do Departamento de Antropologia da Universidade do Texas, em Austin. Veio dar aula no Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social através do convênio vigente com a Fundação Ford. Tony Leeds tinha um perfil bastante original e um modo muito próprio de ser antropólogo, com opiniões fortes, às vezes agressivas. Fora aluno da Universidade de Columbia e pesquisara plantation no sul da Bahia antes de mergulhar no mundo das favelas do Rio de Janeiro e outras cidades. Pode-se dizer, conforme depoimento de Gilberto Velho,  que Anthony Leeds não era um herdeiro da Escola de Chicago, em relação à qual tinha diferenças, e era bastante representativo de um liberalismo norte-americano mais à esquerda. Era leitor de Marx e Engels, assim como fortemente interessado na ecologia, sobretudo nas suas implicações teóricas associadas a um evolucionismo materialista. Na realidade, o seu perfil teórico não era nada simples, mas o que lhe dava, sobretudo, destaque eram sua grande liderança e competência na abertura de frentes de trabalho de campo. Embora tivesse ficado principalmente reconhecido por suas pesquisas em favelas, tinha interesse mais geral sobre a questão urbana em várias de suas dimensões.
Nos idos da década de 1980, consolidam-se os programas de pós-graduação em antropologia e ciências sociais no Brasil, ao mesmo tempo em que há uma politização de temas da antropologia e a intensificação de pesquisas no meio urbano. Nesse contexto a linha de pesquisa de Gilberto Velho, assim como de seus orientandos, é citada pela síntese que promove entre diferentes tradições. O artigo metodológico “Observando o familiar”, de Gilberto Velho (1978), é uma referência na discussão sobre o “estranhamento” do familiar e do exótico, interpretando os desafios da alteridade próxima. São comentados, entre tantos outros pontos relevantes, os desdobramentos do impacto dos estudos antropológicos de Gilberto Velho, ao lado de outras questões tais como a antropologia das sociedades complexas e dos grupos urbanos e a caixa de ressonância do ideário individualista na pesquisa etnográfica na cidade.  Graduado em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1968), especializou-se em Antropologia Urbana e Antropologia das Sociedades Complexas na Universidade do Texas, em Austin, Estados Unidos (1971).
No artigo: Academicismo e Vida Universitária (cf. Velho, 1979) o antropólogo colocava a seguinte questão: O que significa ser acadêmico no Brasil? - Para ele em certos círculos, as pessoas consideram-se ofendidas se são chamadas de acadêmicas como se isto fosse motivo de vergonha, algo a ser engado em princípio, quase um estigma. A verdade é que para ele, muitas vezes a academia é contaminada e confunde-se  com um burocratismo autoritário. Em parte isso se explica pela excessiva dependência e ligação que temos com o Estado brasileiro, tradicionalmente centralizador e autoritário. Assume-se então o que existe de pior em termos de formalismo administrativo e de ranço de serviço público. Mas aceitar fatalisticamente que este possa ser o ethos dominante em nosso meio é uma atitude negativa. A vida acadêmica já demonstrou que não é isso, através de manifestações de criatividade e produção significativa. Não podemos aceitar, enfatiza, que a academia seja o locus privilegiado onde vicejam o autoritarismo e o burocratismo.  Sem dúvida, na própria linguagem do senso comum academia aparece com um sentido formalista, pedante, como um espaço em que as pessoas se dedicam a atividades exóticas e pouco relevantes.  Não cabe aqui discutir todas as razões e origens históricas que podem basear-se tal avaliação. Mas é bom denunciar o antiintelectualismo presente nestes julgamentos. É lamentável que professores e pesquisadores introjetem essa imagem passivamente como uma carapuça adequada. Com isto arriscam-se e têm uma identidade mal construída.  

                          
Na realidade, não se consegue, com raras exceções, definir o espaço próprio da vida intelectual-científica desenvolvida na universidade, na academia. Em um caso clássico de internalização de acusação, geralmente acionada por pessoas de fora do mundo acadêmico que procuram deslegitimar o trabalho entre nós realizado. Há tecnocratas, por exemplo, que dizem que os acadêmicos são pouco práticos e realistas, tendo nada a oferecer no equacionamento dos problemas da sociedade. Políticos de vários matizes, por sua vez, criticam a academia como isolada, escapista, alienada. O motivo fundamental para esse tipo de atitude é uma avaliação esquemática e superficial de nossa realidade , em que se colocam como polos opostos e inconciliáveis as categorias de participação e isolamento, quando esta aparece como sinônimo de academicismo. O pior que se pode fazer contra o o desenvolvimento científico-intelectual de uma sociedade é procurar enquadrá-lo em termos imediatistas e utilitaristas. Só uma visão de ciência como um atividade a longo prazo em que trabalhos de pessoas diferentes com estilos e, vezes, métodos diferentes tendem a fertilizar reciprocamente e, de certa forma, complementar-se, é que pode permitir a consolidação e amadurecimento de nosso trabalho. 
Ao se insistir no esquema de participação versus isolamento, se estabelece uma armadilha para os que trabalham nas universidades e instituições de pesquisa.  É necessário criticar esses esquemas que acabam se voltando contra a própria comunidade acadêmica em momentos de maior tensão e fechamento  político. A percepção da academia como um espaço aberto de múltiplas vivências e estilos implica uma posição politica democrata e existencialmente tolerante. Os elementos de homogeneização da atividade acadêmica devem-se basear em um padrão de trabalho, bastante difícil de ser avaliado, mas de que não se pode fugir e em um código de ética voltado prioritariamente para problemas específicos de nossas atividades. Tais coisas não nascem do dia para a noite; são produto de longos anos de acúmulo de experiência e presumível amadurecimento, o que não constitui uma torre de marfim ou isolamento, mas, pelo contrário, é uma procura de meios que permitam formas variadas, autênticas e consistentes de participação. Não se trata também de criar uma oposição entre os papéis de acadêmico e cidadão, mas procurar definir contextos e linguagens. Reconhecer que a ciência e a universidade têm função social é coisa óbvia. Mais complicado é procurar definir esta função sem maniqueísmos e esquematismos. Não há muitos acadêmicos que aderem, em princípio, à ideia de que o enclausuramento nos laboratórios e gabinetes é um caminho adequado. Às vezes encontra-se nessa atitude uma forma de reação a pressões despropositadas. Estes que pretendem se proteger, não devem ser discriminados e desrespeitados. Não só porque podem realizar um importante trabalho científico. 

Mas porque em determinados momentos e conjunturas podem se pronunciar e manifestar-se, às vezes de maneira surpreendente.  Há alguns exemplos deste tipo social de cientista cuja postura é bem diferente daqueles que tentam impor à comunidade acadêmica o isolamento e o alheamento através da coerção e da ameaça. Felizmente rareiam estas pessoas em nosso meio, mas ainda há aqueles que manipulando indivíduos ou agências extra-universitárias tentam impedir a livre expressão e manifestação.  Não podemos confundir o acadêmico que não se quer envolver com problemas que considera não ser de estrito interesse científico, com pessoas que tentam impingir a toda a comunidade tal caminho. Mais uma vez deve-se evitar e reagir contra as tentativas de impor um único padrão de comportamento à comunidade acadêmica, seja de isolamento ou de um tipo particular e reificado de participação social. A valorização interdisciplinar e a necessidade de estabelecer relações com os diferentes segmentos da sociedade não nos deve levar a escamotear a existência de problemas específicos. De um lado temos todas as questões da organização administrativa e política da universidade e dos centros de pesquisa - organização departamental, flexibilidade de currículos, democratização das decisões, autonomia universitária, recursos estáveis, política de contratação administrativa de pessoal etc. 
De outro, embora indissoluvelmente associada a essa primeira ordem de questões temos o problema essencial da liberdade de pesquisa. Neste ponto parece fundamental tentarmos estabelecer um espaço próprio para o mundo acadêmico-científico onde esteja protegido dos diferentes tipos de utilitarismo. Esta preocupação deve estar presente em um código que procure preservar nossa identidade ao mesmo tempo que estabeleça normas de relacionamento com a sociedade domo um todo. Trata-se de explicar uma série de responsabilidades e obrigações. A denúncia da censura e de outras formas de coerção com a s cassações brancas e o corte de verbas permite-nos defender uma causa que, sendo de nosso interesse, nos unirá as outros segmentos da sociedade brasileira, isto é, intelectuais, artistas, jornalistas, estudantes etc. A luta pela reintegração automática dos professores e pesquisadores afastados de nosso convívio é fundamental para a defesa e e garantia do trabalho científico no Brasil. Ao encaminharmos nossos problemas específicos, é evidentemente importante vinculá-los a reivindicações  de outros grupos. Cumpre assumir uma identidade que, sendo problematizável e complexa, não pode ser escamoteada. Está em jogo, afinal de contas, a própria importância do trabalho intelectual. Há um ethos acadêmico que vai mobilizar mais certas pessoas do que outras.  As relevâncias e prioridades deste mundo são forçosamente diferentes das do mundo empresarial, tecnocrático ou político. 
Ao reconhecer o pluralismo, diferentes estilos, maneiras de ser e de pensar, há que reconhecer as peculiaridades e objetivos da academia que sem dúvida estabelecem um tipo de limite e fronteiras. A antropologia, implícita ou explicitamente, sempre manteve uma relação teórica privilegiada com as chamadas sociedades complexas ou, para ser mais preciso, com a sociedade na qual teve origem como campo de conhecimento. Ou seja, que mesmo nas investigações aparentemente mais afastadas de toda preocupação com a sociedade ocidental, certa concepção deste universo está sempre presente e que esta concepção influi de algum modo na pesquisa desenvolvida e nas teorias construídas. Nesse sentido, a “antropologia das sociedades complexas” parece ser, ao mesmo tempo, a origem, o destino e a prova da investigação antropológica. Oriunda de uma preocupação evolucionista a antropologia só pode se renovar se for capaz de renovar-nos, levando ainda mais longe o que sempre pretendeu fazer com os “outros”: apresentar as diferenças que nos permeiam e contribuir assim para que sejamos capazes de nos estranhar e, consequentemente, de nos problematizar e questionar. É usual situar o interesse antropológico pelas sociedades complexas nos trabalhos de Antropologia Urbana a partir da década de 1920 pela Escola de Chicago.
Mas, neste caso, sem perder de vista aqueles trabalhos etnográficos realizados por antropólogos com experiência etnológica em sociedades primitivas, é preciso reconhecer, que estes trabalhos estão desde seu início marcado pelo interesse em descrever os problemas relacionados com a instalação de imigrantes nos guetos de Chicago. A extensão das técnicas da chamada escola de cultura e personalidade na direção das sociedades complexas, por sua vez, está diretamente vinculada com o interesse em descobrir se os problemas urbanos identificados com os “distúrbios da adolescência entre os jovens norte-americanos tinham causas fisiológicas ou sociológicas”, visando evidentemente uma intervenção nas estruturas pedagógicas mais amplas. Como se referiu Margaret Mead, sem dúvida a principal representante deste movimento de inserção da teoria da cultura e personalidade na sociedade norte-americana, após seis estudos a respeito de sociedades ditas primitivas, ela estava pronta a retornar para casa, “convencida de que a próxima tarefa era aplicar o que sabíamos da melhor forma que pudéssemos, aos problemas de nossa própria sociedade”. Esse tipo de preocupação levou a antropologia cultural norte-americana a assumir posições ambíguas a respeito da sociedade em que estava inserida, bem como acerca da questão da relação entre esta sociedade global e os grupos que a compõem.

           Por um lado, uma ênfase relativista tendia a valorizar as diferenças e os direitos dos subgrupos e, consequentemente, a questionar certos padrões dominantes da sociedade abrangente. Aqui se inscrevem sem. dúvida, entre outras, noções como as de "cultura espúria" de Sapir, a crítica da “intolerância” de Ruth Benedict e o elogio da diversidade esboçado por Margaret Mead. Por outro lado, tratava-se de enfatizar a homogeneidade e unidade da sociedade abrangente, fazendo simultaneamente apelo à ideia de uma intervenção corretiva que evitasse os extremos a que pode chegar esse ideal de unidade e esse esforço de homogeneização. Deste ponto de vista, a antropologia passa a ser encarada mais como uma “engenharia social”, como sustentava Ruth Benedict, do que como “crítica cultural”. Esta posição é a  mais livre em relação à sociedade na qual se vive: “sempre gostei de minha própria cultura assim como gosto de meu próprio nome e de ser uma mulher”. 
A vertente norte-americana da Antropologia das Sociedades Complexas demonstra, por um lado, ao contrário dos estudos antropológicos britânicos, na direção de análises macroscópicas de grande envergadura destinadas a restituir o padrão global das sociedades modernas. Por outro lado, esta vertente realça um dos paradoxos deste tipo de investigação. Como conciliar o respeito pela diferença e a crítica ao etnocentrismo específicos da tradição antropológica europeia com a existência de sociedades aparentemente voltadas para a absorção ou supressão das diferenças e para a imposição de alguns valores tidos como universais? A defesa genérica da diversidade não é capaz de solucionar o impasse, já que, por exemplo, o caso limite do nazismo havia demonstrado a necessidade de impor uma fronteira para a aceitação e valorização da diferença. Mas a posição simplesmente oposta - defender de modo igualmente genérico a democracia em sua manifestação norte-americana - ameaça fazer aceitar, ao lado do justo combate contra forças do tipo do nazismo, o esforço para erradicar qualquer forma de diversidade que aparente ou que seja acusada de ameaçar o sistema global - o qual dificilmente se dispõe de indicadores seguros e acima de discussão.
Gilberto Velho atuou prevalentemente nas áreas de Antropologia Urbana, Antropologia das Sociedades Complexas e Teoria Antropológica. Além de cargos burocráticos acadêmicos, assumiu funções também burocráticas como coordenador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional e chefe de Departamento de Antropologia, foi presidente da Associação Brasileira de Antropologia - ABA (1982-84), presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS (1994-96) e vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC (1991-93). Foi membro do Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1983-93), tendo sido Relator do 1° tombamento de terreiro de candomblé no Brasil - Casa Branca, em Salvador. Ao longo de 40 anos de carreira, Gilberto Velho ganhou prêmios e ocupou posições de destaque nas instituições de ponta da área de Antropologia. Em 2012, era professor Titular em Antropologia, e principalmente Decano do Departamento de Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ) e membro da Academia Brasileira de Ciências.
O decano tradicionalmente pode ser considerado a pessoa mais velha de certo grupamento ou turma de pessoas, classe instituição ou corporação. É em alguns casos comparados em hierarquia ao sub-reitor de uma universidade, mas trata-se de casos distintos. Os decanatos são unidades administrativas ligadas à Reitoria que coordenam e fiscalizam as atividades de ensino e pesquisa universitárias. A função de cada decanato é fazer com que os departamentos e/ou coordenações que compõem e formam a Universidade funcionem de forma eficaz, dando legitimidade ao corpo docente, segundo um grau acadêmico, sob a forma de  um título conferido normalmente por uma instituição de ensino superior em reconhecimento oficial pela conclusão com sucesso de todos os requisitos de um curso, de um ciclo ou de uma etapa de estudos superiores. O moderno sistema de graus acadêmicos desenvolveu-se a partir da universidade medieval europeia, acompanhando posteriormente, a expansão global deste tipo de instituição. Os graus de bacharel, licenciado, mestre e doutor, concedidos pelas antigas universidades da Europa - acabaram por ser adotados nas diversas sociedades do mundo ocidental.
   O ensaio Nobres e Anjos (1998) como um de seus objetivos o mapeamento dos estilos de vida e visões de mundo de dois grupos das camadas médias cariocas da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Uma área geográfica extraordinária   localizada ao sul do Maciço da Tijuca, no município do Rio de Janeiro, no estado do Rio de Janeiro. Abrange os bairros de São Conrado, Rocinha, Ipanema, Botafogo, Catete, Copacabana, Flamengo, Gávea, Glória, Humaitá, Jardim Botânico, Laranjeiras, Leme e Urca, Vidigal‎ que engloba todos os seus bairros. Primeiro, os vanguardistas-aristocratas, que pertencem ao que o autor denominou de “roda intelectual-artístico-boêmia”. Segundo, um grupo de jovens surfistas, cujo ponto de referência era uma lanchonete no bairro Ipanema, mas com origem social estruturalmente semelhante à do outro, representada pela burguesia empresarial e profissionais liberais com projeto de ascensão social em contradição não  antagônica os “nobres” e os “anjos”, respectivamente. As visões funcionam nesse contexto espacial mais como porta de entrada para esses estilos de vida e visões de mundo do que como tema central. Sua importância é conjuntural, ou seja, funciona basicamente como demarcador de fronteiras e de hierarquias em determinadas situações sociais. Os “tóxicos” são como entrada para estilos de vida e cosmovisões do que como tema central. Sua importância é conjuntural, de fronteiras e hierarquias, não sendo o centro da identidade dos grupos pesquisados.
  Embora distintos em termos etários, estilos de vida, percepções políticas e nas formas praticadas de hedonismo, os dois grupos apresentam pontos de contato. Um deles é o uso de tóxicos e os “problemas decorrentes da ilegalidade da atividade e do desvio em relação à cultura dominante”. Outro ponto de contato é o aristocratismo que, embora com formas diferentes e conteúdos específicos, para Gilberto Velho, “expressa um princípio hierarquizado ativo, tanto para os vanguardistas-aristocratas como para os jovens surfistas”. A referida pesquisa representou o ponto de partida para o tipo de Antropologia urbana que Gilberto Velho veio desenvolver. Afinal de contas, afirma – “eu e minha mulher éramos moradores, mesmo que tivesse sido apenas por um ano e meio, do prédio de conjugados. Éramos copacabanenses vivendo num tipo de habitação predominantemente ocupado por pessoas de pequena classe média, alguns estudantes e também certos tipos sociais que viriam a ser importantes na minha carreira, caracterizados na literatura como desviantes”. Lembrava-nos Erving Goffman, metodologicamente, que ao concordar quanto ao que devem  e não devem um ao outro, as partes tacitamente concordam quanto á validade geral de direitos e obrigações contratuais, quanto ás várias condições para sua nulidade e quanto à legitimidade dos tipos de sanção para o rompimento do contrato: as partes contratantes também concordam tacitamente quanto à sua competência legal, sua boa fé, e quanto aos limites em que os contratantes que merecem confiança devem merecê-la.
   Enquanto moraram no prédio, “em pelo menos duas ocasiões, houve operações de órgãos de repressão, inclusive com mortes”. Quem aceita um contrato supõe que seja uma pessoa de determinado caráter e forma de ser.  Um caráter muito minucioso que cuidadosamente limite os deveres e direitos individuais pode basear-se num conjunto de suposições referentes a seu caráter. O apartamento em que foi realizada a pesquisa etnográfica pertencia a seus pais. Era habitualmente alugado como fonte de renda, mas o antropólogo relata que “minha avó paterna, quando enviuvou, morou alguns meses ali também. Quando me casei, não foi muito fácil a saída dos inquilinos que, na ocasião, ocupavam o apartamento aonde viríamos a morar”. Os inquilinos eram um casal de idosos, que residiram entre os anos 1960 e 1970. Foi necessária uma negociação com advogados e uma ajuda financeira para que deixassem o imóvel. Sem dúvida, comparativamente, afirma, o ambiente era muito diferente do prédio em que morara antes com sua minha família. Nele, os apartamentos eram bem maiores e os seus moradores eram quase todos proprietários. Predominavam as famílias de militares, geralmente oficiais, em termos de Exército, além do pessoal da Marinha, de capitão-de-corveta para cima. Com o passar do tempo, alguns tornaram-se oficiais generais e, praticamente todos, oficiais superiores. Certamente o ethos predominante contrastava com a heterogeneidade aparentemente tumultuada do Edifício Estrela, nome com o qual o batizei na minha dissertação. Antropólogos tendem a desconfiar da antropologia das chamadas sociedades complexas em virtude de sua suposta tendência para generalizações amplas e apressadas, sem o minucioso trabalho de campo que caracterizaria a etnologia tradicional.
Os sociólogos e cientistas políticos, por exemplo, temem que o particularismo excessivo que imaginam marcar a antropologia em geral acabe por invadir o estudo das sociedades nas quais se especializaram. A verdade é que este tipo de crítica não é nada recente. Escrita, história, magnitude, diversidade e abertura, seriam as características centrais que se apresentam distinguindo as sociedades complexas. Os limites dos métodos antropológicos quando aplicados às sociedades complexas, derivariam, também de seu ponto de vista na apreensão, constituição e detalhamento do objeto. Além disso, nas diferenças específicas entre este tipo de análise da sociedade e comparativamente, ao estudo das chamadas sociedades primitivas. Dotadas de uma ordem de grandeza muito distinta, as sociedades complexas exigiriam para ser etnograficamente  compreendidas, o mapeamento das conexões de sentido de casos com estruturas mais abrangentes.
   Neste sentido, uma das características tipológicas do modelo contemporâneo de antropologia é, sem dúvida, uma reação mais radical às ambições cientificistas que têm marcado a história da disciplina. Assim, é significativo que boa parte da produção antropológica contemporânea a respeito das chamadas sociedades complexas se limite a reivindicar, também para nós, urna cultura, deixando de investigar a originalidade, a diferença específica que o mundo ocidental constitui. O termo “sociedades complexas” não deve, portanto, ter o mesmo destino evolucionista das chamadas “sociedades primitivas”, como de resto entendido sempre entre aspas, como se tratasse de isenção  para o contexto em relação ao qual o observador deve buscar um certo afastamento. Mais do que isso, tudo indica que é preciso admitir que o estudo antropológico das sociedades complexas sempre teve a virtude de revelar, uma série de dificuldades e equívocos já presentes comparativamente nos trabalhos sobre as chamadas sociedades primitivas, mas que aí podiam passar mais ou menos despercebidos, seja em virtude de características intrínsecas desse tipo corrente de sociedade, seja, mais provavelmente, devido à posição etnocêntrica do observador em relação a elas. A antropologia das sociedades complexas contribuiu para colocar em questão, a possibilidade de caracterização de totalidades sociais autônomas, a aparente homogeneidade global dos membros de uma sociedade etc.
Bibliografia geral consultada.
CHARTIER, Roger, A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Memória e Sociedades. Lisboa: Editor Difel, 1990; PEIRANO, Mariza, A Favor da Etnografia. Rio de Janeiro, Relume/Dumará, 1995; HURTADO, Jorge Gumucio, Cocaine, The Legend: About Coca and Cocaine. La Paz: International Coca Research Institute, 1995; LÉVI-STRAUSS, Claude, Tristes Trópicos. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1996; OLIVEIRA, Douglas Casarotto de, Uma Genealogia do Jovem Usuário de Crack: Mídia, Justiça, Saúde, Educação. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2009; VELHO, Gilberto, “Observando o Familiar”. In: NUNES, Edson de Oliveira (Org.), A Aventura Sociológica: Objetividade, Paixão, Improviso e Método na Pesquisa Social. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978, pp. 36-47; Idem, Academicismo e Vida Universitária. In: Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1979; Idem, Individualismo e Cultura: Notas para uma Antropologia da Sociedade Contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1981; Idem, “Antropologia e Literatura: A Questão da Modernidade”. In: Comunicação. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Museu Nacional. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n° 12, 1988; Idem, “Literatura e Desvio: Um Diálogo entre História e a Antropologia”. In: Projeto e Metamorfose. Antropologia das Sociedades Complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994; Idem, Nobres & Anjos: Um Estudo de Tóxicos e Hierarquia. Tese de Doutorado em Antropologia. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998; Idem, “Antropologia Urbana: Interdisciplinaridade e Fronteiras do Conhecimento”. In: Mana, volume 17, n° 1, pp. 161-185, 2011; Idem, Um Antropólogo na Cidade. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2013; MOURA, Cristina Patriota de; CORADINI, Lisabete (Org.), Encontros com Gilberto Velho. Natal: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2016; TORRES, Lilian de Lucca, Uma Cidade dos Antropólogos: São Paulo nas Dissertações e Teses da USP, 1960-2000. Tese de Doutorado. Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2016; GOLDMAN, Marcio, “Antropologia Contemporânea, Sociedades Complexas e outras questões”. In: Anuário Antropológico/93. Rio de Janeiro: Editor Tempo Brasileiro, 1995;  Idem, “The End of Anthropology”. In: Books Reviews Series, v. 24, pp. 1-12, 2018; entre outros. 

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