Ubiracy de Souza Braga
“Somos uma sociedade muito desorganizada, quase sem cidadania”.
Gilberto Cardoso Alves Velho
Gilberto
Cardoso Alves Velho foi um laureado antropólogo brasileiro, pioneiro pela consagração da
Antropologia Urbana no país. É neste sentido que em contraste com as recentes abordagens
da História da Antropologia e da Antropologia da Antropologia está a história
teórica da disciplina que consiste em uma visão interna e inovadora à prática urbana
da antropologia. É a história teórica
que informa e guia o refinamento e a expansão da antropologia a partir da
pesquisa de campo. É por meio da história teórica, por um lado, que
vislumbramos as questões que demarcaram o desenvolvimento de obras consideradas
fundantes da disciplina e, por outro, que tratamos assim do exame dos problemas reais
que se tornaram pertinentes e merecedores de investigação científica, e dos diálogos que
antropólogos empreenderam e que constituem um repertório aberto e continuamente
renovado de novas perguntas ou formulações: questões prévias adquirem vida,
afastando-se de uma ideia linear ou progressiva típica da influência evolucionista
clássica na antropologia.
O
primeiro curso de Antropologia Urbana ministrado no Museu Nacional ocorreu no
primeiro semestre de 1969, sob a responsabilidade do professor Anthony Leeds,
então do Departamento de Antropologia da Universidade do Texas, em Austin. Veio
dar aula no Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social através do convênio vigente com a Fundação Ford. Tony Leeds
tinha um perfil bastante original e um modo muito próprio de ser antropólogo,
com opiniões fortes, às vezes agressivas. Fora aluno da Universidade de
Columbia e pesquisara plantation no
sul da Bahia antes de mergulhar no mundo das favelas do Rio de Janeiro e outras
cidades. Pode-se dizer, conforme depoimento de Gilberto Velho, que Anthony Leeds não era um herdeiro da Escola
de Chicago, em relação à qual tinha diferenças, e era bastante representativo
de um liberalismo norte-americano mais à esquerda. Era leitor de Marx e Engels,
assim como fortemente interessado na ecologia, sobretudo nas suas implicações teóricas
associadas a um evolucionismo materialista. Na realidade, o seu perfil teórico
não era nada simples, mas o que lhe dava, sobretudo, destaque eram sua grande
liderança e competência na abertura de frentes de trabalho de campo. Embora
tivesse ficado principalmente reconhecido por suas pesquisas em favelas, tinha
interesse mais geral sobre a questão urbana em várias de suas dimensões.
Nos idos da década de 1980, consolidam-se os programas de pós-graduação em antropologia e ciências sociais no Brasil, ao mesmo tempo em que há uma politização de temas da antropologia e a intensificação de pesquisas no meio urbano. Nesse contexto a linha de pesquisa de Gilberto Velho, assim como de seus orientandos, é citada pela síntese que promove entre diferentes tradições. O artigo metodológico “Observando o familiar”, de Gilberto Velho (1978), é uma referência na discussão sobre o “estranhamento” do familiar e do exótico, interpretando os desafios da alteridade próxima. São comentados, entre tantos outros pontos relevantes, os desdobramentos do impacto dos estudos antropológicos de Gilberto Velho, ao lado de outras questões tais como a antropologia das sociedades complexas e dos grupos urbanos e a caixa de ressonância do ideário individualista na pesquisa etnográfica na cidade. Graduado em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1968), especializou-se em Antropologia Urbana e Antropologia das Sociedades Complexas na Universidade do Texas, em Austin, Estados Unidos (1971).
No artigo: “Academicismo e Vida Universitária” (cf. Velho, 1979) o antropólogo colocava a seguinte questão: O que significa ser acadêmico no Brasil? - Para ele em certos círculos, as pessoas consideram-se ofendidas se são chamadas de acadêmicas como se isto fosse motivo de vergonha, algo a ser engado em princípio, quase um estigma. A verdade é que para ele, muitas vezes a academia é contaminada e confunde-se com um “burocratismo autoritário”. Em parte isso se explica pela excessiva dependência e ligação que temos com o Estado brasileiro, tradicionalmente centralizador e autoritário. Assume-se então o que existe de pior em termos de formalismo administrativo e de ranço de serviço público. Mas aceitar fatalisticamente que este possa ser o ethos dominante em nosso meio é uma atitude negativa. A vida acadêmica já demonstrou que não é isso, através de manifestações de criatividade e produção significativa. Não podemos aceitar, enfatiza, que a academia seja o locus privilegiado onde vicejam o autoritarismo e o burocratismo. Sem dúvida, na própria linguagem do senso comum academia aparece com um sentido formalista, pedante, como um espaço em que as pessoas se dedicam a atividades exóticas e pouco relevantes. Não cabe aqui discutir todas as razões e origens históricas que podem basear-se tal avaliação. Mas é bom denunciar o antiintelectualismo presente nestes julgamentos. É lamentável que professores e pesquisadores introjetem essa imagem passivamente como uma carapuça adequada. Com isto arriscam-se e têm uma identidade mal construída.
Na realidade, não se consegue, com raras exceções, definir o espaço próprio da vida intelectual-científica desenvolvida na universidade, na academia. Em um caso clássico de internalização de acusação, geralmente acionada por pessoas de fora do mundo acadêmico que procuram deslegitimar o trabalho entre nós realizado. Há tecnocratas, por exemplo, que dizem que os acadêmicos são pouco práticos e realistas, tendo nada a oferecer no equacionamento dos problemas da sociedade. Políticos de vários matizes, por sua vez, criticam a academia como isolada, escapista, alienada. O motivo fundamental para esse tipo de atitude é uma avaliação esquemática e superficial de nossa realidade , em que se colocam como polos opostos e inconciliáveis as categorias de participação e isolamento, quando esta aparece como sinônimo de academicismo. O pior que se pode fazer contra o o desenvolvimento científico-intelectual de uma sociedade é procurar enquadrá-lo em termos imediatistas e utilitaristas. Só uma visão de ciência como um atividade a longo prazo em que trabalhos de pessoas diferentes com estilos e, vezes, métodos diferentes tendem a fertilizar reciprocamente e, de certa forma, complementar-se, é que pode permitir a consolidação e amadurecimento de nosso trabalho.
Ao se insistir no esquema de participação versus isolamento, se estabelece uma armadilha para os que trabalham nas universidades e instituições de pesquisa. É necessário criticar esses esquemas que acabam se voltando contra a própria comunidade acadêmica em momentos de maior tensão e fechamento político. A percepção da academia como um espaço aberto de múltiplas vivências e estilos implica uma posição politica democrata e existencialmente tolerante. Os elementos de homogeneização da atividade acadêmica devem-se basear em um padrão de trabalho, bastante difícil de ser avaliado, mas de que não se pode fugir e em um código de ética voltado prioritariamente para problemas específicos de nossas atividades. Tais coisas não nascem do dia para a noite; são produto de longos anos de acúmulo de experiência e presumível amadurecimento, o que não constitui uma “torre de marfim” ou isolamento, mas, pelo contrário, é uma procura de meios que permitam formas variadas, autênticas e consistentes de participação. Não se trata também de criar uma oposição entre os papéis de acadêmico e cidadão, mas procurar definir contextos e linguagens. Reconhecer que a ciência e a universidade têm função social é coisa óbvia. Mais complicado é procurar definir esta função sem maniqueísmos e esquematismos. Não há muitos acadêmicos que aderem, em princípio, à ideia de que o enclausuramento nos laboratórios e gabinetes é um caminho adequado. Às vezes encontra-se nessa atitude uma forma de reação a pressões despropositadas. Estes que pretendem se proteger, não devem ser discriminados e desrespeitados. Não só porque podem realizar um importante trabalho científico.
Mas porque em determinados momentos e conjunturas podem se pronunciar e manifestar-se, às vezes de maneira surpreendente. Há alguns exemplos deste tipo social de cientista cuja postura é bem diferente daqueles que tentam impor à comunidade acadêmica o isolamento e o alheamento através da coerção e da ameaça. Felizmente rareiam estas pessoas em nosso meio, mas ainda há aqueles que manipulando indivíduos ou agências extra-universitárias tentam impedir a livre expressão e manifestação. Não podemos confundir o acadêmico que não se quer envolver com problemas que considera não ser de estrito interesse científico, com pessoas que tentam impingir a toda a comunidade tal caminho. Mais uma vez deve-se evitar e reagir contra as tentativas de impor um único padrão de comportamento à comunidade acadêmica, seja de isolamento ou de um tipo particular e reificado de participação social. A valorização interdisciplinar e a necessidade de estabelecer relações com os diferentes segmentos da sociedade não nos deve levar a escamotear a existência de problemas específicos. De um lado temos todas as questões da organização administrativa e política da universidade e dos centros de pesquisa - organização departamental, flexibilidade de currículos, democratização das decisões, autonomia universitária, recursos estáveis, política de contratação administrativa de pessoal etc.
De outro, embora indissoluvelmente associada a essa primeira ordem de questões temos o problema essencial da liberdade de pesquisa. Neste ponto parece fundamental tentarmos estabelecer um espaço próprio para o mundo acadêmico-científico onde esteja protegido dos diferentes tipos de utilitarismo. Esta preocupação deve estar presente em um código que procure preservar nossa identidade ao mesmo tempo que estabeleça normas de relacionamento com a sociedade domo um todo. Trata-se de explicar uma série de responsabilidades e obrigações. A denúncia da censura e de outras formas de coerção com a s cassações brancas e o corte de verbas permite-nos defender uma causa que, sendo de nosso interesse, nos unirá as outros segmentos da sociedade brasileira, isto é, intelectuais, artistas, jornalistas, estudantes etc. A luta pela reintegração automática dos professores e pesquisadores afastados de nosso convívio é fundamental para a defesa e e garantia do trabalho científico no Brasil. Ao encaminharmos nossos problemas específicos, é evidentemente importante vinculá-los a reivindicações de outros grupos. Cumpre assumir uma identidade que, sendo problematizável e complexa, não pode ser escamoteada. Está em jogo, afinal de contas, a própria importância do trabalho intelectual. Há um ethos acadêmico que vai mobilizar mais certas pessoas do que outras. As relevâncias e prioridades deste mundo são forçosamente diferentes das do mundo empresarial, tecnocrático ou político.
Ao reconhecer o pluralismo, diferentes estilos, maneiras de ser e de pensar, há que reconhecer as peculiaridades e objetivos da academia que sem dúvida estabelecem um tipo de limite e fronteiras. A
antropologia, implícita ou explicitamente, sempre manteve uma relação teórica privilegiada
com as chamadas sociedades complexas ou, para ser mais preciso, com a sociedade
na qual teve origem como campo de conhecimento. Ou seja, que mesmo nas
investigações aparentemente mais afastadas de toda preocupação com a sociedade
ocidental, certa concepção deste universo está sempre presente e que esta
concepção influi de algum modo na pesquisa desenvolvida e nas teorias
construídas. Nesse sentido, a “antropologia das sociedades complexas”
parece ser, ao mesmo tempo, a origem, o destino e a prova da investigação antropológica.
Oriunda de uma preocupação evolucionista a antropologia só pode se renovar se
for capaz de renovar-nos, levando ainda mais longe o que sempre pretendeu fazer
com os “outros”: apresentar as diferenças que nos permeiam e contribuir assim
para que sejamos capazes de nos estranhar e, consequentemente, de nos
problematizar e questionar. É usual situar o interesse antropológico pelas
sociedades complexas nos trabalhos de Antropologia Urbana a
partir da década de 1920 pela Escola de Chicago.
Mas,
neste caso, sem perder de vista aqueles trabalhos etnográficos realizados por
antropólogos com experiência etnológica em sociedades primitivas, é preciso
reconhecer, que estes trabalhos estão desde seu início marcado pelo interesse
em descrever os problemas relacionados com a instalação de imigrantes nos
guetos de Chicago. A extensão das técnicas da chamada escola de cultura e
personalidade na direção das sociedades complexas, por sua vez, está
diretamente vinculada com o interesse em descobrir se os problemas urbanos
identificados com os “distúrbios da adolescência entre os jovens norte-americanos
tinham causas fisiológicas ou sociológicas”, visando evidentemente uma
intervenção nas estruturas pedagógicas mais amplas. Como se referiu Margaret
Mead, sem dúvida a principal representante deste movimento de inserção da
teoria da cultura e personalidade na sociedade norte-americana, após seis
estudos a respeito de sociedades ditas primitivas, ela estava pronta a retornar
para casa, “convencida de que a próxima tarefa era aplicar o que sabíamos da
melhor forma que pudéssemos, aos problemas de nossa própria sociedade”. Esse tipo de preocupação levou a antropologia cultural norte-americana a assumir posições ambíguas a respeito da sociedade em que estava inserida, bem como acerca da questão da relação entre esta sociedade global e os grupos que a compõem.
Por um lado, uma ênfase relativista tendia a valorizar as diferenças e
os direitos dos subgrupos e, consequentemente, a questionar certos padrões
dominantes da sociedade abrangente. Aqui se inscrevem sem. dúvida, entre
outras, noções como as de "cultura espúria" de Sapir, a crítica da “intolerância”
de Ruth Benedict e o elogio da diversidade esboçado por Margaret Mead. Por
outro lado, tratava-se de enfatizar a homogeneidade e unidade da sociedade
abrangente, fazendo simultaneamente apelo à ideia de uma intervenção corretiva
que evitasse os extremos a que pode chegar esse ideal de unidade e esse esforço
de homogeneização. Deste ponto de vista, a antropologia passa a ser encarada
mais como uma “engenharia social”, como sustentava Ruth Benedict, do que como “crítica
cultural”. Esta posição é a mais livre em relação à sociedade na qual se vive: “sempre gostei de minha
própria cultura assim como gosto de meu próprio nome e de ser uma mulher”.
A vertente norte-americana da Antropologia das Sociedades Complexas
demonstra, por um lado, ao contrário dos estudos antropológicos britânicos, na direção de
análises macroscópicas de grande envergadura destinadas a restituir o padrão
global das sociedades modernas. Por outro lado, esta vertente realça um dos
paradoxos deste tipo de investigação. Como conciliar o respeito pela diferença
e a crítica ao etnocentrismo específicos da tradição antropológica europeia com
a existência de sociedades aparentemente voltadas para a absorção ou supressão
das diferenças e para a imposição de alguns valores tidos como universais? A
defesa genérica da diversidade não é capaz de solucionar o impasse, já que, por
exemplo, o caso limite do nazismo havia demonstrado a necessidade de impor uma
fronteira para a aceitação e valorização da diferença. Mas a posição
simplesmente oposta - defender de modo igualmente genérico a democracia em sua
manifestação norte-americana - ameaça fazer aceitar, ao lado do justo combate
contra forças do tipo do nazismo, o esforço para erradicar qualquer forma de diversidade
que aparente ou que seja acusada de ameaçar o sistema global - o qual
dificilmente se dispõe de indicadores seguros e acima de discussão.
Gilberto
Velho atuou prevalentemente nas áreas de Antropologia Urbana, Antropologia das
Sociedades Complexas e Teoria Antropológica. Além de cargos burocráticos acadêmicos,
assumiu funções também burocráticas como coordenador do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social do Museu Nacional e chefe de Departamento de
Antropologia, foi presidente da Associação Brasileira de Antropologia - ABA
(1982-84), presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Ciências Sociais - ANPOCS (1994-96) e vice-presidente da Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência - SBPC (1991-93). Foi membro do Conselho Consultivo
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1983-93), tendo sido
Relator do 1° tombamento de terreiro de candomblé no Brasil - Casa Branca, em
Salvador. Ao longo de 40 anos de carreira, Gilberto Velho ganhou prêmios e ocupou posições de destaque nas instituições de ponta da
área de Antropologia. Em 2012, era professor Titular em Antropologia, e
principalmente Decano do Departamento
de Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ) e membro da Academia Brasileira de
Ciências.
O
decano tradicionalmente pode ser considerado a pessoa mais velha de certo grupamento
ou turma de pessoas, classe instituição ou corporação. É em alguns casos
comparados em hierarquia ao sub-reitor de uma universidade, mas trata-se de
casos distintos. Os decanatos são unidades administrativas ligadas à Reitoria
que coordenam e fiscalizam as atividades de ensino e pesquisa
universitárias. A função de cada decanato é fazer com que os departamentos e/ou
coordenações que compõem e formam a Universidade funcionem de forma eficaz, dando
legitimidade ao corpo docente, segundo um grau acadêmico, sob a forma de um título conferido normalmente por uma instituição
de ensino superior em reconhecimento oficial pela conclusão com sucesso de
todos os requisitos de um curso, de um ciclo ou de uma etapa de estudos
superiores. O moderno sistema de graus acadêmicos desenvolveu-se a partir da
universidade medieval europeia, acompanhando posteriormente, a expansão global
deste tipo de instituição. Os graus de bacharel, licenciado, mestre e doutor,
concedidos pelas antigas universidades da Europa - acabaram por ser adotados
nas diversas sociedades do mundo ocidental.
O ensaio Nobres e Anjos (1998) como um de seus objetivos o mapeamento dos estilos de vida e visões de mundo de dois grupos das camadas médias cariocas da Zona
Sul da cidade do Rio de Janeiro. Uma área geográfica extraordinária localizada ao sul do Maciço da Tijuca, no município do Rio de Janeiro, no estado do Rio de Janeiro. Abrange os bairros de São Conrado, Rocinha, Ipanema, Botafogo, Catete, Copacabana, Flamengo, Gávea, Glória, Humaitá, Jardim Botânico, Laranjeiras, Leme e Urca, Vidigal que engloba todos os seus bairros. Primeiro, os vanguardistas-aristocratas, que
pertencem ao que o autor denominou de “roda intelectual-artístico-boêmia”.
Segundo, um grupo de jovens surfistas, cujo ponto de referência era uma
lanchonete no bairro Ipanema, mas com origem social estruturalmente semelhante à do
outro, representada pela “burguesia empresarial” e profissionais liberais com
projeto de ascensão social em contradição não antagônica os “nobres” e os “anjos”,
respectivamente. As visões funcionam nesse contexto espacial mais como porta de entrada
para esses estilos de vida e visões de mundo do que como tema central. Sua
importância é conjuntural, ou seja, funciona
basicamente como demarcador de fronteiras e de hierarquias em determinadas
situações sociais. Os “tóxicos” são como entrada para estilos de vida e cosmovisões do que como tema central. Sua importância é conjuntural, de fronteiras e hierarquias, não sendo o centro da identidade dos grupos pesquisados.
Embora
distintos em termos etários, estilos de vida, percepções políticas e nas formas
praticadas de hedonismo, os dois grupos apresentam pontos de contato. Um deles
é o uso de tóxicos e os “problemas decorrentes da ilegalidade da atividade e do
desvio em relação à cultura dominante”. Outro ponto de contato é o
aristocratismo que, embora com formas diferentes e conteúdos específicos, para
Gilberto Velho, “expressa um princípio hierarquizado ativo, tanto para os
vanguardistas-aristocratas como para os jovens surfistas”. A referida pesquisa
representou o ponto de partida para o tipo de Antropologia urbana que Gilberto
Velho veio desenvolver. Afinal de contas, afirma – “eu e minha mulher éramos moradores,
mesmo que tivesse sido apenas por um ano e meio, do prédio de conjugados.
Éramos copacabanenses vivendo num tipo de habitação predominantemente ocupado
por pessoas de pequena classe média, alguns estudantes e também certos tipos
sociais que viriam a ser importantes na minha carreira, caracterizados na
literatura como desviantes”. Lembrava-nos Erving Goffman, metodologicamente, que ao concordar quanto ao que devem e não devem um ao outro, as partes tacitamente concordam quanto á validade geral de direitos e obrigações contratuais, quanto ás várias condições para sua nulidade e quanto à legitimidade dos tipos de sanção para o rompimento do contrato: as partes contratantes também concordam tacitamente quanto à sua competência legal, sua boa fé, e quanto aos limites em que os contratantes que merecem confiança devem merecê-la.
Enquanto moraram no prédio, “em pelo menos duas
ocasiões, houve operações de órgãos de repressão, inclusive com mortes”. Quem aceita um contrato supõe que seja uma pessoa de determinado caráter e forma de ser. Um caráter muito minucioso que cuidadosamente limite os deveres e direitos individuais pode basear-se num conjunto de suposições referentes a seu caráter. O
apartamento em que foi realizada a pesquisa etnográfica pertencia a seus pais. Era habitualmente alugado como fonte de
renda, mas o antropólogo relata que “minha avó paterna, quando enviuvou, morou alguns
meses ali também. Quando me casei, não foi muito fácil a saída dos inquilinos
que, na ocasião, ocupavam o apartamento aonde viríamos a morar”. Os inquilinos
eram um casal de idosos, que residiram entre os anos 1960 e 1970. Foi
necessária uma negociação com advogados e uma ajuda financeira para que
deixassem o imóvel. Sem dúvida, comparativamente, afirma, o ambiente era muito
diferente do prédio em que morara antes com sua minha família. Nele, os
apartamentos eram bem maiores e os seus moradores eram quase todos proprietários.
Predominavam as famílias de militares, geralmente oficiais, em termos de
Exército, além do pessoal da Marinha, de capitão-de-corveta para cima. Com o
passar do tempo, alguns tornaram-se oficiais generais e, praticamente todos, oficiais
superiores. Certamente o ethos predominante contrastava com a heterogeneidade
aparentemente tumultuada do Edifício Estrela, nome com o qual o batizei na
minha dissertação. Antropólogos tendem a desconfiar da antropologia das chamadas sociedades complexas em virtude de sua suposta tendência para generalizações amplas e apressadas, sem o minucioso trabalho de campo que caracterizaria a etnologia tradicional.
Os sociólogos e cientistas políticos, por exemplo, temem que o
particularismo excessivo que imaginam marcar a antropologia em geral acabe por
invadir o estudo das sociedades nas quais se especializaram. A verdade é que
este tipo de crítica não é nada recente. Escrita, história, magnitude,
diversidade e abertura, seriam as características centrais que se apresentam distinguindo as
sociedades complexas. Os limites dos métodos antropológicos quando aplicados às
sociedades complexas, derivariam, também de seu ponto de vista na apreensão,
constituição e detalhamento do objeto. Além disso, nas diferenças específicas
entre este tipo de análise da sociedade e comparativamente, ao estudo das chamadas
sociedades primitivas. Dotadas de uma ordem de grandeza muito distinta, as
sociedades complexas exigiriam para ser etnograficamente compreendidas, o mapeamento das
conexões de sentido de casos com estruturas mais abrangentes.
Neste sentido, uma das características tipológicas do modelo contemporâneo de antropologia
é, sem dúvida, uma reação mais radical às ambições cientificistas que têm
marcado a história da disciplina. Assim, é significativo que boa parte da
produção antropológica contemporânea a respeito das chamadas sociedades
complexas se limite a reivindicar, também para nós, urna cultura, deixando de
investigar a originalidade, a diferença específica que o mundo ocidental
constitui. O termo “sociedades complexas” não deve, portanto, ter o mesmo
destino evolucionista das chamadas “sociedades primitivas”, como de resto
entendido sempre entre aspas, como se tratasse de isenção para o contexto em relação ao qual o
observador deve buscar um certo afastamento. Mais do que isso, tudo indica que
é preciso admitir que o estudo antropológico das sociedades complexas sempre
teve a virtude de revelar, uma série de dificuldades e equívocos já presentes
comparativamente nos trabalhos sobre as chamadas sociedades primitivas, mas que aí podiam passar mais
ou menos despercebidos, seja em virtude de características intrínsecas desse
tipo corrente de sociedade, seja, mais provavelmente, devido à posição
etnocêntrica do observador em relação a elas. A antropologia das sociedades
complexas contribuiu para colocar em questão, a possibilidade de caracterização
de totalidades sociais autônomas, a aparente homogeneidade global dos membros de uma
sociedade etc.
Bibliografia
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