terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Currais de Retirantes - Hospitalidade & Sociedade como Caso de Polícia.

                                                                                                     Ubiracy de Souza Braga

              Falam que o tempo apaga tudo. Tempo não apaga, tempo adormece. Rachel de Queiroz 

                                   
            O pensamento político grego moldava ideias de democracia em torno de aspectos de logos. Conforme assinalou Clístenes, liberdade de expressão e debate só faz sentido se as pessoas estão cientes de sua imputabilidade; caso contrário, os argumentos não têm valor, as palavras carecem de importância. O orador não é responsável pelo que diz no mito, cuja linguagem está vinculada à crença incorporada no aforismo helênico: “não inventei isso, apenas ouvi falar por aí”. A maioria dos mitos, inclusive gregos, narra feitos de entes mágicos ou de deuses, o que leva a crer que tenham sido eles próprios seus autores; homens e mulheres apenas os espalham adiante. Portanto, a audiência não pode suspeitar do simples relator, como do orador que, na assembleia política, reivindicasse crédito para o que diz. O mito é, assim, no âmbito do “social irradiado” a ratificação de um acontecimento e de seu compromisso de entendimento.  Segundo a famosa definição contida nos escritos de Aristóteles, trata-se de “uma suspensão voluntária da descrença”. A mitologia que deu origem - epos - aos primeiros dramas estabelece o verdadeiro contexto para tal afirmação.
             Mito diz respeito à crença nas palavras em si mesmas. Segundo o classicista Froma Zeitlin, o teatro trágico grego, entenda-se, aqui, também, o teatro da comédia já que, como se sabe, tragédia e comédia andavam juntas, não se separavam, demonstrava em sua prática simbólica, o corpo humano em um estado não natural de pathos (sofrimento), quando se afastava de seu ideal de força e de sua capacidade de integridade. A tragédia insiste na exibição desse corpo. Nesse sentido, pathos, relato mito-poiético epopéico do sofrimento, era o oposto de orthos. Ora, assim entendida, a tragédia é pathos-logos, ou seja, linguagem de sofrimento que lança mão do recurso mito-poiético epopeico para permitir experiência. Além de sofrimento, de pathos deriva-se também as palavras paixão e passividade. A Psicopatologia Fundamental está interessada na interpretação de um sujeito trágico que é constituído e coincide com o pathos, notadamente o sofrimento, a paixão, a passividade.
Este sujeito, que não é nem racional nem agente e senhor de suas ações, encontra sua mais sublime representação na tragédia grega. O que se figura na tragédia é pathos, sofrimento, paixão, passividade que, no sentido clássico, quer dizer tudo o que se faz ou que acontece de novo, do ponto de vista daquele ao qual acontece. Nesse sentido, quando pathos acontece, algo da ordem do excesso, da desmesura se põe em marcha sem que o eu possa se assenhorear desse acontecimento, a não ser como paciente, como ator. Pathos, então, designa o que é prático, o que é vivido. Aquilo que pode se tornar experiência. Psicopatologia, sociologicamente e literalmente quer dizer: um sofrimento, uma paixão, uma passividade que porta em si mesmo a possibilidade de um ensinamento interno que não ocorre a não ser pela presença de um médico. Na posição da psicopatologia fundamental, pathos - representa o sofrimento, as paixões, a passividade, ipso facto, assujeitam o ser humano criando um tipo particular de sujeito que também encontra suas origens no teatro grego do tempo de Péricles. Neste sentido, tanto o sofrimento como as paixões e a passividade se apoderam do corpo sem fazerem parte inerente dele. O pathos vem de longe e vem de fora e toma o corpo fazendo-o sofrer.


A descoberta do inconsciente freudiano como manifestação do pathos e como algo que surge da violência primordial, bem como a consequente metapsicologia que é conhecida por psicanálise é a casa mais confortável existente na contemporaneidade para a chamada Psicopatologia Fundamental. Assim como reconhece a existência de múltiplas posições corporais-discursivas na cidade, ela pretende, também, que os que ocupam outras posições na polis reconheçam a especificidade de sua posição. Desde as suas origens, a cidade abriga a multiplicidade e esta só cresce com os tempos. A especificidade da Psicopatologia Fundamental não quer dizer, também, que se trata de uma postura rígida e sem movimento. O psicopatólogo fundamental visita outras posições na cidade, assim como é visitado por aqueles que ocupam outras posições. Isso é particularmente verdadeiro na Universidade - uni[dade] na [di]versidade - onde, como propõe Fédida, as posições devem ser explicitadas e mantidas para que a experiência ocorra e se transforme em saber. Queremos dizer que a Psicopatologia Fundamental faz parte da rica tradição que trata do sofrimento humano e, por isso, merece ser cultivada.

Trata-se de uma história social da penetração do pensamento alheio nos recessos de nossa vida especulativa, ser em suma, “a narrativa do grau de compreensão, da nossa capacidade de assimilação nas diferentes épocas e do nosso cotidiano de sensibilidade espiritual”. Contudo, o que há de curioso é que, não devemos perder de vista a circunstância de que tais ideias ao desembarcarem nas costas marítimas brasileiras, no processo civilizatório, quase sempre passam por estranha, mas curiosa sorte: “algumas destas atingem nova significação, outras logo se perdem”. Disto resulta que a história social das ideias nas Américas, em geral, e no Brasil, em particular, adquire grande importância, pois serve para condicionar três aspectos da formação nacional: a) sua generalidade, b) sua aplicação às atividades humanas e, c) sua flexibilidade cultural. O uso de campos de concentração foi amplamente disseminado na Alemanha nazista, durante a 2ª  guerra mundial (1941-1945), na extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas - URSS, durante a era stalinista, e atualmente na Coreia do Norte. 
A prática de matanças sistemáticas de prisioneiros em alguns desses campos, fez com que, em linguagem corrente, os campos de concentração fossem assimilados aos campos de extermínio, que de fato constituem um subtipo anômalo. O tratamento dado a prisioneiros de guerra, tanto civis quanto militares, nos campos de concentração em tempo de guerra é regulado pela 3ª e 4ª Convenções de Genebra, de 12 de agosto de 1949. Há diversos registros do uso de instalações desse tipo para confinamento de dissidentes políticos por regimes ditatoriais, ou ainda como solução extrema, como no caso autoritário cearense, para deter fluxos migratórios. Em alguns casos trata-se de dependências oficialmente inexistentes, sem qualquer vinculação com a norma jurídica e, portanto não submetidas ao controle internacional. Em 1915 e 1932, o governo brasileiro criou no Estado do Ceará, mais precisamente em Senador Pompeu, em uma parte reconhecida como Sertão Central do Estado, “campos para confinar retirantes que fugiam das secas”. Estes campos são reconhecidos “currais do governo”.
 Em 1942, a partir da declaração de guerra do Brasil aos países do Eixo, o governo brasileiro criou vários campos de concentração para cidadãos alemães, italianos e japoneses, considerados suspeitos de atividades antibrasileiras. Também foram feitos prisioneiros os tripulantes de embarcações alemãs capturadas ou avariadas nas costas brasileiras. Os campos oficiais eram doze: Daltro Filho (RS), Trindade (SC), Presídio de Curitiba (PR), Guaratinguetá (SP), Pindamonhangaba (SP), Bauru (SP), Pirassununga (SP), Ribeirão Preto (SP), Pouso Alegre (MG), Niterói (RJ), Chã de Estevam (PE) e Tomé-Açu (PA). Também havia outros campos de concentração dentre os oficiais, por exemplo, em Ponta Grossa que prendiam além de japoneses, alemães e italianos, também mantinham austríacos. Em Joinville, 200 pessoas “foram colocados num hospício desativado”. Um campo de concentração no Recife abrigou os funcionários das Casas Pernambucanas, apenas pelo fato de os seus patrões terem origem germânica. A reclusão nos campos praticamente foi uma precondição para o apoio brasileiro aos Aliados. O tratamento dado aos imigrantes foi um dos elementos de negociação no campo da política internacional. Esse período da história brasileira não foi incluído nos livros didáticos até o momento, pois, até 1996, era considerado secreto pelo governo, que permitia apenas o acesso parcial das informações. Os arquivos foram lacrados com base em uma lei que proibia consultas ou pesquisas por 50 anos. Em 1988, o prazo diminuiu para 30 anos.
Do ponto de vista da análise política a seca é um fenômeno que desestrutura periodicamente a vida social dos sertanejos cearenses ao inviabilizar a agricultura de subsistência com base na organização familiar do trabalho. Esta migração periódica, a partir da segunda metade do século XIX, transformou-se num grande problema social a ser enfrentado, sendo objeto da construção de um sem-número de sabres e práticas que objetivavam evita-la, impedi-la ou neutralizar seus efeitos. Estas migrações, porém, jamais chegam a encontrar um lugar na estruturação social, política ou econômica que as permitisse acontecer sem gerar surpresas ou desajustes graves. Por outro lado, a seca – leia-se: fome, miséria, migrações, etc. – é vista também, por estes saberes, como “um grande desajuste social, uma fonte de imoralidade, uma causa de desespero que mina a fé cristã, um eficiente fator de criminalidade”, que provoca uma “desorganização profunda na economia regional” e “talvez principalmente”, uma “desintegração na ordem religiosa, moral e cívica”. Este ponto de vista tem suas raízes em 1877 quando este problema “explode” no cenário urbano de Fortaleza de maneira dramática e alarmante. A cidade é invadida e quadruplicada por sertanejos em sua população numérica real. Epidemias, crimes, desacatos à recatada moral das famílias provincianas, tragédias indescritíveis se desenvolvem em vista de todos: assassinatos, suicídios, saques, loucura, antropofagia! A ordem do mundo parecia ter perdido seus referenciais.             
A partir daí se organizam experiências que, durante 38 anos, apenas representam pequenas iniciativas públicas ou privadas de assistência, que incluem a distribuição de alimentos e passagens para fora do estado – e tentativas isoladas de higienização e/ou moralização. Em 1915, contudo, estes saberes e estas experiências constituem uma nova instituição: o “campo de concentração” que não é apenas materialização destes saberes e poderes, mas ele próprio produção de novos saberes e novas formas de poder. Assim pode-se perceber como uma primeira experiência que deixou marcas tão negativas na cidade pode se traduzir, 17 anos depois, em outra experiência que conta com o apoio e admiração de governantes, técnicos e jornalistas. De outro lado, pode-se também perceber como estes investimentos de saber e de poder, se sofisticam, se desenvolvem, engendrando novas práticas sociais que chegam até a abandonar o princípio básico da concentração, sem desprezar os dispositivos mais sutis que organizam de maneira mais geral toda a experiência dos campos. Há uma prática de continuidade que liga os abarracamentos, os campos de concentração e as atuais frentes de serviço.
O campo de concentração tornara-se uma importante referência de mobilização social para aqueles que viam as suas parcas condições de existência/sobrevivência dissiparem-se rapidamente em função da seca, sujeitos à fome, ao desabrigo e ao desalento. No entanto, o campo de concentração do Alagadiço, criado aparentemente para fim tão humanitário, chegando a comportar “permanentemente mais de 8 mil pessoas”, cedo demonstrou-se incapaz de corresponder às expectativas de seus idealizadores como sobrevivência da relação social estabelecida entre cidade e campo. O farmacêutico Rodolfo Teófilo, experiente no combate às epidemias urbanas, como a varíola, discordou desde o início e argumentou com o Presidente do Estado, sobre o projeto do campo, que “aglomerar os retirantes era mata-los”, relatando exemplos das secas anteriores, principalmente de 1900, quando se compreende factualmente que “o governo deixou os retirantes abrigarem-se onde bem entenderem, e estes agasalharam não só as árvores dos subúrbios como também nas praças e ruas de Fortaleza”.
Dona Carmélia, o pai trabalhava no campo.
Com isso, segundo o farmacêutico Rodolfo Teófilo, “findou o flagelo e não apareceu uma só epidemia, à exceção da varíola, a companheira inseparável da seca”. Mas suas argumentações eram inúteis. Aliás, “higiene e moralidade” eram os elementos principais sobre os quais se detinham com maior atenção os observadores. De fato, não havia uma estrutura sanitária no campo que mais parecia um “depósito de seres humanos”. Os banheiros, por exemplo, ficavam “a sotavento do abarracamento, no fundo do cercado ao poente onde faminto, numa promiscuidade de bestas, defecavam, ficando as fezes expostas às moscas, levando necessária conclusão de que “aquele atentado a sã higiene não podia deixar de ter consequências desastradas”.  Não é à toa que Rodolpho Teófilo com um olhar sanitarista, se refere várias vezes àquela população concentrada como “uma esterqueira humana”. O sombrio vaticínio do abnegado farmacêutico parecia cumprir-se integralmente. Os observadores creem que “nada mais repugnante e contrário as regras mais elementares de higiene e caridade de que o campo de concentração dos retirantes do Alagadiço, em 1915” (cf. Teófilo, 1922).
O banheiro encerra uma insolúvel contradição: apesar de ser o lugar que você procura para realizar hábitos de higiene. As formas descritivas e os nomes dados aos banheiros historicamente revelam a lentidão do processo social de higiene pessoal. O banheiro ou “casa de banho”, também conhecido como “instalações sanitárias”, privada, “gabinete sanitário”, toalete ou toilette, “quarto de banho”, lavabo ou WC (water closet), significando “gabinete da água”, é um compartimento ou cômodo de uma habitação utilizada para os cuidados de higiene pessoal. Os banheiros públicos foram criados no ano de 1500 e são normalmente separados por tipologia de sexo, i.e., um banheiro para homens e outro para mulheres. A razão primeira disto é a higiene, devido ao fato dos homens urinarem de pé e as mulheres sentadas. Muitos homens, ao urinarem de pé, na maioria das vezes tendem espalhar urina sobre a privada. A preocupação numa casa de banho pública onde a higiene nem sempre é a mesma comparativamente do que em casa. Do ponto de vista histórico e existencial uma pessoa normalmente gasta em média 3 (três) anos de sua vida sentada no vaso sanitário.    
Curiosamente não é um hábito, na universidade pública, haver papel higiênico ou papel-toalha nos banheiros da universidade ou mesmo as tampas das privadas funcionarem. Um estudo realizado pelo Professor Mark Wilcox, diretor clínico de microbiologia, afirmou que dar descarga com a tampa da privada levantada permite que uma nuvem de bactérias polua o ar do seu banheiro, o que aumenta o risco de contrair vírus. Em seus estudos, o Prof. Wilcox reparou que a descarga transporta as bactérias até 25 cm acima do assento do vaso sanitário e fica pelo ar do banheiro por até 2 horas. Quando a descarga é dada com a tampa fechada, essas bactérias não são encontradas no ambiente, apenas na tampa. O que ele recomenda é sempre dar a descarga com a tampa abaixada e em seguida higienicamente lavar as mãos. Tem mulheres que pegam no pé do marido,/namorado/ou filho por um motivo: a tampa da privada. Elas lutam pra que sempre esteja abaixada, mas eles insistem em deixá-las levantadas. Está provado que elas estavam certas. Por mais irrelevante que possa parecer, a tampa dos vasos sanitários existe por um bom motivo próprio e de higiene sanitária. A história social do banheiro é conturbada e até paradigmática para os nossos atuais padrões de higiene mundial.
Os componentes sanitários como conhecemos, só começaram a existir bem recentemente, e dependeram de muitas inovações não só ergonômicas pra estarem à nossa disposição. O típico banheiro romano era comunitário, todos sentavam lado a lado, e embaixo deles passava um canal de água corrente, usado para carregar os dejetos até rios distantes. Eram frequentados tanto por homens como por mulheres. Além disso, eles gostavam de interagir durante sua evacuação com debates, encontros cívicos e até banquetes em seus banheiros. Banheiros dentro de casa só começariam a se popularizar em 1668, na Europa, quando a França instituiu uma nova legislação higienista em Paris. O decreto determinava que todas as novas casas construídas na cidade deveriam ter esse importante cômodo. Mesmo assim, nas mais luxuosas mansões e castelos, normalmente não havia banheiros, apenas um buraco no qual os usuários deixavam seus dejetos, que iam parar na rua ou no fosso em torno do castelo. Além de frios e ventosos, estes banheiros cheiravam tão mal que eram usados para guardar roupa, que assim ficava protegida de insetos, por isto, esses cômodos eram conhecidos como “garderobes”, que quer dizer “closet”, aquele quarto que serve de guarda-roupas. Aproximadamente 2.6 milhões de pessoas não têm acesso a banheiros higiênicos de forma usual decente, especialmente nas áreas rurais de países gigantes e populosos como a China e Índia.

Durante quase todo o ano de 1915 não haveria acréscimos de verbas oficiais para as obras administradas pela IOCS, apesar de ser aquela instituição a principal responsável por enfrentar a intensa crise de estiagem por que passava o semiárido. Até o fim do ano praticamente todos os serviços de socorros acionados pelo governo se concentrariam em Fortaleza, onde cerca de dois mil retirantes trabalhavam nas construções do açude Tauape e da “avenida beira mar da Rua Sena Madureira”. Parecia que novamente a ausência de investimentos por parte do governo federal reservaria a tarefa de socorrer os miseráveis às ações das instituições religiosas, onde se destacava a atuação do arcebispo D. Manuel da Silva Gomes, cognominado de “a caridade itinerante” por sua dedicação em viajar por vários pontos do país arrecadando doações aos flagelados. O fato é que demonstrando mais uma vez, como ocorre em seu poder analítico de sintetizar em poucas palavras um sentimento compartilhado, Rodolfo Teófilo registraria, entre irônico e lamentoso, um sentimento segundo o qual “a Inspetoria de Obras contra as Secas é um mito”.
Mas o prolongamento e a extensão da crise ainda haveriam de provocar reações por parte dos poderes constituídos. As multidões de retirantes nas estações de Iguatu e de Crateús representando pontos extremos das vias férreas, nos grandes açudes Salão, Tucunduba, Patos, Riacho do Sangue, Caio Prado e Acarape do Meio, considerados potenciais centros de emprego aos retirantes e em cidades oligárquicas como Sobral, onde havia aproximadamente 20 mil sertanejos em outubro e Fortaleza, miseravelmente com cerca de oito mil trabalhadores reunidos no campo de concentração do Alagadiço,  constituíam-se em um potencial de revolta social a despertar o temor político de cidadãos e autoridades. Edward Palmer Thompson lembra que esta cultura tem outros traços “tradicionais”, por hipótese. Um deles que interessa em particular é a prioridade que se outorga, em certas regiões, a sanção, intercâmbio ou motivação “não-econômica” frente a diretamente monetária. Uma e outra vez ao examinar formas de comportamento do século XVIII, nos encontramos com a necessidade de “decifrar” este comportamento e descobrir as regras invisíveis de ação, diferentes das que o historiador de  “movimentos operários” espera encontrar nas sociedades deste tipo (cf. Thompson, 1979). Num artigo do jornal A Lucta, de Sobral, Mario Leblon chegou a imaginar: - “E se os famintos, indignados e revoltados com o desprezo recebido se sublevassem contra o Governo, aos milhares galgassem as escadarias do palácio presidencial, reclamando o direito de viver como os demais cidadãos, pedindo roupa e pão?”
           Lembrava-se da situação precária por que passava o povo e da indiferença do governo, havia desta forma se desencadeado “em tempos não muito remotos” a Revolução Russa de 1905. Os investimentos federais converteram-se, literalmente, segundo Cândido (2014: 191) “num sensível surto de industrialização nos rotineiros territórios atingidos pelas secas”, pois as obras de vulto, como as construções dos grandes açudes Orós, Pedras Brancas, Patu e Quixeramobim, iniciadas nessa época, trouxeram a reboque todo um aparato de reparos em portos, extensão e modernização de rede ferroviária, instalação de fábricas de beneficiamento de cimento, implantação de usinas elétricas, construção de rodovias e de redes telefônicas, criação de povoados que em breve se converteram em cidades. Nessa que Tomás Pompeu Sobrinho chamaria de “fase brilhante da luta contra as secas” poderosas empresas estrangeiras foram contratadas: a norte-americana Dwight P. Robison and Co. Inc. e as inglesas C. H. Walker Co. Limited e Norton Griffith, notáveis pelos serviços prestados em diversos países do mundo. Essas firmas transportaram para o sertão seco uma moderna aparelhagem de base tecnológica composta por perfuratrizes, britadeiras, betoneiras, distribuidoras de concreto, cabos aéreos e guindastes. Esse momento aparentemente histórico em que as elites políticas  nortistas se regozijavam à ilusória perspectiva de finalmente encontrar uma “solução definitiva” para o problema das secas serve de marco também para a seguinte  tese.
Após mais de quatro décadas de significativas experiências, em que sucessivas gerações de sertanejos conviveram com a perspectiva de trabalhar em alguma obra de socorro público, não foi o Estado que forneceu subsídios para sobrevivência aos tempos de seca, mas o processo de proletarização através da seca revelava com toda a clareza. Em análise comparada em 1932, a prática de manter a “cidade dos ricos” afastada (ou parcialmente afastada) da miséria concretizou-se na construção de locais para o “aprisionamento dos flagelados”, bem como em frentes de trabalho e em políticas de emigração forçada para outros Estados. Nesta seca, o poder público isolou parte dos sertanejos em sete (07) campos de concentração, distribuídos em lugares estratégicos para garantir o encurralamento de um maior número de retirantes no sertão do Ceará. Esses campos de concentração apresentavam-se como espaços privilegiados para um estudo sobre a construção dos lugares de isolamento da pobreza em face do medo que a multidão faminta causava na cidade de Fortaleza durante as secas. Enquanto locais de confinamento, ganharam significativa relevância nas páginas dos jornais da cidade. Além disso, a seca era diariamente relatada nas matérias desses periódicos.
Examinando esses jornais, tornou-se possível perseguir o rastro das tensões sociais produzidas neste momento de confronto entre pobres e ricos. As matérias jornalísticas publicavam, com detalhes, artigos que enfocavam a seca sob seus diversos aspectos: a chegada dos retirantes; a situação no sertão; o número de sertanejos que se deslocavam rumo à cidade; o pânico dos ricos diante do flagelo que se aproximava; as medidas do Governo para conter ou amparar o flagelado; as obras em andamento na cidade; o emprego dos flagelados nessas obras; os diferentes discursos sobre a necessidade de controle dos pobres; a estrutura dos campos de concentração; os conflitos entre administradores e concentrados e todas as notas oficiais do poder público no estado do Ceará. Os campos de concentração no Ceará, os “currais do governo”, foram reações governamentais executadas nas secas de 1915 e 1932 no estado do Ceará. A seca de 1915 foi o cenário para obras escritas como o livro: O Quinze, de Raquel de Queiroz, bem com para a implantação do primeiro campo de concentração no Ceará, no Alagadiço, ao oeste de Fortaleza. No Alagadiço, estima-se um ajuntamento em torno de 8 mil pessoas, “cuidadas com alguma comida e sob a vigília de soldados”.
A razão para o uso desta estratégia foi os temores de invasões e saques dos flagelados da seca em Fortaleza, pois do ponto de vista da memória social isso já acontecera na seca de 1877, quando sertanejos famintos invadiram a capital cearense, aterrorizando a população urbana. O medo das autoridades diante dos flagelados da seca tinha um antecedente. Em 1877, uma leva de cerca de 110 mil famintos saiu dos sertões e tomou as ruas de Fortaleza, assombrando os moradores. Esse campo foi desfeito e as vítimas foram dispersas em 18 de dezembro do mesmo ano. Durante essa seca, muitos cearenses também migraram para a Amazônia. Na seca ocorrida no ano de 1932 o nordeste brasileiro e particularmente o estado do Ceará sofria com as consequências da estiagem, mas também vivia um momento histórico próprio dentro da era de Getúlio Vargas; Lampião e seu bando de cangaceiros centralizavam as atenções dos políticos; as oligarquias do Nordeste mudavam de nomes: Padre Cícero ainda mantinha influência política para os sertanejos e a irmandade do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto atraia centenas de flagelados para os arredores de Crato, no sertão do Ceará.
Com o temor da intensa invasão de flagelados para Fortaleza - e para outras grandes cidades do Ceará - a estratégia dos Currais do Governo mais uma vez foi implantada, só que desta vez não somente em Fortaleza, mas também em cidades com alguma estrutura básica e com estações de trens. Além dos campos de concentração na capital da Terra da Luz, um no já conhecido Alagadiço e outro no noroeste da capital, no Pirambu, ou Campo do Urubu como ficou conhecido, foram instalados outros em Crato, em Cariús, Ipu, Quixadá, Quixeramobim e Senador Pompeu. Conforme as estatísticas oficiais, os dados eram os seguintes: 6.507 em Ipu, 1.800 em Fortaleza, 4.542 em Quixeramobim, 16.221 em Senador Pompeu, 28.648 em Cariús e 16.200 em Buriti, perfazendo um total de 73.918 flagelados. Os sertanejos ali alojados recebiam algum cuidado e comida governamental, com trabalho nas frentes de obras, sempre sob a vigilância armada de soldados. Estima-se que cerca de 73 000 flagelados foram confinados nesses campos onde as condições eram subumanas, resultando em mortes. Durante a seca, flagelados cearenses de forma dissimulada foram enviados para o combate nas trincheiras da Revolução constitucionalista de 1932 em São Paulo.
A capital foi a única cidade a receber dois currais, um no Otávio Bonfim e outro no Pirambu, este conhecido como Campo do Urubu. O maior campo do Estado estava instalado em Buriti, distrito do Crato. - “Pelos registros oficiais, passaram por lá 65 mil pessoas em 1932”, informa. Ela diz que alguns campos projetados para receber duas mil pessoas, chegavam a manter até 18 mil flagelados de uma só vez. A fome e a insalubridade dos campos levaram, inevitavelmente, a milhares de mortes. - “Os livros de óbitos das igrejas mostram que 90% das mortes registradas naquele período aconteciam nos campos de concentração”. No curral de Ipu, segundo Rios, a média era de sete a oito mortes por dia. Depois de 1932, a experiência dos campos foi abandonada no Ceará. Houve muita polêmica em torno desta experiência. Também tinha o estigma dos campos de concentração nazistas. Por isso, nos anos 1940, 1950 e 1960, o governo adotou outra prática, criando abrigos que foram batizados de “albergues”, onde os flagelados tinham aparentemente mais apoio e liberdade. Há registros de sete currais no estado do Ceará, localizados em Quixeramobim, Senador Pompeu, Cariús, Crato, Quixadá, Ipu e dois em Fortaleza, nos bairros Pirambu e Otávio Bomfim. 34ª Caminhada da Seca em Senador Pompeu (Ceará) em memória das vítimas do campo de concentração de 1932.


Os campos de concentração apresentavam uma estrutura básica, com posto médico, cozinha, barbearia, pois os homens analogamente tinham o cabelo raspado como em Auschwitz, além de banheiros, capelas e casebres divididos em pavilhões para homens solteiros, viúvas e famílias. Poderia haver uma “espécie de cadeia”, se já não é um truísmo, para os desordeiros e oficinas de olaria, carpintaria, alfaiataria, para não deixar os retirantes inativos, o que era, aliás, uma grande preocupação das autoridades. Dali ninguém podia sair sem autorização dos inspetores de campo. Guardas vigiavam constantemente os movimentos dos “concentrados” para evitar fugas. Houve inúmeros casos de revoltas de retirantes contra o controle social e político. Esses espaços foram chamados pelo povo de “currais” do governo. Vale lembrar que a criação dos campos de concentração contou com amplo apoio da sociedade, conforme os artigos de jornalistas reacionários que acreditavam que os retirantes isolados eram bem assistidos pelo governo.
De acordo com a pesquisa de mestrado de Kênia Sousa Rios na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999), quase todos os jornais utilizados na pesquisa assumiam publicamente sua filiação ideológica com um grupo político. Esse aspecto contribuiu para a compreensão de algumas diferenças na atuação das frações das classes dominantes em relação ao flagelo da seca. Os periódicos abriram condições e possibilidades de reflexão, ora moralista, ora político-reformista sobre as formas pelas quais esses grupos estabeleciam suas relações de força com o poder central e utilizavam a seca para promover a própria ascensão política de alguns atores sociais em detrimento de outros. Vale ressaltar que os próprios jornalistas, como agente político, agiam como “inspetores da saúde e do bem-estar dos flagelados”. Os campos de concentração eram os locais prediletos para a coleta de dados, que se transformavam em matéria-prima para suas crônicas “humanísticas e solidárias”. Os mais diferentes fatos acontecidos nas Concentrações eram relatados por estes jornais. Numa leitura “a contrapelo” desses textos jornalísticos, foi desenvolvida uma reflexão sobre a experiência dos flagelados nestas Concentrações. Foi possível perscrutar práticas de contra-ideologia do sertanejo em face das novas formas de controle que os poderes urbanos tentavam impor. 
Bibliografia geral consultada.
NEVES, Frederico de Castro, A Multidão e a História: Saques e Outras Ações de Massa no Ceará. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: Editor Relume Dumará, 2000; CARRARA, Angelo Alves, Minas e Currais: Produção Rural e Mercado Interno de Minas Gerais, 1674-1807. Juiz de Fora: Editora da Universidade Federla de Juiz de Fora, 2007; LINDOSO, Diego, Vulnerabilidade e Adaptação da Vida às Secas: Desafios à Sustentabilidade Rural Familiar nos Semiáridos Nordestinos. Tese de Doutorado. Centro de Desenvolvimento Sustentável. Universidade de Brasília, 2013; CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes, Proletários das Secas: Arranjos e Desarranjos nas Fronteiras do Trabalho (1877-1919). Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História Social. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2014; RIOS, Kénia Sousa, Isolamento e Poder. Fortaleza e os Campos de Concentração na Seca de 1932. Fortaleza: Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 2014; PINHEIRO NETO, Armando, De Curral da Fome a Campo Santo: O Campo de Concentração de Retirantes na Seca de 1915 em Fortaleza. Dissertação de Mestrado. programa de Pós-Graduação em História. Faculdade de História. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014; MELO, Leda Agnes Simões de, O Trabalho em Tempos de Calamidade: A Inspetoria de Obras nos Campos de Concentração do Ceará (1915 e 1932). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade. Instituto de Ciências Humanas e Sociais . Seropédica: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2015; FERREIRA, Lara Vanessa de Castro, Cassacos, Trabalhadores na Lida contra a Fome e a Degradação nas Obras Públicas em Tempos de Secas (Ceará, Anos 1950). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2016; entre outros.

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