“O fruto do nosso apostolado depende da
oração”. São Maximiliano Maria Kolbe
Em meados da década de 1990
ministrava na universidade pública em que trabalho, uma disciplina intitulada:
“Correntes Epistemológicas Contemporâneas” que, apresentada por mim ao
colegiado de curso do extinto Departamento de Ciências Sociais, transformado
posteriormente em Coordenação do
curso de Ciências Sociais, (por que, eu não sei!) continha em seu programa
excertos da hermenêutica de Hans-Georg Gadamer, da filosofia de transição de
Georg Simmel, da fenomenologia de Michel de Certeau, e essencialmente a
temática do poder simbólico desenvolvida hic
et nunc por Pierre Bourdieu. Como consequência das tolas e frequentes
reformas universitárias que apenas racionalizam o sistema de créditos, a nova
disciplina criada como primícias do raisonnement sociologique chegou ao fim,
excluída pelos próceres das Ciências Sociais. Isto quer dizer o seguinte: uma disciplina representa um tempo social,
original de pesquisa como fruto do processo de trabalho com começo, meio e fim
que, neste caso, representa um resultado que pode se converter em causa de uma
ação assembleísta. Mas isto não ocorre
com frequência como “lugares praticados” nas universidades. O Ceará é uma
exceção de ultraconservadorismo docente. Há pouco, por exemplo, submeti ao Apostolado da instituição duas novas disciplinas
para integrar a grade curricular do curso de graduação. No primeiro caso a
disciplina: “Sociologia das Emoções”, e no segundo caso a disciplina: “Teoria Política Contemporânea”, acrescido do projeto de pesquisa: “A
Conciliação como Princípio de Autoridade”. Esta em função do golpe de Estado de
2016 no Brasil. As propostas foram rejeitadas, inicialmente, talvez pelo “excesso” de disciplinas
ofertadas por professores do curso de Ciências Sociais, inclusive em função de
atividades programadas destinadas aos candidatos recém aprovados no exame de seleção
do doutorado tardio em Sociologia.
Autores
notaram a extrema confusão que reina na demasiado rica terminologia do imaginário social: signos, imagens, símbolos,
alegorias, emblemas, arquétipos, esquemas (schémas), esquemas (schèmes),
ilustrações, representações, diagramas e sinepsias são termos empregados pelos
analistas do imaginário social. O esquema é uma generalização dinâmica e
afetiva da imagem, constitui a factividade e a não-substantividade geral do parcours
imaginário. O esquema aparenta-se ao que Jean Piaget, na esteira de Herbert
Silberer, chama “símbolo funcional” e ao que Gaston Bachelard na filosofia
chama de “símbolo motor”. Faz a junção ente dos gestos inconscientes da
sensório-motricidade, entre as dominantes reflexas e as representações. São
esses esquemas que na antropologia do imaginário formam o “esqueleto dinâmico”,
o esboço funcional da imaginação. A diferença entre os gestos reflexológicos
que Gilbert Durand descreve analogamente e os esquemas é que estes últimos já
não são apenas abstratos engramas teóricos, mas trajetos encarnados em
representações concretas bem mais precisas. Os gestos diferenciados em esquemas
vão determinar, em contato com o ambiente natural e social, os grandes
arquétipos que Jung os definiu. Os arquétipos constituem as substantificações
dos esquemas. Carl Jung vai buscar esta noção em Jakob Burckhardt e faz dela
sinônimo de origem primordial, de enagrama, de margem original, de protótipo
social.
O
pensador evidencia claramente o caráter de trajeto antropológico dos arquétipos
quando escreve que a imagem primordial deve incontestavelmente estar em relação
com certos processos perceptíveis da natureza que se reproduzem sem cessar e
são sempre ativos, mas por outro lado é igualmente indubitável que ela diz
respeito também a certas condições inferiores da vida do espírito e da dinâmica
da vida em geral. Bem longe de ter a primazia sobre a imagem, a ideia seria
tão-somente o comprometimento pragmático do arquétipo imaginário num contexto
histórico e epistemológico dado. Neste sentido, o mito representa um sistema
dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob o
impulso de um esquema tende a compor uma narrativa. O mito é já um esboço de
racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se
resolvem em palavras e os arquétipos em ideias culturais. O mito explicita um
esquema ou um grupo de esquemas. Do modo que o arquétipo promovia a ideia, o
símbolo o nome, concordamos com Gilbert Durand que o mito promove a doutrina
religiosa, o sistema filosófico ou, como bem anteviu Émile Bréhier, a
“narrativa histórica e lendária”. Foi
este princípio, que o psicólogo Carl Jung sentiu abrangido por seus conceitos
de “Arquétipo” e “Inconsciente coletivo”, justamente o que uniu o médico
psiquiatra Jung ao físico Wolfgang Pauli, dando início às pesquisas
interdisciplinares em física e psicologia. A sincronicidade, vale lembrar, se manifesta muitas vezes atemporalmente e/ou em eventos energéticos acausais, e em ambos são
violados princípios associados ao paradigma científico vigente.
No primeiro caso, a sociologia das emoções se constituiu como uma subárea da disciplina sociologia nos anos 1990, como primícias de um processo iniciado nos Estados Unidos da América quase duas décadas antes. Herdeiros de duas escolas sociológicas distintas, a funcionalista de Talcott Parsons e a interacionista simbólica, de George Herbert Mead, Herbert Blumer e Erving Goffman, dos sociólogos norte-americanos Randall Collins, Theodore Kemper, Jonathan Turner, Norma Denzin, Arlie Hochschild, Susan Shott, Steven Gordon e Thomas Scheff, desenvolvem a partir das suas respectivas filiações, teorias sociológicas alternativas, e, até certo ponto, conflitantes, para a compreensão das emoções. As tensões conceituais e metodológicas entre tais proposições envolvem questões sociológicas fundamentais, cuja origem remota aos debates travados entre os pragmatistas William James, John Dewey e George Herbert Mead. As respostas a essas questões dizem respeito à definição do conceito sociológico. Seus adeptos propõem uma representação disciplinar da sociologia das emoções que deve procurar as causas sociais, psicológicas, fisiológicas para explicá-las.
No segundo caso,
apresentamos notas de pesquisa que propus como objetivo a análise comparativa
do processo eleitoral anterior ao Golpe de Estado de 17 de abril de 2016 no
Brasil, pretendendo descrever as nuances no nível de análise política em torno
da questão fulcral do princípio de autoridade no Brasil. A
nossa política é a política da conciliação inclusiva à universidade. Fomos nós
os primeiros que a iniciamos por fatos políticos e não por palavras. É a
representação da política da conciliação, mas não dessa conciliação dos
princípios, da conciliação que se firma por atos legislativos e
administrativos. A conjuntura política
em que vivemos sugere que não fomos tomados de surpresa com a abrupta mudança
presidencial ocorrida em 17 de abril de 2016.
A destituição da presidente eleita Dilma Rousseff, do Partido dos
Trabalhadores (PT) representou um golpe de Estado com deputados e senadores -
profundamente envolvidos em casos de corrupção, pois fala-se em 60% da
representação parlamentar que instituiu um processo de destituição pretextando
irregularidades contábeis, as chamadas “pedaladas fiscais”, para cobrir déficits causados no âmbito político nas contas públicas – uma
prática corriqueira em todos os governos anteriores, inclusive de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) após o período da chamada
redemocratização no âmbito do movimento social Diretas Já!
A departamentalização acadêmica surge à medida que as instituições
públicas tornam-se “maiores” e envolvem a tout
court atividades mais diversificadas, forçando-as a dividir as principais
atividades em função da carga horária e tarefas administrativas e transformá-las
em responsabilidades departamentais ou divisionais. Os diferentes tipos usuais
de departamentalização definem os critérios organizacionais para agrupar as pessoas em unidades, para que
possam ser aparentemente melhor administradas. As universidades públicas podem
recorrer quanto à escolha de determinados tipos de departamentalização. Para
isso, devem reconhecer, analisar e escolher o melhor tipo de
departamentalização que assegure os projetos individuais e coletivos em termos
de Pesquisa & Desenvolvimento. Existem tipos de abordagens que definem os
critérios de subordinação da hierarquia.
Cada abordagem departamental tem uma finalidade política distinta para a
instituição, sendo o que a diferença entre cada tipo de abordagem é a maneira
como as atividades são agrupadas e a que grupo de poder se subordinam.
Temos um caso-limite quando o
Cardeal de São Paulo, Dom Odilo Scherer, e os bispos de sua Arquidiocese,
anunciaram recentemente que não autorizariam a criação, prevista em meados de
2011, da Cátedra “Michel Foucault e a Filosofia do Presente” na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Por ocasião do 7° Colóquio Internacional Michel Foucault,
que reuniu na PUC-SP dezenas de especialistas na obra do filósofo e pesquisador,
centenas de interessados, foi assinada uma Carta
de apoio a essa iniciativa. A lista dos signatários incluía de forma
extraordinária desde membros do Collège
International de Philosophie aos membros da Universidad San Martin na
Argentina, da Universidad de los Andes na Venezuela e da Universidad de Valparaiso
no Chile, obtendo a solidariedade do Consulado Geral da França em São Paulo. Do latim cathedra que tem origem num vocábulo grego que
significa “assento” ou “cadeira”, a cátedra é a disciplina/cadeira,
metaforicamente, que ensina um catedrático - professor que tenha preenchido
determinados requisitos para partilhar conhecimentos e que tenha alcançado o
posto mais alto na docência.
O termo também é usado para fazer referência à
função e ao exercício do catedrático. Essa Cátedra, que leva o nome de Michel
Foucault, não é dedicada à leitura de seus escritos – que hoje já é parte da
cultura clássica. Ela está voltada, sob o impulso não exclusivo de seus
trabalhos, como o diz seu título, para uma livre análise, informação e debate
sobre questões de filosofia e de vida civil contemporânea. A recusa de tal
Cátedra, aberta à complexidade e diversidade de estudos e pesquisas na
atualidade, contradiz a deontologia universitária assim como seu fundamento
filosófico. A Universidade seria sua primeira vítima, ironicamente, no caso da
PUC-SP, da 2ª morte de Michel Foucault. Tem-se aí metodologicamente um dos princípios mais
importantes dessa atividade consagrada a si mesmo. Ela não constitui um
exercício da solidão; mas sim uma verdadeira prática social. E isso, em vários
sentidos. Mas toda essa aplicação a si não possuía como único suporte social a
existência das escolas, do ensino e dos profissionais da direção da alma; ela
encontrava, facilmente, seu apoio em todo o feixe de relações habituais de parentesco,
de amizade ou de obrigação.
Quando, no exercício do cuidado de si, faz-se apelo
a outro, o qual se advinha que possui aptidão para dirigir e para aconselhar,
faz-se uso de um direito; e é um dever que se realiza quando se proporciona
ajuda a outro ou quando se recebe com gratidão as lições que ele pode dar na
duração da vida. Acontece também do jogo entre os cuidados de si e a ajuda do
outro inserir-se em relações sociais preexistentes às quais ele dá uma nova
coloração e um calor maior. O cuidado de si – ou os cuidados que se tem com o
cuidado que os outros devem ter consigo mesmos – aparece então como uma
intensificação das relações sociais. Sêneca dedica um consolo à sua mãe, no
momento em que ele próprio está no exílio, para ajudá-la a suportar essa
infelicidade atual e, talvez, mais tarde, infortúnios maiores. O “cuidado de
si” aparece, portanto, intrinsecamente ligado a uma espécie de “serviço da
alma” que comporta a possibilidade de um jogo de trocas com o outro e de um
sistema de obrigações recíprocas. Neste aspecto singular da vida Michel
Foucault abriu uma porta ao eterno.
A
característica marcante do “coquetismo”, em termos platônicos, para Georg
Simmel representa o estado intermediário entre o ter e o não ter. Assim,
podemos entender como sendo próprio da mulher coquete despertar o interesse e o
desejo do Outro por meio da alusão ao
ato da entrega e não pela entrega em si. A mediação entre o ter e o não ter, que é a essência do coquetismo, se constitui também no
fundamento último do erotismo. O “querer agradar” da coquete ainda não é, em si
e por si, o que dá a seu comportamento o cunho decisivo. Assim, traduzir
coquetismo por “necessidade de agradar” é confundir o meio em um fim e a pulsão
orientada para esse fim. Uma mulher pode lançar mão de tudo para agradar, dos
encantos espirituais à exposição mais insistente de seus encantos físicos, que
ainda assim distinguir-se-á bastante da coquete. Através da dicionarização do
vocábulo, seu sentido refere-se “à procura com o objetivo de despertar
admiração, tendo cuidados excessivos com a aparência física ou outros dotes”.
Na filosofia o sentido do coquetismo não pode ser limitado ao “querer agradar”, pois é um equívoco que tem uma profunda ligação com a autoestima.
Antropologicamente
a humanidade sempre atravessa estágios em que: a) opressão da individualidade é
o ponto de passagem obrigatório de seu livre desabrochar superior, em que a
pura exterioridade das condições de vida se torna a escola da interioridade, b)
em que a violência da modelagem produz uma acumulação de energia, destinada, em
seguida, a gerar toda a especificidade pessoal. Do alto desse ideal é que, c) a
individualidade plenamente desenvolvida, tais períodos parecerão, é claro,
grosseiros e indignos. Mas, para dizer a verdade, além de semear os germes
positivos do progresso vindouro, já é em si uma manifestação do espírito
exercendo uma dominação organizadora sobre a matéria-prima das impressões
flutuantes, uma aplicação das personalidades especificamente humanas, procurando
elas próprias fixar suas normas de vida - do modo mais brutal, exterior ou,
mesmo, estúpido que seja -, em vez de recebê-las das simples forças da
natureza. A horda, uma estrutura social e militar histórica encontrada na estepe eurasiática “não protege mais a
moça e rompe suas relações com ela, porque nenhuma contrapartida foi obtida por
sua pessoa”.
Para
Simmel diante do “conflito” (“Kampf”) os indivíduos vivem em relações sociais de
cooperação, mas também de oposição, portanto, os conflitos são parte mesma da constituição
da sociedade. É neste sentido que formam momentos de crise, um intervalo entre
dois momentos de harmonia, vistos numa função positiva de superação das
divergências. Fundamenta uma episteme em torno da ideia de movimento, da
relação, da pluralidade, da inexorabilidade do conhecimento, de seu caráter
construtivista, cuja dimensão central realça o fugidio, o fragmento e o
imprevisto. Por isso, seu panteísmo estético, ancorado sob forma paradoxais de interpretação real, como episteme, no qual se entende que cada ponto, cada fragmento
superficial e, portanto fugaz é passível de significado estético absoluto, de
compreender o sentido total, os traços significativos, do fragmento à
totalidade.
O
significado sociológico do “conflito”, em princípio, nunca foi contestado.
Conflito é admitido por causar ou modificar grupos de interesse, unificações,
organizações. Por outro lado, pode parecer paradoxal na visão do senso comum se
alguém pergunta se independentemente de quaisquer fenômenos que resultam de
condenar ou que a acompanha, o conflito é uma forma de “sociação”. À primeira
vista, isso soa como uma pergunta retórica. Se todas as interações entre os
homens é uma sociação, o conflito, - afinal uma das interações mais vivas, que,
além disso, não pode ser exercida por um indivíduo sozinho, - deve certamente
ser considerado como “sociação”. E, de fato, os fatores de dissociação, tais
como ódio, inveja, necessidade, desejo, são as causas da condenação, que
irrompe em função deles. Conflito é, portanto, destinado a resolver dualismos
divergentes, é a maneira de conseguir algum tipo de unidade, que seja
através da aniquilação de uma das partes em litígio.
A
imagem está associada a conhecimentos
pretéritos adquiridos e concernentes ao objeto que ela de fato representa. Ela
não apreende nada além daquilo que nós podemos extrair da realidade durante o
trabalho de percepção. A imagem não se relaciona com o mundo em si, ela só
depende do processo de como podemos descobrir algo sobre ela. Portanto, se
existe uma possibilidade de se observar o objeto através da imaginação, mesmo
assim essa possibilidade ainda não nos permite apreender nada de novo em
relação ao objeto. A imagem, ato da consciência imaginante, é um elemento,
identificado como o primeiro e incomunicável, como produto de uma atividade
consciente atravessada de um extremo ao outro por uma corrente de “vontade
criadora”. Trata-se, de dar-lhe à sua própria consciência um conteúdo de
sentido imaginante, próximo da analogia weberiana da interpretação da ciência que recria para si os objetos afetivos espontaneamente ao
seu redor: ela é criativa.
Daí
a importância de se compreender no campo da imagem, de sua produção, recepção,
influência, de sua relação com o sonho, o devaneio, a criação e a ficção, a
substituição das mediações pelos meios de comunicação, posto que contenha em si
uma possibilidade de violência, a partir da constituição do novo regime de
ficção que hoje afeta, contamina e penetra a vida social. Ipso facto temos a sensação de sermos colonizados, mas sem saber
precisamente por quem. Não é facilmente identificável e, a partir daí é normal
questionar-se sobre o papel da cultura ou da ideia que fazemos dela. O etnólogo
Marc Augé reitera que as “etnociências” se atribuem sempre dois objetivos,
proposto por ele ao final em seu opúsculo “La guerre des rèves” (1997). Usado
como prefixo, “etno” relativiza o termo que o segue e o faz depender da “etnia”
ou da “cultura” que supõe ter práticas análogas às que chamamos “ciências”:
medicina, botânica, zoologia etc. Desse ponto de vista, a etnociência tenta reconstituir o que serve de ciência aos outros,
suas práticas sanitárias e do corpo, seus conhecimentos botânicos, mas também
suas modalidades de classificação, de relacionamento etc. É claro que, a partir
do momento em que se generaliza a etnociência muda de ponto de vista.
Ela
tenta emitir uma apreciação sobre os modelos locais, indígenas, e compará-los a
outros e, além disso, propor uma análise dos procedimentos cognitivos em ação
num certo número de experiências. Ela leva então às vezes o nome de
antropologia: fala-se assim em antropologia médica ou cognitiva. Em verdade,
quando Augé recoloca a questão: “que é nosso imaginário, hoje?”, por outro
lado, ele se indaga se nestes dias não estamos assistindo a uma generalização
do fenômeno de fascínio da consciência que nos pareceu característico da
situação colonial e de seus diferentes avatares? Trata-se de “exercícios de Etnoficção”,
em analisar o estatuto da ficção ou as condições etnológicas de seu surgimento numa
sociedade, e ipso facto num momento histórico particular, em analisar os diferentes gêneros
que se irradiam sob formas ficcionais, sua relação com o imaginário individual e coletivo, as
representações da morte etc., em diferentes sociedades ou conjunturas.
Temos
o que fica reservado como lugar de representação do conhecimento, posto que bem
entendido o nível ao qual se aplica a pesquisa antropológica, ela tem por
objeto interpretar a interpretação que os outros fazem da categoria do outro,
nos diferentes níveis que situam o lugar dele e impõem sua necessidade. Melhor
dizendo, tendo como representação social etnia, tribo, aldeia, linhagem ou
outro modo de agrupamento até o átomo elementar de parentesco, do qual se sabe
que submete a identidade da filiação à necessidade da aliança, o
individualismo, enfim; que todos os sistemas rituais definem como compósito e
pleno de alteridade, figura literalmente impensável, como o são, em modalidades
opostas, a do rei e a do feiticeiro. O fato social é que deste ângulo de
análise há um princípio abrangente e primordial, porque norteador, pois “toda
antropologia é antropologia da antropologia dos outros, além disso, que neste
âmbito, o lugar antropológico, é simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e
princípio de inteligibilidade para
quem o observa”. Essa inteligibilidade, ao que nos parece, fornece e propõe no âmbito de apropriação dos saberes que as
condições de uma antropologia da contemporaneidade devem ser deslocadas do
método para o objeto. E além disso, que deve-se estar atento às mudanças que afetaram as
grandes categorias por meio das quais os homens pensam sua identidade e suas
relações recíprocas em termos espaciais.
Assim,
se um lugar de análise pode se definir como identitário, relacional e
histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como
relacional, nem como histórico definirá um na etnologia da solidão de Marc
Augé, o que ele denominou analiticamente de “não-lugar”. A hipótese adjudicada
na teoria, e, portanto, no pensamento, é o que o autor chama de surmodernité conquanto produtora de não-lugares, de espaços que não são em si lugares
(tradicionais) antropológicos. Isto é importante. Estas características comuns
podem ser aplicadas a dispositivos institucionais diferentes e que constituem,
de certo modo, as formas elementares de compreensão do espaço social. Trata-se de aspectos
gerais e que se identificam enquanto itinerários ou eixos ou caminhos que, do ponto de vista etnológico
conduzem de um lugar a outro. Mas também em cruzamentos e praças, que
satisfazem por assim dizer esferas de ação social, que nos mercados definem
necessidades do intercâmbio econômico e, nesta progressão, centros mais ou menos monumentais. Sejam eles religiosos ou políticos construídos por certos homens e mulheres e
que definem como outros, em relação a outros centros e outros espaços sociais.
Contrariando
esta dimensão analítica para repensar o trabalho nas instituições públicas, a
particularidade da Universidade Estadual do Ceará (UECE) é que a prática
institucional decorre em um confronto do Apostolado (casta) tendo como leitmotiv a luta pelos cargos. O
exercício da autoridade legal está relacionado com o cargo ocupado pelo
funcionário-professor. As normas legais são abstratas enquanto consideradas
como um sistema integrado demonizado no
âmbito discursivo do direito, concretizado na aplicação da lei nos casos
particulares contrário ao apostolado. Desse modo, o processo administrativo
orienta-se para os interesses pessoais
assim definidos pelas ordenações da instituição, dentro dos limites legalmente
estabelecidos e de acordo com os princípios gerais aprovados em conformidade pelas
relações de compadrio pelas ordenações.
O exercício da autoridade legal está relacionado com o cargo ocupado pelo funcionário-professor,
servidor público concursado e habilitado ao cargo, o que implica em sua
subordinação a uma ordem pessoal para a qual orienta suas ações políticas. Isto
significa que a obediência aparentemente não é devida ao indivíduo, mas ao
cargo ocupado, que representa uma
posição efetiva de autoridade com limites legalmente definidos. O membro do
Apostolado obedece aos critérios racionais da administração.
Bibliografia
geral consultada.
SIMMEL, Georg, La Tragédie de la Culture. Paris:
Petite Bibliothèque Rivages, 1988; TAVARES, Ana Maria, Armadilhas para os
Sentidos: Uma Experiência no Espaço-Tempo da Arte. Tese de Doutorado em
Artes. Departamento de Artes Plásticas. Escola de Comunicações e Artes. Universidade
de São Paulo, 2000; CREADO, Eliana Santos Junqueira, Entre Lugares e
Não-lugares: Restrições Ambientais e Supermodernidade no Parque Nacional do Jau
(AM). Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade Estadual de Campinas,
2006; BOTTON, Alain de, Os Prazeres e Desprazeres do Trabalho. São
Paulo: Editora Rocco, 2009; RABELATTO, Francielli, Atravessando a Ponte,
Vivendo na Linha: Marcos e Marcas de uma Cultura de Fronteira à Luz da
Fotoetnografia. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais. Universidade Federal de Santa Maria, 2011; LIMA, Lúcio Renato
Mota, O Apostolado dos Padrões: Limites e Possibilidades de um Plano Industrial
Disciplinar-religioso em uma Fábrica Têxtil (Camaragibe, 1891-1908). Dissertação
Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. Centro de Filosofia e Ciências
Humanas. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2012; AUGÉ, Marc, Non-Lieux.
Introduction à une Anthropologie de la Surmodernité. Paris: Éditions du
Seuil, 1992; Idem, La Guerre des Rêves. Exercices d’Ethno-Fiction. Paris:
Éditions du Seuil, 1997; Idem, El Antropólogo y el Mundo Global. México: Siglo
Veintiuno Editores, 2014; Idem, O Duplo da Vida: Etnologia, Viagem, Escrita.
Maceió: Editora da Universidade Federal de Alagoas, 2014; “Como Um Escritor
É Lido? Sobre a Apropriação de Elias Canetti pelas Universidades Brasileiras”.
In: Plumilla Educativa 14 (14) :225-238, 2014; RIBEIRO,
Ulisses Alves Maciel, Não-lugar: Um Olhar sobre as Metrópoles Contemporâneas.
Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo. São Paulo: Universidade
Presbiteriana Mackenzie, 2015; AMORIM, Lidiane Ramirez de, Em Busca de uma Cartografia dos (Não/Entre) Lugares da Comunicação em Multinacionais. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Faculdade de Comunicação Social. Porto Alegre: Madrid: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 2015; entre outros.
“Ce n`est plus la fiction qui imite le réel
mais le réel qui reproduit la fiction”. Marc Augé
O
conceito descrito sociologicamente por Benedict Anderson, “Imagined Communities”,
inicialmente publicado em 1983 e reeditado em 1991, com diversas correções e
adição de capítulos, embora tenha sido cunhado especificamente para tratar do âmbito
conceitual do nacionalismo, ele passou a ser generalizado, no nível de análise
teórica quase como um sinônimo político de “comunidade de interesse”. Ele pode
ser utilizado, por exemplo, para se referir a uma comunidade baseada em
orientação sexual, ou consciência de fatores de risco global. Mas
metodologicamente, uma “comunidade imaginada” difere de uma comunidade real,
pois não se baseia em interação social de seus membros, e por razões práticas
não pode fazê-lo: Anderson chega a mencionar que nada maior que um vilarejo
pode ser uma “comunidade real”, já que é impossível que todos seus membros se conheçam.
Nação é um exemplo de comunidade socialmente construída, imaginada por pessoas
que percebem a si próprias como parte de um grupo.
Como
Anderson afirma, essa comunidade tem como representação a ideia de que é
imaginada, pois os membros de uma nação, mesmo da menor delas, nunca conhecerão
a maioria de seus conterrâneos, nunca os encontrarão ou, até mesmo, ouvirão a
seu respeito. Ainda assim, eles terão em suas mentes a imagem de sua comunhão.
Membros de uma comunidade, apesar da potencial impossibilidade de interação
real uns com os outros, não deixam de compartilhar interesses ou aspectos
identitários comuns. A mídia, por exemplo, cria e mantém comunidades
imaginadas, embora geralmente o faça voltando à sua interação através dos meios
que proporcionam a imaginação, como se estivesse referindo à totalidade de
cidadãos de um país. A origem significativa do conceito de nação para Anderson
e historiadores opostos como Eric Hobsbawm e Ernest Gellner, ambos analisados
em “Imagined Communities”, é uma representação da Modernidade. De acordo com Anderson, para que a concepção de nação e nacionalismo surgisse, foram
necessárias três mudanças históricas centrais.
O primeiro deles decorreu da ideia de
que uma particular linguagem de escrita oferecia acesso privilegiado à verdade “ontologicamente
situada”, precisamente por que tal linguagem era uma parcela inseparável desta
verdade. O segundo desses conceitos decorreu da crença que a sociedade seria “naturalmente
organizada” ao redor e sob potestades,
isto é, sob monarcas que eram pessoas à parte de outros seres humanos e que
governavam por alguma forma de deliberação cosmológica (divina). O terceiro
decorreu de uma concepção de temporalidade em que a cosmologia e a história
eram indistinguíveis, e a origem tanto do mundo quanto dos homens era
essencialmente idêntica. Combinadas, essas ideias enraizaram firmemente as
vidas dos homens na natureza das coisas, dando significado para as fatalidades
cotidianas da existência, sobretudo, a morte, a perda e a servidão, oferecendo
de diversas formas redenção delas.
A tópica da descritibilidade pode ser vista no filme dirigido por Kore-Eda
Hirokazu, “Nossa Irmã Mais Nova” (2015), de título original: “Umimachi Diary”, em
que Sachi (Haruka Ayase), Yoshino (Masami Nagasawa) e Chika (Kaho) são irmãs e
vivem juntas em uma casa que pertence à família há tempos. Apesar de não verem
o pai há 15 anos, elas resolvem ir “ao rito de passagem de seu enterro” (cf.
Koury, 2009; 2012). Lá, elas conhecem a adolescente Suzu Asano (Suzu Hirose), a
meia irmã mais nova que aos poucos entende como é a vida. Mesmo tão nova,
possui vasta experiência em superar dificuldades. É ótima jogadora de futebol,
comunicativa e sincera. Logo as três irmãs convidam Suzu para que more com
elas. O convite é aceito e, a partir de então, elas passam a conviver juntas e
aprendem os pontos sensíveis numa “comunidade imaginada” relacionada à memória
ao pai em comum. Hirokazu Kore-Eda analisa a valorização da vida como uma
experiência baseada na relação dialética entre alegria e sofrimento,
representados por momentos de felicidade e dor não só inevitáveis como parte fundamental
de nossa existência sobre o “cotidiano” (cf. Heller, 1975), na medida em que o dia-a-dia
desconstrua o estereótipo, retratando-o com uma visão poética, plena da beleza dos
detalhes, como o flanelódromo surge diante de nós e que marca o nascimento das
irmãs e vinda da “irmã mais nova”, pois é ao mesmo tempo sutil, fascinante e
melancólico, mas por vezes turbulento e trágico no sentido nietzschiano.
Em
“Nossa Irmã Mais Nova”, nos deparamos com as experiências e dilemas
existenciais. A delicadeza com a qual o cineasta Kore-Eda constrói seu universo,
com simplicidade nos emociona no quadro de pensamento das quatro irmãs que as
irmãs protagonizam o filme. Personagens que individualizam as referências, e ipsofacto
geram uma compaixão a ponto de sentirmos suas alegrias e suas tristezas como
extraordinariamente faz o diretor com elegância, prudência e maestria. Uma das grandes
marcas de Hirokazu Kore-Eda, o drama familiar, volta à cena. Atrelado à
família, estão laços pessoais que são quase impossíveis ignorá-los. A perda e o
vazio, outro fator crucial para a filmografia de Kore-Eda retorna também em
seus adoráveis personagens imperfeitos. Em “Nossa Irmã Mais Nova”, é a partir
desses elementos que de fato os personagens são equilibrados na antítese dialética referida sobre a alegria e
sofrimento, a qual a vida prevalentemente se baseia, o que é capaz de levar o
espectador a refletir sobre o quão poderoso é compreender o sentido da vida, e
assim poder experimentar a lacuna deixada por um ente querido, como no caso familiar
das irmãs, seus pais aparentemente não correspondem ao afeto desejado por elas.
Vale lembrar que Zusu, a irmã mais nova, vivia com o pai até que este morre, e
então parte da pequena cidade em que viviam para morar com suas outras três
irmãs mais velhas.
Heráclito
responde a estas questões através da dialética. Para o filósofo de Éfeso, “o
combate é de todas as coisas pai, de todas rei”. As coisas mudam porque existe
uma tensão de forças contrárias dentro delas, como o mel que é, a um só tempo,
doce e amargo. É a tensão dos contrários no interior da coisa que põe tudo em
movimento. Admirável é que a tensão entre os contrários não produz destruição
das forças em conflito, mas harmonia: “o contrário é convergente e dos
convergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a discórdia”. A forma
como ela fica desconfortada ao demonstrar o que sente e o fato social de
imaginar seu deslocamento daquele contexto é expresso com tamanha inocência que
chega a ser inevitável não sentir a perda. Essa inocência é repetida em quase todos
os conflitos vividos pelas protagonistas, que durante o filme irão buscar a
harmonia entre seguidos descontentamentos e prazeres.
Neste
sentido difere de “consubstancialidade” que é o correspondente ao termo grego ὁμοούσιος (“homoousios”), termo
original que designa essa realidade.
Este termo provém da junção de ὁμός
(“homos”), significando “o mesmo”, e ούσιος
(“ousios”), proveniente de οὐσία (“ousía”),
substância ou essência. Assim, o termo tem o sentido de “da mesma substância,
com a mesma essência”. O correspondente em latim é “consubstantialis”, do qual
deriva na língua portuguesa, “consubstancial”. No entanto, podemos entender que
tal tradução não exprime perfeitamente o sentido e o significado do termo
grego. O vocábulo latino é composto por “cum” e “substantia”, o que quer dizer
que favorece “cum”, com o sentido de “com”, simultaneidade, que não exprime rigorosamente
o mesmo sentido de “homos”. Do mesmo modo, “substantia” pode não corresponder
perfeitamente a “ousía”, na medida em que cada um dos termos pressupõe
determinado sistema ontológico, que
varia conforme a cultura mediante a qual se insere.
Historicamente o vocábulo foi
introduzido na confissão da fé católica pelo Primeiro Concílio de Niceia, em 325. A sua adoção está diretamente
ligada à heresia dos arianos. Este grupo de hereges, cujo precursor foi Ario,
presbítero de Alexandria, negava a divindade de Jesus Cristo. O Verbo de Deus,
para ele, merecia esse nome apenas segundo a nossa forma de imaginação, pois
era uma criatura, tal como nós, mas criada antes de tudo. Por ser uma criatura
perfeita, Deus colocou-o acima de todos, pois sabia que ele jamais pecaria.
Assim, a filiação de Jesus Cristo era apenas adotiva, do que resultava que o Pai o era apenas em sentido
figurado. A isto, a Igreja respondeu reafirmando a divindade do Filho e o
carácter próprio da paternidade de Deus Pai. Portanto, serviu-se de várias
expressões, mas todas elas foram contestadas pelos arianos, que as
interpretavam sempre como uma ofensa ao monoteísmo. É neste sentido que para
exprimir o conceito que descrevia a natureza da divindade de Jesus e a sua
relação com a divindade do Pai, o Concílio de Niceia aplicou o termo “homoousios”.
O diretor japonês Hirokazu Kore-Eda
tem uma predileção especial por questões familiares, como demonstra sua filmografia.
É ele o responsável por “Ninguém Pode Saber” (“Dare mo sihranai”, Japão, 2004) em
que apresenta seu argumento articulado por meio da linguagem, constituída pela
luz, esverdeada às vezes, neutra a maior parte do tempo, pelo enquadramento de
partes dos corpos (das mãos principalmente) e da disposição dos corpos em
espaços (internos e externos), pela escolha dos olhares como principal
matéria-prima expressiva e pelo tempo cultivado em cada cena para muito além do
caráter descritivo da ação, que a veracidade será construída. E em “Pais &
Filhos” (2013), onde demonstra como um casal lida com uma descoberta inusitada
e cruel: seu filho de 6 anos, foi
trocado na maternidade. Entretanto, por ser um problema recorrente da
modernidade, se propõe a discutir os dilemas práticos e morais de desfazer ou
não o erro da maternidade, e neste caso e arcar com as consequências dessa
escolha, acrescentando o valor genético e emocional nessa complexa equação da
vida real.
Ambos
são premiados no Festival de Cannes, cujas histórias trazem conflitos que
envolvem pais ausentes e filhos que precisam lidar com adversidades repentinas,
mas com uma novidade: Kore-Eda busca desde o início a comunhão dos personagens.
O cineasta usa do tom bucólico e ameno para acompanhar o cotidiano de suas
personagens principais, com leves alterações decorrentes de novos e velhos
amores, perda de amigos e ressurgimento de parentes. Queremos dizer com isto
que “ousía”, no sentido de essência, tanto pode designar a essência individual como a essência do gênero.
Além disso, não se aplica a Deus do mesmo modo que se pode aplicar aos entes corpóreos. O conceito de “homoousios”
foi também aplicado ao Espírito Santo, para exprimir a sua relação com o Pai e
o Filho: a mesma essência divina, sem divisão. No entanto, enquanto que o Filho
é gerado, o Espírito Santo existe por processão. O vocábulo não existe na
Bíblia, mas foi tomado de empréstimo na história social representada pela
filosofia grega com o início de uma linguagem teológica própria e oficial da
Igreja.
Neste
último sentido, a Igreja pode ser entendida como uma pessoa, para Hobbes (2014:
360), isto é, que ela tenha o poder de querer, de pronunciar, de ordenar, de
ser obedecida, de fazer leis ou de praticar qualquer espécie de ação. Se não
existir a autoridade de uma congregação legítima, qualquer ato praticado por um
conjunto de pessoas é um ato individual de cada um dos presentes que
contribuíram para a prática desse ato. Não um ato conjunto, como se fosse de um
só corpo. Não é um ato dos ausentes ou daqueles que, estando presentes, eram
contra a sua prática. Uma Igreja pode assim ser definida como um conjunto de
pessoas que professam a religião cristã, ligadas à pessoa de um soberano, que
ordena a reunião e que determina quando não deverá haver reunião. Tendo em
vista que em todos os Estados semelhantes assembleias são ilegítimas, se não
são autorizadas pelo soberano civil, o que constitui também uma assembleia
ilegítima a reunião da Igreja em qualquer Estado em que tiver sido proibida.
O
filme: “Nossa Irmã Mais Nova” aborda a diversidade das questões sociais com
profundidade, mas também distância. O primeiro ponto é o abandono familiar.
Todas tem um passado triste, passaram por algum desprezo em determinado ponto
da vida. Apesar de ser um drama familiar, cada uma delas tem maturidade o bastante
para lidar com os problemas, em especial Suzu, a mais nova. São jovens mulheres
de idades diferentes, com ideais diferentes, mas com um amor incondicional pela
família (base de tudo) e pela alegria e solidariedade uma com as outras. Todas
se apegam a algum fato presente na memória em específico do passado recente para
tentar lidar com as situações presentes, fazendo do filme “Nossa Irmã Mais Nova”
uma verdadeira lição de vida expressa em sua cotidianidade. É um tributo aos valores tradicionais
japoneses como o respeito, harmonia e perdão. É também um filme que respira
tradição: As irmãs vivem em uma casa tradicional japonesa, elas comem pratos
típicos como fabricação caseira de macarrão, e regularmente eles vão para um
pequeno restaurante tradicional.
Bibliografia
geral consultada:
SARTRE,
Jean-Paul, Lo Imaginario - Psicologia
Fenomenologica de la Imaginacion. Buenos Aires: Ediciones Ibero-Americana,
1948; HELLER, Agnes, Sociologia della
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ESPOSITO, Roberto, Ordine e Conflito.
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Origin and Spread of Nationalism. Revised and extended. 2ª edition. London:
Verso Editor, 1991; WEBER, Max, Economia
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Sociología Comprensiva. México: Fondo de Cultura Económica, 1992; AUGÉ,
Marc, La Guerre des Rêves. Exercices d’Ethno-fiction.
Paris: Éditions du Seuil, 1997; COHN, Gabriel, Crítica e Resignação - Max Weber e a Teoria Social. 2ª edição. São
Paulo: Editora Martins Fontes, 2003; GOMES, Rita Helena, A Desobediência em Hobbes. Tese de Doutorado em Filosofia. Belo
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Pinheiro, Emoções, Sociedade e Cultura: A
Categoria de Análise Emoções como objeto de Investigação na Sociologia.
Curitiba: Editora CRV, 2009; Idem, “Sociologia e Antropologia dos Corpos e das
Emoções”. RBSE - Revista Brasileira de Sociologia da Emoção
(Online), v. 11, pp. 645-653, 2012; OLIVEIRA, Cristina Imaculada Santana de, A Comunidade Imaginada da Afrodescendência no contexto da “Educação das Relações Etnicorraciais”. Dissertação de Mestrado. Prograqma dee Pós-Graduação em Educação Brasileira. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2012; HOBBES, Thomas, Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. 1ª
edição. São Paulo: Editora Martin Claret, 2014; ROCHA, Helio Ronyvon Gomes, O Encontro de Subjetividades em A Pessoa é Para o que Nasce. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2016; entre outros.
“Nossa forma ordinária de convívio social é,
no fundo, o contrário da polidez”. Sergio Buarque de Holanda
No
âmbito da historiografia Carlos Guilherme Mota observou que depois de 1967,
“tornou-se possível o balanço da produção, a avaliação dos trabalhos de
Gilberto Freyre – o que não devia ser nada fácil antes dessa época, pelo que se
pode verificar no livro comemorativo dos vinte e cinco anos da Casa-Grande & Senzala” (cf. Mota,
1975), tendo em vista o ecletismo entre ensaístas tais como: Astrojildo
Pereira, Fernando de Azevedo, Jorge Amado, Antônio Cândido, Miguel Reale,
Anísio Teixeira, Luís Viana Filho, Cavalcanti Proença, o que demonstra, sociologicamente, por um
lado, o estudo da trajetória e dos vários impactos sociais e políticos na apreensão
da obra de Gilberto Freyre sobre os meios intelectuais representando a
cristalização de uma ideologia com base no editorialismo, caracterizado do ponto de vista merceológico com
“grande poder de difusão”, e por outro, contém ambiguidades daquilo que se
poderia denominar uma “geração de explicadores” da cultura brasileira,
representando por assim dizer, “uma espécie de caso-limite”.
Na concepção de Max Weber é um instrumento de análise sociológica para o entendimento da sociedade por parte do cientista social com o objetivo de criar tipologias puras, destituídas de tom avaliativo, de forma a oferecer um recurso analítico baseado em conceitos, como o que é religião, burocracia, economia, capitalismo, dentre outros. Metodologicamente
Gilberto Freyre pode ser interpretado como historicista no sentido do approach de Wilhelm Dilthey quando
propõe uma abordagem empática da realidade social, que lhe permitiu desenvolver
uma interpretação pari passu
histórica e sociológica. Seu objetivo é alcançar a subjetividade, é apreender a
vida em seu interior. Trata-se em verdade de uma interpretação de uma história
política, psicológica, vitalista, dionisíaca e não intelectualista o que não é
pouco. A interpretação de seus “tipos inconciliáveis” se faz como é sabido,
pelo “accountability” contido nos símbolos &:
das obras: “Casa Grande & Senzala”, “Sobrados & Mocambos”, “Ordem &
progresso”. Ao formular tipos ideais ele se aproxima de Max Weber; ao
interpretá-los, aproxima-se de Georg Simmel. Para compreender a interconexão
dos tipos, ele estudou o cotidiano, um
campo de pesquisa social efetivamente original e inovador para tempos sombrios.
Vale
lembrar que a nação é um produto cultural, político e social que surge na
Europa a partir do fim do século XVIII e que se constitui efetivamente em uma
“comunidade política imaginada”. Nesse processo de construção histórica, a
relação entre o velho e o novo, o passado e o presente, a tradição e a
modernidade é uma constante e se reveste de importância fundamental, pois, a
nação é uma comunidade de sentimento que normalmente tende a produzir um Estado
próprio, é preciso invocar antigas tradições (reais ou inventadas) como
fundamento “natural” da identidade nacional que está sendo criada. Isso tende a
obscurecer o caráter histórico e relativamente recente dos estados nacionais. Assim
como o Estado-nação procura delimitar e zelar por suas fronteiras geopolíticas,
ele também se empenha em demarcar suas fronteiras culturais, estabelecendo o
que faz e o que não faz parte da nação. Através desse processo se constrói uma
identidade nacional que procura dar uma imagem
à comunidade abrangida por ela. A consolidação dos
Estados-nações é recente. Mesmo em sociedades que
parecem ser bem integradas. Mas há casos em que é
representada como se fosse dividido em duas regiões antagônicas o que é
recorrente para o Brasil.
Germanófilo
de espírito e coração, Capistrano de Abreu foi, ao lado de Tobias Barreto, dos
maiores divulgadores da cultura alemã, e, sem dúvida no campo da história,
temos como dívida a introdução de métodos críticos que hoje alguns
historiadores procuram seguir. Admirador de Goethe de quem sempre repete ou as
palavras do Wilhelm Meister “obrar é fácil, pensar é difícil, obrar segundo seu
pensamento ainda mais difícil”, ou as de Fausto “de que não teria o livro lido
por aqueles que mais quisera”, Capistrano representa na história das idéias no
Brasil uma das mais autênticas imaginações e uma das mais lúcidas consciências.
Ele estava convicto – afirma Rodrigues - de que era preciso, pelo menos,
“equilibrar a decisiva influência francesa no Brasil com a divulgação do
pensamento anglo-germânico”. E nesse sentido seu papel foi plenamente cumprido.
Mas para entendermos melhor sua démarche,
vale a pena fazermos uma digressão. O motivo da vinda de Capistrano de Abreu
para o Rio de Janeiro, “constitui episódio ainda não totalmente esclarecido em
sua biografia”. Preparando o ambiente favorável à sua admissão no jornalismo
carioca, já em dezembro de 1874, escrevera Alencar uma carta a Bruno Seabra, em
que há outra alusão que está sendo formulada a seguir: - “Esse moço que já é
fácil e elegante escritor, aspira ao estágio da imprensa desta Corte. Creio eu
que, além de granjear nele um prestante colaborador, teria o jornalismo
fluminense a fortuna de franquear a
um homem de futuro, o caminho da glória, que lhe está obstruindo uns acidentes
mínimos”.
Sérgio
Buarque de Holanda concluiu o curso de Direito em 1925, pela Universidade do
Brasil, depois transformada em Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
sem deixar o jornalismo e chegou a ser correspondente internacional dos Diários Associados, na Europa. Entrou em
contato com o movimento modernista europeu, através da leitura do sociólogo Max
Weber quando presenciou a ascensão do nazismo na Alemanha. De volta ao Brasil
passou a ensinar a disciplina História Moderna e Contemporânea na Universidade
do Distrito Federal, depois Universidade de Brasília quando publicou RaízesdoBrasil (1936; 1995).
Distraído, emotivo, irônico, mas disciplinado, lia em seis línguas, cantava
tango em alemão e samba em latim. Em suas conversas não sabia onde parar: Roma,
Estados Unidos, Idade Média ou Brasil Colônia. Foi diretor do Museu Paulista,
professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, das Universidades de
Roma, Harvard, Columbia, Yale e outras. Prestigiado internacionalmente, foi
para a Itália (1952) e fez parte da cadeira de Estudos Brasileiros na
Universidade de Roma, durante dois anos. Tornou-se catedrático de História da
Civilização Brasileira, USP (1958), onde permaneceu até sua aposentaria como
professor (1969), em solidariedade aos colegas afastados pela ditadura. Foi
casado com Maria Amélia Alvim Buarque de Holanda, a Memélia, com quem teve sete
filhos: Heloísa Maria (Miucha), Sérgio Filho (Sergito), Álvaro Augusto,
Francisco (Chico), Maria do Carmo, Ana Maria e Maria Cristina, e faleceu na
cidade de São Paulo.
As análises teóricas sobre o legado
de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), desencadeadas no centenário de seu
nascimento, tiveram o dom de resgatar um capítulo esquecido em sua obra que
dedicou a carreira acadêmica a compreender a alma nacional. Trata-se de uma
dissertação de mestrado, defendida por Sérgio Buarque em 1958 na Escola Livre
de Sociologia e Política de São Paulo, intitulada: “Elementos Formadores da
Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos”. O ensaio adormecia no acervo
do historiador, confiado à Unicamp depois de sua morte. Edgar de Decca ficou
surpreso e intrigado com o que encontrou. - “Há uma impressionante linha de
continuidade entre essa dissertação e o clássico: Raízes do Brasil, publicado
em 1936”. Alguma coisa foi alterada na percepção de Sérgio Buarque. Perde força
no trabalho de mestrado aquilo que se transformou no traço mais marcante da
obra Raízes do Brasil, que representa um ensaio histórico e ideológico sobre o que faltou e o que foi
negado na constituição da nossa identidade. Em Raízes, a análise histórica
parte do critério da ausência: à nossa cultura faltou uma ética dotrabalho disciplinar, o
estado racional se ausentou ante o predomínio do patriarcalismo e do
paternalismo. E, em virtude disso, vicejou o caráter cordial do brasileiro –
que privilegia as relações pessoais e busca a intimidade no convívio social,
conceito cunhado por Sergio Buarque e confundido com benevolência. Essa exploração humana dos trópicos
não se processou, em verdade, por um empreendimento metódico e racional, não
emanou de uma vontade construtora e enérgica: fez antes com desleixo e certo
abandono. Dir-se-ia mesmo que se fez apesar de seus autores. E o reconhecimento
desse fato não constitui, para Sérgio Buarque, menoscabo à grandeza do esforço
português. Isto porque existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da
aventura. Assim, o indivíduo do tipo trabalhador só atribuirá valor moral
positivo às ações que sente ânimo de praticar e, inversamente, terá por imorais
e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro – audácia, imprevidência,
irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem – tudo, enfim, quanto se
relacione com a concepção espaçosa do mundo, característica desse tipo. As energias e esforços que se dirigem a uma recompensa são
enaltecidos pelos aventureiros; as energias que visam à estabilidade, à paz, à
segurança pessoal e os esforços sem perspectiva de rápido proveito material
passam, ao contrário, por viciosos e desprezíveis para eles. Nada lhes parece
mais estúpido e mesquinho do que o ideal do trabalhador.
Essa
exploração humana dos trópicos não se processou, em verdade, por um
empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade construtora e
enérgica: fez antes com desleixo e certo abandono. Dir-se-ia mesmo que se fez
apesar de seus autores. E o reconhecimento desse fato não constitui, para
Sérgio Buarque, menoscabo à grandeza do esforço português. Isto porque existe
uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do
tipo trabalhador só atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de
praticar e, inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias
do aventureiro – audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade,
vagabundagem – tudo, enfim, quanto se relacione com a concepção espaçosa do mundo, característica desse
tipo. Por outro lado, as energias e esforços que se dirigem a uma recompensa
imediata são enaltecidos pelos aventureiros; as energias que visam à
estabilidade, à paz, à segurança pessoal e os esforços sem perspectiva de
rápido proveito material passam, ao contrário, por viciosos e desprezíveis para
eles. Nada lhes parece mais estúpido e mesquinho do que o ideal do trabalhador.
Na
obra da conquista e colonização dos novos mundos coube ao “trabalhador”, papel
muito limitado, quase nulo. A época predispunha aos gestos e façanhas
audaciosos, galardoando bem os homens de grandes voos. E não foi fortuita a
circunstância de se terem encontrado neste continente, empenhados nessa obra,
principalmente as nações onde o tipo do trabalhador, encontrou ambiente menos
propício. Essa pouca disposição para o trabalho, ao menos para o trabalho sem
compensação próxima, essa indolência, como diz o deão Inge, não sendo
evidentemente um estímulo às ações aventurosas, não deixa de constituir, com
notável frequência, o aspecto negativo do ânimo quer gera as grandes empresas. Como
explicar, sem isso, que os povos ibéricos mostrassem tanta aptidão para a caça
aos bens materiais em fins do século XVIII? “Um português” comentava certo
viajante em fins do século XVIII, “pode fretar um navio para o Brasil com menos
dificuldade do que lhe é preciso para ir de cavalo de Lisboa ao Porto”. E essa
ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de posições e riquezas
fáceis, tão notoriamente característica da gente de nossa terra, não é bem uma
das manifestações mais cruas do espírito de aventura?
Nesse
ponto, precisamente, os portugueses e seus descendentes imediatos foram
inexcedíveis. Procurando recriar aqui o meio de sua origem, fizeram-no com uma
facilidade que ainda não encontrou, talvez, segundo exemplo na história. Aos
portugueses e, em menor grau, aos castelhanos, coube, sem dúvida, a primazia no
emprego do regime que iria servir de modelo à exploração latifundiária e
monocultora adotada depois por outros povos. E a boa qualidade das terras do
Nordeste brasileiro para a lavoura altamente lucrativa de cana-de-açúcar fez
com que essas terras se tornassem o cenário onde, por muito tempo, se
elaboraria em seus traços mais nítidos o tipo de organização agrária mais tarde
característico das colônias europeias situadas na zona tórrida. E verificou-se,
frustradas as primeiras tentativas de emprego do braço indígena, que o recurso
mais fácil estaria na introdução de escravos africanos.
O
que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa
ousadia, não riqueza que custa trabalho. Não foi, por conseguinte, uma
civilização tipicamente agrícola o que instauraram os portugueses no Brasil com
a lavoura açucareira. Não o foi, em primeiro lugar, porque a tanto não conduzia
o o gênio aventureiro que os trouxe á América; em seguida, por causa da
escassez da população do reino, que permitisse emigração em larga escala de
trabalhadores rurais, e finalmente pela circunstância de a atividade agrícola
não ocupar então, em Portugal, posição de primeira grandeza. Poucos indivíduos
sabiam dedicar-se a vida inteira a um só mister sem se deixaram atrair por
outro negócio aparentemente lucrativo. Mais raros seriam os casos em
que um mesmo ofício perdurava na mesma família por mais de uma geração, como
acontecia em terras onde a estratificação social alcançara maior
grau de estabilidade. Da tradição portuguesa, pouca coisa se conservou entre
nós que não tivesse sido modificada ou relaxada pelas condições adversas do
meio.
Sérgio
Buarque de Holanda, Toquinho e Vinicius de Moraes. Arquivo UNICAMP.
A
família patriarcal fornece, assim, o grande modelo por onde se hão de calcar,
na vida política, as relações entre governantes e governados, entre monarcas e
súditos. Uma lei moral inflexível, superior a todos os cálculos e vontades dos
homens, pode regular a boa harmonia do corpo social, e, portanto deve ser
rigorosamente respeitada e cumprida. Esse rígido paternalismo é tudo quanto se
poderia esperar de mais oposto, não já as ideias da França revolucionária. Mas
tradicionalistas e iconoclastas que se movem, em realidade, na mesma órbita de
ideias. Estes, não menos do que aqueles, mostram-se fiéis preservadores do
legado colonial, e as diferenças que os separam entre si são unicamente de
forma e superfície. O caráter puramente exterior, epidérmico, de numerosas
agitações sociais ocorridas entre nós durante os anos que antecederam e sucederam à
Independência de 1822 (ou emancipação), demonstra o quanto era difícil ultrapassarem-se os limites que à
nossa vida política tinham traçado certas condições específicas geradas pela
colonização.
É
neste sentido que se insere o romance de Chico Buarque, Leite Derramado (2010; 2013). Um homem muito velho está num leito
de hospital. Membro de uma tradicional família brasileira, ele desfia, num
monólogo dirigido à filha, às enfermeiras e a quem quiser ouvir, a história social
de sua linhagem desde os ancestrais portugueses, passando por um barão do Império,
um senador das Oligarquias até o descendente “garotão”, um tipo social da
cidade do Rio de Janeiro. Uma saga familiar caracterizada pela decadência
social e econômica, tendo como pano de fundo a história do Brasil dos últimos
dois séculos. A weltanschauung que o
autor nos oferece da sociedade brasileira é extremamente pessimista:
compadrios, preconceitos de classe e de raça, machismo, oportunismo, corrupção,
destruição da natureza, delinquência. A saga familiar marcada pela decadência é
um gênero consagrado no romance ocidental moderno.
Há
também um jogo com os espaços onde ocorrem os acontecimentos narrados. As
várias casas em que o narrador morou, como as décadas acumuladas em suas
lembranças, se sobrepõem e se revezam. Recolocá-las em ordem cronológica é
assistir a uma derrocada pessoal e coletiva: o chalé de Copacabana, “longínquo
areal” dos anos 20, é substituído por um apartamento num edifício construído
atrás de seu terreno; esse apartamento é trocado por outro, menor, na Tijuca; o
palacete familiar de Botafogo, vendido, torna-se estacionamento de embaixada; a
fazenda da infância, na “raiz da serra”, transforma-se em favela, com um
barulhento templo evangélico da velha igreja outrora consagrada pelo
bispo. Embaixo da última morada do narrador, nesse “endereço de gente
desclassificada”, está o antigo cemitério onde jaz seu avô.
Vale
lembrar que mesmo em seus melhores momentos, a obra realizada pelos
portugueses, segundo Sérgio Buarque, teve um caráter mais acentuado de “feitorização
do que de colonização”. Não convinha que se fizessem grandes obras, ao menos
quando não produzissem imediatos benefícios. Nada que acarretasse maiores
despesas ou resultasse em prejuízo para a metrópole. Na realidade o
exclusivismo dos castelhanos, em contraste com a relativa liberalidade dos
portugueses, constitui parte obrigatória, inalienável de seu sistema.
Compreende-se que, para a legislação castelhana, deva ter parecido indesejável,
como prejudicial à boa disciplina dos súditos, o trato e convívio de estrangeiros
em terras de tão recente conquista e de domínio tão mal assente. Essa
liberalidade dos portugueses pode parecer, em comparação, uma atitude negativa,
mal definida, e que porviria, em parte, de sua moral interessada, moral de
negociantes, embora de negociantes ainda sujeitos, por muitos e poderosos
laços, à tradição medieval. Pouco importa que seja frouxa e insegura a
disciplina fora daquilo que os freios podem melhor aproveitar, e imediatamente,
aos seus interesses terrenos. A rotina e não a razão abstrata foi o princípio
que norteou os portugueses, nesta como em tantas outras formas de colonização.
Preferiam agir por experiências sucessivas, nem sempre coordenadas umas às
outras, a traçar de antemão um plano para segui-lo até ao fim.
No
Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família
patriarcal, o desenvolvimento da urbanização – que resulta unicamente no
crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação,
atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influências das cidades – ia
acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos até hoje. Já
se disse, numa expressão feliz, afirma Sérgio Buarque, “que a contribuição
brasileira para a civilização será a de cordialidade – daremos ao mundo o homemcordial. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade,
virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito,
um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, que permanece
ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano,
informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes
possam significar ´boas maneiras`, civilidade. São antes de tudo expressões
legítimas de um lado emotivo extremamente rico e transbordante. Nenhum povo
está mais distante dessa noção ritualista da vida d que o brasileiro. Nossa
forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da
polidez. Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude
polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações
que são espontâneas no “homem cordial”:
é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso a polidez é,
de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte
exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de
peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar
inatas sua sensibilidade e suas emoções.
Em
1936, obteve o cargo de professor assistente da Universidade do Distrito
Federal, incorporada depois na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade
do Brasil, atual UFRJ, não se confundindo com a Universidade do Distrito
Federal criada posteriormente e que deu origem a Universidade do Estado da Guanabara
e depois a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em 1939, extinta a
Universidade do Distrito Federal, passou a trabalhar na burocracia federal. Em
1941, passou uma longa temporada trabalhando como Visiting Scholar em diversas universidades dos Estados Unidos da
América (EUA). Reuniu, no volume intitulado “Cobra de Vidro”, em 1944, uma
série de artigos e ensaios que anteriormente publicara nos meios de imprensa.
Publicou, em 1945 e 1957, respectivamente, “Monções” e “Caminhos e Fronteiras”,
que consistem em coletâneas de análises historiográficas sobre a expansão oeste
da colonização da América Portuguesa entre os séculos XVII e XVIII. No contexto
da “História Geral da Civilização Brasileira”, publicou, em 1972, “Do Império à
República”, texto que, a princípio, fora concebido como um simples artigo para
a coletânea, mas que, com o decurso da pesquisa, acabou por ser ampliado num
volume independente. Trata-se de um trabalho analítico, interpretativo de história social e política que aborda a
crise do império brasileiro no final do século XIX, explicando-a como
resultante da corrosão do mecanismo fundamental de sustentação deste regime: o
poder pessoal do imperador.
Em
1946, voltou a residir em São Paulo, para assumir a direção do Museu Paulista,
que ocuparia até 1956, sucedendo então ao seu antigo professor escolar Afonso
Taunay. Em 1948, passou a lecionar na Escola de Sociologia e Política de São
Paulo, na cátedra de História Econômica do Brasil, em substituição a Roberto
Simonsen. Viveu na Itália entre 1953 e 1955, onde esteve a cargo da cátedra de
Estudos Brasileiros da Universidade de Roma. Esse processo ganhou maior estrutura quando a Divisão Cultural do Itamaraty, ligada ao Ministério das Relações Exteriores e responsável pela política cultural externa do país, deu ênfase ao projeto de fundação de cátedras de Estudos Brasileiros em cerca de 15 universidades no exterior, entre 1952 e 1955. Em 1958, Sérgio Buarque de Holanda assumiu a cadeira de História
da Civilização Brasileira, agora na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo. O concurso para esta vaga motivou-o a
escrever “Visão do Paraíso”, livro que publicou em 1959, no qual analisa
aspectos do imaginário individual (os sonhos) e coletivo (os mitos, os ritos,
os símbolos) europeu à época da conquista. Ainda em 1958, ingressou na Academia
Paulista de Letras e recebeu o “Prêmio Edgar Cavalheiro”, do Instituto Nacional
do Livro, pelo ensaio: “Caminhos e Fronteiras”. Permaneceu
intelectualmente ativo até 1982, tendo ainda, neste último decênio, publicado
diversos textos. De 1975 é o volume “Vale do Paraíba - Velhas Fazendas” e de
1979, a coletânea “Tentativas de Mitologia”. Nestes últimos anos, trabalhou
também na reelaboração do texto de “Do Império à República” - que não chegou a
concluir. Recebeu em 1980 tanto o Prêmio Juca Pato, da União Brasileira de
Escritores, quanto o Prêmio Jabuti de Literatura, da Câmara Brasileira do
Livro. Também em 1980, participou da cerimônia de fundação do PartidodosTrabalhadores,
recebendo a terceira carteira de filiação do partido, após Mário Pedrosa e
Antonio Candido. Por conta de sua participação no PT e na condição de
intelectual destacado é que o centro de documentação e memória da Fundação
Perseu Abramo, fundação de apoio partidária instituída pelo Partido dos Trabalhadores em 1996, recebe
seu nome: Centro Sérgio Buarque de Holanda: Documentação e Memória Política. Morreu
em São Paulo em 24 de abril de 1982. Existe um navio batizado em
seu nome, que foi construído em 2012.
Bibliografia
geral consultada.
HOLANDA, Sérgio Buarque de, Raízes do
Brasil. 1ª edição. São Paulo: Livraria José Olympio Editores, 1936; Idem, VisãodoParaíso. 2ª edição revista e
ampliada. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional/Edusp, 1969; DILTHEY,
Wilhelm, El Mundo Histórico. Ciudad
de México: Fondo de Cultura Económica, 1947; CLARA, Fernando, “Experiência-Vivência. Dilthey e as
Humanidades: Um Olhar Retrospectivo”. Disponível em: Revista
da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n° 19. Lisboa: Edições Colibri,
2007, pp. 35-48; WAIZBORT, Leopoldo, “O mal-entendido da democracia: Sérgio Buarque de Hollanda, Raízes do
Brasil, 1936”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, vol. 26, n° 76, 2011, pp. 39-62; BUARQUE, Chico, LecheDerramada. Tradução espanhola de Ana
Rita da Costa García. Barcelona: Ediciones Salamandra, 2010; Idem, VergosseneMilch. Tradução alemã de Karin von Schweder-Schreiner. Frankfurt am
Main: Samuel Fischer, 2013; PIMENTEL, Vanuccio Medeiros, A Primazia dos Clãs: A Família na Política Nordestina. Tese de
Doutorado em Ciência Política. Universidade Federal de Pernambuco: Programa de
Pós-Graduação em Ciência Política, 2013; HIDALGO,
Yaremis da Trinidade; CRUZ, Yenisey López, “La Hermenéutica en el Pensamiento
de Wilhelm Dilthey”. Disponível em:
Griot - Revista de Filosofia. Santiago de Cuba, volume11, n°1, junho/2015; Revista do Brasil. Número Especial: Ano 3, n° 6/87, dedicado a Sérgio Buarque de Holanda, 1935; SILVA, Rafael Pereira da, A Morte do Homem Cordial: Trajetória e Memória na Invenção de um Personagem (Sérgio Buarque de Holanda 1902-1982). Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2015; RIBEIRO, Douglas Carvalho, As Raízes antiliberais de Sérgio Buarque de Holanda: Carl Schmitt em Raízes do Brasil. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Direito. Faculdade de Direito. Belo Horizonte: Universidade Federald e Minas Gerais, 2017; ASSIS, Gabriela Lima de, Raízes do Paraíso: Uma Análise Whiteana de Sérgio Buarque de Holanda. Tese de Doutorado em História. Instituto de Geografia, História e Documentação. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2017; entre outros.