segunda-feira, 24 de julho de 2017

Marc Augé - Novos Apostolados & Etnologia da Solidão Urbana.

                                                                                                 Ubiracy de Souza Braga
 “O fruto do nosso apostolado depende da oração”. São Maximiliano Maria Kolbe

                      
        Em meados da década de 1990 ministrava na universidade pública em que trabalho, uma disciplina intitulada: “Correntes Epistemológicas Contemporâneas” que, apresentada por mim ao colegiado de curso do extinto Departamento de Ciências Sociais, transformado posteriormente em Coordenação do curso de Ciências Sociais, (por que, eu não sei!) continha em seu programa excertos da hermenêutica de Hans-Georg Gadamer, da filosofia de transição de Georg Simmel, da fenomenologia de Michel de Certeau, e essencialmente a temática do poder simbólico desenvolvida hic et nunc por Pierre Bourdieu. Como consequência das tolas e frequentes reformas universitárias que apenas racionalizam o sistema de créditos, a nova disciplina criada como primícias do raisonnement sociologique chegou ao fim, excluída pelos próceres das Ciências Sociais.  Isto quer dizer o seguinte: uma disciplina representa um tempo social, original de pesquisa como fruto do processo de trabalho com começo, meio e fim que, neste caso, representa um resultado que pode se converter em causa de uma ação assembleísta. Mas isto não ocorre com frequência como “lugares praticados” nas universidades. O Ceará é uma exceção de ultraconservadorismo docente. Há pouco, por exemplo, submeti ao Apostolado da instituição duas novas disciplinas para integrar a grade curricular do curso de graduação. No primeiro caso a disciplina: “Sociologia das Emoções”, e no segundo caso a disciplina: Teoria Política Contemporânea, acrescido do projeto de pesquisa: “A Conciliação como Princípio de Autoridade”. Esta em função do golpe de Estado de 2016 no Brasil. As propostas foram rejeitadas,  inicialmente, talvez pelo “excesso” de disciplinas ofertadas por professores do curso de Ciências Sociais, inclusive em função de atividades programadas destinadas aos candidatos recém aprovados no exame de seleção do doutorado tardio em Sociologia. 
            Autores notaram a extrema confusão que reina na demasiado rica terminologia do  imaginário social: signos, imagens, símbolos, alegorias, emblemas, arquétipos, esquemas (schémas), esquemas (schèmes), ilustrações, representações, diagramas e sinepsias são termos empregados pelos analistas do imaginário social. O esquema é uma generalização dinâmica e afetiva da imagem, constitui a factividade e a não-substantividade geral do parcours imaginário. O esquema aparenta-se ao que Jean Piaget, na esteira de Herbert Silberer, chama “símbolo funcional” e ao que Gaston Bachelard na filosofia chama de “símbolo motor”. Faz a junção ente dos gestos inconscientes da sensório-motricidade, entre as dominantes reflexas e as representações. São esses esquemas que na antropologia do imaginário formam o “esqueleto dinâmico”, o esboço funcional da imaginação. A diferença entre os gestos reflexológicos que Gilbert Durand descreve analogamente e os esquemas é que estes últimos já não são apenas abstratos engramas teóricos, mas trajetos encarnados em representações concretas bem mais precisas. Os gestos diferenciados em esquemas vão determinar, em contato com o ambiente natural e social, os grandes arquétipos que Jung os definiu. Os arquétipos constituem as substantificações dos esquemas. Carl Jung vai buscar esta noção em Jakob Burckhardt e faz dela sinônimo de origem primordial, de enagrama, de margem original, de protótipo social.

O pensador evidencia claramente o caráter de trajeto antropológico dos arquétipos quando escreve que a imagem primordial deve incontestavelmente estar em relação com certos processos perceptíveis da natureza que se reproduzem sem cessar e são sempre ativos, mas por outro lado é igualmente indubitável que ela diz respeito também a certas condições inferiores da vida do espírito e da dinâmica da vida em geral. Bem longe de ter a primazia sobre a imagem, a ideia seria tão-somente o comprometimento pragmático do arquétipo imaginário num contexto histórico e epistemológico dado. Neste sentido, o mito representa um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema tende a compor uma narrativa. O mito é já um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em ideias culturais. O mito explicita um esquema ou um grupo de esquemas. Do modo que o arquétipo promovia a ideia, o símbolo o nome, concordamos com Gilbert Durand que o mito promove a doutrina religiosa, o sistema filosófico ou, como bem anteviu Émile Bréhier, a “narrativa histórica e lendária”.  Foi este princípio, que o psicólogo Carl Jung sentiu abrangido por seus conceitos de “Arquétipo” e “Inconsciente coletivo”, justamente o que uniu o médico psiquiatra Jung ao físico Wolfgang Pauli, dando início às pesquisas interdisciplinares em física e psicologia. A sincronicidade, vale lembrar, se manifesta muitas vezes atemporalmente e/ou em eventos energéticos acausais, e em ambos são violados princípios associados ao paradigma científico vigente.


        No primeiro caso, a sociologia das emoções se constituiu como uma subárea da disciplina sociologia nos anos 1990, como primícias de um processo iniciado nos Estados Unidos da América quase duas décadas antes. Herdeiros de duas escolas sociológicas distintas, a funcionalista de Talcott Parsons e a interacionista simbólica, de George Herbert Mead, Herbert Blumer e Erving Goffman, dos sociólogos norte-americanos Randall Collins, Theodore Kemper, Jonathan Turner, Norma Denzin, Arlie Hochschild, Susan Shott, Steven Gordon e Thomas Scheff, desenvolvem a partir das suas respectivas filiações, teorias sociológicas alternativas, e, até certo ponto, conflitantes, para a compreensão das emoções. As tensões conceituais e metodológicas entre tais proposições envolvem questões sociológicas fundamentais, cuja origem remota aos debates travados entre os pragmatistas William James, John Dewey e George Herbert Mead. As respostas a essas questões dizem respeito à definição do conceito sociológico. Seus adeptos propõem uma representação disciplinar da sociologia das emoções que deve procurar as causas sociais, psicológicas, fisiológicas para explicá-las.
         No segundo caso, apresentamos notas de pesquisa que propus como objetivo a análise comparativa do processo eleitoral anterior ao Golpe de Estado de 17 de abril de 2016 no Brasil, pretendendo descrever as nuances no nível de análise política em torno da questão fulcral do princípio de autoridade no Brasil.  A nossa política é a política da conciliação inclusiva à universidade. Fomos nós os primeiros que a iniciamos por fatos políticos e não por palavras. É a representação da política da conciliação, mas não dessa conciliação dos princípios, da conciliação que se firma por atos legislativos e administrativos.  A conjuntura política em que vivemos sugere que não fomos tomados de surpresa com a abrupta mudança presidencial ocorrida em 17 de abril de 2016.  A destituição da presidente eleita Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT) representou um golpe de Estado com deputados e senadores - profundamente envolvidos em casos de corrupção, pois fala-se em 60% da representação parlamentar que instituiu um processo de destituição pretextando irregularidades contábeis, as chamadas “pedaladas fiscais”, para cobrir déficits causados no âmbito político nas contas públicas – uma prática corriqueira em todos os governos anteriores, inclusive de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) após o período da chamada redemocratização no âmbito do movimento social Diretas Já!      

            A departamentalização acadêmica surge à medida que as instituições públicas tornam-se “maiores” e envolvem a tout court atividades mais diversificadas, forçando-as a dividir as principais atividades em função da carga horária e tarefas administrativas e transformá-las em responsabilidades departamentais ou divisionais. Os diferentes tipos usuais de departamentalização definem os critérios organizacionais  para agrupar as pessoas em unidades, para que possam ser aparentemente melhor administradas. As universidades públicas podem recorrer quanto à escolha de determinados tipos de departamentalização. Para isso, devem reconhecer, analisar e escolher o melhor tipo de departamentalização que assegure os projetos individuais e coletivos em termos de Pesquisa & Desenvolvimento. Existem tipos de abordagens que definem os critérios de  subordinação da hierarquia. Cada abordagem departamental tem uma finalidade política distinta para a instituição, sendo o que a diferença entre cada tipo de abordagem é a maneira como as atividades são agrupadas e a que grupo de poder se subordinam.
            Temos um caso-limite quando o Cardeal de São Paulo, Dom Odilo Scherer, e os bispos de sua Arquidiocese, anunciaram recentemente que não autorizariam a criação, prevista em meados de 2011, da Cátedra “Michel Foucault e a Filosofia do Presente” na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Por ocasião do 7° Colóquio Internacional Michel Foucault, que reuniu na PUC-SP dezenas de especialistas na obra do filósofo e pesquisador, centenas de interessados, foi assinada uma Carta de apoio a essa iniciativa. A lista dos signatários incluía de forma extraordinária desde membros do Collège International de Philosophie aos membros da Universidad San Martin na Argentina, da Universidad de los Andes na Venezuela e da Universidad de Valparaiso no Chile, obtendo a solidariedade do Consulado Geral da França em São Paulo. Do latim cathedra que tem origem num vocábulo grego que significa “assento” ou “cadeira”, a cátedra é a disciplina/cadeira, metaforicamente, que ensina um catedrático - professor que tenha preenchido determinados requisitos para partilhar conhecimentos e que tenha alcançado o posto mais alto na docência.
           O termo também é usado para fazer referência à função e ao exercício do catedrático. Essa Cátedra, que leva o nome de Michel Foucault, não é dedicada à leitura de seus escritos – que hoje já é parte da cultura clássica. Ela está voltada, sob o impulso não exclusivo de seus trabalhos, como o diz seu título, para uma livre análise, informação e debate sobre questões de filosofia e de vida civil contemporânea. A recusa de tal Cátedra, aberta à complexidade e diversidade de estudos e pesquisas na atualidade, contradiz a deontologia universitária assim como seu fundamento filosófico. A Universidade seria sua primeira vítima, ironicamente, no caso da PUC-SP, da 2ª morte de Michel Foucault. Tem-se aí metodologicamente um dos princípios mais importantes dessa atividade consagrada a si mesmo. Ela não constitui um exercício da solidão; mas sim uma verdadeira prática social. E isso, em vários sentidos. Mas toda essa aplicação a si não possuía como único suporte social a existência das escolas, do ensino e dos profissionais da direção da alma; ela encontrava, facilmente, seu apoio em todo o feixe de relações habituais de parentesco, de amizade ou de obrigação.
             Quando, no exercício do cuidado de si, faz-se apelo a outro, o qual se advinha que possui aptidão para dirigir e para aconselhar, faz-se uso de um direito; e é um dever que se realiza quando se proporciona ajuda a outro ou quando se recebe com gratidão as lições que ele pode dar na duração da vida. Acontece também do jogo entre os cuidados de si e a ajuda do outro inserir-se em relações sociais preexistentes às quais ele dá uma nova coloração e um calor maior. O cuidado de si – ou os cuidados que se tem com o cuidado que os outros devem ter consigo mesmos – aparece então como uma intensificação das relações sociais. Sêneca dedica um consolo à sua mãe, no momento em que ele próprio está no exílio, para ajudá-la a suportar essa infelicidade atual e, talvez, mais tarde, infortúnios maiores. O “cuidado de si” aparece, portanto, intrinsecamente ligado a uma espécie de “serviço da alma” que comporta a possibilidade de um jogo de trocas com o outro e de um sistema de obrigações recíprocas. Neste aspecto singular da vida Michel Foucault abriu uma porta ao eterno.
A característica marcante do “coquetismo”, em termos platônicos, para Georg Simmel representa o estado intermediário entre o ter e o não ter. Assim, podemos entender como sendo próprio da mulher coquete despertar o interesse e o desejo do Outro por meio da alusão ao ato da entrega e não pela entrega em si. A mediação entre o ter e o não ter, que é a essência do coquetismo, se constitui também no fundamento último do erotismo. O “querer agradar” da coquete ainda não é, em si e por si, o que dá a seu comportamento o cunho decisivo. Assim, traduzir coquetismo por “necessidade de agradar” é confundir o meio em um fim e a pulsão orientada para esse fim. Uma mulher pode lançar mão de tudo para agradar, dos encantos espirituais à exposição mais insistente de seus encantos físicos, que ainda assim distinguir-se-á bastante da coquete. Através da dicionarização do vocábulo, seu sentido refere-se “à procura com o objetivo de despertar admiração, tendo cuidados excessivos com a aparência física ou outros dotes”. Na filosofia o sentido do coquetismo não pode ser limitado ao “querer agradar”, pois é um equívoco que tem uma profunda ligação com a autoestima.

Antropologicamente a humanidade sempre atravessa estágios em que: a) opressão da individualidade é o ponto de passagem obrigatório de seu livre desabrochar superior, em que a pura exterioridade das condições de vida se torna a escola da interioridade, b) em que a violência da modelagem produz uma acumulação de energia, destinada, em seguida, a gerar toda a especificidade pessoal. Do alto desse ideal é que, c) a individualidade plenamente desenvolvida, tais períodos parecerão, é claro, grosseiros e indignos. Mas, para dizer a verdade, além de semear os germes positivos do progresso vindouro, já é em si uma manifestação do espírito exercendo uma dominação organizadora sobre a matéria-prima das impressões flutuantes, uma aplicação das personalidades especificamente humanas, procurando elas próprias fixar suas normas de vida - do modo mais brutal, exterior ou, mesmo, estúpido que seja -, em vez de recebê-las das simples forças da natureza.  A horda, uma estrutura social e militar histórica encontrada na estepe eurasiática “não protege mais a moça e rompe suas relações com ela, porque nenhuma contrapartida foi obtida por sua pessoa”. 
Para Simmel diante do “conflito” (“Kampf”) os indivíduos vivem em relações sociais de cooperação, mas também de oposição, portanto, os conflitos são parte mesma da constituição da sociedade. É neste sentido que formam momentos de crise, um intervalo entre dois momentos de harmonia, vistos numa função positiva de superação das divergências. Fundamenta uma episteme em torno da ideia de movimento, da relação, da pluralidade, da inexorabilidade do conhecimento, de seu caráter construtivista, cuja dimensão central realça o fugidio, o fragmento e o imprevisto. Por isso, seu panteísmo estético, ancorado sob forma paradoxais de interpretação real, como episteme, no qual se entende que cada ponto, cada fragmento superficial e, portanto fugaz é passível de significado estético absoluto, de compreender o sentido total, os traços significativos, do fragmento à totalidade.
O significado sociológico do “conflito”, em princípio, nunca foi contestado. Conflito é admitido por causar ou modificar grupos de interesse, unificações, organizações. Por outro lado, pode parecer paradoxal na visão do senso comum se alguém pergunta se independentemente de quaisquer fenômenos que resultam de condenar ou que a acompanha, o conflito é uma forma de “sociação”. À primeira vista, isso soa como uma pergunta retórica. Se todas as interações entre os homens é uma sociação, o conflito, - afinal uma das interações mais vivas, que, além disso, não pode ser exercida por um indivíduo sozinho, - deve certamente ser considerado como “sociação”. E, de fato, os fatores de dissociação, tais como ódio, inveja, necessidade, desejo, são as causas da condenação, que irrompe em função deles. Conflito é, portanto, destinado a resolver dualismos divergentes, é a maneira de conseguir algum tipo de unidade, que seja através da aniquilação de uma das partes em litígio.
A imagem está associada a conhecimentos pretéritos adquiridos e concernentes ao objeto que ela de fato representa. Ela não apreende nada além daquilo que nós podemos extrair da realidade durante o trabalho de percepção. A imagem não se relaciona com o mundo em si, ela só depende do processo de como podemos descobrir algo sobre ela. Portanto, se existe uma possibilidade de se observar o objeto através da imaginação, mesmo assim essa possibilidade ainda não nos permite apreender nada de novo em relação ao objeto. A imagem, ato da consciência imaginante, é um elemento, identificado como o primeiro e incomunicável, como produto de uma atividade consciente atravessada de um extremo ao outro por uma corrente de “vontade criadora”. Trata-se, de dar-lhe à sua própria consciência um conteúdo de sentido imaginante, próximo da analogia weberiana da interpretação da ciência que recria para si os objetos afetivos espontaneamente ao seu redor: ela é criativa.   
Daí a importância de se compreender no campo da imagem, de sua produção, recepção, influência, de sua relação com o sonho, o devaneio, a criação e a ficção, a substituição das mediações pelos meios de comunicação, posto que contenha em si uma possibilidade de violência, a partir da constituição do novo regime de ficção que hoje afeta, contamina e penetra a vida social. Ipso facto temos a sensação de sermos colonizados, mas sem saber precisamente por quem. Não é facilmente identificável e, a partir daí é normal questionar-se sobre o papel da cultura ou da ideia que fazemos dela. O etnólogo Marc Augé reitera que as “etnociências” se atribuem sempre dois objetivos, proposto por ele ao final em seu opúsculo “La guerre des rèves” (1997). Usado como prefixo, “etno” relativiza o termo que o segue e o faz depender da “etnia” ou da “cultura” que supõe ter práticas análogas às que chamamos “ciências”: medicina, botânica, zoologia etc. Desse ponto de vista, a etnociência tenta reconstituir o que serve de ciência aos outros, suas práticas sanitárias e do corpo, seus conhecimentos botânicos, mas também suas modalidades de classificação, de relacionamento etc. É claro que, a partir do momento em que se generaliza a etnociência muda de ponto de vista.
Ela tenta emitir uma apreciação sobre os modelos locais, indígenas, e compará-los a outros e, além disso, propor uma análise dos procedimentos cognitivos em ação num certo número de experiências. Ela leva então às vezes o nome de antropologia: fala-se assim em antropologia médica ou cognitiva. Em verdade, quando Augé recoloca a questão: “que é nosso imaginário, hoje?”, por outro lado, ele se indaga se nestes dias não estamos assistindo a uma generalização do fenômeno de fascínio da consciência que nos pareceu característico da situação colonial e de seus diferentes avatares? Trata-se de “exercícios de Etnoficção”, em analisar o estatuto da ficção ou as condições etnológicas de seu surgimento numa sociedade, e ipso facto num momento histórico particular, em analisar os diferentes gêneros que se irradiam sob formas ficcionais, sua relação com o imaginário individual e coletivo, as representações da morte etc., em diferentes sociedades ou conjunturas.
Temos o que fica reservado como lugar de representação do conhecimento, posto que bem entendido o nível ao qual se aplica a pesquisa antropológica, ela tem por objeto interpretar a interpretação que os outros fazem da categoria do outro, nos diferentes níveis que situam o lugar dele e impõem sua necessidade. Melhor dizendo, tendo como representação social etnia, tribo, aldeia, linhagem ou outro modo de agrupamento até o átomo elementar de parentesco, do qual se sabe que submete a identidade da filiação à necessidade da aliança, o individualismo, enfim; que todos os sistemas rituais definem como compósito e pleno de alteridade, figura literalmente impensável, como o são, em modalidades opostas, a do rei e a do feiticeiro. O fato social é que deste ângulo de análise há um princípio abrangente e primordial, porque norteador, pois “toda antropologia é antropologia da antropologia dos outros, além disso, que neste âmbito, o lugar antropológico, é simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa”. Essa inteligibilidade, ao que nos parece, fornece e propõe no âmbito de apropriação dos saberes que as condições de uma antropologia da contemporaneidade devem ser deslocadas do método para o objeto. E além disso, que deve-se estar atento às mudanças que afetaram as grandes categorias por meio das quais os homens pensam sua identidade e suas relações recíprocas em termos espaciais.

Assim, se um lugar de análise pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um na etnologia da solidão de Marc Augé, o que ele denominou analiticamente de “não-lugar”. A hipótese adjudicada na teoria, e, portanto, no pensamento, é o que o autor chama de surmodernité conquanto produtora de não-lugares, de espaços que não são em si lugares (tradicionais) antropológicos. Isto é importante. Estas características comuns podem ser aplicadas a dispositivos institucionais diferentes e que constituem, de certo modo, as formas elementares de compreensão do espaço social. Trata-se de aspectos gerais e que se identificam enquanto itinerários ou eixos ou caminhos que, do ponto de vista etnológico conduzem de um lugar a outro. Mas também em cruzamentos e praças, que satisfazem por assim dizer esferas de ação social, que nos mercados definem necessidades do intercâmbio econômico e, nesta progressão, centros mais ou menos monumentais. Sejam eles religiosos ou políticos construídos por certos homens e mulheres e que definem como outros, em relação a outros centros e outros espaços sociais.  
Contrariando esta dimensão analítica para repensar o trabalho nas instituições públicas, a particularidade da Universidade Estadual do Ceará (UECE) é que a prática institucional decorre em um confronto do Apostolado (casta) tendo como leitmotiv a luta pelos cargos. O exercício da autoridade legal está relacionado com o cargo ocupado pelo funcionário-professor. As normas legais são abstratas enquanto consideradas como um sistema integrado demonizado no âmbito discursivo do direito, concretizado na aplicação da lei nos casos particulares contrário ao apostolado. Desse modo, o processo administrativo orienta-se para os interesses pessoais assim definidos pelas ordenações da instituição, dentro dos limites legalmente estabelecidos e de acordo com os princípios gerais aprovados em conformidade pelas relações de compadrio pelas ordenações. O exercício da autoridade legal está relacionado com o cargo ocupado pelo funcionário-professor, servidor público concursado e habilitado ao cargo, o que implica em sua subordinação a uma ordem pessoal para a qual orienta suas ações políticas. Isto significa que a obediência aparentemente não é devida ao indivíduo, mas ao cargo ocupado, que representa uma posição efetiva de autoridade com limites legalmente definidos. O membro do Apostolado obedece aos critérios racionais da administração.
Bibliografia geral consultada.

SIMMEL, Georg, La Tragédie de la Culture. Paris: Petite Bibliothèque Rivages, 1988; TAVARES, Ana Maria, Armadilhas para os Sentidos: Uma Experiência no Espaço-Tempo da Arte. Tese de Doutorado em Artes. Departamento de Artes Plásticas. Escola de Comunicações e Artes. Universidade de São Paulo, 2000; CREADO, Eliana Santos Junqueira, Entre Lugares e Não-lugares: Restrições Ambientais e Supermodernidade no Parque Nacional do Jau (AM). Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.  Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2006; BOTTON, Alain de, Os Prazeres e Desprazeres do Trabalho. São Paulo: Editora Rocco, 2009; RABELATTO, Francielli, Atravessando a Ponte, Vivendo na Linha: Marcos e Marcas de uma Cultura de Fronteira à Luz da Fotoetnografia. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Universidade Federal de Santa Maria, 2011; LIMA, Lúcio Renato Mota, O Apostolado dos Padrões: Limites e Possibilidades de um Plano Industrial Disciplinar-religioso em uma Fábrica Têxtil (Camaragibe, 1891-1908). Dissertação Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2012; AUGÉ, Marc, Non-Lieux. Introduction à une Anthropologie de la Surmodernité. Paris: Éditions du Seuil, 1992; Idem, La Guerre des Rêves. Exercices d’Ethno-Fiction. Paris: Éditions du Seuil, 1997; Idem, El Antropólogo y el Mundo Global. México: Siglo Veintiuno Editores, 2014; Idem, O Duplo da Vida: Etnologia, Viagem, Escrita. Maceió: Editora da Universidade Federal de Alagoas, 2014; “Como Um Escritor É Lido? Sobre a Apropriação de Elias Canetti pelas Universidades Brasileiras”. In: Plumilla Educativa 14 (14) :225-238, 2014; RIBEIRO, Ulisses Alves Maciel, Não-lugar: Um Olhar sobre as Metrópoles Contemporâneas. Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2015; AMORIM, Lidiane Ramirez de, Em Busca de uma Cartografia dos (Não/Entre) Lugares da Comunicação em Multinacionais. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Faculdade de Comunicação Social. Porto Alegre: Madrid: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 2015;  entre outros. 

domingo, 23 de julho de 2017

Benedict Anderson - Cinema & Comunidades Imaginadas.

                                                                                                    Ubiracy de Souza Braga

Ce n`est plus la fiction qui imite le réel mais le réel qui reproduit la fiction”. Marc Augé

             
O conceito descrito sociologicamente por Benedict Anderson, “Imagined Communities”, inicialmente publicado em 1983 e reeditado em 1991, com diversas correções e adição de capítulos, embora tenha sido cunhado especificamente para tratar do âmbito conceitual do nacionalismo, ele passou a ser generalizado, no nível de análise teórica quase como um sinônimo político de “comunidade de interesse”. Ele pode ser utilizado, por exemplo, para se referir a uma comunidade baseada em orientação sexual, ou consciência de fatores de risco global. Mas metodologicamente, uma “comunidade imaginada” difere de uma comunidade real, pois não se baseia em interação social de seus membros, e por razões práticas não pode fazê-lo: Anderson chega a mencionar que nada maior que um vilarejo pode ser uma “comunidade real”, já que é impossível que todos seus membros se conheçam. Nação é um exemplo de comunidade socialmente construída, imaginada por pessoas que percebem a si próprias como parte de um grupo.  
Como Anderson afirma, essa comunidade tem como representação a ideia de que é imaginada, pois os membros de uma nação, mesmo da menor delas, nunca conhecerão a maioria de seus conterrâneos, nunca os encontrarão ou, até mesmo, ouvirão a seu respeito. Ainda assim, eles terão em suas mentes a imagem de sua comunhão. Membros de uma comunidade, apesar da potencial impossibilidade de interação real uns com os outros, não deixam de compartilhar interesses ou aspectos identitários comuns. A mídia, por exemplo, cria e mantém comunidades imaginadas, embora geralmente o faça voltando à sua interação através dos meios que proporcionam a imaginação, como se estivesse referindo à totalidade de cidadãos de um país. A origem significativa do conceito de nação para Anderson e historiadores opostos como Eric Hobsbawm e Ernest Gellner, ambos analisados em “Imagined Communities”, é uma representação da Modernidade. De acordo com Anderson, para que a concepção  de nação e nacionalismo surgisse, foram necessárias três mudanças históricas centrais.

 
            O primeiro deles decorreu da ideia de que uma particular linguagem de escrita oferecia acesso privilegiado à verdade “ontologicamente situada”, precisamente por que tal linguagem era uma parcela inseparável desta verdade. O segundo desses conceitos decorreu da crença que a sociedade seria “naturalmente organizada” ao redor e sob potestades, isto é, sob monarcas que eram pessoas à parte de outros seres humanos e que governavam por alguma forma de deliberação cosmológica (divina). O terceiro decorreu de uma concepção de temporalidade em que a cosmologia e a história eram indistinguíveis, e a origem tanto do mundo quanto dos homens era essencialmente idêntica. Combinadas, essas ideias enraizaram firmemente as vidas dos homens na natureza das coisas, dando significado para as fatalidades cotidianas da existência, sobretudo, a morte, a perda e a servidão, oferecendo de diversas formas redenção delas.
            A tópica da descritibilidade pode ser vista no filme dirigido por Kore-Eda Hirokazu, “Nossa Irmã Mais Nova” (2015), de título original: “Umimachi Diary”, em que Sachi (Haruka Ayase), Yoshino (Masami Nagasawa) e Chika (Kaho) são irmãs e vivem juntas em uma casa que pertence à família há tempos. Apesar de não verem o pai há 15 anos, elas resolvem ir “ao rito de passagem de seu enterro” (cf. Koury, 2009; 2012). Lá, elas conhecem a adolescente Suzu Asano (Suzu Hirose), a meia irmã mais nova que aos poucos entende como é a vida. Mesmo tão nova, possui vasta experiência em superar dificuldades. É ótima jogadora de futebol, comunicativa e sincera. Logo as três irmãs convidam Suzu para que more com elas. O convite é aceito e, a partir de então, elas passam a conviver juntas e aprendem os pontos sensíveis numa “comunidade imaginada” relacionada à memória ao pai em comum. Hirokazu Kore-Eda analisa a valorização da vida como uma experiência baseada na relação dialética entre alegria e sofrimento, representados por momentos de felicidade e dor não só inevitáveis como parte fundamental de nossa existência sobre o “cotidiano” (cf. Heller, 1975), na medida em que o dia-a-dia desconstrua o estereótipo, retratando-o com uma visão poética, plena da beleza dos detalhes, como o flanelódromo surge diante de nós e que marca o nascimento das irmãs e vinda da “irmã mais nova”, pois é ao mesmo tempo sutil, fascinante e melancólico, mas por vezes turbulento e trágico no sentido nietzschiano.


Em “Nossa Irmã Mais Nova”, nos deparamos com as experiências e dilemas existenciais. A delicadeza com a qual o cineasta Kore-Eda constrói seu universo, com simplicidade nos emociona no quadro de pensamento das quatro irmãs que as irmãs protagonizam o filme. Personagens que individualizam as referências, e ipso facto geram uma compaixão a ponto de sentirmos suas alegrias e suas tristezas como extraordinariamente faz o diretor com elegância, prudência e maestria. Uma das grandes marcas de Hirokazu Kore-Eda, o drama familiar, volta à cena. Atrelado à família, estão laços pessoais que são quase impossíveis ignorá-los. A perda e o vazio, outro fator crucial para a filmografia de Kore-Eda retorna também em seus adoráveis personagens imperfeitos. Em “Nossa Irmã Mais Nova”, é a partir desses elementos que de fato os personagens são equilibrados na antítese dialética referida sobre a alegria e sofrimento, a qual a vida prevalentemente se baseia, o que é capaz de levar o espectador a refletir sobre o quão poderoso é compreender o sentido da vida, e assim poder experimentar a lacuna deixada por um ente querido, como no caso familiar das irmãs, seus pais aparentemente não correspondem ao afeto desejado por elas. Vale lembrar que Zusu, a irmã mais nova, vivia com o pai até que este morre, e então parte da pequena cidade em que viviam para morar com suas outras três irmãs mais velhas.                     
Heráclito responde a estas questões através da dialética. Para o filósofo de Éfeso, “o combate é de todas as coisas pai, de todas rei”. As coisas mudam porque existe uma tensão de forças contrárias dentro delas, como o mel que é, a um só tempo, doce e amargo. É a tensão dos contrários no interior da coisa que põe tudo em movimento. Admirável é que a tensão entre os contrários não produz destruição das forças em conflito, mas harmonia: “o contrário é convergente e dos convergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a discórdia”. A forma como ela fica desconfortada ao demonstrar o que sente e o fato social de imaginar seu deslocamento daquele contexto é expresso com tamanha inocência que chega a ser inevitável não sentir a perda. Essa inocência é repetida em quase todos os conflitos vividos pelas protagonistas, que durante o filme irão buscar a harmonia entre seguidos descontentamentos e prazeres.
Neste sentido difere de “consubstancialidade” que é o correspondente ao termo grego ὁμοούσιος (“homoousios”), termo original que designa essa realidade. Este termo provém da junção de ὁμός (“homos”), significando “o mesmo”, e ούσιος (“ousios”), proveniente de οὐσία (“ousía”), substância ou essência. Assim, o termo tem o sentido de “da mesma substância, com a mesma essência”. O correspondente em latim é “consubstantialis”, do qual deriva na língua portuguesa, “consubstancial”. No entanto, podemos entender que tal tradução não exprime perfeitamente o sentido e o significado do termo grego. O vocábulo latino é composto por “cum” e “substantia”, o que quer dizer que favorece “cum”, com o sentido de “com”, simultaneidade, que não exprime rigorosamente o mesmo sentido de “homos”. Do mesmo modo, “substantia” pode não corresponder perfeitamente a “ousía”, na medida em que cada um dos termos pressupõe determinado sistema ontológico, que varia conforme a cultura mediante a qual se insere.
            Historicamente o vocábulo foi introduzido na confissão da fé católica pelo Primeiro Concílio de Niceia, em 325. A sua adoção está diretamente ligada à heresia dos arianos. Este grupo de hereges, cujo precursor foi Ario, presbítero de Alexandria, negava a divindade de Jesus Cristo. O Verbo de Deus, para ele, merecia esse nome apenas segundo a nossa forma de imaginação, pois era uma criatura, tal como nós, mas criada antes de tudo. Por ser uma criatura perfeita, Deus colocou-o acima de todos, pois sabia que ele jamais pecaria. Assim, a filiação de Jesus Cristo era apenas adotiva, do que resultava que o Pai o era apenas em sentido figurado. A isto, a Igreja respondeu reafirmando a divindade do Filho e o carácter próprio da paternidade de Deus Pai. Portanto, serviu-se de várias expressões, mas todas elas foram contestadas pelos arianos, que as interpretavam sempre como uma ofensa ao monoteísmo. É neste sentido que para exprimir o conceito que descrevia a natureza da divindade de Jesus e a sua relação com a divindade do Pai, o Concílio de Niceia aplicou o termo “homoousios”.
                         
            O diretor japonês Hirokazu Kore-Eda tem uma predileção especial por questões familiares, como demonstra sua filmografia. É ele o responsável por “Ninguém Pode Saber” (“Dare mo sihranai”, Japão, 2004) em que apresenta seu argumento articulado por meio da linguagem, constituída pela luz, esverdeada às vezes, neutra a maior parte do tempo, pelo enquadramento de partes dos corpos (das mãos principalmente) e da disposição dos corpos em espaços (internos e externos), pela escolha dos olhares como principal matéria-prima expressiva e pelo tempo cultivado em cada cena para muito além do caráter descritivo da ação, que a veracidade será construída. E em “Pais & Filhos” (2013), onde demonstra como um casal lida com uma descoberta inusitada e cruel: seu filho de 6 anos,  foi trocado na maternidade. Entretanto, por ser um problema recorrente da modernidade, se propõe a discutir os dilemas práticos e morais de desfazer ou não o erro da maternidade, e neste caso e arcar com as consequências dessa escolha, acrescentando o valor genético e emocional nessa complexa equação da vida real.
Ambos são premiados no Festival de Cannes, cujas histórias trazem conflitos que envolvem pais ausentes e filhos que precisam lidar com adversidades repentinas, mas com uma novidade: Kore-Eda busca desde o início a comunhão dos personagens. O cineasta usa do tom bucólico e ameno para acompanhar o cotidiano de suas personagens principais, com leves alterações decorrentes de novos e velhos amores, perda de amigos e ressurgimento de parentes. Queremos dizer com isto que “ousía”, no sentido de essência, tanto pode designar a essência individual como a essência do gênero. Além disso, não se aplica a Deus do mesmo modo que se pode aplicar aos entes corpóreos. O conceito de “homoousios” foi também aplicado ao Espírito Santo, para exprimir a sua relação com o Pai e o Filho: a mesma essência divina, sem divisão. No entanto, enquanto que o Filho é gerado, o Espírito Santo existe por processão. O vocábulo não existe na Bíblia, mas foi tomado de empréstimo na história social representada pela filosofia grega com o início de uma linguagem teológica própria e oficial da Igreja.


           
Neste último sentido, a Igreja pode ser entendida como uma pessoa, para Hobbes (2014: 360), isto é, que ela tenha o poder de querer, de pronunciar, de ordenar, de ser obedecida, de fazer leis ou de praticar qualquer espécie de ação. Se não existir a autoridade de uma congregação legítima, qualquer ato praticado por um conjunto de pessoas é um ato individual de cada um dos presentes que contribuíram para a prática desse ato. Não um ato conjunto, como se fosse de um só corpo. Não é um ato dos ausentes ou daqueles que, estando presentes, eram contra a sua prática. Uma Igreja pode assim ser definida como um conjunto de pessoas que professam a religião cristã, ligadas à pessoa de um soberano, que ordena a reunião e que determina quando não deverá haver reunião. Tendo em vista que em todos os Estados semelhantes assembleias são ilegítimas, se não são autorizadas pelo soberano civil, o que constitui também uma assembleia ilegítima a reunião da Igreja em qualquer Estado em que tiver sido proibida.
O filme: “Nossa Irmã Mais Nova” aborda a diversidade das questões sociais com profundidade, mas também distância. O primeiro ponto é o abandono familiar. Todas tem um passado triste, passaram por algum desprezo em determinado ponto da vida. Apesar de ser um drama familiar, cada uma delas tem maturidade o bastante para lidar com os problemas, em especial Suzu, a mais nova. São jovens mulheres de idades diferentes, com ideais diferentes, mas com um amor incondicional pela família (base de tudo) e pela alegria e solidariedade uma com as outras. Todas se apegam a algum fato presente na memória em específico do passado recente para tentar lidar com as situações presentes, fazendo do filme “Nossa Irmã Mais Nova” uma verdadeira lição de vida expressa em sua cotidianidade.  É um tributo aos valores tradicionais japoneses como o respeito, harmonia e perdão. É também um filme que respira tradição: As irmãs vivem em uma casa tradicional japonesa, elas comem pratos típicos como fabricação caseira de macarrão, e regularmente eles vão para um pequeno restaurante tradicional.  

Bibliografia geral consultada:

SARTRE, Jean-Paul, Lo Imaginario - Psicologia Fenomenologica de la Imaginacion. Buenos Aires: Ediciones Ibero-Americana, 1948; HELLER, Agnes, Sociologia della vita quotidiana. Roma: Editore Riuniti, 1975; MITZMAN, Arthur, La Jaula de Hierro. Una Interpretación Histórica de Max Weber. Madrid: Editorial Alianza Universidad, 1976; ESPOSITO, Roberto, Ordine e Conflito. Machiavelli e la Literatura Politica del Rinascimento. Roma: Editore Ligouri, 1984; GINZBURG, Carlo, Miti, Emblemi, Spie. Morfologia e Storia. Torino: Editore Einaudi, 1986; ANDERSON, Benedict Ruth, Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. Revised and extended. 2ª edition. London: Verso Editor, 1991; WEBER, Max, Economia y Sociedad. Esbozo de Sociología Comprensiva. México: Fondo de Cultura Económica, 1992; AUGÉ, Marc, La Guerre des Rêves. Exercices d’Ethno-fiction. Paris: Éditions du Seuil, 1997; COHN, Gabriel, Crítica e Resignação - Max Weber e a Teoria Social. 2ª edição. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003; GOMES, Rita Helena, A Desobediência em Hobbes. Tese de Doutorado em Filosofia. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2007; KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro, Emoções, Sociedade e Cultura: A Categoria de Análise Emoções como objeto de Investigação na Sociologia. Curitiba: Editora CRV, 2009; Idem, “Sociologia e Antropologia dos Corpos e das Emoções”. RBSE - Revista Brasileira de Sociologia da Emoção (Online), v. 11, pp. 645-653, 2012; OLIVEIRA, Cristina Imaculada Santana de, A Comunidade Imaginada da Afrodescendência no contexto da Educação das Relações Etnicorraciais. Dissertação de Mestrado. Prograqma dee Pós-Graduação em Educação Brasileira. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2012;  HOBBES, Thomas, Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. 1ª edição. São Paulo: Editora Martin Claret, 2014; ROCHA, Helio Ronyvon Gomes, O Encontro de Subjetividades em A Pessoa é Para o que Nasce. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2016; entre outros.

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Sérgio Buarque de Holanda - Antiliberalismo & Vivência na História.

                                                                                                    Ubiracy de Souza Braga

       “Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, o contrário da polidez”. Sergio Buarque de Holanda


No âmbito da historiografia Carlos Guilherme Mota observou que depois de 1967, “tornou-se possível o balanço da produção, a avaliação dos trabalhos de Gilberto Freyre – o que não devia ser nada fácil antes dessa época, pelo que se pode verificar no livro comemorativo dos vinte e cinco anos da Casa-Grande & Senzala” (cf. Mota, 1975), tendo em vista o ecletismo entre ensaístas tais como: Astrojildo Pereira, Fernando de Azevedo, Jorge Amado, Antônio Cândido, Miguel Reale, Anísio Teixeira, Luís Viana Filho, Cavalcanti Proença, o que demonstra, sociologicamente, por um lado, o estudo da trajetória e dos vários impactos sociais e políticos na apreensão da obra de Gilberto Freyre sobre os meios intelectuais representando a cristalização de uma ideologia com base no editorialismo, caracterizado do ponto de vista merceológico com “grande poder de difusão”, e por outro, contém ambiguidades daquilo que se poderia denominar uma “geração de explicadores” da cultura brasileira, representando por assim dizer, “uma espécie de caso-limite”.     
Na concepção de Max Weber é um instrumento de análise sociológica para o entendimento da sociedade por parte do cientista social com o objetivo de criar tipologias puras, destituídas de tom avaliativo, de forma a oferecer um recurso analítico baseado em conceitos, como o que é religião, burocracia, economia, capitalismo, dentre outros. Metodologicamente Gilberto Freyre pode ser interpretado como historicista no sentido do approach de Wilhelm Dilthey quando propõe uma abordagem empática da realidade social, que lhe permitiu desenvolver uma interpretação pari passu histórica e sociológica. Seu objetivo é alcançar a subjetividade, é apreender a vida em seu interior. Trata-se em verdade de uma interpretação de uma história política, psicológica, vitalista, dionisíaca e não intelectualista o que não é pouco. A interpretação de seus “tipos inconciliáveis” se faz como é sabido, pelo “accountability” contido nos símbolos &: das obras: “Casa Grande & Senzala”, “Sobrados & Mocambos”, “Ordem & progresso”. Ao formular tipos ideais ele se aproxima de Max Weber; ao interpretá-los, aproxima-se de Georg Simmel. Para compreender a interconexão dos tipos, ele estudou o cotidiano, um campo de pesquisa social efetivamente original e inovador para tempos sombrios.


Vale lembrar que a nação é um produto cultural, político e social que surge na Europa a partir do fim do século XVIII e que se constitui efetivamente em uma “comunidade política imaginada”. Nesse processo de construção histórica, a relação entre o velho e o novo, o passado e o presente, a tradição e a modernidade é uma constante e se reveste de importância fundamental, pois, a nação é uma comunidade de sentimento que normalmente tende a produzir um Estado próprio, é preciso invocar antigas tradições (reais ou inventadas) como fundamento “natural” da identidade nacional que está sendo criada. Isso tende a obscurecer o caráter histórico e relativamente recente dos estados nacionais. Assim como o Estado-nação procura delimitar e zelar por suas fronteiras geopolíticas, ele também se empenha em demarcar suas fronteiras culturais, estabelecendo o que faz e o que não faz parte da nação. Através desse processo se constrói uma identidade nacional que procura dar uma imagem à comunidade abrangida por ela. A consolidação dos Estados-nações é recente. Mesmo em sociedades que parecem ser bem integradas. Mas há casos em que  é representada como se fosse dividido em  duas regiões antagônicas o que é recorrente para o Brasil.                                                
Germanófilo de espírito e coração, Capistrano de Abreu foi, ao lado de Tobias Barreto, dos maiores divulgadores da cultura alemã, e, sem dúvida no campo da história, temos como dívida a introdução de métodos críticos que hoje alguns historiadores procuram seguir. Admirador de Goethe de quem sempre repete ou as palavras do Wilhelm Meister “obrar é fácil, pensar é difícil, obrar segundo seu pensamento ainda mais difícil”, ou as de Fausto “de que não teria o livro lido por aqueles que mais quisera”, Capistrano representa na história das idéias no Brasil uma das mais autênticas imaginações e uma das mais lúcidas consciências. Ele estava convicto – afirma Rodrigues - de que era preciso, pelo menos, “equilibrar a decisiva influência francesa no Brasil com a divulgação do pensamento anglo-germânico”. E nesse sentido seu papel foi plenamente cumprido. Mas para entendermos melhor sua démarche, vale a pena fazermos uma digressão. O motivo da vinda de Capistrano de Abreu para o Rio de Janeiro, “constitui episódio ainda não totalmente esclarecido em sua biografia”. Preparando o ambiente favorável à sua admissão no jornalismo carioca, já em dezembro de 1874, escrevera Alencar uma carta a Bruno Seabra, em que há outra alusão que está sendo formulada a seguir: - “Esse moço que já é fácil e elegante escritor, aspira ao estágio da imprensa desta Corte. Creio eu que, além de granjear nele um prestante colaborador, teria o jornalismo fluminense a fortuna de franquear a um homem de futuro, o caminho da glória, que lhe está obstruindo uns acidentes mínimos”.
Sérgio Buarque de Holanda concluiu o curso de Direito em 1925, pela Universidade do Brasil, depois transformada em Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sem deixar o jornalismo e chegou a ser correspondente internacional dos Diários Associados, na Europa. Entrou em contato com o movimento modernista europeu, através da leitura do sociólogo Max Weber quando presenciou a ascensão do nazismo na Alemanha. De volta ao Brasil passou a ensinar a disciplina História Moderna e Contemporânea na Universidade do Distrito Federal, depois Universidade de Brasília quando publicou Raízes do Brasil (1936; 1995). Distraído, emotivo, irônico, mas disciplinado, lia em seis línguas, cantava tango em alemão e samba em latim. Em suas conversas não sabia onde parar: Roma, Estados Unidos, Idade Média ou Brasil Colônia. Foi diretor do Museu Paulista, professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, das Universidades de Roma, Harvard, Columbia, Yale e outras. Prestigiado internacionalmente, foi para a Itália (1952) e fez parte da cadeira de Estudos Brasileiros na Universidade de Roma, durante dois anos. Tornou-se catedrático de História da Civilização Brasileira, USP (1958), onde permaneceu até sua aposentaria como professor (1969), em solidariedade aos colegas afastados pela ditadura. Foi casado com Maria Amélia Alvim Buarque de Holanda, a Memélia, com quem teve sete filhos: Heloísa Maria (Miucha), Sérgio Filho (Sergito), Álvaro Augusto, Francisco (Chico), Maria do Carmo, Ana Maria e Maria Cristina, e faleceu na cidade de São Paulo.


           
  
            As análises teóricas sobre o legado de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), desencadeadas no centenário de seu nascimento, tiveram o dom de resgatar um capítulo esquecido em sua obra que dedicou a carreira acadêmica a compreender a alma nacional. Trata-se de uma dissertação de mestrado, defendida por Sérgio Buarque em 1958 na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, intitulada: “Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos”. O ensaio adormecia no acervo do historiador, confiado à Unicamp depois de sua morte. Edgar de Decca ficou surpreso e intrigado com o que encontrou. - “Há uma impressionante linha de continuidade entre essa dissertação e o clássico: Raízes do Brasil, publicado em 1936”. Alguma coisa foi alterada na percepção de Sérgio Buarque. Perde força no trabalho de mestrado aquilo que se transformou no traço mais marcante da obra Raízes do Brasil, que representa um ensaio histórico e ideológico sobre o que faltou e o que foi negado na constituição da nossa identidade. Em Raízes, a análise histórica parte do critério da ausência: à nossa cultura faltou uma ética do trabalho disciplinar, o estado racional se ausentou ante o predomínio do patriarcalismo e do paternalismo.
             E, em virtude disso, vicejou o caráter cordial do brasileiro – que privilegia as relações pessoais e busca a intimidade no convívio social, conceito cunhado por Sergio Buarque e confundido com benevolência. Essa exploração humana dos trópicos não se processou, em verdade, por um empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade construtora e enérgica: fez antes com desleixo e certo abandono. Dir-se-ia mesmo que se fez apesar de seus autores. E o reconhecimento desse fato não constitui, para Sérgio Buarque, menoscabo à grandeza do esforço português. Isto porque existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do tipo trabalhador só atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de praticar e, inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro – audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem – tudo, enfim, quanto se relacione com a concepção espaçosa do mundo, característica desse tipo. As energias e esforços que se dirigem a uma recompensa são enaltecidos pelos aventureiros; as energias que visam à estabilidade, à paz, à segurança pessoal e os esforços sem perspectiva de rápido proveito material passam, ao contrário, por viciosos e desprezíveis para eles. Nada lhes parece mais estúpido e mesquinho do que o ideal do trabalhador.
Essa exploração humana dos trópicos não se processou, em verdade, por um empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade construtora e enérgica: fez antes com desleixo e certo abandono. Dir-se-ia mesmo que se fez apesar de seus autores. E o reconhecimento desse fato não constitui, para Sérgio Buarque, menoscabo à grandeza do esforço português. Isto porque existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do tipo trabalhador só atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de praticar e, inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro – audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem – tudo, enfim, quanto se relacione com a concepção espaçosa do mundo, característica desse tipo. Por outro lado, as energias e esforços que se dirigem a uma recompensa imediata são enaltecidos pelos aventureiros; as energias que visam à estabilidade, à paz, à segurança pessoal e os esforços sem perspectiva de rápido proveito material passam, ao contrário, por viciosos e desprezíveis para eles. Nada lhes parece mais estúpido e mesquinho do que o ideal do trabalhador.
Na obra da conquista e colonização dos novos mundos coube ao “trabalhador”, papel muito limitado, quase nulo. A época predispunha aos gestos e façanhas audaciosos, galardoando bem os homens de grandes voos. E não foi fortuita a circunstância de se terem encontrado neste continente, empenhados nessa obra, principalmente as nações onde o tipo do trabalhador, encontrou ambiente menos propício. Essa pouca disposição para o trabalho, ao menos para o trabalho sem compensação próxima, essa indolência, como diz o deão Inge, não sendo evidentemente um estímulo às ações aventurosas, não deixa de constituir, com notável frequência, o aspecto negativo do ânimo quer gera as grandes empresas. Como explicar, sem isso, que os povos ibéricos mostrassem tanta aptidão para a caça aos bens materiais em fins do século XVIII? “Um português” comentava certo viajante em fins do século XVIII, “pode fretar um navio para o Brasil com menos dificuldade do que lhe é preciso para ir de cavalo de Lisboa ao Porto”. E essa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de posições e riquezas fáceis, tão notoriamente característica da gente de nossa terra, não é bem uma das manifestações mais cruas do espírito de aventura?
Nesse ponto, precisamente, os portugueses e seus descendentes imediatos foram inexcedíveis. Procurando recriar aqui o meio de sua origem, fizeram-no com uma facilidade que ainda não encontrou, talvez, segundo exemplo na história. Aos portugueses e, em menor grau, aos castelhanos, coube, sem dúvida, a primazia no emprego do regime que iria servir de modelo à exploração latifundiária e monocultora adotada depois por outros povos. E a boa qualidade das terras do Nordeste brasileiro para a lavoura altamente lucrativa de cana-de-açúcar fez com que essas terras se tornassem o cenário onde, por muito tempo, se elaboraria em seus traços mais nítidos o tipo de organização agrária mais tarde característico das colônias europeias situadas na zona tórrida. E verificou-se, frustradas as primeiras tentativas de emprego do braço indígena, que o recurso mais fácil estaria na introdução de escravos africanos.
O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho. Não foi, por conseguinte, uma civilização tipicamente agrícola o que instauraram os portugueses no Brasil com a lavoura açucareira. Não o foi, em primeiro lugar, porque a tanto não conduzia o o gênio aventureiro que os trouxe á América; em seguida, por causa da escassez da população do reino, que permitisse emigração em larga escala de trabalhadores rurais, e finalmente pela circunstância de a atividade agrícola não ocupar então, em Portugal, posição de primeira grandeza. Poucos indivíduos sabiam dedicar-se a vida inteira a um só mister sem se deixaram atrair por outro negócio aparentemente lucrativo. Mais raros seriam os casos em que um mesmo ofício perdurava na mesma família por mais de uma geração, como acontecia em terras onde a estratificação social alcançara maior grau de estabilidade. Da tradição portuguesa, pouca coisa se conservou entre nós que não tivesse sido modificada ou relaxada pelas condições adversas do meio.
Sérgio Buarque de Holanda, Toquinho e Vinicius de Moraes. Arquivo UNICAMP.  
A família patriarcal fornece, assim, o grande modelo por onde se hão de calcar, na vida política, as relações entre governantes e governados, entre monarcas e súditos. Uma lei moral inflexível, superior a todos os cálculos e vontades dos homens, pode regular a boa harmonia do corpo social, e, portanto deve ser rigorosamente respeitada e cumprida. Esse rígido paternalismo é tudo quanto se poderia esperar de mais oposto, não já as ideias da França revolucionária. Mas tradicionalistas e iconoclastas que se movem, em realidade, na mesma órbita de ideias. Estes, não menos do que aqueles, mostram-se fiéis preservadores do legado colonial, e as diferenças que os separam entre si são unicamente de forma e superfície. O caráter puramente exterior, epidérmico, de numerosas agitações sociais ocorridas entre nós durante os anos que antecederam e sucederam à Independência de 1822 (ou emancipação), demonstra o quanto era difícil ultrapassarem-se os limites que à nossa vida política tinham traçado certas condições específicas geradas pela colonização.
É neste sentido que se insere o romance de Chico Buarque, Leite Derramado (2010; 2013). Um homem muito velho está num leito de hospital. Membro de uma tradicional família brasileira, ele desfia, num monólogo dirigido à filha, às enfermeiras e a quem quiser ouvir, a história social de sua linhagem desde os ancestrais portugueses, passando por um barão do Império, um senador das Oligarquias até o descendente “garotão”, um tipo social da cidade do Rio de Janeiro. Uma saga familiar caracterizada pela decadência social e econômica, tendo como pano de fundo a história do Brasil dos últimos dois séculos. A weltanschauung que o autor nos oferece da sociedade brasileira é extremamente pessimista: compadrios, preconceitos de classe e de raça, machismo, oportunismo, corrupção, destruição da natureza, delinquência. A saga familiar marcada pela decadência é um gênero consagrado no romance ocidental moderno.
Há também um jogo com os espaços onde ocorrem os acontecimentos narrados. As várias casas em que o narrador morou, como as décadas acumuladas em suas lembranças, se sobrepõem e se revezam. Recolocá-las em ordem cronológica é assistir a uma derrocada pessoal e coletiva: o chalé de Copacabana, “longínquo areal” dos anos 20, é substituído por um apartamento num edifício construído atrás de seu terreno; esse apartamento é trocado por outro, menor, na Tijuca; o palacete familiar de Botafogo, vendido, torna-se estacionamento de embaixada; a fazenda da infância, na “raiz da serra”, transforma-se em favela, com um barulhento templo evangélico da velha igreja outrora consagrada pelo bispo. Embaixo da última morada do narrador, nesse “endereço de gente desclassificada”, está o antigo cemitério onde jaz seu avô.
Vale lembrar que mesmo em seus melhores momentos, a obra realizada pelos portugueses, segundo Sérgio Buarque, teve um caráter mais acentuado de “feitorização do que de colonização”. Não convinha que se fizessem grandes obras, ao menos quando não produzissem imediatos benefícios. Nada que acarretasse maiores despesas ou resultasse em prejuízo para a metrópole. Na realidade o exclusivismo dos castelhanos, em contraste com a relativa liberalidade dos portugueses, constitui parte obrigatória, inalienável de seu sistema. Compreende-se que, para a legislação castelhana, deva ter parecido indesejável, como prejudicial à boa disciplina dos súditos, o trato e convívio de estrangeiros em terras de tão recente conquista e de domínio tão mal assente. Essa liberalidade dos portugueses pode parecer, em comparação, uma atitude negativa, mal definida, e que porviria, em parte, de sua moral interessada, moral de negociantes, embora de negociantes ainda sujeitos, por muitos e poderosos laços, à tradição medieval. Pouco importa que seja frouxa e insegura a disciplina fora daquilo que os freios podem melhor aproveitar, e imediatamente, aos seus interesses terrenos. A rotina e não a razão abstrata foi o princípio que norteou os portugueses, nesta como em tantas outras formas de colonização. Preferiam agir por experiências sucessivas, nem sempre coordenadas umas às outras, a traçar de antemão um plano para segui-lo até ao fim.
No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização – que resulta unicamente no crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influências das cidades – ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos até hoje. Já se disse, numa expressão feliz, afirma Sérgio Buarque, “que a contribuição brasileira para a civilização será a de cordialidade – daremos ao mundo o homem cordial. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar ´boas maneiras`, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um lado emotivo extremamente rico e transbordante. Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida d que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no “homem  cordial”: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas sua sensibilidade e suas emoções.   
Em 1936, obteve o cargo de professor assistente da Universidade do Distrito Federal, incorporada depois na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, atual UFRJ, não se confundindo com a Universidade do Distrito Federal criada posteriormente e que deu origem a Universidade do Estado da Guanabara e depois a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em 1939, extinta a Universidade do Distrito Federal, passou a trabalhar na burocracia federal. Em 1941, passou uma longa temporada trabalhando como Visiting Scholar em diversas universidades dos Estados Unidos da América (EUA). Reuniu, no volume intitulado “Cobra de Vidro”, em 1944, uma série de artigos e ensaios que anteriormente publicara nos meios de imprensa. Publicou, em 1945 e 1957, respectivamente, “Monções” e “Caminhos e Fronteiras”, que consistem em coletâneas de análises historiográficas sobre a expansão oeste da colonização da América Portuguesa entre os séculos XVII e XVIII. No contexto da “História Geral da Civilização Brasileira”, publicou, em 1972, “Do Império à República”, texto que, a princípio, fora concebido como um simples artigo para a coletânea, mas que, com o decurso da pesquisa, acabou por ser ampliado num volume independente. Trata-se de um trabalho analítico, interpretativo de história social e política que aborda a crise do império brasileiro no final do século XIX, explicando-a como resultante da corrosão do mecanismo fundamental de sustentação deste regime: o poder pessoal do imperador.

                       
Em 1946, voltou a residir em São Paulo, para assumir a direção do Museu Paulista, que ocuparia até 1956, sucedendo então ao seu antigo professor escolar Afonso Taunay. Em 1948, passou a lecionar na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, na cátedra de História Econômica do Brasil, em substituição a Roberto Simonsen. Viveu na Itália entre 1953 e 1955, onde esteve a cargo da cátedra de Estudos Brasileiros da Universidade de Roma. Esse processo ganhou maior estrutura quando a Divisão Cultural do Itamaraty, ligada ao Ministério das Relações Exteriores e responsável pela política cultural externa do país, deu ênfase ao projeto de fundação de cátedras de Estudos Brasileiros em cerca de 15 universidades no exterior, entre 1952 e 1955. Em 1958, Sérgio Buarque de Holanda assumiu a cadeira de História da Civilização Brasileira, agora na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. O concurso para esta vaga motivou-o a escrever “Visão do Paraíso”, livro que publicou em 1959, no qual analisa aspectos do imaginário individual (os sonhos) e coletivo (os mitos, os ritos, os símbolos) europeu à época da conquista.
       Ainda em 1958, ingressou na Academia Paulista de Letras e recebeu o “Prêmio Edgar Cavalheiro”, do Instituto Nacional do Livro, pelo ensaio: “Caminhos e Fronteiras”. Permaneceu intelectualmente ativo até 1982, tendo ainda, neste último decênio, publicado diversos textos. De 1975 é o volume “Vale do Paraíba - Velhas Fazendas” e de 1979, a coletânea “Tentativas de Mitologia”. Nestes últimos anos, trabalhou também na reelaboração do texto de “Do Império à República” - que não chegou a concluir. Recebeu em 1980 tanto o Prêmio Juca Pato, da União Brasileira de Escritores, quanto o Prêmio Jabuti de Literatura, da Câmara Brasileira do Livro. Também em 1980, participou da cerimônia de fundação do Partido dos Trabalhadores, recebendo a terceira carteira de filiação do partido, após Mário Pedrosa e Antonio Candido. Por conta de sua participação no PT e na condição de intelectual destacado é que o centro de documentação e memória da Fundação Perseu Abramo, fundação de apoio partidária instituída pelo Partido dos Trabalhadores em 1996, recebe seu nome: Centro Sérgio Buarque de Holanda: Documentação e Memória Política. Morreu em São Paulo em 24 de abril de 1982. Existe um navio batizado em seu nome, que foi construído em 2012.
Bibliografia geral consultada.

HOLANDA, Sérgio Buarque de, Raízes do Brasil. 1ª edição. São Paulo: Livraria José Olympio Editores, 1936; Idem, Visão do Paraíso. 2ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional/Edusp, 1969; DILTHEY, Wilhelm, El Mundo Histórico. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 1947; CLARA, Fernando, “Experiência-Vivência. Dilthey e as Humanidades: Um Olhar Retrospectivo”. Disponível em: Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n° 19. Lisboa: Edições Colibri, 2007, pp. 35-48; WAIZBORT, Leopoldo, O mal-entendido da democracia: Sérgio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil, 1936. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, vol. 26, n° 76, 2011, pp. 39-62; BUARQUE, Chico, Leche Derramada. Tradução espanhola de Ana Rita da Costa García. Barcelona: Ediciones Salamandra, 2010; Idem, Vergossene Milch. Tradução alemã de Karin von Schweder-Schreiner. Frankfurt am Main: Samuel Fischer, 2013; PIMENTEL, Vanuccio Medeiros, A Primazia dos Clãs: A Família na Política Nordestina. Tese de Doutorado em Ciência Política. Universidade Federal de Pernambuco: Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, 2013;  HIDALGO, Yaremis da Trinidade; CRUZ, Yenisey López, “La Hermenéutica en el Pensamiento de Wilhelm Dilthey”. Disponível em: Griot - Revista de Filosofia. Santiago de Cuba,  volume11, n°1, junho/2015; Revista do Brasil. Número Especial: Ano 3, n° 6/87, dedicado a Sérgio Buarque de Holanda, 1935; SILVA, Rafael Pereira da, A Morte do Homem Cordial: Trajetória e Memória na Invenção de um Personagem (Sérgio Buarque de Holanda 1902-1982). Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2015; RIBEIRO, Douglas Carvalho, As Raízes antiliberais de Sérgio Buarque de Holanda: Carl Schmitt em Raízes do Brasil. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Direito. Faculdade de Direito. Belo Horizonte: Universidade Federald e Minas Gerais, 2017; ASSIS, Gabriela Lima de, Raízes do Paraíso: Uma Análise Whiteana de Sérgio Buarque de Holanda. Tese de Doutorado em História. Instituto de Geografia, História e Documentação. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2017; entre outros.