Ubiracy de Souza Braga
“Ce n`est plus la fiction qui imite le réel
mais le réel qui reproduit la fiction”. Marc Augé
O
conceito descrito sociologicamente por Benedict Anderson, “Imagined Communities”,
inicialmente publicado em 1983 e reeditado em 1991, com diversas correções e
adição de capítulos, embora tenha sido cunhado especificamente para tratar do âmbito
conceitual do nacionalismo, ele passou a ser generalizado, no nível de análise
teórica quase como um sinônimo político de “comunidade de interesse”. Ele pode
ser utilizado, por exemplo, para se referir a uma comunidade baseada em
orientação sexual, ou consciência de fatores de risco global. Mas
metodologicamente, uma “comunidade imaginada” difere de uma comunidade real,
pois não se baseia em interação social de seus membros, e por razões práticas
não pode fazê-lo: Anderson chega a mencionar que nada maior que um vilarejo
pode ser uma “comunidade real”, já que é impossível que todos seus membros se conheçam.
Nação é um exemplo de comunidade socialmente construída, imaginada por pessoas
que percebem a si próprias como parte de um grupo.
Como
Anderson afirma, essa comunidade tem como representação a ideia de que é
imaginada, pois os membros de uma nação, mesmo da menor delas, nunca conhecerão
a maioria de seus conterrâneos, nunca os encontrarão ou, até mesmo, ouvirão a
seu respeito. Ainda assim, eles terão em suas mentes a imagem de sua comunhão.
Membros de uma comunidade, apesar da potencial impossibilidade de interação
real uns com os outros, não deixam de compartilhar interesses ou aspectos
identitários comuns. A mídia, por exemplo, cria e mantém comunidades
imaginadas, embora geralmente o faça voltando à sua interação através dos meios
que proporcionam a imaginação, como se estivesse referindo à totalidade de
cidadãos de um país. A origem significativa do conceito de nação para Anderson
e historiadores opostos como Eric Hobsbawm e Ernest Gellner, ambos analisados
em “Imagined Communities”, é uma representação da Modernidade. De acordo com Anderson, para que a concepção de nação e nacionalismo surgisse, foram
necessárias três mudanças históricas centrais.
O primeiro deles decorreu da ideia de
que uma particular linguagem de escrita oferecia acesso privilegiado à verdade “ontologicamente
situada”, precisamente por que tal linguagem era uma parcela inseparável desta
verdade. O segundo desses conceitos decorreu da crença que a sociedade seria “naturalmente
organizada” ao redor e sob potestades,
isto é, sob monarcas que eram pessoas à parte de outros seres humanos e que
governavam por alguma forma de deliberação cosmológica (divina). O terceiro
decorreu de uma concepção de temporalidade em que a cosmologia e a história
eram indistinguíveis, e a origem tanto do mundo quanto dos homens era
essencialmente idêntica. Combinadas, essas ideias enraizaram firmemente as
vidas dos homens na natureza das coisas, dando significado para as fatalidades
cotidianas da existência, sobretudo, a morte, a perda e a servidão, oferecendo
de diversas formas redenção delas.
A tópica da descritibilidade pode ser vista no filme dirigido por Kore-Eda
Hirokazu, “Nossa Irmã Mais Nova” (2015), de título original: “Umimachi Diary”, em
que Sachi (Haruka Ayase), Yoshino (Masami Nagasawa) e Chika (Kaho) são irmãs e
vivem juntas em uma casa que pertence à família há tempos. Apesar de não verem
o pai há 15 anos, elas resolvem ir “ao rito de passagem de seu enterro” (cf.
Koury, 2009; 2012). Lá, elas conhecem a adolescente Suzu Asano (Suzu Hirose), a
meia irmã mais nova que aos poucos entende como é a vida. Mesmo tão nova,
possui vasta experiência em superar dificuldades. É ótima jogadora de futebol,
comunicativa e sincera. Logo as três irmãs convidam Suzu para que more com
elas. O convite é aceito e, a partir de então, elas passam a conviver juntas e
aprendem os pontos sensíveis numa “comunidade imaginada” relacionada à memória
ao pai em comum. Hirokazu Kore-Eda analisa a valorização da vida como uma
experiência baseada na relação dialética entre alegria e sofrimento,
representados por momentos de felicidade e dor não só inevitáveis como parte fundamental
de nossa existência sobre o “cotidiano” (cf. Heller, 1975), na medida em que o dia-a-dia
desconstrua o estereótipo, retratando-o com uma visão poética, plena da beleza dos
detalhes, como o flanelódromo surge diante de nós e que marca o nascimento das
irmãs e vinda da “irmã mais nova”, pois é ao mesmo tempo sutil, fascinante e
melancólico, mas por vezes turbulento e trágico no sentido nietzschiano.
Em
“Nossa Irmã Mais Nova”, nos deparamos com as experiências e dilemas
existenciais. A delicadeza com a qual o cineasta Kore-Eda constrói seu universo,
com simplicidade nos emociona no quadro de pensamento das quatro irmãs que as
irmãs protagonizam o filme. Personagens que individualizam as referências, e ipso facto
geram uma compaixão a ponto de sentirmos suas alegrias e suas tristezas como
extraordinariamente faz o diretor com elegância, prudência e maestria. Uma das grandes
marcas de Hirokazu Kore-Eda, o drama familiar, volta à cena. Atrelado à
família, estão laços pessoais que são quase impossíveis ignorá-los. A perda e o
vazio, outro fator crucial para a filmografia de Kore-Eda retorna também em
seus adoráveis personagens imperfeitos. Em “Nossa Irmã Mais Nova”, é a partir
desses elementos que de fato os personagens são equilibrados na antítese dialética referida sobre a alegria e
sofrimento, a qual a vida prevalentemente se baseia, o que é capaz de levar o
espectador a refletir sobre o quão poderoso é compreender o sentido da vida, e
assim poder experimentar a lacuna deixada por um ente querido, como no caso familiar
das irmãs, seus pais aparentemente não correspondem ao afeto desejado por elas.
Vale lembrar que Zusu, a irmã mais nova, vivia com o pai até que este morre, e
então parte da pequena cidade em que viviam para morar com suas outras três
irmãs mais velhas.
Heráclito
responde a estas questões através da dialética. Para o filósofo de Éfeso, “o
combate é de todas as coisas pai, de todas rei”. As coisas mudam porque existe
uma tensão de forças contrárias dentro delas, como o mel que é, a um só tempo,
doce e amargo. É a tensão dos contrários no interior da coisa que põe tudo em
movimento. Admirável é que a tensão entre os contrários não produz destruição
das forças em conflito, mas harmonia: “o contrário é convergente e dos
convergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a discórdia”. A forma
como ela fica desconfortada ao demonstrar o que sente e o fato social de
imaginar seu deslocamento daquele contexto é expresso com tamanha inocência que
chega a ser inevitável não sentir a perda. Essa inocência é repetida em quase todos
os conflitos vividos pelas protagonistas, que durante o filme irão buscar a
harmonia entre seguidos descontentamentos e prazeres.
Neste
sentido difere de “consubstancialidade” que é o correspondente ao termo grego ὁμοούσιος (“homoousios”), termo
original que designa essa realidade.
Este termo provém da junção de ὁμός
(“homos”), significando “o mesmo”, e ούσιος
(“ousios”), proveniente de οὐσία (“ousía”),
substância ou essência. Assim, o termo tem o sentido de “da mesma substância,
com a mesma essência”. O correspondente em latim é “consubstantialis”, do qual
deriva na língua portuguesa, “consubstancial”. No entanto, podemos entender que
tal tradução não exprime perfeitamente o sentido e o significado do termo
grego. O vocábulo latino é composto por “cum” e “substantia”, o que quer dizer
que favorece “cum”, com o sentido de “com”, simultaneidade, que não exprime rigorosamente
o mesmo sentido de “homos”. Do mesmo modo, “substantia” pode não corresponder
perfeitamente a “ousía”, na medida em que cada um dos termos pressupõe
determinado sistema ontológico, que
varia conforme a cultura mediante a qual se insere.
Historicamente o vocábulo foi
introduzido na confissão da fé católica pelo Primeiro Concílio de Niceia, em 325. A sua adoção está diretamente
ligada à heresia dos arianos. Este grupo de hereges, cujo precursor foi Ario,
presbítero de Alexandria, negava a divindade de Jesus Cristo. O Verbo de Deus,
para ele, merecia esse nome apenas segundo a nossa forma de imaginação, pois
era uma criatura, tal como nós, mas criada antes de tudo. Por ser uma criatura
perfeita, Deus colocou-o acima de todos, pois sabia que ele jamais pecaria.
Assim, a filiação de Jesus Cristo era apenas adotiva, do que resultava que o Pai o era apenas em sentido
figurado. A isto, a Igreja respondeu reafirmando a divindade do Filho e o
carácter próprio da paternidade de Deus Pai. Portanto, serviu-se de várias
expressões, mas todas elas foram contestadas pelos arianos, que as
interpretavam sempre como uma ofensa ao monoteísmo. É neste sentido que para
exprimir o conceito que descrevia a natureza da divindade de Jesus e a sua
relação com a divindade do Pai, o Concílio de Niceia aplicou o termo “homoousios”.
O diretor japonês Hirokazu Kore-Eda
tem uma predileção especial por questões familiares, como demonstra sua filmografia.
É ele o responsável por “Ninguém Pode Saber” (“Dare mo sihranai”, Japão, 2004) em
que apresenta seu argumento articulado por meio da linguagem, constituída pela
luz, esverdeada às vezes, neutra a maior parte do tempo, pelo enquadramento de
partes dos corpos (das mãos principalmente) e da disposição dos corpos em
espaços (internos e externos), pela escolha dos olhares como principal
matéria-prima expressiva e pelo tempo cultivado em cada cena para muito além do
caráter descritivo da ação, que a veracidade será construída. E em “Pais &
Filhos” (2013), onde demonstra como um casal lida com uma descoberta inusitada
e cruel: seu filho de 6 anos, foi
trocado na maternidade. Entretanto, por ser um problema recorrente da
modernidade, se propõe a discutir os dilemas práticos e morais de desfazer ou
não o erro da maternidade, e neste caso e arcar com as consequências dessa
escolha, acrescentando o valor genético e emocional nessa complexa equação da
vida real.
Ambos
são premiados no Festival de Cannes, cujas histórias trazem conflitos que
envolvem pais ausentes e filhos que precisam lidar com adversidades repentinas,
mas com uma novidade: Kore-Eda busca desde o início a comunhão dos personagens.
O cineasta usa do tom bucólico e ameno para acompanhar o cotidiano de suas
personagens principais, com leves alterações decorrentes de novos e velhos
amores, perda de amigos e ressurgimento de parentes. Queremos dizer com isto
que “ousía”, no sentido de essência, tanto pode designar a essência individual como a essência do gênero.
Além disso, não se aplica a Deus do mesmo modo que se pode aplicar aos entes corpóreos. O conceito de “homoousios”
foi também aplicado ao Espírito Santo, para exprimir a sua relação com o Pai e
o Filho: a mesma essência divina, sem divisão. No entanto, enquanto que o Filho
é gerado, o Espírito Santo existe por processão. O vocábulo não existe na
Bíblia, mas foi tomado de empréstimo na história social representada pela
filosofia grega com o início de uma linguagem teológica própria e oficial da
Igreja.
Neste
último sentido, a Igreja pode ser entendida como uma pessoa, para Hobbes (2014:
360), isto é, que ela tenha o poder de querer, de pronunciar, de ordenar, de
ser obedecida, de fazer leis ou de praticar qualquer espécie de ação. Se não
existir a autoridade de uma congregação legítima, qualquer ato praticado por um
conjunto de pessoas é um ato individual de cada um dos presentes que
contribuíram para a prática desse ato. Não um ato conjunto, como se fosse de um
só corpo. Não é um ato dos ausentes ou daqueles que, estando presentes, eram
contra a sua prática. Uma Igreja pode assim ser definida como um conjunto de
pessoas que professam a religião cristã, ligadas à pessoa de um soberano, que
ordena a reunião e que determina quando não deverá haver reunião. Tendo em
vista que em todos os Estados semelhantes assembleias são ilegítimas, se não
são autorizadas pelo soberano civil, o que constitui também uma assembleia
ilegítima a reunião da Igreja em qualquer Estado em que tiver sido proibida.
O
filme: “Nossa Irmã Mais Nova” aborda a diversidade das questões sociais com
profundidade, mas também distância. O primeiro ponto é o abandono familiar.
Todas tem um passado triste, passaram por algum desprezo em determinado ponto
da vida. Apesar de ser um drama familiar, cada uma delas tem maturidade o bastante
para lidar com os problemas, em especial Suzu, a mais nova. São jovens mulheres
de idades diferentes, com ideais diferentes, mas com um amor incondicional pela
família (base de tudo) e pela alegria e solidariedade uma com as outras. Todas
se apegam a algum fato presente na memória em específico do passado recente para
tentar lidar com as situações presentes, fazendo do filme “Nossa Irmã Mais Nova”
uma verdadeira lição de vida expressa em sua cotidianidade. É um tributo aos valores tradicionais
japoneses como o respeito, harmonia e perdão. É também um filme que respira
tradição: As irmãs vivem em uma casa tradicional japonesa, elas comem pratos
típicos como fabricação caseira de macarrão, e regularmente eles vão para um
pequeno restaurante tradicional.
Bibliografia
geral consultada:
SARTRE,
Jean-Paul, Lo Imaginario - Psicologia
Fenomenologica de la Imaginacion. Buenos Aires: Ediciones Ibero-Americana,
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ESPOSITO, Roberto, Ordine e Conflito.
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Verso Editor, 1991; WEBER, Max, Economia
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Eu não compreendi o título: "Ruth Benedict Anderson - Cinema & Comunidades Imaginadas".
ResponderExcluirQue relação existe entre Ruth Benedict e Benedict Anderson?
Bom, em primeiro lugar, desculpe-nos a demora em te responder. Em segundo, eu creio que a coincidência refere-se às formas de citação em inglês e português. De todo modo, caso tenha interesse na pesquisa sobre o tema, envie-me outro comentário, para que possa melhor a edição do ensaio.
ExcluirObrigado
Ubiracy de Souza Braga