domingo, 23 de julho de 2017

Benedict Anderson - Cinema & Comunidades Imaginadas

                                                                                                    Ubiracy de Souza Braga

Ce n`est plus la fiction qui imite le réel mais le réel qui reproduit la fiction”. Marc Augé

             
O conceito descrito sociologicamente por Benedict Anderson, “Imagined Communities”, inicialmente publicado em 1983 e reeditado em 1991, com diversas correções e adição de capítulos, embora tenha sido cunhado especificamente para tratar do âmbito conceitual do nacionalismo, ele passou a ser generalizado, no nível de análise teórica quase como um sinônimo político de “comunidade de interesse”. Ele pode ser utilizado, por exemplo, para se referir a uma comunidade baseada em orientação sexual, ou consciência de fatores de risco global. Mas metodologicamente, uma “comunidade imaginada” difere de uma comunidade real, pois não se baseia em interação social de seus membros, e por razões práticas não pode fazê-lo: Anderson chega a mencionar que nada maior que um vilarejo pode ser uma “comunidade real”, já que é impossível que todos seus membros se conheçam. Nação é um exemplo de comunidade socialmente construída, imaginada por pessoas que percebem a si próprias como parte de um grupo.  
Como Anderson afirma, essa comunidade tem como representação a ideia de que é imaginada, pois os membros de uma nação, mesmo da menor delas, nunca conhecerão a maioria de seus conterrâneos, nunca os encontrarão ou, até mesmo, ouvirão a seu respeito. Ainda assim, eles terão em suas mentes a imagem de sua comunhão. Membros de uma comunidade, apesar da potencial impossibilidade de interação real uns com os outros, não deixam de compartilhar interesses ou aspectos identitários comuns. A mídia, por exemplo, cria e mantém comunidades imaginadas, embora geralmente o faça voltando à sua interação através dos meios que proporcionam a imaginação, como se estivesse referindo à totalidade de cidadãos de um país. A origem significativa do conceito de nação para Anderson e historiadores opostos como Eric Hobsbawm e Ernest Gellner, ambos analisados em “Imagined Communities”, é uma representação da Modernidade. De acordo com Anderson, para que a concepção  de nação e nacionalismo surgisse, foram necessárias três mudanças históricas centrais.

 
            O primeiro deles decorreu da ideia de que uma particular linguagem de escrita oferecia acesso privilegiado à verdade “ontologicamente situada”, precisamente por que tal linguagem era uma parcela inseparável desta verdade. O segundo desses conceitos decorreu da crença que a sociedade seria “naturalmente organizada” ao redor e sob potestades, isto é, sob monarcas que eram pessoas à parte de outros seres humanos e que governavam por alguma forma de deliberação cosmológica (divina). O terceiro decorreu de uma concepção de temporalidade em que a cosmologia e a história eram indistinguíveis, e a origem tanto do mundo quanto dos homens era essencialmente idêntica. Combinadas, essas ideias enraizaram firmemente as vidas dos homens na natureza das coisas, dando significado para as fatalidades cotidianas da existência, sobretudo, a morte, a perda e a servidão, oferecendo de diversas formas redenção delas.
            A tópica da descritibilidade pode ser vista no filme dirigido por Kore-Eda Hirokazu, “Nossa Irmã Mais Nova” (2015), de título original: “Umimachi Diary”, em que Sachi (Haruka Ayase), Yoshino (Masami Nagasawa) e Chika (Kaho) são irmãs e vivem juntas em uma casa que pertence à família há tempos. Apesar de não verem o pai há 15 anos, elas resolvem ir “ao rito de passagem de seu enterro” (cf. Koury, 2009; 2012). Lá, elas conhecem a adolescente Suzu Asano (Suzu Hirose), a meia irmã mais nova que aos poucos entende como é a vida. Mesmo tão nova, possui vasta experiência em superar dificuldades. É ótima jogadora de futebol, comunicativa e sincera. Logo as três irmãs convidam Suzu para que more com elas. O convite é aceito e, a partir de então, elas passam a conviver juntas e aprendem os pontos sensíveis numa “comunidade imaginada” relacionada à memória ao pai em comum. Hirokazu Kore-Eda analisa a valorização da vida como uma experiência baseada na relação dialética entre alegria e sofrimento, representados por momentos de felicidade e dor não só inevitáveis como parte fundamental de nossa existência sobre o “cotidiano” (cf. Heller, 1975), na medida em que o dia-a-dia desconstrua o estereótipo, retratando-o com uma visão poética, plena da beleza dos detalhes, como o flanelódromo surge diante de nós e que marca o nascimento das irmãs e vinda da “irmã mais nova”, pois é ao mesmo tempo sutil, fascinante e melancólico, mas por vezes turbulento e trágico no sentido nietzschiano.


Em “Nossa Irmã Mais Nova”, nos deparamos com as experiências e dilemas existenciais. A delicadeza com a qual o cineasta Kore-Eda constrói seu universo, com simplicidade nos emociona no quadro de pensamento das quatro irmãs que as irmãs protagonizam o filme. Personagens que individualizam as referências, e ipso facto geram uma compaixão a ponto de sentirmos suas alegrias e suas tristezas como extraordinariamente faz o diretor com elegância, prudência e maestria. Uma das grandes marcas de Hirokazu Kore-Eda, o drama familiar, volta à cena. Atrelado à família, estão laços pessoais que são quase impossíveis ignorá-los. A perda e o vazio, outro fator crucial para a filmografia de Kore-Eda retorna também em seus adoráveis personagens imperfeitos. Em “Nossa Irmã Mais Nova”, é a partir desses elementos que de fato os personagens são equilibrados na antítese dialética referida sobre a alegria e sofrimento, a qual a vida prevalentemente se baseia, o que é capaz de levar o espectador a refletir sobre o quão poderoso é compreender o sentido da vida, e assim poder experimentar a lacuna deixada por um ente querido, como no caso familiar das irmãs, seus pais aparentemente não correspondem ao afeto desejado por elas. Vale lembrar que Zusu, a irmã mais nova, vivia com o pai até que este morre, e então parte da pequena cidade em que viviam para morar com suas outras três irmãs mais velhas.                     
Heráclito responde a estas questões através da dialética. Para o filósofo de Éfeso, “o combate é de todas as coisas pai, de todas rei”. As coisas mudam porque existe uma tensão de forças contrárias dentro delas, como o mel que é, a um só tempo, doce e amargo. É a tensão dos contrários no interior da coisa que põe tudo em movimento. Admirável é que a tensão entre os contrários não produz destruição das forças em conflito, mas harmonia: “o contrário é convergente e dos convergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a discórdia”. A forma como ela fica desconfortada ao demonstrar o que sente e o fato social de imaginar seu deslocamento daquele contexto é expresso com tamanha inocência que chega a ser inevitável não sentir a perda. Essa inocência é repetida em quase todos os conflitos vividos pelas protagonistas, que durante o filme irão buscar a harmonia entre seguidos descontentamentos e prazeres.
Neste sentido difere de “consubstancialidade” que é o correspondente ao termo grego ὁμοούσιος (“homoousios”), termo original que designa essa realidade. Este termo provém da junção de ὁμός (“homos”), significando “o mesmo”, e ούσιος (“ousios”), proveniente de οὐσία (“ousía”), substância ou essência. Assim, o termo tem o sentido de “da mesma substância, com a mesma essência”. O correspondente em latim é “consubstantialis”, do qual deriva na língua portuguesa, “consubstancial”. No entanto, podemos entender que tal tradução não exprime perfeitamente o sentido e o significado do termo grego. O vocábulo latino é composto por “cum” e “substantia”, o que quer dizer que favorece “cum”, com o sentido de “com”, simultaneidade, que não exprime rigorosamente o mesmo sentido de “homos”. Do mesmo modo, “substantia” pode não corresponder perfeitamente a “ousía”, na medida em que cada um dos termos pressupõe determinado sistema ontológico, que varia conforme a cultura mediante a qual se insere.
            Historicamente o vocábulo foi introduzido na confissão da fé católica pelo Primeiro Concílio de Niceia, em 325. A sua adoção está diretamente ligada à heresia dos arianos. Este grupo de hereges, cujo precursor foi Ario, presbítero de Alexandria, negava a divindade de Jesus Cristo. O Verbo de Deus, para ele, merecia esse nome apenas segundo a nossa forma de imaginação, pois era uma criatura, tal como nós, mas criada antes de tudo. Por ser uma criatura perfeita, Deus colocou-o acima de todos, pois sabia que ele jamais pecaria. Assim, a filiação de Jesus Cristo era apenas adotiva, do que resultava que o Pai o era apenas em sentido figurado. A isto, a Igreja respondeu reafirmando a divindade do Filho e o carácter próprio da paternidade de Deus Pai. Portanto, serviu-se de várias expressões, mas todas elas foram contestadas pelos arianos, que as interpretavam sempre como uma ofensa ao monoteísmo. É neste sentido que para exprimir o conceito que descrevia a natureza da divindade de Jesus e a sua relação com a divindade do Pai, o Concílio de Niceia aplicou o termo “homoousios”.
                         
            O diretor japonês Hirokazu Kore-Eda tem uma predileção especial por questões familiares, como demonstra sua filmografia. É ele o responsável por “Ninguém Pode Saber” (“Dare mo sihranai”, Japão, 2004) em que apresenta seu argumento articulado por meio da linguagem, constituída pela luz, esverdeada às vezes, neutra a maior parte do tempo, pelo enquadramento de partes dos corpos (das mãos principalmente) e da disposição dos corpos em espaços (internos e externos), pela escolha dos olhares como principal matéria-prima expressiva e pelo tempo cultivado em cada cena para muito além do caráter descritivo da ação, que a veracidade será construída. E em “Pais & Filhos” (2013), onde demonstra como um casal lida com uma descoberta inusitada e cruel: seu filho de 6 anos,  foi trocado na maternidade. Entretanto, por ser um problema recorrente da modernidade, se propõe a discutir os dilemas práticos e morais de desfazer ou não o erro da maternidade, e neste caso e arcar com as consequências dessa escolha, acrescentando o valor genético e emocional nessa complexa equação da vida real.
Ambos são premiados no Festival de Cannes, cujas histórias trazem conflitos que envolvem pais ausentes e filhos que precisam lidar com adversidades repentinas, mas com uma novidade: Kore-Eda busca desde o início a comunhão dos personagens. O cineasta usa do tom bucólico e ameno para acompanhar o cotidiano de suas personagens principais, com leves alterações decorrentes de novos e velhos amores, perda de amigos e ressurgimento de parentes. Queremos dizer com isto que “ousía”, no sentido de essência, tanto pode designar a essência individual como a essência do gênero. Além disso, não se aplica a Deus do mesmo modo que se pode aplicar aos entes corpóreos. O conceito de “homoousios” foi também aplicado ao Espírito Santo, para exprimir a sua relação com o Pai e o Filho: a mesma essência divina, sem divisão. No entanto, enquanto que o Filho é gerado, o Espírito Santo existe por processão. O vocábulo não existe na Bíblia, mas foi tomado de empréstimo na história social representada pela filosofia grega com o início de uma linguagem teológica própria e oficial da Igreja.


           
Neste último sentido, a Igreja pode ser entendida como uma pessoa, para Hobbes (2014: 360), isto é, que ela tenha o poder de querer, de pronunciar, de ordenar, de ser obedecida, de fazer leis ou de praticar qualquer espécie de ação. Se não existir a autoridade de uma congregação legítima, qualquer ato praticado por um conjunto de pessoas é um ato individual de cada um dos presentes que contribuíram para a prática desse ato. Não um ato conjunto, como se fosse de um só corpo. Não é um ato dos ausentes ou daqueles que, estando presentes, eram contra a sua prática. Uma Igreja pode assim ser definida como um conjunto de pessoas que professam a religião cristã, ligadas à pessoa de um soberano, que ordena a reunião e que determina quando não deverá haver reunião. Tendo em vista que em todos os Estados semelhantes assembleias são ilegítimas, se não são autorizadas pelo soberano civil, o que constitui também uma assembleia ilegítima a reunião da Igreja em qualquer Estado em que tiver sido proibida.
O filme: “Nossa Irmã Mais Nova” aborda a diversidade das questões sociais com profundidade, mas também distância. O primeiro ponto é o abandono familiar. Todas tem um passado triste, passaram por algum desprezo em determinado ponto da vida. Apesar de ser um drama familiar, cada uma delas tem maturidade o bastante para lidar com os problemas, em especial Suzu, a mais nova. São jovens mulheres de idades diferentes, com ideais diferentes, mas com um amor incondicional pela família (base de tudo) e pela alegria e solidariedade uma com as outras. Todas se apegam a algum fato presente na memória em específico do passado recente para tentar lidar com as situações presentes, fazendo do filme “Nossa Irmã Mais Nova” uma verdadeira lição de vida expressa em sua cotidianidade.  É um tributo aos valores tradicionais japoneses como o respeito, harmonia e perdão. É também um filme que respira tradição: As irmãs vivem em uma casa tradicional japonesa, elas comem pratos típicos como fabricação caseira de macarrão, e regularmente eles vão para um pequeno restaurante tradicional.  

Bibliografia geral consultada:

SARTRE, Jean-Paul, Lo Imaginario - Psicologia Fenomenologica de la Imaginacion. Buenos Aires: Ediciones Ibero-Americana, 1948; HELLER, Agnes, Sociologia della vita quotidiana. Roma: Editore Riuniti, 1975; MITZMAN, Arthur, La Jaula de Hierro. Una Interpretación Histórica de Max Weber. Madrid: Editorial Alianza Universidad, 1976; ESPOSITO, Roberto, Ordine e Conflito. Machiavelli e la Literatura Politica del Rinascimento. Roma: Editore Ligouri, 1984; GINZBURG, Carlo, Miti, Emblemi, Spie. Morfologia e Storia. Torino: Editore Einaudi, 1986; ANDERSON, Benedict Ruth, Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. Revised and extended. 2ª edition. London: Verso Editor, 1991; WEBER, Max, Economia y Sociedad. Esbozo de Sociología Comprensiva. México: Fondo de Cultura Económica, 1992; AUGÉ, Marc, La Guerre des Rêves. Exercices d’Ethno-fiction. Paris: Éditions du Seuil, 1997; COHN, Gabriel, Crítica e Resignação - Max Weber e a Teoria Social. 2ª edição. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003; GOMES, Rita Helena, A Desobediência em Hobbes. Tese de Doutorado em Filosofia. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2007; KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro, Emoções, Sociedade e Cultura: A Categoria de Análise Emoções como objeto de Investigação na Sociologia. Curitiba: Editora CRV, 2009; Idem, “Sociologia e Antropologia dos Corpos e das Emoções”. RBSE - Revista Brasileira de Sociologia da Emoção (Online), v. 11, pp. 645-653, 2012; OLIVEIRA, Cristina Imaculada Santana de, A Comunidade Imaginada da Afrodescendência no contexto da Educação das Relações Etnicorraciais. Dissertação de Mestrado. Prograqma dee Pós-Graduação em Educação Brasileira. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2012;  HOBBES, Thomas, Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. 1ª edição. São Paulo: Editora Martin Claret, 2014; ROCHA, Helio Ronyvon Gomes, O Encontro de Subjetividades em A Pessoa é Para o que Nasce. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2016; entre outros.

2 comentários:

  1. Eu não compreendi o título: "Ruth Benedict Anderson - Cinema & Comunidades Imaginadas".
    Que relação existe entre Ruth Benedict e Benedict Anderson?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Bom, em primeiro lugar, desculpe-nos a demora em te responder. Em segundo, eu creio que a coincidência refere-se às formas de citação em inglês e português. De todo modo, caso tenha interesse na pesquisa sobre o tema, envie-me outro comentário, para que possa melhor a edição do ensaio.
      Obrigado
      Ubiracy de Souza Braga

      Excluir