quinta-feira, 20 de julho de 2017

Sérgio Buarque de Holanda - Antiliberalismo & Vivência na História.

                                                                                                    Ubiracy de Souza Braga

       “Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, o contrário da polidez”. Sergio Buarque de Holanda


No âmbito da historiografia Carlos Guilherme Mota observou que depois de 1967, “tornou-se possível o balanço da produção, a avaliação dos trabalhos de Gilberto Freyre – o que não devia ser nada fácil antes dessa época, pelo que se pode verificar no livro comemorativo dos vinte e cinco anos da Casa-Grande & Senzala” (cf. Mota, 1975), tendo em vista o ecletismo entre ensaístas tais como: Astrojildo Pereira, Fernando de Azevedo, Jorge Amado, Antônio Cândido, Miguel Reale, Anísio Teixeira, Luís Viana Filho, Cavalcanti Proença, o que demonstra, sociologicamente, por um lado, o estudo da trajetória e dos vários impactos sociais e políticos na apreensão da obra de Gilberto Freyre sobre os meios intelectuais representando a cristalização de uma ideologia com base no editorialismo, caracterizado do ponto de vista merceológico com “grande poder de difusão”, e por outro, contém ambiguidades daquilo que se poderia denominar uma “geração de explicadores” da cultura brasileira, representando por assim dizer, “uma espécie de caso-limite”.     
Na concepção de Max Weber é um instrumento de análise sociológica para o entendimento da sociedade por parte do cientista social com o objetivo de criar tipologias puras, destituídas de tom avaliativo, de forma a oferecer um recurso analítico baseado em conceitos, como o que é religião, burocracia, economia, capitalismo, dentre outros. Metodologicamente Gilberto Freyre pode ser interpretado como historicista no sentido do approach de Wilhelm Dilthey quando propõe uma abordagem empática da realidade social, que lhe permitiu desenvolver uma interpretação pari passu histórica e sociológica. Seu objetivo é alcançar a subjetividade, é apreender a vida em seu interior. Trata-se em verdade de uma interpretação de uma história política, psicológica, vitalista, dionisíaca e não intelectualista o que não é pouco. A interpretação de seus “tipos inconciliáveis” se faz como é sabido, pelo “accountability” contido nos símbolos &: das obras: “Casa Grande & Senzala”, “Sobrados & Mocambos”, “Ordem & progresso”. Ao formular tipos ideais ele se aproxima de Max Weber; ao interpretá-los, aproxima-se de Georg Simmel. Para compreender a interconexão dos tipos, ele estudou o cotidiano, um campo de pesquisa social efetivamente original e inovador para tempos sombrios.


Vale lembrar que a nação é um produto cultural, político e social que surge na Europa a partir do fim do século XVIII e que se constitui efetivamente em uma “comunidade política imaginada”. Nesse processo de construção histórica, a relação entre o velho e o novo, o passado e o presente, a tradição e a modernidade é uma constante e se reveste de importância fundamental, pois, a nação é uma comunidade de sentimento que normalmente tende a produzir um Estado próprio, é preciso invocar antigas tradições (reais ou inventadas) como fundamento “natural” da identidade nacional que está sendo criada. Isso tende a obscurecer o caráter histórico e relativamente recente dos estados nacionais. Assim como o Estado-nação procura delimitar e zelar por suas fronteiras geopolíticas, ele também se empenha em demarcar suas fronteiras culturais, estabelecendo o que faz e o que não faz parte da nação. Através desse processo se constrói uma identidade nacional que procura dar uma imagem à comunidade abrangida por ela. A consolidação dos Estados-nações é recente. Mesmo em sociedades que parecem ser bem integradas. Mas há casos em que  é representada como se fosse dividido em  duas regiões antagônicas o que é recorrente para o Brasil.                                                
Germanófilo de espírito e coração, Capistrano de Abreu foi, ao lado de Tobias Barreto, dos maiores divulgadores da cultura alemã, e, sem dúvida no campo da história, temos como dívida a introdução de métodos críticos que hoje alguns historiadores procuram seguir. Admirador de Goethe de quem sempre repete ou as palavras do Wilhelm Meister “obrar é fácil, pensar é difícil, obrar segundo seu pensamento ainda mais difícil”, ou as de Fausto “de que não teria o livro lido por aqueles que mais quisera”, Capistrano representa na história das idéias no Brasil uma das mais autênticas imaginações e uma das mais lúcidas consciências. Ele estava convicto – afirma Rodrigues - de que era preciso, pelo menos, “equilibrar a decisiva influência francesa no Brasil com a divulgação do pensamento anglo-germânico”. E nesse sentido seu papel foi plenamente cumprido. Mas para entendermos melhor sua démarche, vale a pena fazermos uma digressão. O motivo da vinda de Capistrano de Abreu para o Rio de Janeiro, “constitui episódio ainda não totalmente esclarecido em sua biografia”. Preparando o ambiente favorável à sua admissão no jornalismo carioca, já em dezembro de 1874, escrevera Alencar uma carta a Bruno Seabra, em que há outra alusão que está sendo formulada a seguir: - “Esse moço que já é fácil e elegante escritor, aspira ao estágio da imprensa desta Corte. Creio eu que, além de granjear nele um prestante colaborador, teria o jornalismo fluminense a fortuna de franquear a um homem de futuro, o caminho da glória, que lhe está obstruindo uns acidentes mínimos”.
Sérgio Buarque de Holanda concluiu o curso de Direito em 1925, pela Universidade do Brasil, depois transformada em Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sem deixar o jornalismo e chegou a ser correspondente internacional dos Diários Associados, na Europa. Entrou em contato com o movimento modernista europeu, através da leitura do sociólogo Max Weber quando presenciou a ascensão do nazismo na Alemanha. De volta ao Brasil passou a ensinar a disciplina História Moderna e Contemporânea na Universidade do Distrito Federal, depois Universidade de Brasília quando publicou Raízes do Brasil (1936; 1995). Distraído, emotivo, irônico, mas disciplinado, lia em seis línguas, cantava tango em alemão e samba em latim. Em suas conversas não sabia onde parar: Roma, Estados Unidos, Idade Média ou Brasil Colônia. Foi diretor do Museu Paulista, professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, das Universidades de Roma, Harvard, Columbia, Yale e outras. Prestigiado internacionalmente, foi para a Itália (1952) e fez parte da cadeira de Estudos Brasileiros na Universidade de Roma, durante dois anos. Tornou-se catedrático de História da Civilização Brasileira, USP (1958), onde permaneceu até sua aposentaria como professor (1969), em solidariedade aos colegas afastados pela ditadura. Foi casado com Maria Amélia Alvim Buarque de Holanda, a Memélia, com quem teve sete filhos: Heloísa Maria (Miucha), Sérgio Filho (Sergito), Álvaro Augusto, Francisco (Chico), Maria do Carmo, Ana Maria e Maria Cristina, e faleceu na cidade de São Paulo.


           
  
            As análises teóricas sobre o legado de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), desencadeadas no centenário de seu nascimento, tiveram o dom de resgatar um capítulo esquecido em sua obra que dedicou a carreira acadêmica a compreender a alma nacional. Trata-se de uma dissertação de mestrado, defendida por Sérgio Buarque em 1958 na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, intitulada: “Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos”. O ensaio adormecia no acervo do historiador, confiado à Unicamp depois de sua morte. Edgar de Decca ficou surpreso e intrigado com o que encontrou. - “Há uma impressionante linha de continuidade entre essa dissertação e o clássico: Raízes do Brasil, publicado em 1936”. Alguma coisa foi alterada na percepção de Sérgio Buarque. Perde força no trabalho de mestrado aquilo que se transformou no traço mais marcante da obra Raízes do Brasil, que representa um ensaio histórico e ideológico sobre o que faltou e o que foi negado na constituição da nossa identidade. Em Raízes, a análise histórica parte do critério da ausência: à nossa cultura faltou uma ética do trabalho disciplinar, o estado racional se ausentou ante o predomínio do patriarcalismo e do paternalismo.
             E, em virtude disso, vicejou o caráter cordial do brasileiro – que privilegia as relações pessoais e busca a intimidade no convívio social, conceito cunhado por Sergio Buarque e confundido com benevolência. Essa exploração humana dos trópicos não se processou, em verdade, por um empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade construtora e enérgica: fez antes com desleixo e certo abandono. Dir-se-ia mesmo que se fez apesar de seus autores. E o reconhecimento desse fato não constitui, para Sérgio Buarque, menoscabo à grandeza do esforço português. Isto porque existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do tipo trabalhador só atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de praticar e, inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro – audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem – tudo, enfim, quanto se relacione com a concepção espaçosa do mundo, característica desse tipo. As energias e esforços que se dirigem a uma recompensa são enaltecidos pelos aventureiros; as energias que visam à estabilidade, à paz, à segurança pessoal e os esforços sem perspectiva de rápido proveito material passam, ao contrário, por viciosos e desprezíveis para eles. Nada lhes parece mais estúpido e mesquinho do que o ideal do trabalhador.
Essa exploração humana dos trópicos não se processou, em verdade, por um empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade construtora e enérgica: fez antes com desleixo e certo abandono. Dir-se-ia mesmo que se fez apesar de seus autores. E o reconhecimento desse fato não constitui, para Sérgio Buarque, menoscabo à grandeza do esforço português. Isto porque existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do tipo trabalhador só atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de praticar e, inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro – audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem – tudo, enfim, quanto se relacione com a concepção espaçosa do mundo, característica desse tipo. Por outro lado, as energias e esforços que se dirigem a uma recompensa imediata são enaltecidos pelos aventureiros; as energias que visam à estabilidade, à paz, à segurança pessoal e os esforços sem perspectiva de rápido proveito material passam, ao contrário, por viciosos e desprezíveis para eles. Nada lhes parece mais estúpido e mesquinho do que o ideal do trabalhador.
Na obra da conquista e colonização dos novos mundos coube ao “trabalhador”, papel muito limitado, quase nulo. A época predispunha aos gestos e façanhas audaciosos, galardoando bem os homens de grandes voos. E não foi fortuita a circunstância de se terem encontrado neste continente, empenhados nessa obra, principalmente as nações onde o tipo do trabalhador, encontrou ambiente menos propício. Essa pouca disposição para o trabalho, ao menos para o trabalho sem compensação próxima, essa indolência, como diz o deão Inge, não sendo evidentemente um estímulo às ações aventurosas, não deixa de constituir, com notável frequência, o aspecto negativo do ânimo quer gera as grandes empresas. Como explicar, sem isso, que os povos ibéricos mostrassem tanta aptidão para a caça aos bens materiais em fins do século XVIII? “Um português” comentava certo viajante em fins do século XVIII, “pode fretar um navio para o Brasil com menos dificuldade do que lhe é preciso para ir de cavalo de Lisboa ao Porto”. E essa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de posições e riquezas fáceis, tão notoriamente característica da gente de nossa terra, não é bem uma das manifestações mais cruas do espírito de aventura?
Nesse ponto, precisamente, os portugueses e seus descendentes imediatos foram inexcedíveis. Procurando recriar aqui o meio de sua origem, fizeram-no com uma facilidade que ainda não encontrou, talvez, segundo exemplo na história. Aos portugueses e, em menor grau, aos castelhanos, coube, sem dúvida, a primazia no emprego do regime que iria servir de modelo à exploração latifundiária e monocultora adotada depois por outros povos. E a boa qualidade das terras do Nordeste brasileiro para a lavoura altamente lucrativa de cana-de-açúcar fez com que essas terras se tornassem o cenário onde, por muito tempo, se elaboraria em seus traços mais nítidos o tipo de organização agrária mais tarde característico das colônias europeias situadas na zona tórrida. E verificou-se, frustradas as primeiras tentativas de emprego do braço indígena, que o recurso mais fácil estaria na introdução de escravos africanos.
O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho. Não foi, por conseguinte, uma civilização tipicamente agrícola o que instauraram os portugueses no Brasil com a lavoura açucareira. Não o foi, em primeiro lugar, porque a tanto não conduzia o o gênio aventureiro que os trouxe á América; em seguida, por causa da escassez da população do reino, que permitisse emigração em larga escala de trabalhadores rurais, e finalmente pela circunstância de a atividade agrícola não ocupar então, em Portugal, posição de primeira grandeza. Poucos indivíduos sabiam dedicar-se a vida inteira a um só mister sem se deixaram atrair por outro negócio aparentemente lucrativo. Mais raros seriam os casos em que um mesmo ofício perdurava na mesma família por mais de uma geração, como acontecia em terras onde a estratificação social alcançara maior grau de estabilidade. Da tradição portuguesa, pouca coisa se conservou entre nós que não tivesse sido modificada ou relaxada pelas condições adversas do meio.
Sérgio Buarque de Holanda, Toquinho e Vinicius de Moraes. Arquivo UNICAMP.  
A família patriarcal fornece, assim, o grande modelo por onde se hão de calcar, na vida política, as relações entre governantes e governados, entre monarcas e súditos. Uma lei moral inflexível, superior a todos os cálculos e vontades dos homens, pode regular a boa harmonia do corpo social, e, portanto deve ser rigorosamente respeitada e cumprida. Esse rígido paternalismo é tudo quanto se poderia esperar de mais oposto, não já as ideias da França revolucionária. Mas tradicionalistas e iconoclastas que se movem, em realidade, na mesma órbita de ideias. Estes, não menos do que aqueles, mostram-se fiéis preservadores do legado colonial, e as diferenças que os separam entre si são unicamente de forma e superfície. O caráter puramente exterior, epidérmico, de numerosas agitações sociais ocorridas entre nós durante os anos que antecederam e sucederam à Independência de 1822 (ou emancipação), demonstra o quanto era difícil ultrapassarem-se os limites que à nossa vida política tinham traçado certas condições específicas geradas pela colonização.
É neste sentido que se insere o romance de Chico Buarque, Leite Derramado (2010; 2013). Um homem muito velho está num leito de hospital. Membro de uma tradicional família brasileira, ele desfia, num monólogo dirigido à filha, às enfermeiras e a quem quiser ouvir, a história social de sua linhagem desde os ancestrais portugueses, passando por um barão do Império, um senador das Oligarquias até o descendente “garotão”, um tipo social da cidade do Rio de Janeiro. Uma saga familiar caracterizada pela decadência social e econômica, tendo como pano de fundo a história do Brasil dos últimos dois séculos. A weltanschauung que o autor nos oferece da sociedade brasileira é extremamente pessimista: compadrios, preconceitos de classe e de raça, machismo, oportunismo, corrupção, destruição da natureza, delinquência. A saga familiar marcada pela decadência é um gênero consagrado no romance ocidental moderno.
Há também um jogo com os espaços onde ocorrem os acontecimentos narrados. As várias casas em que o narrador morou, como as décadas acumuladas em suas lembranças, se sobrepõem e se revezam. Recolocá-las em ordem cronológica é assistir a uma derrocada pessoal e coletiva: o chalé de Copacabana, “longínquo areal” dos anos 20, é substituído por um apartamento num edifício construído atrás de seu terreno; esse apartamento é trocado por outro, menor, na Tijuca; o palacete familiar de Botafogo, vendido, torna-se estacionamento de embaixada; a fazenda da infância, na “raiz da serra”, transforma-se em favela, com um barulhento templo evangélico da velha igreja outrora consagrada pelo bispo. Embaixo da última morada do narrador, nesse “endereço de gente desclassificada”, está o antigo cemitério onde jaz seu avô.
Vale lembrar que mesmo em seus melhores momentos, a obra realizada pelos portugueses, segundo Sérgio Buarque, teve um caráter mais acentuado de “feitorização do que de colonização”. Não convinha que se fizessem grandes obras, ao menos quando não produzissem imediatos benefícios. Nada que acarretasse maiores despesas ou resultasse em prejuízo para a metrópole. Na realidade o exclusivismo dos castelhanos, em contraste com a relativa liberalidade dos portugueses, constitui parte obrigatória, inalienável de seu sistema. Compreende-se que, para a legislação castelhana, deva ter parecido indesejável, como prejudicial à boa disciplina dos súditos, o trato e convívio de estrangeiros em terras de tão recente conquista e de domínio tão mal assente. Essa liberalidade dos portugueses pode parecer, em comparação, uma atitude negativa, mal definida, e que porviria, em parte, de sua moral interessada, moral de negociantes, embora de negociantes ainda sujeitos, por muitos e poderosos laços, à tradição medieval. Pouco importa que seja frouxa e insegura a disciplina fora daquilo que os freios podem melhor aproveitar, e imediatamente, aos seus interesses terrenos. A rotina e não a razão abstrata foi o princípio que norteou os portugueses, nesta como em tantas outras formas de colonização. Preferiam agir por experiências sucessivas, nem sempre coordenadas umas às outras, a traçar de antemão um plano para segui-lo até ao fim.
No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização – que resulta unicamente no crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influências das cidades – ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos até hoje. Já se disse, numa expressão feliz, afirma Sérgio Buarque, “que a contribuição brasileira para a civilização será a de cordialidade – daremos ao mundo o homem cordial. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar ´boas maneiras`, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um lado emotivo extremamente rico e transbordante. Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida d que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no “homem  cordial”: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas sua sensibilidade e suas emoções.   
Em 1936, obteve o cargo de professor assistente da Universidade do Distrito Federal, incorporada depois na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, atual UFRJ, não se confundindo com a Universidade do Distrito Federal criada posteriormente e que deu origem a Universidade do Estado da Guanabara e depois a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em 1939, extinta a Universidade do Distrito Federal, passou a trabalhar na burocracia federal. Em 1941, passou uma longa temporada trabalhando como Visiting Scholar em diversas universidades dos Estados Unidos da América (EUA). Reuniu, no volume intitulado “Cobra de Vidro”, em 1944, uma série de artigos e ensaios que anteriormente publicara nos meios de imprensa. Publicou, em 1945 e 1957, respectivamente, “Monções” e “Caminhos e Fronteiras”, que consistem em coletâneas de análises historiográficas sobre a expansão oeste da colonização da América Portuguesa entre os séculos XVII e XVIII. No contexto da “História Geral da Civilização Brasileira”, publicou, em 1972, “Do Império à República”, texto que, a princípio, fora concebido como um simples artigo para a coletânea, mas que, com o decurso da pesquisa, acabou por ser ampliado num volume independente. Trata-se de um trabalho analítico, interpretativo de história social e política que aborda a crise do império brasileiro no final do século XIX, explicando-a como resultante da corrosão do mecanismo fundamental de sustentação deste regime: o poder pessoal do imperador.

                       
Em 1946, voltou a residir em São Paulo, para assumir a direção do Museu Paulista, que ocuparia até 1956, sucedendo então ao seu antigo professor escolar Afonso Taunay. Em 1948, passou a lecionar na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, na cátedra de História Econômica do Brasil, em substituição a Roberto Simonsen. Viveu na Itália entre 1953 e 1955, onde esteve a cargo da cátedra de Estudos Brasileiros da Universidade de Roma. Esse processo ganhou maior estrutura quando a Divisão Cultural do Itamaraty, ligada ao Ministério das Relações Exteriores e responsável pela política cultural externa do país, deu ênfase ao projeto de fundação de cátedras de Estudos Brasileiros em cerca de 15 universidades no exterior, entre 1952 e 1955. Em 1958, Sérgio Buarque de Holanda assumiu a cadeira de História da Civilização Brasileira, agora na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. O concurso para esta vaga motivou-o a escrever “Visão do Paraíso”, livro que publicou em 1959, no qual analisa aspectos do imaginário individual (os sonhos) e coletivo (os mitos, os ritos, os símbolos) europeu à época da conquista.
       Ainda em 1958, ingressou na Academia Paulista de Letras e recebeu o “Prêmio Edgar Cavalheiro”, do Instituto Nacional do Livro, pelo ensaio: “Caminhos e Fronteiras”. Permaneceu intelectualmente ativo até 1982, tendo ainda, neste último decênio, publicado diversos textos. De 1975 é o volume “Vale do Paraíba - Velhas Fazendas” e de 1979, a coletânea “Tentativas de Mitologia”. Nestes últimos anos, trabalhou também na reelaboração do texto de “Do Império à República” - que não chegou a concluir. Recebeu em 1980 tanto o Prêmio Juca Pato, da União Brasileira de Escritores, quanto o Prêmio Jabuti de Literatura, da Câmara Brasileira do Livro. Também em 1980, participou da cerimônia de fundação do Partido dos Trabalhadores, recebendo a terceira carteira de filiação do partido, após Mário Pedrosa e Antonio Candido. Por conta de sua participação no PT e na condição de intelectual destacado é que o centro de documentação e memória da Fundação Perseu Abramo, fundação de apoio partidária instituída pelo Partido dos Trabalhadores em 1996, recebe seu nome: Centro Sérgio Buarque de Holanda: Documentação e Memória Política. Morreu em São Paulo em 24 de abril de 1982. Existe um navio batizado em seu nome, que foi construído em 2012.
Bibliografia geral consultada.

HOLANDA, Sérgio Buarque de, Raízes do Brasil. 1ª edição. São Paulo: Livraria José Olympio Editores, 1936; Idem, Visão do Paraíso. 2ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional/Edusp, 1969; DILTHEY, Wilhelm, El Mundo Histórico. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 1947; CLARA, Fernando, “Experiência-Vivência. Dilthey e as Humanidades: Um Olhar Retrospectivo”. Disponível em: Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n° 19. Lisboa: Edições Colibri, 2007, pp. 35-48; BUARQUE, Chico, Leche Derramada. Tradução espanhola de Ana Rita da Costa García. Barcelona: Ediciones Salamandra, 2010; Idem, Vergossene Milch. Tradução alemã de Karin von Schweder-Schreiner. Frankfurt am Main: Samuel Fischer, 2013; PIMENTEL, Vanuccio Medeiros, A Primazia dos Clãs: A Família na Política Nordestina. Tese de Doutorado em Ciência Política. Universidade Federal de Pernambuco: Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, 2013;  HIDALGO, Yaremis da Trinidade; CRUZ, Yenisey López, “La Hermenéutica en el Pensamiento de Wilhelm Dilthey”. Disponível em: Griot - Revista de Filosofia. Santiago de Cuba,  volume11, n°1, junho/2015; Revista do Brasil. Número Especial: Ano 3, n° 6/87, dedicado a Sérgio Buarque de Holanda, 1935; SILVA, Rafael Pereira da, A Morte do Homem Cordial: Trajetória e Memória na Invenção de um Personagem (Sérgio Buarque de Holanda 1902-1982). Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2015; RIBEIRO, Douglas Carvalho, As Raízes antiliberais de Sérgio Buarque de Holanda: Carl Schmitt em Raízes do Brasil. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Direito. Faculdade de Direito. Belo Horizonte: Universidade Federald e Minas Gerais, 2017; ASSIS, Gabriela Lima de, Raízes do Paraíso: Uma Análise Whiteana de Sérgio Buarque de Holanda. Tese de Doutorado em História. Instituto de Geografia, História e Documentação. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2017; entre outros. 

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