Ubiracy de Souza Braga
“E sem o seu trabalho um homem não tem honra. E sem a sua honra se morre, se mata”. Gonzaguinha
Há 32 anos ensino em IES no Brasil.
Iniciei a vida acadêmica no ensino católico, pragmático, burocrático, mavioso
na cidade do Rio de Janeiro. Em menos de dez anos ingressei para o ensino
público, federal e estadual e após obter meu doutorado, retornei ao ensino
público estadual, onde me deparei com as (a)
diversidades regionais. É neste processo de trabalho docente, onde trabalhamos
que estamos desenvolvendo a crítica analítica intitulada: consciência, preconceito
& atraso social. Como já observamos alhures, nas Instituições de Ensino Superior (IES) não há interface ipsis litteris entre trabalho acadêmico
e governos estaduais, ipsis verbis no
plano federal, sintomaticamente, dependendo da questão nevrálgica dos
regionalismos. O duradouro é mais
altamente cotado do que o breve transitório; mas toda florescência, toda bela
vitalidade tem morte cedo. Mas também o mais perfeito dura, não só o universal
sem-vida, inorgânico, mas também o outro universal, o concreto em si, o Gênero,
a Lei, a Ideia, o Espírito. Pois devemos decidir se algo é o processo total ou
apenas um momento do processo. O universal como Lei é processo em sim mesmo e
vive tão-somente como processo; mas não é parte do processo, nem [está] no
processo, mas contêm seus dois lados e é ele próprio sem-processo. Pelo lado do
fenômeno a lei entra no tempo enquanto os momentos do conceito têm a aparência
da independência; mas as diferenças excluídas portam-se como reconciliadas e
retomadas à paz.
Se levarmos a sério a percepção
central em Hegel de que toda reflexão, e isso significa também toda
investigação do objeto, no campo da filosofia (e da realidade) pressupõe
inevitavelmente categorias lógicas, não poderemos deixar de reconhecer que a Fenomenologia do Espírito (1807) implica
algum tipo de lógica, a qual se legitima a si mesma, e que pressupõe aquelas
outras formas de consciência e sua destruição em um sentido
histórico-psicológico, assim como histórico-sociológico, não em um sentido
teórico de validade para Hegel, segundo o qual “o objetivo de uma introdução à
filosofia só poderia se aclarar esses pontos de vista objetivo da filosofia”. A
filosofia também tem a tarefa de conduzir a consciência ainda não formada
filosoficamente pelo caminho que a ela conduz, e lhe facilitar o elemento, que
não lhe é dado imediatamente, no qual ela se movimenta como ciência pura, em
que a forma pronta da filosofia hegeliana está dada com a sua derradeira
reflexão nos ensaios sobre a Lógica e
a Enciclopédia. Somente aqui as ausências
de pressupostos, representam o porvir de uma fundamentação última do método os
quais foram realizados de maneira pura.
O tempo é igualmente contínuo como o espaço,
pois ele é a negatividade abstratamente referindo-se a si e nesta abstração
ainda não há nenhuma diferença real. No tempo, diz-se, tudo surge e [tudo
passa] perece, se se abstrai de tudo, a saber, do recheio do tempo e igualmente
do recheio do espaço, fica de resto o tempo vazio como o espaço vazio – isto é,
são então postas e representadas estas abstrações de exterioridade, como se elas
fossem por si. Mas não é o que no tempo surja e pereça tudo, porém o próprio
tempo é este vir-a-ser, surgir e perecer, o abstrair essente, o Kronos que tudo pare, e que seu parto
destrói [devora]. – O real é bem diverso do tempo, mas também essencialmente
idêntico a ele. O real é limitado, e o outro para esta negação está fora dele,
a determinidade é assim nele exterior a si, e daí a contradição de seu ser; a
abstração opera nessa exterioridade de sua [do tempo] contradição e a
inquietação da mesma é o próprio tempo. Por isso o finito é transitório e
temporário, porque ele não é, como o conceito nele mesmo, a negatividade total,
mas tem esta em si, como sua essência
universal, entretanto – diferentemente da mesma essência – é unilateral, e se
relaciona à mesma [essência] como à sua potência.
Em primeiro lugar, não devemos
esquecer que o âmbito do processo civilizatório das “histórias nacionais” de
Leopold von Ranke é, assim, determinado historicamente, visto que sua
particularidade refere-se a existenz,
para lembramo-nos de Hegel, na técnica de interpretação na literatura e na
filosofia de um “mundo europeu”, que mal se dilata, mas sem perder o conteúdo
essencial, sobre províncias e continentes do ultramar colonizados principalmente
por povos europeus. Mas não é a Europa inteira o que o ocupa, e sim as
fronteiras geográficas dessa Europa latina e germânica, protestante ou
católica, que são as fronteiras do espaço e do tempo histórico a que devotou o
melhor de sua atividade intelectual: - “somos mais vizinhos de Nova York e de
Lima do que de Kiev e Smolensk”. Mas é melhor entendermos sua ideia de “nexo de
sentido”, posto que as razões dessa crítica histórica só valessem se quisesse
dizer que o mundo cessava, para Ranke, “nos limites da Europa Ocidental com
seus apêndices ultramarinos”. Sua ideia metodológica de “nexo de sentido”, que
poderia justificar-se como um princípio de economia necessário, passa a ser ipso facto um “mandato de exclusão sem
apelo”.
Os
povos que não tiveram o privilégio de originar-se das grandes invasões dos
séculos IV a VII, que não se puseram logo sob a égide da Igreja de Roma, que
não tomaram parte nas cruzadas e direta ou indiretamente nos “descobrimentos” e
conquistas ultramarinos, que não se viram envolvidos, dentro do mesmo espírito
cristão, mas cristão ocidental, nas guerras de religião do século XVII e nem na
Ilustração do século XVIII, “esses
povos não têm salvação diante da História”. A limitação metodológica de Ranke,
neste particular, não está em que para ele o tempo histórico pode comportar “um ontem”, quando muito “hoje”,
cujo conhecimento nos é acessível através de pesquisas ou de experiências. A
história se baseia num tempo incompleto, inacabado, que em si mesmo é uma exigência
de mudança. O passado jamais se entrega imediatamente a nós, por isso devemos
considerar ideológica a pretensão de estabelecer “o que efetivamente
aconteceu”. Ou seja, a ideia conspícua de Leopold von Ranke, contida em seu ensaio:
Zur Kritik neurer Geschichsreiber do
“como efetivamente aconteceu” (“essen Sie tatsächlich, es passierte”) é o
“tempo-de-agora” (Jetztzeit); é nele
que tomamos consciência da nossa
temporalidade e é com base nele que podemos nos relacionar em termos novos com
o passado e exercermos a crítica analítica na vida.
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Em
segundo lugar, havia uma diferença fundamental entre a démarche de Ranke e a weltanschauung
hegeliana. Para aquele, Hegel usava uma mesma interpretação para culturas
muito diversas, onde os valores mudaram muito ao longo da história. Para
conhecer realmente o que um historiador empirista queria dizer aos leitores só
haveria uma forma que não disporia erros ao estudioso: o uso temporal e
cultural das fontes primarias. Quanto mais se usam aos fatos, mais verídica
será à história. Negou, assim, a existência ou possibilidade de uma filosofia
universal da história hegeliana, achando que tal filosofia desconsiderava a
ação direta dos homens e seu livre arbítrio na história. Não havia como indicar
por fatos históricos que existia um Espírito absoluto para a história, ou seja,
que um mero conceito pudesse delimitar o pensamento e a razão dos povos. Em
Ranke, cada nação possui um ethos
particular que serve apenas aquele povo (cf. Ranke, 1979). Como exemplo, cita
que os ideais da Revolução Francesa não serviriam ao Estado Prussiano, onde a
cultura e a mente dominante são diferentes da francesa. Talvez fique demarcada
a filosofia romântica alemã como impecílio à política ao movimento Iluminista francês. Leopold von Ranke
não percebe que Hegel situa a relação da história com a filosofia e também do
pensamento com o real neste mundo
factual. Tal mundo não “está fora” da história, em um mundo platônico
inteligível.
A
chamada História das Mentalidades é
uma modalidade historiográfica que privilegia os modos “de pensar e de sentir”
dos indivíduos de uma mesma época. Segundo Michel Vovelle, em Ideologies et Mentalités (1982),
representa o “estudo das mediações complexas e da relação dialética entre, de
um lado, as condições objetivas da vida dos homens e, de outro, a maneira como
eles a narram e mesmo como a vivem”; ou, Le
mort et l’Occident de 1300 à nous jours, à paraître fin 1982, ou ainda,
segundo Robert Mandrou, no livro: Magistrados
e feiticeiros na França do século XVII - Uma análise de psicologia
histórica em que interpreta “uma história centrada nas visões de mundo”. Esta
obra apresenta os resultados de uma longa investigação pelos arquivos
judiciários e pelos trabalhos consagrados à caça às bruxas na França no século XVII.
Através de um “itinerário intelectual e afetivo complexo”, os Magistrados das
cortes supremas constituindo os Parlamentos em Paris, Dijon, Bordeaux etc.
renunciaram com dificuldades, lentamente, a condenação automática à fogueira dos suspeitos de bruxaria;
longa tomada de consciência na qual os médicos, teólogos e juízes colaboram
através de polêmicas veementes suscitadas em particular por alguns processos
que causaram grande escândalo e puseram em causa os confessores de conventos
femininos presos do demônio: em Aix-em-Provence, em Louviers. Ou ainda, segundo
Roger Chartier, uma “história do sistema de crenças, de valores e de
representações próprios a uma época ou grupo”. Segundo Georges Duby, a
designação ajustava-se à necessidade de explicar o que de mais profundo
“persiste e dá sentido à vida material das sociedades”, ou seja, as ideias sobre
as quais os indivíduos formam das suas condições de existência que “comandam de
forma imperativa a organização e o destino dos grupos humanos”.
Objetos
típicos da história das mentalidades são: “as sensibilidades do homem diante da
morte” seguindo Philippe Ariès e Michel Vovelle, condicionada pela história dos
“grandes medos dos seres humanos nos diversos períodos” para Jean Delumeau ou
da feitiçaria, segundo Robert Mandrou e tantas outras que à época em que começa
aflorar a História das Mentalidades,
que “pareciam constituir temáticas exóticas para os historiadores que se
dedicavam a temas historiográficos mais tradicionais”. Não temos história do
amor, da morte, da piedade, da crueldade, da alegria. A queixa de Lucien
Febvre, em 1948, muito repetida desde então, tornou-se quase um manifesto da
disciplina que se convencionou chamar a “história das mentalidades”. Uma das
lacunas que o fundador da Escola dos
Annales deplorava foi preenchida pela História
do Medo no Ocidente, de Jean
Delumeau. Ao tomar como objeto de estudo o medo,
ele parte da ideia de que não apenas os indivíduos, mas também as chamadas “coletividades”
estão engajadas num diálogo permanente “com a menos heroica das paixões humanas”.
Revelando-nos
os pesadelos mais íntimos da civilização ocidental do século XIV ao XVIII - o
mar, os mortos, as trevas, a peste, a fome, a bruxaria, o Apocalipse, Satã e
seus agentes (o judeu, a mulher, o muçulmano) -, o grande pensador francês
realiza uma obra sem precedentes na historiografia do Ocidente. Alguns autores
postulam que a história das mentalidades apresentou como principais precursores
dois grandes historiadores ligados à escola dos Annales: Marc Bloch, que publicou em 1922, Os Reis Taumaturgos, uma obra comparativa que examinava “a relação
entre a crença no poder curativo dos reis e a autoridade das grandes dinastias
francesas e inglesas”, e Lucien Febvre, que publicou: O Problema do Ateísmo no Século XVI: A religião de Rabelais, obra
na qual já “defendia a tese da História como estudo interdisciplinar”. A
chamada História das Mentalidades é
um ramo da teoria da história. É considerada uma análise de tipo mais profundo
da História, pois visa perscrutar e compreender as grandes alterações nas formas
de “pensar e agir do Homem ao longo dos tempos”. Inscreve-se no chamado “tempo
longo” (“longue durée”), de teor essencialmente estrutural e que atuam nos mais diversos fatores sociais de uma
sociedade historicamente determinada.
Por
ser do domínio do “tempo longo”, a perspectiva temporal é fundamental para seu
estudo. Devido à sua abrangência intrínseca, permite ampliar o conceito de documento, extravasando em muito o mero
documento escrito de cariz oficial. Os atos inconscientes são tão ou mais importantes
que a formalidade dos decretos e das ordens régias; a Arte, a Literatura, os
costumes, os ritos, os mitos e os símbolos, a religião são manifestações
fundamentais para revelar-nos que a consciência é auto-reflexiva que o homem tem
de si, desde Hegel (1973), numa época determinada. Desta forma, a Introdução (“Eileintung”) à
Fenomenologia foi concebida ao mesmo tempo em que a obra é redatada em primeiro
termo; parece, pois, que encerra os primeiros passos do pensamento do que saiu
toda a obra. Verdadeiramente constitui uma Introdução em sentido literal aos
três primeiros momentos dialéticos que toldam toda a obra, isto é: a
consciência, a autoconsciência e a razão, que tomamos de empréstimo nestas
notas de interpretação, enquanto a última parte da Fenomenologia, que contêm os importantes desenvolvimentos sobre o
Espírito e a Religião, ultrapassa por seu conteúdo e forma a Fenomenologia tal
como é definida stricto sensu na
referida Introdução. Ao que parece analogamente é como se Hegel metafisicamente
entrasse no marco de desenvolvimento fenomenológico. Com algo que, em
princípio, não deveria haver ocupado um posto nele. Apreendendo tais recursos e
ensinamentos nos permitirá elucidar o sentido da obra que Hegel quis escrever,
assim como em seu domínio da técnica que entende e representa pelo pensamento o desenvolvimento fenomenológico.
Somente
Hegel, insistimos neste aspecto, definiu o princípio da realidade como uma Ideia lógica, fazendo, portanto, do ser
das coisas um ser puramente lógico e chegando assim a um panlogismo consequente
que apresenta ainda, um elemento dinâmico-irracional, existente no método
dialético. Nisto se distingue o panlogismo hegeliano do neokantismo, que
eliminou este elemento e instituiu assim um puro panlogismo. O idealismo
apresenta-se, para sermos breves, em duas formas principais: como idealismo
subjetivo ou psicológico e como idealismo objetivo e lógico. Mas estas
diversidades no plano analítico movimentam-se no âmbito de uma concepção
fundamental. Esta é justamente a tese idealista de que o objeto do conhecimento
não é menos que nada, mas algo ideal, para concordarmos com Slavoj Žižek hic et nunc. A ideia de um objeto
independente da consciência é contraditória, pois, no momento em que
reproduzimos um “objeto de pensamento”, na ciência ou no amor, fazemos dele um
conteúdo de nossa consciência: se afirmamos simultaneamente que o objeto existe
fora da nossa consciência, contradizemo-nos com isso a nós próprios; portanto
não há objetos reais extra-conscientes, mas a realidade acha-se contida na consciência. Com a história das
mentalidades, a elaboração histórica deu um “salto qualitativo”, quer na
ciência quer no concernente ao seu desenvolvimento na pesquisa com a História Nova, de Marc Bloch foi a grande
impulsionadora da história das mentalidades.
Vale
lembrar, no caso da sociologia de Émile Durkheim, particularmente em sua tese
de doutoramento: De la Division du
Travail Social (1893) que o tema central de seu livro as relações entre os
indivíduos e a coletividade responde a esta questão da consciência distinguindo
duas formas de solidariedade: a mecânica e a orgânica, sendo a primeira por
semelhança, quando a forma de solidariedade domina uma sociedade, os indivíduos
diferem pouco uns dos outros. Membros de uma mesma coletividade, eles se
assemelham porque têm os mesmos sentimentos, os mesmo valores, reconhecem os
mesmos objetos como sagrados. A sociedade tem coerência porque os indivíduos
ainda não se diferenciaram. A forma oposta de solidariedade, a orgânica, é
aquela em que o consenso, isto é, a unidade coerente da coletividade, resulta
de uma diferenciação, ou se exprime pr seu intermédio. Os indivíduos não se
assemelham, são diferentes. E, de certo modo, são diferentes porque o consenso
se realiza. As duas formas de solidariedade correspondem, no pensamento de
Durkheim, a duas formas extremas de organização social. Os indivíduos históricos
de um clã (cf. Pimentel, 2013) são,
por assim dizer, intercambiáveis. O resultado, e esta é uma das ideias
essenciais do pensamento de Durkheim, é que o indivíduo não vem historicamente
em primeiro lugar.
A
tomada de consciência da individualidade decorre do próprio desenvolvimento
histórico e, portanto, social. A oposição destas duas formas essenciais de
solidariedade se combina com a oposição entre sociedades segmentárias e aquelas
em que aparece a moderna divisão do trabalho. A divisão do trabalho que
Durkheim procura apreender e definir não se confunde com a análise que os
economistas imaginam, pois a diferenciação das profissões e a multiplicação das
atividades industriais exprimem a diferenciação social que Durkheim considera
de modo prioritário. Tal como é definida em De
la Division du Travail Social, a consciência coletiva é simplesmente “o
conjunto das crenças e sentimentos comuns à média dos membros da sociedade.
Para ele este conjunto “forma um sistema determinado, que tem vida própria”. A
consciência coletiva só existe em função dos sentimentos e crenças presentes
nas consciências individuais, mas se distingue, pelo menos analiticamente,
destas duas, pois evolui segundo suas próprias leis e não é apenas a expressão
ou efeito das consciências individuais. Nas sociedades onde aparece a diferenciação
dos indivíduos, cada um tem, em muitas circunstâncias, a liberdade de crer, de
querer agir conforme suas preferências.
Nas
sociedades de solidariedade mecânica, ao contrário, a maior parte da existência
é orientada pelos imperativos e proibições sociais. O adjetivo social significa, neste momento do
pensamento de Durkheim, apenas que tais imperativos e proibições se impõem à
média, á maioria dos membros do grupo; que eles tem por origem o grupo; e não o
indivíduo, denotando o fato de que este se submete a esses imperativos e
proibições como a um poder superior. Os detalhes relativos ao que é preciso
fazer, e ao que é preciso crer, são impostos pela consciência coletiva. Dessa
análise, Durkheim deduz uma ideia que manteve por toda a sua vida, e que ocupa
o centro de toda a sua sociologia: a que pretende que o indivíduo nasce da
sociedade, e não que a sociedade nasce dos indivíduos. Enunciada assim, a
fórmula parece paradoxal, mas o próprio Durkheim a exprime muitas vezes nesses
termos. Procurando reconstituir seu pensamento, com base na divisão social do
trabalho, o primado da sociedade sobre o indivíduo tem pelo menos dois sentidos,
mas que no fundo nada tem de paradoxal.
Outro
grande devir desta teoria deu-se com a mudança de simbólica através da reflexão
“epistemológica” de Michel Foucault, que esteve ligado à sua influência de
Freud na psicanálise. Escrever não é certamente impor uma forma de expressão a
uma matéria vivida. Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em
via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um
processo, ou seja, uma passagem de vida que atravessa o vivível e o vivido. A
escrita é inseparável do devir: ao escrever, estamos num devir-mulher, num
devir-animal ou vegetal, num devir-molécula, até num devir-imperceptível. O
devir não vai ao sentido inverso, e não entramos num devir-Homem, uma vez que o
homem se apresenta como uma forma de expressão dominante que pretende impor-se
a toda matéria, ao passo que mulher, animal ou molécula têm sempre um
componente de fuga que se furta à sua própria formalização.
Mesmo
quando é uma mulher que devém, ela tem de devir-mulher,
e esse devir nada tem a ver com o estado que ela poderia reivindicar. Devir não
é atingir uma forma, mas encontrar uma forma de vizinhança, de
indiscernibilidade ou de indiferença tal que já não seja possível distinguir-se
de uma mulher, de um animal, de uma molécula: não imprecisos nem gerais, mas
imprevistos, tanto menos determinados numa forma quando se singularizam numa
população. Pode-se instaurar uma zona de vizinhança com não importa o quê, sob
a condição de criar os meios literários para tanto. O devir está sempre “entre”
ou “no meio”: mulher entre as mulheres, ou animal no meio dos outros. Escrever
não é contar as próprias lembranças, suas viagens, seus amores e lutos, sonhos
e fantasmas. Pecar por excesso de realidade ou de imaginação é a mesma coisa:
em ambos os casos é o eterno “papai-mamãe”, estrutura edipiana que se projeta
no real ou se introjeta no imaginário. É um pai que se vai buscar no final da
viagem, como no seio do sonho, numa concepção infantil de literatura. Ipso facto
escreve-se para pai-mãe.
O
Cardeal de São Paulo, Dom Odilo Scherer, e os bispos de sua Arquidiocese,
anunciaram recentemente que não autorizam a criação, prevista há quatro anos
(2011), da Cátedra “Michel Foucault e a filosofia do presente” na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Por ocasião do 7° Colóquio Internacional Michel Foucault,
que reuniu na PUC-SP dezenas de especialistas na obra do pensador e centenas de
interessados, foi assinada uma carta de apoio a essa iniciativa. A lista dos
signatários incluía de forma extraordinária desde membros do Collège International de Philosophie
(Paris) aos membros da Universidad San Martin na Argentina, da Universidad de
los Andes na Venezuela e da Universidad de Valparaiso no Chile. A iniciativa
também obteve a solidariedade do Consulado Geral da França em São Paulo.
Do
latim cathedra que, por sua vez, tem
origem num vocábulo grego que significa “assento” ou “cadeira”, a Cátedra é a
disciplina, “Cadeira”, metaforicamente, que ensina um catedrático - professor
que tenha preenchido determinados requisitos para partilhar conhecimentos e que
tenha alcançado o posto mais alto na docência. O termo também é usado para
fazer referência à função e ao exercício do professor catedrático. Essa
Cátedra, que leva o nome de Michel Foucault, não é dedicada à leitura de seus
escritos - que hoje já é parte da cultura clássica. Ela está voltada, sob o
impulso não exclusivo de seus trabalhos, como representa seu título, para uma
livre análise, informação e debate sobre questões de filosofia e de vida civil
contemporânea. A recusa de tal Cátedra, aberta à complexidade e diversidade de
estudos e pesquisas na atualidade, contradiz a deontologia universitária assim
como seu fundamento filosófico. A Universidade seria sua primeira vítima; assim
teríamos ironicamente, no caso da Pontifícia Universidade Católica – PUC-SP, a
2ª morte de Michel Foucault.
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Delineou-se
assim o que se poderia chamar, de acordo com Foucault, “uma genealogia”, melhor
dizendo, pesquisas “genealógicas múltiplas”, ao mesmo tempo em que redescoberta
exata das lutas e memória bruta dos combatentes. E esta genealogia, como
acoplamento do saber erudito e do saber das pessoas, como ocorre com a
historiografia varnhageniana, para o caso brasileiro, só foi possível e só se
pôde tentar realizá-la à condição de que dela fosse eliminada a tirania dos
discursos englobantes com suas hierarquias e com os privilégios da vanguarda
teórica, mas que não trataremos agora. A noção de região, tratada como instrumento da ação política, é inseparável da
noção de regionalismo nordestino. Este, visto como o discurso que a
representa, é um movimento de reivindicação de tratamento diferenciado a um
determinado espaço territorial. É uma expressão de luta de poder no interior
dos espaços regionais quanto ao direito sobre a representação externa da região
nas diversas escalas de poder. O
regionalismo é um discurso de “aliança de forças” e grupos que forjam uma identidade referida ao
espaço; forja uma ideia de história e
de práticas comuns; apresenta uma leitura do passado, do presente e projeta um
futuro em cima de interesses gerais remetidos a uma circunscrição territorial.
Ele legitima a hegemonia sócio-política de um determinado “bloco de poder” e o
seu monopólio da representação dos interesses gerais numa região determinada,
outorgando autoridade legítima aos seus membros de porta-vozes para exercer
essa representação.
Este grupo social dominante, enquanto fracionamento das classes, através da reivindicação de um tratamento diferenciado por parte
das diversas escalas de “poder supralocais”, monopoliza a interlocução com
essas instâncias de poder e controle sobre os recursos fundamentais que
interferem na reprodução das condições locais de desenvolvimento. A
identidade cultural não está na condição de ser “nordestino” (cf. Penna,
1982), mas no modo como opera esta condição em que é
apreendida e organizada simbolicamente. Percebe-se que determinados enunciados
audiovisuais se produziram e permaneceram como representações acerca do
Nordeste, como sua essência. É preciso questionar e criticar a própria ideia de
identidade, que é concebida como “uma repetição, uma semelhança de superfície”.
Porém, apesar desses estereótipos do Nordeste a ser propagados no contexto
geral da chamada “indústria cultural” e de massa, a expressão “região
Nordeste”, possui significados muito cristalizados que evocam uma série de
imagens das características geográficas culturais, sociais e econômicas. Entre
as primeiras, podemos citar elementos da paisagem que incluem desde o recorte
litorâneo com suas praias, seus remanescentes coqueirais à paisagem
historicamente seca do agreste e, sobretudo, a do sertão como representação da
morte.
Bibliografia
geral consultada.
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RANKE, Leopold, Pueblos y Estados en la
Historia Moderna. México: Fondo de Cultura Económica, 1979: Idem, Leopold von Ranke: História. Organizador
[da coletânea] Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Editora Ática, 1979; VOVELLE,
Michel, Ideologies et Mentalités.
Paris: Éditions François Maspéro, 1982; DURKHEIM, Émile, La División Social del Trabajo. Madrid: Ediciones Akal, 1987; BLOCH,
Marc, Os Reis Taumaturgos. São Paulo:
Editora Companhia das Letras, 1993; PENNA, Maura Lucia Fernandes, O Que Faz Ser Nordestino: Identidades
Sociais, Interesses e o Escândalo Erundina. Dissertação de Mestrado em
Ciências Sociais. São Paulo: Cortez Editores, 1992; ALBUQUERQUE
JR, Durval Muniz de. Preconceito contra a
origem geográfica e de lugar: as fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez
Editores, 2007; SANTOS, Risamar Alves dos, Racismo, Preconceito e Discriminação: Concepções de Professores. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação: Psicologia da Educação. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São paulo, 2007; PIMENTEL, Vanuccio Medeiros, A Primazia dos Clãs: A Família na Política Nordestina. Tese de
Doutorado em Ciência Política. Universidade Federal de Pernambuco: Programa de
Pós-Graduação em Ciência Política, 2013; ANTUNES, Ricardo, The Meanings of Work. Essay on the Affirmation and Negation of Work. Leiden/Boston: Brill/HM Book Editor, 2013; TEIXEIRA, Floricelia Santana, O Fenômeno da Despersonalização e suas Relações com a Infra-humanização e o Preconceito. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. São Cistóvão: Universidade Federal de Sergipe, 2014; SILVA, Yane Marcelle Pereira, “Esses nordestinos...”: Discurso de Ódio em Redes Sociais da Internet na Eleição Presidencial de 2014. Dissertação de Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania. Brasília: Universidade de Brasília, 2016; entre outros.
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