quarta-feira, 12 de julho de 2017

Antonio Piccarolo - Ideólogo da Imigração Italiana no Brasil.

                                                                                                    Ubiracy de Souza Braga
 
“Era um socialista a serviço dos mais puros ideais”. Hermes Lima

           
O socialismo moderno surgiu no final do século XVIII, tendo origem pari passu na classe intelectual e nos movimentos políticos da classe trabalhadora, que criticavam os efeitos da industrialização e da propriedade privada sobre a sociedade. A reação operária aos efeitos da Revolução Industrial fez surgir críticos ao progresso industrial que propunham reformulações sociais e a construção de uma sociedade mais justa. Os primeiros socialistas, ao formularem profundas críticas ao progresso industrial, ainda estavam impregnados de valores liberais. Criticavam os grandes proprietários, mas tinham, em geral, estima pelos pequenos proprietários, acreditando ser possível haver um acordo entre as classes sociais. Elaboraram soluções que não chegaram a constituir uma doutrina, e sim modelos idealizados, sendo por isso chamados de utópicos. Um dos principais reformadores dessa fase inicial do socialismo de Saint-Simon, que havia aderido à revolução de 1789.
Um racionalista, como a maioria de seus contemporâneos, propôs, em “Cartas de um habitante de Genebra” (1802), a formação de uma sociedade em que não haveria “ociosos” como ele considerava os militares, os religiosos, os nobres e os magistrados, nem a exploração econômica de grupos de indivíduos por outros. Propôs a divisão da sociedade em três classes: os sábios, os proprietários e os que não tinham posses. O governo seria exercido por um conselho formado por sábios e artistas. Charles Fourier, que ao lado de Pierre Leroux, teria sido um dos primeiros a utilizar a palavra “socialismo”, acreditava ser possível reorganizar o trabalho a partir da criação de falanstérios que superariam a contradição capitalista, surgida da divisão do trabalho e do papel anárquico exercido pelo comércio na sociedade. Alguns falanstérios surgiram através da experiência anarquista nos Estados Unidos da América como os de Réunion e da Falange e o do Saí no Brasil.  
 
                         
A expressão “socialismo” foi consagrada por Robert Owen na anglosfera a partir de 1834. Administrador de uma fábrica de algodão em Manchester observou as condições desumanas de trabalho, colocando-se contrário às perspectivas ineficazes do desenvolvimento industrial. Defendendo a impossibilidade de se formar um ser humano superior no interior de um sistema egoísta e explorador como o capitalismo, buscou a criação de uma comunidade ideal, de igualdade absoluta. Na Escócia, onde assumiu o controle de algumas fábricas de algodão em New Lanark por 25 anos, chegou a aplicar suas ideias implantando uma comunidade, na qual as pessoas trabalhavam dez horas por dia e tinha acesso a instrução. O sucesso da cooperativa e suas críticas à propriedade privada e à religião, no entanto, levaram Owen a abandonar a Grã-Bretanha e se refugiar nos Estados Unidos, onde fundou a comunidade de New Harmony no estado da Indiana. Henri de Saint Simon, o primeiro a utilizar o termo socialismo, foi o pensador original que defendeu a tecnocracia e o planejamento industrial. Os primeiros socialistas previram um mundo melhor, através da mobilização das massas e de processos de tecnologia e combinando-a com uma melhor organização social.
        Os primeiros pensadores socialistas tenderam a favorecer uma autêntica meritocracia combinada com planejamento social racional, enquanto muitos socialistas modernos tenderam para uma abordagem igualitária. As diferentes teorias e concepções socialistas surgiram como reação ao quadro de desigualdade, opressão e exploração na sociedade capitalista do século XIX, e tinham a proposta de buscar uma nova harmonia social por meio de drásticas mudanças, como a transferência dos meios de produção e direção das classes proprietárias para os trabalhadores. Uma consequência dessa transformação seria o fim do trabalho assalariado e a substituição do mercado por uma gestão socializada, com o objetivo de distribuir a produção econômica e todo tipo de serviço segundo as necessidades do trabalhador. Tais mudanças na concepção e execução do processo de trabalho exigiriam necessariamente uma transformação radical do sistema político. Alguns teóricos postularam a revolução social como preferencialmente um único meio de alcançar a nova sociedade. Outros, como os socialdemocratas, consideravam que as transformações políticas deveriam se realizar de forma progressiva, sem ruptura, e dentro do sistema de insumos capitalista.  

A presença italiana no Brasil remonta ao século XVI. Na então Capitania de Pernambuco, centro da economia canavieira, o senhor de engenho Filippo Cavalcanti, um nobre oriundo da cidade de Florença, casou-se com Catarina de Albuquerque, filha do governador Jerônimo de Albuquerque com a índia Maria do Espírito Santo Arcoverde, dando origem ao clã dos Cavalcantis, reconhecido como a maior família do país. A imigração italiana no Brasil foi intensa, tendo como ápice o período entre os anos de 1880 e 1930. A maior parte dela se concentrou no estado de São Paulo. Os italianos começaram a imigrar em número significativo para o Brasil a partir da década de 1870. Foram impulsionados pelas transformações socioeconômicas em curso no Norte da península itálica, que afetaram sobretudo a propriedade da terra. Um aspecto peculiar à imigração italiana é que ela ocorre após a unificação da Itália (1861), razão pela qual uma importante identidade desses imigrantes se forjou, em grande medida, no período histórico de acumulação de capital no Brasil.                     
Antonio Piccarolo nasceu em Alessandria, na Itália, em 1º de março de 1863, filho de Giacomo Piccarolo e de Antonia Goretta, de família de agricultores abastados da região do Piemonte. Em 1881, ingressou no curso de direito da Universidade de Turim. Especializou-se em História e defendeu sua tesi di laurea (cf. Eco, 1977) sobre a abolição da servidão feudal na região de Vercelli. Foi professor no Ginásio Oficial de Viterbo, na região do Lácio. Em 1892, participou da constituição do Partito dei Lavoratori Italiani, depois Partido Socialista Italiano (PSI) no Congresso de Gênova, representando uma associação de trabalhadores de Catânia. Criou e animou um círculo socialista em sua província natal e participou de outros nas cidades de Alba e Turim. Foi vereador em Alessandria (1894 e 1896) e, como líder socialista local, militou com grandes nomes do PSI, tais como Constantino Lazzari, Andrea Costa, Enrico Ferri, Alceste de Ambrys, Leonida Bissolatti e Filippo Turati. Escreveu também para diversos periódicos: “Grido del Popolo”, de Turim, “La Giustizia”, de Reggio Emilia, “Lotta di classe”, de Milão, entre outros. Por seu engajamento político foi diversas vezes reprimido e preso.
Em 1898 estabeleceu-se em Turim como jornalista administrador do “Grido del Popolo” e no ano seguinte foi eleito vereador. Ao fim do mandato, em 1901, fixou-se em Alessandria como diretor do jornal socialista “L’Idea Nuova”. Ao longo desse período, como historiador, aproveitou documentos medievais para publicar trabalhos sobre sua região: “La Bella Galiana”, em 1891, “Cattedrale antica d'Alba”, em 1893, “L'abolizione della servitù della gleba nel Vercelese”, em 1896. Em “La piccola proprieta: come nasce, come muore, publicado na revista Critica Sociale”, de Filippo Turati, analisou a propriedade latifundiária no Monferrato, o que lhe valeu a qualificação de “respeitado teórico da questão agrária dentro do PSI”. Em 1895, levantou no PSI a discussão das questões agrárias por meio da publicação de “Condizioni dei lavoratori dei campi nel Piemonte”. O futuro ideólogo da emigração e da “colônia paulista” do sul do Brasil aparecia, nesses momentos, como intransigente crítico dos proprietários agrícolas do Piemonte, em defesa do campesinato.
Em 1896, juntamente com Bissolati, redigiu o programa nacional do Partido Socialista Italiano para o campo. Em 1902 foi para Piacenza para assumir o cargo de secretário de propaganda na federação provincial de camponeses e também a diretoria do jornal socialista local, Piacenza Nuova. De volta a Turim alguns meses depois, foi nomeado diretor do jornal sindical L'Edilizia e secretário de propaganda da Federação dos Trabalhadores em Construção. Também em 1902 tornou-se secretário do comitê regional dos cavadores de Carrara e diretor do periódico socialista local “La Battaglia”, revista anarquista ilustrada publicada semanalmente na cidade de São Paulo desde 1904. Fundada pelo italiano Oreste Ristori, tornou-se um marco de referência para todos os deserdados da Itália. Denunciando a exploração e as condições desumanas que eram sujeitos os trabalhadores de origem italiana. Eles eram levados a fazendas distantes da capital onde permaneciam isolados e inacessíveis às parcas leis trabalhistas, sujeitos a todo tipo de abuso dos latifundiários que mantinham trabalhadores escravos brancos. Em 1906 a revista semanal teve suas oficinas invadidas pela polícia.
Durante o ano de 1903, promoveu a separação das ligas marmoristas da Federação dos Trabalhadores em Construção (civil), com o intuito de fazer oposição aos anarquistas que dominavam a federação. Dissensões decorrentes dessa política levaram-no a se indispor com parcela significativa do Partido Socialista Italiano local. Assim, o convite de Alceste de Ambrys para dirigir o Avanti!, jornal do PSI em São Paulo, foi bem recebido, e Piccarolo partiu para o Brasil em março de 1904. Viajou em companhia de Ernestina Lesina, que também se destacaria nas lutas pela democracia no Brasil, sobretudo pelos direitos das mulheres. Antonio Piccarolo permaneceu à frente do Avanti!, em São Paulo, até fins de 1905, quando se demitiu para seguir uma trajetória socialista sui generis. Em 1906, fundou “Il Secolo”, por meio do qual iniciou uma polêmica com socialistas mais radicais, reunidos em torno do Avanti!
Nessa nova condição, como persuasor permanente o “intelectual orgânico” do movimento de migração em São Paulo, adotou como tema principal de sua atuação a luta “pelos interesses da colônia italiana de São Paulo”, entre os quais a imigração ganhava posição ímpar, como demonstra no ensaio: “Una rivoluzione economica: la proprietà fondiaria degli italiani nello stato di S. Paolo”, sua primeira obra escrita em São Paulo, em 1908, foi preparada com a intenção de divulgar os progressos feitos por imigrantes que se haviam transformado em pequenos proprietários de terras. Nela, propunha a organização de cooperativas de pequenos produtores de café, nos moldes das existentes em sua terra natal, a Itália, para intensificar as relações comerciais colaborativas entre Itália e Brasil: a ideia básica de permuta, é que os italianos imigrados daqui venderiam café aos de lá, que pagariam com o vinho produzido.
Ainda em 1908, Antonio Piccarolo fundou em São Paulo o “Centro Socialista Paulistano”, cujo manifesto de criação resultou na obra O Socialismo no Brasil. O centro deveria representar no Brasil a visão socialista-reformista, mais moderada do que a do “Centro Socialista Internacional”, dirigido pelo grupo do Avanti!. - “Um programa prático de ação socialista”, defendido na obra, significava o patrocínio do progresso capitalista no campo, mediante a disseminação da pequena propriedade. O socialismo apresentados em suas teses ficava para um futuro não determinado. Suas propostas provocaram polêmicas entre os socialistas e diversas instituições do movimento operário de São Paulo. Autor de mais de quatro dezenas de livros de caráter conspícuo e variado – desde obras de militância, manuais escolares de latim, livros de história social e politica, até compêndios de economia política –, Piccarolo desfrutou de grande notoriedade em sua atividade intelectual.           
Em 1911, publicou L` Emigrazione Italiana nello Stato di San Paolo, defendendo o aumento do fluxo emigratório. Em 1913, momento crucial nas relações entre empregados agrícolas e proprietários de terras, por causa da greve de Ribeirão Preto, publicou trabalhos que refletiam seus diálogos com a “Sociedade Paulista de Agricultura”, reduto da classe dominante de São Paulo, intitulado: Interessi italiani nel Brasile. La fisiologia d'uno sciopero, Cooperativas e defesa do café. Em 1922, publicou um “livro de ouro” das empresas pertencentes a italianos: Gli Italiani nel Brasile. Como jornalista teve atuação não menos saliente: de 1910 a 1923, publicou mensalmente La Rivista Coloniale, que muitas vezes foi acusada de trabalhar a soldo da Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo. Desde os tempos da Itália foi membro da maçonaria e, em São Paulo, liderou o Grande Oriente Autônomo como grão-mestre. Na época escreveu La Massoneria e l`Independenza Brasiliana. Nos anos 1920, sua luta tendeu a concentrar-se na organização do movimento antifascista em São Paulo, funcionando como uma continuação da defesa dos interesses liberais dos “verdadeiros italianos patriotas”. Quando o fascismo ascendeu ao poder na Itália, combateu-o daqui veementemente. Condenou, mesmo antes, a aventura de Gabrielle D'Annunzio no Fiume, que ofereceu ao fascismo toda uma retórica autoritária. Em 1923, com a maçonaria, fundou e dirigiu o primeiro órgão antifascista La Difesa até fins de 1926.

Nessa ocasião a diretoria passou a ser ocupada pelo conde Francesco Frola, com quem entrou em disputa pouco depois, provocando uma reorganização do antifascismo local. Em 1927, liderando republicanos e socialistas, montou a seção paulista da Lega Italiana dei Diritti del'Uomo. Essa associação, que nascera em 1919 em Milão, tinha como um de seus objetivos auxiliarem os imigrantes políticos italianos e defender os antifascistas de possíveis arbitrariedades policiais. Em 1928, editou outro órgão de propaganda antifascista, Il Risorgimento. Pouco antes da chamada Revolução de 1930, ganhava a disputa com Frola e o obrigava a deixar o movimento e o país. Como professor, Piccarolo havia, desde a segunda década do século, lecionado latim, literatura clássica, história, economia e política em diversas instituições. Assim, trabalhou no Instituto Médio Dante Alighieri, na Escola Normal da Praça da República e no Ginásio do Estado. De 1920 a 1934, na Escola Normal do Brás, foi professor Titular. Em 1931, um dos fundadores da efêmera, mas pioneira Faculdade Paulista de Letras e Filosofia e eleito primeiro secretário geral.
Na Escola Livre de Sociologia e Política lecionou desde a criação, em 1933, até o encerramento de sua carreira no magistério, em 1946. Sua produção intelectual adequou-se, então, ao magistério. São desse período obras de caráter evocativo sob vultos da pátria-mãe que mantiveram contato com o Brasil, como: “Um Engenheiro Italiano na Descoberta das Minas Brasileiras”, “Livio Zambeccari: Apóstolo da Liberdade na América e na Itália”, “Um Pioneiro das Relações Ítalo-brasileiras: B. Belli”. Produziu igualmente diversos trabalhos didáticos e textos preparados para conferências: “Iniciação à Economia Social”, “Dificuldades Léxicas da Língua Latina”, “Augusto e seu Século”, “A Guerra e a Paz na História”, “História das Doutrinas Políticas”. Durante a grande guerra de 1914-18, procurou refazer os laços de amizade entre a Itália e o Brasil criando uma sociedade mista de beneficência e cultura, Italia Libera. Tal associação, após 1945, refez-se e ampliou-se com a participação de homens como Jorge Americano, Francisco Matarazzo Sobrinho, Sergio Miliet, adotando a denominação Sociedade de Cultura Brasil-Itália. Nesse momento de conjuntura difusa, sua militância socialista arrefecia, como resposta à maior integração dos italianos e ítalo-brasileiros às estruturas econômicas e sociais da vida nacional. Faleceu em São Paulo em 1947.
Bibliografia geral consultada.

HUTTER, Lucy Maffei, Imigração Italiana em São Paulo (1880-1889): Os Primeiros Contactos do Imigrante com o Brasil. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros/Universidade de São Paulo, 1972; HALL, Michael, “Emigrazione Italiana a San Paolo tra 1880 a 1920”. In: Quaderni Storici, 1974; CANO, Wilson, Raízes da Concentração Industrial em São Paulo. Tese de Doutorado em História. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade de Campinas, 1975; ALVIM, Zuleika Maria Forcione, Brava Gente! Os Italianos em São Paulo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986; CALSANI, Rodrigo de Andrade, O Imigrante Italiano nos Corredores dos Cafezais: Cotidiano Econômico na Alta Mogiana (1887-1914). Dissertação de Mestrado em História. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 2010; HECKER, Alexandre, “O Socialista Reformista da Colônia Italiana de Sao Paulo”. In: Novos Cadernos, vol. 1, n° 1, 1987; Idem, Um Socialismo Possível: A Atuação de Antonio Piccarolo em Sao Paulo. São Paulo: Editor T. A. Queiros, 1988; Idem, “Socialistas contra Fascistas e Comunistas na São Paulo Italiana dos Anos 20”. In: Studi Emigrazione, vol. 176, pp. 911-926, 2009; TEIXEIRA, Mariana Eliane, Ecos do Nacionalismo Italiano: Os Sentidos da Italianidade em Juiz de Fora (1878-1922). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2016; CORRÊA, Mariana da Silva, Construindo a Cidade: A Paricipação dos Imigrantes Italianos na Formação do Espaço Urbano de Juiz de Fora (1895-1939). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História Econômica. Departamento de História. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: UnIversidade de São Paulo, 2016; SILVA, Claudia Felipe da, Vida Musical, Imigração Italiana e Desenvolvimento Urbano: A Trajetória Histórico-cultural de Serra Negra, ao Longo do Século XX. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2017;  entre outros.

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