terça-feira, 17 de maio de 2016

Educação & Política Republicana - Colocando os Pingos nos Ís.

                                                                                                     Ubiracy de Souza Braga*

                                                                                           Se existe um poder soberano neste país, ele é a Rede Globo de Televisão”. Herbert de Souza


  A noção de “desconstrução” surge pela primeira vez na introdução à tradução de 1962 da “Origem da Geometria” de Edmund Husserl. A desconstrução não significa destruição, mas sim desmontagem, decomposição dos elementos da escrita. A desconstrução serve nomeadamente para descobrir partes do texto que estão dissimuladas e que interditam certas condutas. Esta metodologia de análise centra-se apenas nos textos. Falar de desconstrução dentro da teoria do conhecimento é falar de Jacques Derrida. Além de valorizar a escritura, o próprio texto derridiano “joga” com a linguagem, dá esse novo corpo, num exercício literário. Seus textos se filiam de certa forma, ao poético, ao intraduzível, ao excedente do significante. Sua escritura costuma trabalhar em torno de uma palavra ou um verso no qual ele constrói um pensamento. As transformações políticas e a chamada “modernização” no campo de análise econômico-social do Brasil quase sempre foram efetuadas no quadro de pensamento através da “via prussiana”, melhor dizendo, através da conciliação entre as frações das classes dominantes e de medidas aplicadas “de cima para baixo”. Com sua conservação essencial das relações de produção atrasadas (o latifúndio) e com a reprodução ampliada de capital de dependência ao capitalismo internacional. Essas transformações “pelo alto” tiveram como causa e efeito principal, a permanente tentativa de marginalizar as classes subalternas. Não só da vida social em geral, mas, sobretudo do processo social de formação e tomada das grandes decisões políticas nacionais. Conjunturalmente os exemplos são inúmeros: quem proclamou nossa Independência política foi um príncipe português, numa típica manobra “pelo alto”; a classe dominante do Império foi a mesma da época colonial; quem terminou capitalizando os resultados da proclamação da República também ela proclamada “pelo alto” foi a quinhentista oligarquia agrária.
             Uma forma de atividade generalizada que tomou lugar na vida social não pode, evidentemente, permanecer tão desregulamentada, em seu desempenho e atividade, sem que disso resulte os impactos sociais sobre a divisão do trabalho e as mais profundas perturbações. Mas sofrer no trabalho não é uma fatalidade. É, em particular, como decorre e testemunhamos, uma fonte de desmoralização geral real. Pois, precisamente porque as do ponto de vista das funções econômicas absorvem o maior número de cidadãos, para o pleno desenvolvimento da vida social, há uma multidão de indivíduos, como dizia Freud, cuja vida transcorre quase toda no meio industrial e comercial; a decorrência disso é que, como tal meio é pouco marcado pela moralidade, a maior parte da existência transcorre fora de toda e qualquer ação moral. A tese funcionalista expressa na pena de Émile Durkheim, como uma espécie de antídoto da civilização, e que o sentimento do dever cumprido se fixe fortemente em nós, é preciso que as próprias circunstâncias em que vivemos permanentemente desperto. A atividade de uma profissão só pode ser regulamentada eficazmente por “um grupo próximo o bastante dessa mesma profissão para conhecer bem seu funcionamento, para sentir todas as suas necessidades e poder seguir todas as variações destas”. O único grupo que corresponde a essas condições é o que seria formado por todos os agentes de uma mesma condição reunidos num mesmo corpo. E que a sociologia durkheimiana conceitua de corporação ou grupo profissional. É na ordem econômica que o grupo profissional existe tanto quanto a moral profissional. Desde que, não sem razão, com a supressão das antigas corporações, não se fizeram mais do que tentativas fragmentárias e incompletas para reconstituí-las em novas bases sociais.   

Os únicos agrupamentos dotados de permanência são os que se chamam sindicatos, seja de patrões, seja de operários. Historicamente, temos aí in statu nascendi o começo e o princípio ético de uma organização profissional, mas ainda de forma rudimentar. Isto porque, em primeiro lugar, um sindicato é uma associação privada, sem autoridade legal, desprovida, por conseguinte, de qualquer poder regulamentador. O número deles é teoricamente ilimitado, mesmo no interior de uma categoria industrial; e, como cada um é independente dos outros, se não se constituem em federação e se unificam, não há neles nada que exprima a unidade da profissão em seu conjunto de práticas e saberes sociais. Não só os sindicatos de patrões e de empregados são distintos uns dos outros, o que é legítimo e necessário, como não há entre eles contatos regulares. Não existe organização comum que os aproxime sem fazê-los perder sua individualidade e na qual possam elaborar em comum uma regulamentação que, estabelecendo suas relações mútuas, imponha-se a ambas as partes com a mesma autoridade; por conseguinte, é sempre a “lei dos mais forte” que resolve os conflitos, e o estado de guerra subiste inteiro. Salvo no caso de seus atos pertencentes à esfera moral comum estão na mesma situação. A tese sociológica é a seguinte: para que uma moral e um direito profissionais possam se estabelecer nas diferentes profissões, é necessário, pois, que a corporação, em vez de permanecer um agregado confuso e sem unidade, se torne, ou antes, volte a ser, um grupo definido, organizado, uma instituição pública.  A primeira observação familiar da crítica histórica e sociológica de Émile Durkheim, é que a corporação tem contra si seu próprio passado histórico. De fato, ela é tida como intimamente solidária do antigo regime político e, por conseguinte, como incapaz de sobreviver a ele. 



            Na história da filosofia, o que permite considerar as corporações uma organização temporária, boa apenas para uma época e uma civilização determinada, é, ao mesmo tempo, sua grande antiguidade e a maneira como se desenvolveram na história. Se elas datassem unicamente da Idade Média, poder-se-ia crer, de fato que, nascidas com um sistema político, deviam necessariamente desaparecer com ele. Mas, na realidade, têm uma origem bem mais antiga. Em geral, elas aparecem desde que as profissões existem, isto é, desde que a atividade deixa de ser puramente agrícola. Se não parecem ter sido conhecidas na Grécia, até o tempo da conquista romana, é porque os ofícios, sendo desprezados, eram exercidos exclusivamente por estrangeiros e, por isso mesmo, achavam-se excluídos da organização legal da cidade. Mas em Roma, comparativamente, elas datam pelo menos dos primeiros tempos da República; uma tradição chegava até a atribuir sua criação ao rei Numa, Numa, de origem sabina, foi o segundo rei de Roma (datas convencionais: 717/715 - 673 a. C.), logo a seguir a Rómulo, um sabino escolhido como segundo rei de Roma. Sábio, pacífico e religioso, dedicou-se a elaboração das primeiras leis de Roma, assim como dos primeiros ofícios religiosos da cidade e do primeiro calendário. É verdade que, por tempo, elas tiveram de levar uma existência bastante humilde, pois os historiadores e os monumentos só raramente as mencionam; não sabemos muito bem como eram organizadas. Desde de Cícero, sua quantidade tornara-se considerável e elas começavam a desempenhar um papel. Nesse momento, diz J.-P Waltzing (1857-1929), “todas as classes de trabalhadores parecem possuídas pelo desejo de multiplicar as associações profissionais” (cf. Durkheim, 2010).  

Mas o caráter socialmente desses agrupamentos se modificou; eles acabaram tornando-se “verdadeiras engrenagens da administração” (cf. Altbach; Knight, 2007). Desempenhavam funções oficiais; cada profissão era vista como um serviço público, cujo encargo e cuja responsabilidade ante o Estado cabiam à corporação correspondente. Foi a ruína da instituição. Porque, segundo Durkheim, essa dependência em relação ao Estado não tardou a degenerar numa servidão intolerável que os imperadores só puderam manter pela coerção. Todas as sortes de procedimentos foram empregadas para impedir que os trabalhadores escapassem das pesadas obrigações que resultavam, para eles, de sua própria profissão. Evidentemente, tal sistema de trabalho só podia durar enquanto o poder político fosse o bastante para impô-lo. É por isso que ele não sobreviveu à dissolução do Império. Aliás, as guerras civis e as invasões haviam destruído o comércio e a indústria; os artesãos aproveitaram essas circunstâncias para fugir das cidades e se dispersar nos campos. Assim, os primeiros séculos de nossa era viram produzir-se um fenômeno que devia se repetir tal qual no fim do século XVII: a vida corporativa se extinguiu quase por completo. Mal subsistiram alguns vestígios seus, na Gália e na Germânia, nas cidades de origem romana. Portanto, naquele momento, um teórico tivesse tomado consciência da situação, teria provavelmente concluído, como o fizeram mais tarde os economistas, que as corporações não tinham, ou, em todo caso, não tinham mais razão de ser, que haviam desaparecido irreversivelmente, e sem dúvida teria tratado de retrógrada e irrealizável toda tentativa de reconstituí-las. Os acontecimentos desmentiriam uma tal profecia. De fato, após um “eclipse da razão” de algum tempo caminhando para os nossos dias, as corporações recomeçaram nova existência em todas as sociedades europeias.

Elas renasceram por volta dos séculos XI e XII. Desde esse momento, diz Emile Levasseur, “os artesãos começam a sentir a necessidade de se unir e formam suas primeiras associações”.  Em todo caso, no século XII, elas estão outra vez florescentes e se desenvolvem até o dia em que começa para elas uma nova decadência. Uma instituição tão persistente assim não poderia depender de uma particularidade contingente e acidental; muito menos ainda é possível admitir que tenha sido o produto de não sei que “aberração coletiva”. Se, desde a origem da cidade até o apogeu do Império, desde o alvorecer das sociedades cristãs aos tempos modernos, elas foram necessárias, é porque correspondem a necessidades duradouras e profundas. Sobretudo, vale lembrar que o próprio fato de que, depois de terem desaparecido uma primeira vez, reconstituíram-se por si mesmas e sob uma nova forma, retira todo e qualquer valor ao argumento que apresenta sua desaparição violenta no fim do século passado como uma prova de que não estão mais em harmonia com as novas condições de existência coletiva. A necessidade que todas as grandes sociedades civilizadas sentem de chamá-las de volta à vida é o mais seguro sintoma evidente dessa supressão radical não era um remédio e de que a reforma de Jacques Turgot requeria outra que não poderia ser indefinidamente adiada. Mas nem toda organização corporativa é anacronismo histórico. Acreditamos que ela seria chamada a desempenhar, nas sociedades contemporâneas, menos pelo papel considerável que julgamos indispensável, por causa não dos serviços econômicos que ela poderia prestar, mas da influência moral que poderia ter.  O que vemos antes de mais nada no grupo profissional é um poder moral capaz de conter os egoísmos individuais, de manter no coração dos trabalhadores um sentimento vivo de solidariedade comum, de impedir que a “lei do mais forte” se aplique de maneira brutal nas relações industriais e comerciais. 

Mas é preciso evitar estender a todo regime corporativo o que pode ter sido válido para certas corporações e durante um curto lapso de tempo de seu desenvolvimento. Longe de ser atingido por uma sorte de enfermidade moral devida à sua própria constituição, foi sobretudo um papel moral que ele representou e continua representando ainda, na maior parte de sua história. Isso é particularmente evidente no caso das corporações romanas. Sem dúvida, a associação lhes dava mais forças para salvaguardar, se necessário, seus interesses comuns. Mas era isso apenas um dos contragolpes úteis que a instituição produzia, lembra Durkheim: “não era sua razão de ser, sua função principal. Antes de mais nada, a corporação era um colégio religioso”. Cada uma tinha seu deus particular, cujo culto quando ela tinha meios, era celebrado num templo especial. Do mesmo modo que cada família tinha seu Lar familiaris, cada cidade seu Genius publicus, cada colégio tinha seu deus tutelar, Genius collegi. Naturalmente, o culto profissional não se realizava sem festas, que eram celebradas em comum sem sacrifícios e banquetes. Todas as espécies de circunstâncias serviam, aliás, de ocasião para alegres reuniões, além disso, distribuições de víveres ou de dinheiro ocorriam com frequência às expensas da comunidade. Indagou-se se a corporação tinha uma caixa de auxílio, se ela assistia regularmente seus membros necessitados, e as opiniões a esse respeito são divididas. Mas o que retira da discussão parte de seu interesse e de seu alcance é que esses banquetes comuns, mais ou menos periódicos, e as distribuições que os acompanharam serviam de auxílios e faziam não raro as vezes de uma assistência direta. Os infortunados sabiam que podiam contar com essa subvenção dissimulada. Como corolário do caráter religioso, o colégio de artesãos era, ao mesmo tempo, um colégio funerário.

Unidos, como gentiles, num mesmo culto durante sua vida, os membros da corporação queriam, como eles, dormir juntos seu derradeiro sono.  A importância tão considerável que a religião tinha em sua vida, tanto em Roma quanto na Idade Média, põe particularmente em evidência a verdadeira natureza de suas funções; porque toda comunidade religiosa constituía, então, um ambiente moral, do mesmo modo que toda disciplina moral tendia necessariamente a adquirir uma forma religiosa. A partir do instante em que, no seio de uma sociedade política, certo número de indivíduos tem em comum ideias, interesses, sentimentos, ocupações que o resto da população não partilha com eles, é inevitável que, sob a influência dessas similitudes eles sejam atraídos uns para os outros, que se procurem, teçam relações, se associem e que se forme assim, pouco a pouco, um grupo restrito, com sua fisionomia especial da sociedade em geral. Porque é impossível que homens vivam juntos, estejam regularmente em contato, sem adquirirem o sentimento do todo que formam por sua união, sem que se apeguem a esse todo, se preocupem com seus interesses e o levem em conta em sua conduta. Enfim, basta que esse sentimento se precise e se determine, que, aplicando-se às circunstâncias mais ordinárias e mais importantes da vida, se traduza em fórmulas definidas, para que se tenha um corpo de regras morais em via de se constituir. Ao mesmo tempo que se produz por si mesmo e pela força das coisas, esse resultado é útil e o sentimento de sua utilidade contribui para confirma-lo. A vida em comum é atraente, ao mesmo tempo que coercitiva. Para o ponto de vista conservantista do método analítico durkheimiano, a coerção é necessária para levar o homem a se superar, a acrescentar à sua natureza física outra natureza; mas, à medida que aprende a apreciar os encantos dessa nova existência, contrai a sua necessidade e não há ordem de atividade que não os busque com paixão.

A moral doméstica não se formou de outro modo. Por causa do prestígio que a família conserva ante nossos olhos, parece-nos que, se ela foi e é sempre uma escola de dedicação e de abnegação, o foco por excelência da moralidade, é em virtude de características bastante particulares que teria o privilégio e que não se encontrariam em ouro lugar em nenhum grau. Costuma-se crer que exista na consanguinidade uma causa excepcionalmente poderosa de aproximação moral. A prova está em que, num sem-número de sociedades, os não-consanguíneos são muitos no seio da família; o parentesco dito artificialmente se contrai então com grande facilidade e exerce todos os efeitos do parentesco natural. Inversamente, acontece com grande frequência consanguíneos bem próximos serem, moral ou juridicamente, estranhos uns aos outros; é, por exemplo, o caso dos cognatos na família romana. Portanto, a família não deve suas virtudes à unidade de descendência: ela é, simplesmente, um grupo de indivíduos que foram aproximados uns dos outros, no seio da sociedade política, por uma comunidade mais particularmente estreita de ideias, sentimentos e interesses. A consanguinidade pode ter facilitado essa concentração, pois ela tem por efeito natural inclinar as consciências umas em relação às outras. Outros fatores intervieram: a proximidade material, a solidariedade de interesses, a necessidade de união contra um perigo comum, ou simplesmente de se unir, foram causas muito mais poderosas de comunicação social no processo produtivo. Mas, para dissipar todas as prevenções, para mostrar bem que o sistema corporativo não é apenas uma instituição do passado, seria necessário mostrar que transformações ele deve e pode sofrer para se adaptar às sociedades modernas, pois é evidente que ele não pode ser o que era na Idade Média. 

Para tanto, seriam necessários estudos comparativos que não estão feitos e que não podemos fazer de passagem. Talvez, porém, não seja impossível perceber desde já, mas apenas em suas linhas mais gerais, o que foi esse desenvolvimento. O historiador que empreende resolver em seus elementos a organização política dos romanos não encontra, no decurso de sua análise, nenhum fato que possa adverti-lo da existência das corporações. Elas não entravam na constituição romana, na qualidade de unidades definidas e reconhecidas. Em nenhuma das assembleias eleitorais, em nenhuma das reuniões do exército, os artesãos se reuniam por colégios, em parte alguma o grupo profissional tomava parte, como tal, na vida pública, seja em corpo, seja por intermédio de representantes regulares. No máximo, a questão pode se colocar a propósito de três ou quatro colégios que se imaginou poder identificar com algumas das centúrias constituídas por Sérvio Túlio, a saber: tignari (construtores de casas), aerari (corporação clerical), tibicines (monumento funerário), corporações cornicínes (espécie de pizza enrolada), mas ainda assim o fato social não está bem estabelecido.

Quanto às outras corporações, estavam certamente fora da organização oficial do povo romano. Ora, por muito tempo os ofícios não foram mais do que uma forma acessória e secundária da atividade social dos romanos. Roma era essencialmente uma sociedade agrícola e guerreira. No primeiro era dividida em gentes e em cúrias; a assembleia por centúrias refletia antes a organização militar. Quanto às funções industriais, eram demasiado rudimentares para afetar a estrutura política da cidade. Aliás, até um momento bem avançado da história romana, os ofícios permaneceram marcados por um descrédito moral que não lhes permitia ocupar uma posição regular no Estado. Sem dúvida, veio um tempo em que sua condição social melhorou. Mas a própria maneira como foi obtida essa melhora é significativa. Para conseguir fazer respeitar seus interesses e desempenhar um papel na vida pública, os artesãos tiveram de recorrer a procedimentos irregulares e extralegais. Só triunfaram sobre o desprezo de que eram objeto por meios de intrigas, complôs, agitação clandestina. E, se, mais tarde, acabaram sendo integrados ao Estado para se tornar engrenagens da máquina administrativa, essa situação como foi, para eles, uma conquista gloriosa, mas uma penosa dependência; se entraram então no Estado, não foi para nele ocupar a posição a que seus serviços sociais podiam lhes dar direito, mas simplesmente para poder ser mais bem vigiados pelo poder governamental.

           A Revolução de 1930, apesar de tudo, não passou de um rearranjo do velho bloco de poder, que cooptou - e, desse modo, neutralizou e subordinou – alguns setores mais radicais das camadas médias urbanas; a burguesia industrial floresceu sob a proteção de um regime bonapartista, o Estado Novo (1937-45), que assegurou pela repressão e pela demagogia a neutralização da classe operária, ao mesmo tempo em que conservava quase intocado o poder do latifúndio.. Mas essa modalidade de via prussiana, ou de ´revolução-restauração, encontrou seu ápice no regime militar, que criou as condições políticas de implantação de uma modalidade dependente e conciliada com o latifúndio de capitalismo monopolista de Estado, radicalizando a tendência a excluir das decisões políticas as grandes massas urbanas da população nacional. Golpes de Estado são característicos de momentos em que grupos políticos de oposição extrapolam a legalidade e, por vezes, fazem uso da violência para derrubar um governo legítimo. O termo golpe de Estado é conhecido em sua versão francesa, “coup d’État”, e em sua versão alemã, “Staatssreich”, identificando uma ruptura institucional repentina. O primeiro evento a ser considerado como golpe de Estado é o chamado “18 Brumário”, de Napoleão Bonaparte analisado por Marx.. O controle do Estado passa subitamente das mãos do governo constitucionalmente eleito para outro grupo de governantes. Esta é a condição que caracteriza o conceito proveniente das mudanças de paradigma propostas pelo Iluminismo e pela revolução clássica francesa. Antes desta conjuntura política, as rupturas institucionais não eram chamadas de revolução, o que, hoje, se entende como profundo processo de transformação social provocados com a participação popular. Logo, golpe de Estado passou a representar as vias excepcionais de tomada do poder, recorrendo ao apoio militar ou de outras facções no poder que utilizam a quartelada parlamentar. Têm-se a suspensão do poder Legislativo, a perseguição aos oposicionistas, instauração de um quadro de exceção e decretação de novos meios jurídico-políticos. A prática do golpe de Estado legal parece ser a nova estratégia das oligarquias latino-americanas, e particularmente, com o afastamento ilegal de Dilma Rousseff da presidência da República, eleita com maioria de 54 milhões de votos.
De acordo com Michael Löwy (2016), o que a tragédia de 1964 e a farsa de 2016 têm em comum é o ódio à democracia. Os dois episódios revelam o profundo desprezo que as classes dominantes brasileiras têm pela democracia e pela vontade popular. Em 1964, grandes manifestações “da família com Deus pela liberdade” prepararam o terreno para o golpe contra o presidente João Goulart; dessa vez, multidões “patrióticas” – influenciadas pela imprensa submissa – se mobilizaram para exigir a destituição de Dilma, em alguns casos chegando a pedir o retorno dos militares. Formadas essencialmente por brancos, pois como sabemos, os brasileiros são em maioria negra ou mestiça, e como dizia Darcy Ribeiro: mestiço é que é bom, de classe média, essas multidões foram convencidas pela mídia que age como partido político de que, nesse caso, o que está em jogo é “o combate à corrupção”.  
O site norte-americano “The Intercept” publicou uma matéria na sexta-feira (18/03) na qual afirma que “as corporações de mídia” do Brasil agem como “organizadoras de protestos” contra a presidente do Brasil, Dilma Rousseff, e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na matéria, a grande imprensa é classificada ainda como “máquinas de relações públicas de partidos de oposição”. O “Intercept” adverte que perfis pessoais de jornalistas da Rede Globo no “Twitter” exibem uma “incessante agitação anti-PT”. Um dos cofundadores de “The Intercept” é o jornalista Glenn Greenwald, que assina a matéria e vencedor em 2014 do prêmio Pulitzer por Serviço Público após a publicação de Relatórios sobre vigilância dos governos dos EUA e do Reino Unido. Greenwald teve como base documentos “vazados” por Edward Snowden, ex-agente da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América. A mídia ao redor do mundo está atenta ao golpe de Estado contra a presidenta Dilma Rousseff e a perseguição judicial que tenta atingir o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Sob o título “Crise de Estado no Brasil: golpe frio”, uma reportagem da revista semanal de notícias “Der Spiegel”, da Alemanha, analisou a crise política e a possibilidade de golpe em vigor no Brasil. O autor da reportagem, o jornalista Jens Glüsing, diz o que ocorre no País é uma tentativa de “golpe frio”. Nas manifestações a favor da presidenta Dilma e do ex-presidente Lula não se viu discursos de ódio, enquanto noutros havia “cada vez mais golpistas, extremistas de direita e intolerantes”. Em longa reportagem, “Al Jazeera” também analisa o comportamento da imprensa na cobertura da crise política brasileira. A emissora lembra que cinco famílias monopolizam grande parte da mídia televisada nacional: Marinho (rede Globo de Televisão), Frias (Folha de S. Paulo), Civita (revista Abril Cultural), dona da revista Veja, Saad (rede Bandeirantes de Televisão) e bipo Macedo (rede Record de Televisão). A mídia corporativa brasileira age como os verdadeiros organizadores dos protestos e como relações-públicas dos partidos de oposição. Os perfis no Twitter de alguns jornalistas mais influentes (e ricos) da Rede Globo contém incessantes agitações anti-PT. Quando uma gravação de escuta telefônica de uma conversa entre Dilma e Lula foi interceptada, o programa jornalístico mais influente da [rede] Globo, o Jornal Nacional, “fez suas âncoras relerem teatralmente o diálogo”. De melodramática e em tom de fofoca, que se parecia literalmente com uma novela distante de um jornal, causando ridicularização generalizada nas redes. 
Todo leitor socialmente mediano sabe que durante meses, as quatro principais revistas jornalísticas do Brasil dedicaram capa após capa a ataques inflamados contra Dilma e Lula, geralmente mostrando fotos dramáticas, abusadas, de um ou outro, sempre com uma narrativa impactantemente unificada. A crise de hegemonia política que assombra o Brasil atrai substancialmente a atenção da mídia internacional. O que é compreensível, já que o Brasil é o quinto país mais populoso representando, além disso, a oitava economia do mundo. Sua segunda maior cidade, o Rio de Janeiro, é a sede das Olimpíadas deste ano. Boa parte dessa cobertura internacional é repetidora do discurso que vem das fontes midiáticas homogeneizadas, antidemocráticas e mantidas por oligarquias no Brasil e, essa informação é enviesada, ideologizada, pouco precisa e incompleta, especialmente quando vem daqueles profissionais com pouca familiaridade com o país, embora haja repórteres internacionais fazendo um ótimo trabalho de comunicação social. O Brasil está enfrentando sua pior crise econômica das últimas décadas. Um enorme esquema de corrupção tem prejudicado a empresa pública petrolífera nacional. Quando a mídia internacional fala sobre crise, ela tem como escopo os crescentes protestos que forjam o “impeachment” da presidente Dilma Rousseff. As fontes midiáticas tipicamente mostram os protestos de forma idealizada, com certa adoração: “como movimentos de massa inspiradores que se levantam contra um regime corrupto”. Chuck Todd, da NBC News, replicou Ian Bremmer do Eurasia Group, descrevendo os protestos como “O povo contra a presidente” – fabricado, condizente com o que é noticiado por grupos midiáticos brasileiros anti-governo, como a rede Globo de televisão.  
O Partido dos Trabalhadores (PT) está na presidência há 14 anos: desde 2002. Sua popularidade foi um subproduto do antecessor carismático de Dilma, Luís Inácio Lula da Silva, universalmente referido como “Lula”. A ascensão de Lula à presidência foi um símbolo poderoso da luta da classe pobre no Brasil durante a democracia: um trabalhador e líder sindical, de uma família pobre, que deixou a escola na segunda série e não sabia ler até os 10 anos, preso pela ditadura por atividade na luta sindical. O ex-presidente foi motivo de riso para elites brasileiras por meio de um tom classista no discurso sobre seu jargão trabalhista e sua forma de falar. Eleito em 2002 e reeleito em 2006, ele deixou o cargo com taxas de aprovação tão altas que foi capaz de garantir a eleição de Dilma Rousseff, sua sucessora, antes aparentemente desconhecida pela classe trabalhadora, e que foi reeleita em 2014. Há muito tempo se cogita que Lula – um político que se opõe publicamente a medidas de austeridade – pretende concorrer novamente para a presidência em 2018 depois de completo o segundo mandato de Dilma, e forças anti-PT se sentem petrificadas com a ideia de que Lula vença novamente. Daí o discurso do ódio. Embora as oligarquias brasileira tenha usado o Partido da Social Democracia Brasileira, partido de centro-direita, de forma bem sucedida como um contrapeso, o partido foi impotente para derrotar o Partido dos Trabalhadores em quatro eleições presidenciais consecutivas. Mesmo com o voto obrigatório os eleitores pobres garantiram as vitórias do Partido dos Trabalhadores. 
Bibliografia geral consultada.

DERRIDA, Jacques, “O Teatro da Crueldade e o Fechamento da Representação”. In: A Escritura e a Diferença. 2ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995; Idem, O animal que logo sou (a seguir). São Paulo: Editora UNESP, 2002; HERZ, Daniel, A História Secreta da Rede Globo. 13ª edição. Porto Alegre: Editor Ortiz, 1989; BRITTOS, César Cruz; BOLAÑO, Valério Ricardo Siqueira, 40 Anos de Poder e Hegemonia. Rio de Janeiro: Editora Paulus, 2005; MONTAIGNE, Michel, “Da crueldade”. In: Ensaios. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000, volume 1; pp. 358-370. (Os pensadores); AGAMBEN, Giorgio, Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I. 2ª edição. Belo Horizonte: Editora Universidade Federal de Minas Gerais, 2002; FOUCAULT, Michel, As Palavras e as Coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007; MAGNONI, Maria Salete, Imprensa como Instância de Poder: Uma Leitura das Recordações do Escrivão Isaías Caminha de Lima Barreto. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2010;  MAINENTI, Geraldo Márcio Peres, “O Jornalismo como Quarto Poder: A Liberdade de Imprensa e a Proteção dos Direitos da Personalidade”. Alceu, volume 14, n. 28; pp. 47-61; jan./jun. 2014;  LOWY, Michael, “O Golpe de Estado de 2016 no Brasil”. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2016/05/17NAPOLITANO, Paola, Neogolpismo na América Latina: Uma Análise Comparativa do Paraguai (2012) e do Brasil (2016). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2019; NAPOLITANO, Marcos, “Golpe de Estado: entre o nome e a coisa”. In: Estudos Avançados, 33 (96), 2019; POZZI, Henrique Costa, Golpe de 2016: Uma Análise a partir dos Editoriais da FSP, O Globo e OESP. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2019; entre outros. 
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ) e Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Fortaleza: Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

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