Educação & Política Republicana - Colocando os Pingos nos Ís.
Ubiracy de Souza Braga*
“Se existe um poder soberano neste país, ele
é a Rede Globo de Televisão”. Herbert de Souza
A noção
de “desconstrução” surge pela primeira vez na introdução à tradução de 1962 da
“Origem da Geometria” de Edmund Husserl. A desconstrução não significa destruição,
mas sim desmontagem, decomposição dos elementos da escrita. A desconstrução
serve nomeadamente para descobrir partes do texto que estão dissimuladas e que
interditam certas condutas. Esta metodologia de análise centra-se apenas nos
textos. Falar de desconstrução dentro da teoria do conhecimento é falar de
Jacques Derrida. Além de valorizar a escritura, o próprio texto derridiano “joga”
com a linguagem, dá esse novo corpo, num exercício literário. Seus textos se filiam
de certa forma, ao poético, ao intraduzível, ao excedente do significante. Sua
escritura costuma trabalhar em torno de uma palavra ou um verso no qual ele
constrói um pensamento. As
transformações políticas e a chamada “modernização” no campo de análise
econômico-social do Brasil quase sempre foram efetuadas no quadro de pensamento
através da “via prussiana”, melhor dizendo, através da conciliação entre as frações
das classes dominantes e de medidas aplicadas “de cima para baixo”. Com sua
conservação essencial
das relações de produção atrasadas (o latifúndio) e com a reprodução ampliada de capital de dependência ao capitalismo
internacional. Essas transformações “pelo alto” tiveram como causa e efeito
principal, a permanente tentativa de marginalizar as classes subalternas. Não
só da vida social em geral, mas, sobretudo do processo social de formação e
tomada das grandes decisões políticas nacionais. Conjunturalmente os exemplos
são inúmeros: quem proclamou nossa Independência política foi um príncipe
português, numa típica manobra “pelo alto”; a classe dominante do Império foi a
mesma da época colonial; quem terminou capitalizando os resultados da
proclamação da República também ela proclamada “pelo alto” foi a quinhentista
oligarquia agrária.
Uma
forma de atividade generalizada que tomou lugar na vida social não pode,
evidentemente, permanecer tão desregulamentada, em seu desempenho e atividade,
sem que disso resulte os impactos sociais sobre a divisão do trabalho e as mais
profundas perturbações. Mas sofrer no trabalho não é uma fatalidade. É, em
particular, como decorre e testemunhamos, uma fonte de desmoralização geral
real. Pois, precisamente porque as do ponto de vista das funções econômicas
absorvem o maior número de cidadãos, para o pleno desenvolvimento da vida
social, há uma multidão de indivíduos, como dizia Freud, cuja vida transcorre
quase toda no meio industrial e comercial; a decorrência disso é que, como tal
meio é pouco marcado pela moralidade, a maior parte da existência transcorre
fora de toda e qualquer ação moral. A tese funcionalista expressa na pena de
Émile Durkheim, como uma espécie de antídoto da civilização, e que o sentimento
do dever cumprido se fixe fortemente em nós, é preciso que as próprias
circunstâncias em que vivemos permanentemente desperto. A atividade de uma
profissão só pode ser regulamentada eficazmente por “um grupo próximo o
bastante dessa mesma profissão para conhecer bem seu funcionamento, para sentir
todas as suas necessidades e poder seguir todas as variações destas”. O único
grupo que corresponde a essas condições é o que seria formado por todos os
agentes de uma mesma condição reunidos num mesmo corpo. E que a sociologia
durkheimiana conceitua de corporação ou grupo profissional. É na ordem
econômica que o grupo profissional existe tanto quanto a moral profissional.
Desde que, não sem razão, com a supressão das antigas corporações, não se
fizeram mais do que tentativas fragmentárias e incompletas para reconstituí-las
em novas bases sociais.
Os
únicos agrupamentos dotados de permanência são os que se chamam sindicatos,
seja de patrões, seja de operários. Historicamente, temos aí in statu nascendi
o começo e o princípio ético de uma organização profissional, mas ainda de
forma rudimentar. Isto porque, em primeiro lugar, um sindicato é uma associação
privada, sem autoridade legal, desprovida, por conseguinte, de qualquer poder
regulamentador. O número deles é teoricamente ilimitado, mesmo no interior de
uma categoria industrial; e, como cada um é independente dos outros, se não se
constituem em federação e se unificam, não há neles nada que exprima a unidade
da profissão em seu conjunto de práticas e saberes sociais. Não só os
sindicatos de patrões e de empregados são distintos uns dos outros, o que é
legítimo e necessário, como não há entre eles contatos regulares. Não existe
organização comum que os aproxime sem fazê-los perder sua individualidade e na
qual possam elaborar em comum uma regulamentação que, estabelecendo suas
relações mútuas, imponha-se a ambas as partes com a mesma autoridade; por
conseguinte, é sempre a “lei dos mais forte” que resolve os conflitos, e o
estado de guerra subiste inteiro. Salvo no caso de seus atos pertencentes à
esfera moral comum estão na mesma situação. A tese sociológica é a seguinte:
para que uma moral e um direito profissionais possam se estabelecer nas
diferentes profissões, é necessário, pois, que a corporação, em vez de
permanecer um agregado confuso e sem unidade, se torne, ou antes, volte a ser,
um grupo definido, organizado, uma instituição pública. A primeira observação familiar da crítica histórica
e sociológica de Émile Durkheim, é que a corporação tem contra si seu próprio
passado histórico. De fato, ela é tida como intimamente solidária do antigo
regime político e, por conseguinte, como incapaz de sobreviver a ele.
Na
história da filosofia, o que permite considerar as corporações uma organização
temporária, boa apenas para uma época e uma civilização determinada, é, ao
mesmo tempo, sua grande antiguidade e a maneira como se desenvolveram na
história. Se elas datassem unicamente da Idade Média, poder-se-ia crer, de fato
que, nascidas com um sistema político, deviam necessariamente desaparecer com
ele. Mas, na realidade, têm uma origem bem mais antiga. Em geral, elas aparecem
desde que as profissões existem, isto é, desde que a atividade deixa de ser
puramente agrícola. Se não parecem ter sido conhecidas na Grécia, até o tempo
da conquista romana, é porque os ofícios, sendo desprezados, eram exercidos
exclusivamente por estrangeiros e, por isso mesmo, achavam-se excluídos da
organização legal da cidade. Mas em Roma, comparativamente, elas datam pelo
menos dos primeiros tempos da República; uma tradição chegava até a atribuir
sua criação ao rei Numa, Numa, de origem sabina, foi o segundo rei de Roma
(datas convencionais: 717/715 - 673 a. C.), logo a seguir a Rómulo, um sabino
escolhido como segundo rei de Roma. Sábio, pacífico e religioso, dedicou-se a
elaboração das primeiras leis de Roma, assim como dos primeiros ofícios
religiosos da cidade e do primeiro calendário. É verdade que, por tempo, elas
tiveram de levar uma existência bastante humilde, pois os historiadores e os
monumentos só raramente as mencionam; não sabemos muito bem como eram
organizadas. Desde de Cícero, sua quantidade tornara-se considerável e elas
começavam a desempenhar um papel. Nesse momento, diz J.-P Waltzing (1857-1929),
“todas as classes de trabalhadores parecem possuídas pelo desejo de multiplicar
as associações profissionais” (cf. Durkheim, 2010).
Mas
o caráter socialmente desses agrupamentos se modificou; eles acabaram
tornando-se “verdadeiras engrenagens da administração” (cf. Altbach; Knight,
2007). Desempenhavam funções oficiais; cada profissão era vista como um serviço
público, cujo encargo e cuja responsabilidade ante o Estado cabiam à corporação
correspondente. Foi a ruína da instituição. Porque, segundo Durkheim, essa
dependência em relação ao Estado não tardou a degenerar numa servidão
intolerável que os imperadores só puderam manter pela coerção. Todas as sortes
de procedimentos foram empregadas para impedir que os trabalhadores escapassem
das pesadas obrigações que resultavam, para eles, de sua própria profissão.
Evidentemente, tal sistema de trabalho só podia durar enquanto o poder político
fosse o bastante para impô-lo. É por isso que ele não sobreviveu à dissolução
do Império. Aliás, as guerras civis e as invasões haviam destruído o comércio e
a indústria; os artesãos aproveitaram essas circunstâncias para fugir das
cidades e se dispersar nos campos. Assim, os primeiros séculos de nossa era
viram produzir-se um fenômeno que devia se repetir tal qual no fim do século
XVII: a vida corporativa se extinguiu quase por completo. Mal subsistiram
alguns vestígios seus, na Gália e na Germânia, nas cidades de origem romana.
Portanto, naquele momento, um teórico tivesse tomado consciência da situação,
teria provavelmente concluído, como o fizeram mais tarde os economistas, que as
corporações não tinham, ou, em todo caso, não tinham mais razão de ser, que
haviam desaparecido irreversivelmente, e sem dúvida teria tratado de retrógrada
e irrealizável toda tentativa de reconstituí-las. Os acontecimentos
desmentiriam uma tal profecia. De fato, após um “eclipse da razão” de algum
tempo caminhando para os nossos dias, as corporações recomeçaram nova
existência em todas as sociedades europeias.
Elas
renasceram por volta dos séculos XI e XII. Desde esse momento, diz Emile
Levasseur, “os artesãos começam a sentir a necessidade de se unir e formam suas
primeiras associações”. Em todo caso, no
século XII, elas estão outra vez florescentes e se desenvolvem até o dia em que
começa para elas uma nova decadência. Uma instituição tão persistente assim não
poderia depender de uma particularidade contingente e acidental; muito menos
ainda é possível admitir que tenha sido o produto de não sei que “aberração
coletiva”. Se, desde a origem da cidade até o apogeu do Império, desde o
alvorecer das sociedades cristãs aos tempos modernos, elas foram necessárias, é
porque correspondem a necessidades duradouras e profundas. Sobretudo, vale
lembrar que o próprio fato de que, depois de terem desaparecido uma primeira
vez, reconstituíram-se por si mesmas e sob uma nova forma, retira todo e
qualquer valor ao argumento que apresenta sua desaparição violenta no fim do
século passado como uma prova de que não estão mais em harmonia com as novas
condições de existência coletiva. A necessidade que todas as grandes sociedades
civilizadas sentem de chamá-las de volta à vida é o mais seguro sintoma
evidente dessa supressão radical não era um remédio e de que a reforma de
Jacques Turgot requeria outra que não poderia ser indefinidamente adiada. Mas
nem toda organização corporativa é anacronismo histórico. Acreditamos que ela
seria chamada a desempenhar, nas sociedades contemporâneas, menos pelo papel
considerável que julgamos indispensável, por causa não dos serviços econômicos
que ela poderia prestar, mas da influência moral que poderia ter. O que vemos antes de mais nada no grupo
profissional é um poder moral capaz de conter os egoísmos individuais, de
manter no coração dos trabalhadores um sentimento vivo de solidariedade comum,
de impedir que a “lei do mais forte” se aplique de maneira brutal nas relações
industriais e comerciais.
Mas
é preciso evitar estender a todo regime corporativo o que pode ter sido válido
para certas corporações e durante um curto lapso de tempo de seu
desenvolvimento. Longe de ser atingido por uma sorte de enfermidade moral
devida à sua própria constituição, foi sobretudo um papel moral que ele
representou e continua representando ainda, na maior parte de sua história.
Isso é particularmente evidente no caso das corporações romanas. Sem dúvida, a
associação lhes dava mais forças para salvaguardar, se necessário, seus
interesses comuns. Mas era isso apenas um dos contragolpes úteis que a
instituição produzia, lembra Durkheim: “não era sua razão de ser, sua função
principal. Antes de mais nada, a corporação era um colégio religioso”. Cada uma
tinha seu deus particular, cujo culto quando ela tinha meios, era celebrado num
templo especial. Do mesmo modo que cada família tinha seu Lar familiaris,
cada cidade seu Genius publicus, cada colégio tinha seu deus tutelar, Genius
collegi. Naturalmente, o culto profissional não se realizava sem festas,
que eram celebradas em comum sem sacrifícios e banquetes. Todas as espécies de
circunstâncias serviam, aliás, de ocasião para alegres reuniões, além disso,
distribuições de víveres ou de dinheiro ocorriam com frequência às expensas da
comunidade. Indagou-se se a corporação tinha uma caixa de auxílio, se ela
assistia regularmente seus membros necessitados, e as opiniões a esse respeito
são divididas. Mas o que retira da discussão parte de seu interesse e de seu
alcance é que esses banquetes comuns, mais ou menos periódicos, e as
distribuições que os acompanharam serviam de auxílios e faziam não raro as
vezes de uma assistência direta. Os infortunados sabiam que podiam contar com
essa subvenção dissimulada. Como corolário do caráter religioso, o colégio de
artesãos era, ao mesmo tempo, um colégio funerário.
Unidos,
como gentiles, num mesmo culto durante sua vida, os membros da
corporação queriam, como eles, dormir juntos seu derradeiro sono. A importância tão considerável que a religião
tinha em sua vida, tanto em Roma quanto na Idade Média, põe particularmente em
evidência a verdadeira natureza de suas funções; porque toda comunidade
religiosa constituía, então, um ambiente moral, do mesmo modo que toda
disciplina moral tendia necessariamente a adquirir uma forma religiosa. A
partir do instante em que, no seio de uma sociedade política, certo número de
indivíduos tem em comum ideias, interesses, sentimentos, ocupações que o resto
da população não partilha com eles, é inevitável que, sob a influência dessas
similitudes eles sejam atraídos uns para os outros, que se procurem, teçam
relações, se associem e que se forme assim, pouco a pouco, um grupo restrito,
com sua fisionomia especial da sociedade em geral. Porque é impossível que
homens vivam juntos, estejam regularmente em contato, sem adquirirem o
sentimento do todo que formam por sua união, sem que se apeguem a esse todo, se
preocupem com seus interesses e o levem em conta em sua conduta. Enfim, basta
que esse sentimento se precise e se determine, que, aplicando-se às
circunstâncias mais ordinárias e mais importantes da vida, se traduza em
fórmulas definidas, para que se tenha um corpo de regras morais em via de se
constituir. Ao mesmo tempo que se produz por si mesmo e pela força das coisas,
esse resultado é útil e o sentimento de sua utilidade contribui para
confirma-lo. A vida em comum é atraente, ao mesmo tempo que coercitiva. Para o
ponto de vista conservantista do método analítico durkheimiano, a coerção é
necessária para levar o homem a se superar, a acrescentar à sua natureza física
outra natureza; mas, à medida que aprende a apreciar os encantos dessa nova
existência, contrai a sua necessidade e não há ordem de atividade que não os
busque com paixão.
A
moral doméstica não se formou de outro modo. Por causa do prestígio que
a família conserva ante nossos olhos, parece-nos que, se ela foi e é sempre uma
escola de dedicação e de abnegação, o foco por excelência da moralidade, é em
virtude de características bastante particulares que teria o privilégio e que
não se encontrariam em ouro lugar em nenhum grau. Costuma-se crer que exista na
consanguinidade uma causa excepcionalmente poderosa de aproximação
moral. A prova está em que, num sem-número de sociedades, os não-consanguíneos
são muitos no seio da família; o parentesco dito artificialmente se contrai
então com grande facilidade e exerce todos os efeitos do parentesco natural.
Inversamente, acontece com grande frequência consanguíneos bem próximos serem,
moral ou juridicamente, estranhos uns aos outros; é, por exemplo, o caso dos
cognatos na família romana. Portanto, a família não deve suas virtudes à
unidade de descendência: ela é, simplesmente, um grupo de indivíduos que foram
aproximados uns dos outros, no seio da sociedade política, por uma comunidade
mais particularmente estreita de ideias, sentimentos e interesses. A
consanguinidade pode ter facilitado essa concentração, pois ela tem por efeito
natural inclinar as consciências umas em relação às outras. Outros fatores
intervieram: a proximidade material, a solidariedade de interesses, a
necessidade de união contra um perigo comum, ou simplesmente de se unir, foram
causas muito mais poderosas de comunicação social no processo produtivo. Mas,
para dissipar todas as prevenções, para mostrar bem que o
sistema corporativo não é apenas uma instituição do passado, seria necessário
mostrar que transformações ele deve e pode sofrer para se adaptar às sociedades
modernas, pois é evidente que ele não pode ser o que era na Idade Média.
Para
tanto, seriam necessários estudos comparativos que não estão feitos e que não
podemos fazer de passagem. Talvez, porém, não seja impossível perceber desde
já, mas apenas em suas linhas mais gerais, o que foi esse desenvolvimento. O
historiador que empreende resolver em seus elementos a organização política dos
romanos não encontra, no decurso de sua análise, nenhum fato que possa
adverti-lo da existência das corporações. Elas não entravam na
constituição romana, na qualidade de unidades definidas e reconhecidas. Em
nenhuma das assembleias eleitorais, em nenhuma das reuniões do exército, os
artesãos se reuniam por colégios, em parte alguma o grupo profissional tomava
parte, como tal, na vida pública, seja em corpo, seja por intermédio de
representantes regulares. No máximo, a questão pode se colocar a propósito de
três ou quatro colégios que se imaginou poder identificar com algumas das
centúrias constituídas por Sérvio Túlio, a saber: tignari (construtores
de casas), aerari (corporação clerical), tibicines (monumento
funerário), corporações cornicínes (espécie de pizza enrolada), mas ainda assim
o fato social não está bem estabelecido.
Quanto
às outras corporações, estavam certamente fora da organização oficial do povo
romano. Ora, por muito tempo os ofícios não foram mais do que uma forma
acessória e secundária da atividade social dos romanos. Roma era essencialmente
uma sociedade agrícola e guerreira. No primeiro era dividida em gentes e em
cúrias; a assembleia por centúrias refletia antes a organização militar. Quanto
às funções industriais, eram demasiado rudimentares para afetar a estrutura
política da cidade. Aliás, até um momento bem avançado da história romana, os
ofícios permaneceram marcados por um descrédito moral que não lhes permitia
ocupar uma posição regular no Estado. Sem dúvida, veio um tempo em que sua
condição social melhorou. Mas a própria maneira como foi obtida essa melhora é
significativa. Para conseguir fazer respeitar seus interesses e desempenhar um
papel na vida pública, os artesãos tiveram de recorrer a procedimentos
irregulares e extralegais. Só triunfaram sobre o desprezo de que eram objeto
por meios de intrigas, complôs, agitação clandestina. E, se, mais tarde,
acabaram sendo integrados ao Estado para se tornar engrenagens da máquina
administrativa, essa situação como foi, para eles, uma conquista gloriosa, mas
uma penosa dependência; se entraram então no Estado, não foi para nele ocupar a
posição a que seus serviços sociais podiam lhes dar direito, mas simplesmente
para poder ser mais bem vigiados pelo poder governamental.
A
Revolução de 1930, apesar de tudo, não passou de um rearranjo do velho bloco de
poder, que cooptou - e, desse modo, neutralizou e subordinou – alguns setores
mais radicais das camadas médias urbanas; a burguesia industrial floresceu sob
a proteção de um regime bonapartista, o Estado Novo (1937-45), que assegurou
pela repressão e pela demagogia a neutralização da classe operária, ao mesmo
tempo em que conservava quase intocado o poder do latifúndio.. Mas essa
modalidade de via prussiana, ou de ´revolução-restauração, encontrou seu ápice
no regime militar, que criou as condições políticas de implantação de uma
modalidade dependente e conciliada com o latifúndio de capitalismo monopolista
de Estado, radicalizando a tendência a excluir das decisões políticas as grandes
massas urbanas da população nacional. Golpes
de Estado são característicos de momentos em que grupos políticos de oposição
extrapolam a legalidade e, por vezes, fazem uso da violência para derrubar um
governo legítimo. O termo golpe de Estado é conhecido em sua versão francesa, “coup
d’État”, e em sua versão alemã, “Staatssreich”, identificando uma ruptura institucional
repentina. O primeiro evento a ser considerado como golpe de Estado é o chamado
“18 Brumário”, de Napoleão Bonaparte analisado por Marx.. O controle do Estado passa
subitamente das mãos do governo constitucionalmente eleito para outro grupo de
governantes. Esta é a condição que caracteriza o conceito proveniente das
mudanças de paradigma propostas pelo Iluminismo e pela revolução clássica
francesa. Antes desta conjuntura política, as rupturas institucionais não eram
chamadas de revolução, o que, hoje, se entende como profundo processo de
transformação social provocados com a participação popular. Logo, golpe de
Estado passou a representar as vias
excepcionais de tomada do poder, recorrendo ao apoio militar ou de outras facções
no poder que utilizam a quartelada parlamentar. Têm-se a suspensão do poder
Legislativo, a perseguição aos oposicionistas, instauração de um quadro de exceção
e decretação de novos meios jurídico-políticos. A prática do golpe de Estado
legal parece ser a nova estratégia das oligarquias latino-americanas, e
particularmente, com o afastamento ilegal de Dilma Rousseff da presidência da República,
eleita com maioria de 54 milhões de votos.
De
acordo com Michael Löwy (2016), o que a tragédia de 1964 e a farsa de 2016 têm
em comum é o ódio à democracia. Os dois episódios revelam o profundo desprezo
que as classes dominantes brasileiras têm pela democracia e pela vontade
popular. Em 1964, grandes manifestações “da família com Deus pela liberdade”
prepararam o terreno para o golpe contra o presidente João Goulart; dessa vez,
multidões “patrióticas” – influenciadas pela imprensa submissa – se mobilizaram
para exigir a destituição de Dilma, em alguns casos chegando a pedir o retorno
dos militares. Formadas essencialmente por brancos, pois como sabemos, os
brasileiros são em maioria negra ou mestiça, e como dizia Darcy Ribeiro: “mestiço é que é bom”, de classe média, essas multidões
foram convencidas pela mídia que age como partido político de que, nesse caso,
o que está em jogo é “o combate à corrupção”.
O
site norte-americano “The Intercept” publicou uma matéria na sexta-feira
(18/03) na qual afirma que “as corporações de mídia” do Brasil agem como
“organizadoras de protestos” contra a presidente do Brasil, Dilma Rousseff, e o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na matéria, a grande imprensa é
classificada ainda como “máquinas de relações públicas de partidos de
oposição”. O “Intercept” adverte que perfis pessoais de jornalistas da Rede
Globo no “Twitter” exibem uma “incessante agitação anti-PT”. Um dos cofundadores
de “The Intercept” é o jornalista Glenn Greenwald, que assina a matéria e vencedor em 2014 do prêmio Pulitzer por Serviço Público após a publicação de Relatórios
sobre vigilância dos governos dos EUA e do Reino Unido. Greenwald teve como
base documentos “vazados” por Edward Snowden, ex-agente da Agência de
Segurança Nacional dos Estados Unidos da América.A
mídia ao redor do mundo está atenta ao golpe de Estado contra a presidenta
Dilma Rousseff e a perseguição judicial que tenta atingir o ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva. Sob o título “Crise de Estado no Brasil: golpe frio”, uma
reportagem da revista semanal de notícias “Der Spiegel”, da Alemanha, analisou
a crise política e a possibilidade de golpe em vigor no Brasil. O autor da
reportagem, o jornalista Jens Glüsing, diz o que ocorre no País é uma tentativa
de “golpe frio”. Nas manifestações a favor da presidenta Dilma e do
ex-presidente Lula não se viu discursos de ódio, enquanto noutros havia “cada
vez mais golpistas, extremistas de direita e intolerantes”. Em longa
reportagem, “Al Jazeera” também analisa o comportamento da imprensa na
cobertura da crise política brasileira. A emissora lembra que cinco famílias
monopolizam grande parte da mídia televisada nacional: Marinho (rede Globo de
Televisão), Frias (Folha de S. Paulo), Civita (revista Abril Cultural), dona da
revista Veja, Saad (rede Bandeirantes de Televisão) e bipo Macedo (rede Record
de Televisão).A
mídia corporativa brasileira age como os verdadeiros organizadores dos
protestos e como relações-públicas dos partidos de oposição. Os perfis no Twitter de alguns jornalistas mais
influentes (e ricos) da Rede Globo contém incessantes agitações anti-PT. Quando
uma gravação de escuta telefônica de uma conversa entre Dilma e Lula foi
interceptada, o programa jornalístico mais influente da [rede] Globo, o Jornal
Nacional, “fez suas âncoras relerem teatralmente o diálogo”. De melodramática e
em tom de fofoca, que se parecia literalmente com uma novela distante de um
jornal, causando ridicularização generalizada nas redes.
Todo leitor socialmente mediano
sabe que durante meses, as quatro principais revistas jornalísticas do Brasil
dedicaram capa após capa a ataques inflamados contra Dilma e Lula, geralmente
mostrando fotos dramáticas, abusadas, de um ou outro, sempre com uma
narrativa impactantemente unificada.A
crise de hegemonia política que assombra o Brasil atrai substancialmente a
atenção da mídia internacional. O que é compreensível, já que o Brasil é o quinto
país mais populoso representando, além disso, a oitava economia do mundo. Sua
segunda maior cidade, o Rio de Janeiro, é a sede das Olimpíadas deste ano. Boa
parte dessa cobertura internacional é repetidora do discurso que vem das fontes
midiáticas homogeneizadas, antidemocráticas e mantidas por oligarquias no
Brasil e, essa informação é enviesada, ideologizada, pouco
precisa e incompleta, especialmente quando vem daqueles profissionais com pouca
familiaridade com o país, embora haja repórteres internacionais fazendo um
ótimo trabalho de comunicação social.O
Brasil está enfrentando sua pior crise econômica das últimas décadas. Um enorme
esquema de corrupção tem prejudicado a empresa pública petrolífera nacional. Quando
a mídia internacional fala sobre crise, ela tem como escopo os crescentes
protestos que forjam o “impeachment” da presidente Dilma Rousseff. As fontes
midiáticas tipicamente mostram os protestos de forma idealizada, com certa
adoração: “como movimentos de massa inspiradores que se levantam contra um
regime corrupto”. Chuck Todd, da NBC News, replicou Ian Bremmer do Eurasia
Group, descrevendo os protestos como “O povo contra a presidente” – fabricado, condizente com o que é noticiado por grupos midiáticos brasileiros
anti-governo, como a rede Globo de televisão.
O
Partido dos Trabalhadores (PT) está na presidência há 14 anos: desde 2002. Sua
popularidade foi um subproduto do antecessor carismático de Dilma, Luís Inácio
Lula da Silva, universalmente referido como “Lula”. A ascensão de Lula à
presidência foi um símbolo poderoso da luta da classe pobre no Brasil durante a
democracia: um trabalhador e líder sindical, de uma família pobre, que deixou a
escola na segunda série e não sabia ler até os 10 anos, preso pela ditadura por
atividade na luta sindical. O ex-presidente foi motivo de riso para elites
brasileiras por meio de um tom classista no discurso sobre seu jargão
trabalhista e sua forma de falar. Eleito em 2002 e reeleito em 2006, ele deixou
o cargo com taxas de aprovação tão altas que foi capaz de garantir a eleição de
Dilma Rousseff, sua sucessora, antes aparentemente desconhecida pela classe
trabalhadora, e que foi reeleita em 2014. Há muito tempo se cogita que Lula –
um político que se opõe publicamente a medidas de austeridade – pretende
concorrer novamente para a presidência em 2018 depois de completo o segundo
mandato de Dilma, e forças anti-PT se sentem petrificadas com a ideia de que
Lula vença novamente. Daí o discurso do ódio. Embora as oligarquias brasileira
tenha usado o Partido da Social Democracia Brasileira, partido de centro-direita, de forma bem sucedida como um
contrapeso, o partido foi impotente para derrotar o Partido dos Trabalhadores em quatro eleições
presidenciais consecutivas. Mesmo com o voto obrigatório os eleitores pobres
garantiram as vitórias do Partido dos Trabalhadores.
Bibliografia
geral consultada.
DERRIDA, Jacques,
“O Teatro da Crueldade e o Fechamento da Representação”. In: A Escritura e a Diferença. 2ª edição.
São Paulo: Editora Perspectiva, 1995; Idem, O
animal que logo sou (a seguir). São Paulo: Editora UNESP, 2002; HERZ, Daniel, A História Secreta da Rede Globo. 13ª
edição. Porto Alegre: Editor Ortiz, 1989; BRITTOS, César Cruz; BOLAÑO, Valério
Ricardo Siqueira, 40 Anos de Poder e
Hegemonia. Rio de Janeiro: Editora Paulus, 2005; MONTAIGNE, Michel, “Da crueldade”.
In: Ensaios. São Paulo: Editora Nova
Cultural, 2000, volume 1; pp. 358-370. (Os
pensadores); AGAMBEN, Giorgio, Homo
Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I. 2ª edição. Belo Horizonte: Editora
Universidade Federal de Minas Gerais, 2002; FOUCAULT, Michel, As Palavras
e as Coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas. São Paulo: Editora Martins
Fontes, 2007; MAGNONI, Maria Salete, Imprensa como Instância de Poder: Uma Leitura das Recordações do Escrivão Isaías Caminha de Lima Barreto. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2010; MAINENTI, Geraldo Márcio Peres, “O Jornalismo como Quarto Poder: A Liberdade de Imprensa e a Proteção dos Direitos da Personalidade”. Alceu, volume 14, n. 28; pp. 47-61; jan./jun. 2014; LOWY, Michael, “O Golpe de Estado de 2016 no Brasil”. Disponível
em: https://blogdaboitempo.com.br/2016/05/17; NAPOLITANO, Paola, Neogolpismo na América Latina: Uma Análise
Comparativa do Paraguai (2012) e do Brasil (2016). Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina. São Paulo: Universidade
de São Paulo, 2019; NAPOLITANO, Marcos, “Golpe de Estado: entre o nome e a
coisa”. In: Estudos Avançados, 33 (96), 2019; POZZI, Henrique Costa, Golpe
de 2016: Uma Análise a partir dos Editoriais da FSP, O Globo e OESP. Dissertação
de Mestrado em Ciências Sociais. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências
Sociais. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2019; entre outros.
_______________
*
Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ) e Doutor em Ciências junto à Escola
de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de
Ciências Sociais. Fortaleza: Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará
(UECE).
Ótimo artigo! Parabéns...
ResponderExcluir